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Psicologia USP

versión On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.5 n.1-2 São Paulo  1994

 

RESENHA

 

Poesia e psicoterapia

 

 

Ana Maria Loffredo, A CARA E O ROSTO. ENSAIO SOBRE GESTALT TERAPIA. São Paulo, Ed. Escuta, 1994.

Este livro de Ana Maria Loffredo, recentemente publicado, tem por tema principal o poético, temática que ao longo do texto sofre profundas alterações: de objetivo a ser alcançado e de objeto a ser pesquisado passa a fio condutor. A atenção da autora vai gradualmente se deslocando do "fazer poético" para "as condições que favorecem a palavra em estado de liberdade, a dialética sutil entre abandono e rigor, o exercício do diálogo entre pensamento disciplinado e a imaginação criadora".

Lembrando-me de Otávio Paz, diria, trata-se de uma pesquisa que busca a concentração neste ponto de conjunção delicada entre trabalho e inspiração. Na ânsia de precisar mais acuradamente seu objeto de pesquisa, a autora diz: "se a poesia está em estado de liberdade e não tem dono, o que importa é delinear como se forma o ninho para que nele se aninhe a potencialidade de sua emergência".

E precisa:

no espaço terapêutico, cujos limites se desenham através dos pressupostos que o sustentam, recorta-se uma espécie de moldura. Esta será depositária de conteúdos, imprevisíveis, mutantes que, simultânea e paradoxalmente, testam sua eficácia como promotora de sua possibilidade. Pois que o quadro, prenhe de imaginário, contido na necessária, inevitável e essencial moldura, sempre a transcende. Foi então que meu interesse convergiu para o método através do qual se operacionaliza o trabalho terapêutico, método que procura as condições para que a especificidade criativa desse espaço possa se realizar.

Ou seja, o espaço terapêutico, de lugar onde inadvertidamente o poético se instala, passa, ao longo do texto, a meio que, por suas características próprias, pode promover o criativo. Da preocupação com o poético, a autora passa a trabalhar com uma questão de método. E o exercício da sua própria prática, de muitos anos, na Gestalt Terapia justificou, para a autora, essa torção da intencionalidade. E, de meu ponto de vista, acarretou no livro a instalação de um mal-entendido.

Com efeito, pode-se ler nas conclusões: "tudo começou com a turbulência que a palavra do poeta-teórico O. Paz provocou". Ela parecia revelar de modo estranho algo muito familiar ao vivido na situação terapêutica. E aí lança-se, no livro, a pergunta-chave: o que se produz nessa situação é poesia ou algo aparentado a ela?

Logo no início da Introdução, é afirmado: "como a situação terapêutica é necessáriamente atravessada pela fala e todos os objetos de interesse que foram recortados, este trabalho é dedicado à palavra". Portanto, é claramente na intersecção poesia-terapia que o pensamento de Ana Loffredo se assenta, base e tema que encontram condensação perfeita no título da conclusão: "de cotovelos apoiados no parapeito da palavra: no cenário clínico, qual é o horizonte?" Ou seja, é da palavra que o livro trata. A autora inicia com ela, conclui por ela, vai além dela, pois dedica o texto a ela. Palavra poética, portanto, não uma palavra qualquer. E contexto clínico, também é evidente, não quer dizer um contexto qualquer. Porém, a palavra da autora diz no início, "meu amplo alvo, o primeiro que nesse momento se confunde com meu ponto de partida, meu pretexto/pré-texto, é meu trabalho terapêutico a partir da Gestalt Terapia. A que texto me levou?"

Ora, é esse um começo mais que perfeito para um texto que pretende chegar ao poético partindo do poético, pois não há poesia senão na órbita do indeterminado e da imersão do sujeito no objeto e deste naquele. A questão aberta no livro — a que texto esse pré-texto e contexto levou a escritora — também era a minha pergunta ao começar a leitura.

Porém, quando passamos pelos vários capítulos e chegamos à -conclusão, encontramos um nó pelo qual a autora diz — "eu me percebia girando em círculos" e "foi se formando a impressão que eu não chegaria a lugar algum". E, com efeito, percebo que já no início prefigurava-se esse perigo:

as palavras, por vezes, me atrapalham quando tento rigorosamente -editar o meu vivido através delas, descrevendo-o. Então, ao tentar descrever, sigo o caminho do relato. Ou, na melhor das hipóteses, da prosa. E nesta, quem sabe, da novela. Mesmo nesse caso, como desenovelar novelos, desatar fios, desatar pontos cegos e trazer à luz o < sentido, aprisionado e mudo no emaranhado de suas tantas e múltiplas direções?

Muito sábia essa interrogação. No entanto, não me parece ter sido levada radicalmente a sério na âmbito do livro. Como escreveu Leyla Perrone-Moisés, escritora que também pensa a poesia:

a linguagem não é só meio de sedução; é o próprio lugar da sedução. Nela o processo de sedução tem seu começo, meio e fim. As línguas, estão carregadas de amamos, de filtros amatórios, que não dependem nem mesmo de uma intenção sedutora do emissor (...). Afinal, o próprio das palavras é desviar-nos do caminho reto do sentido. Supõe-se que o objetivo da fala seja dizer o mundo e agir sobre ele. Mas, se prestarmos ouvidos às palavras, elas mesmas — isoladas ou reunidas em blocos que por si só não constituem uma significação -, encantamo-nos, distraímo-nos, e não chegamos a nada de prático. O extremo desse desvio (ou dessa sedução) chama-se poesia.

Ora, escreve Ana Loffredo, "ao me inscrever no vivido da palavra que me vem de presente, no presente, sem pedir licença, sigo o caminho do poema. Não posso saber se faço ou não, nesse caso, uni bom poema..." (Pode-se perguntar, quem sabe? Nem mesmo o melhor dos poetas sabe). E o texto continua:

desvencilhada da questão ética-estética do bom-mal, feio-bonito, posso me debruçar com os cotovelos na janela da experiência poética sem compromisso com a boa criação, mas perseguindo regras — caso existam — da criação.

Maravilha! Ana Loffredo encanta o leitor com sua escrita. No entanto, seu ensaio seria um belo poema não fossem os terríveis mal-entendidos que gravitam em torno da Gestalt Terapia e que obrigaram a autora, submetendo o seu pensamento e a sua fala a uma tarefa de esclarecimento, recorrente, do que essa abordagem é e o que ela não é. Nesse sentido, até a ordenação dos capítulos segue o ritmo da recorrência: da apresentação histórica da G.T., passa-se à questão da linguagem — o poético na situação terapêutica, e daí à metodologia da awareness e desta à da interpretação para, logo, concluir. Isto é, somos levados a nos aproximar do poético para dele sermos afastados muito rapidamente. A autora tem tudo, inicialmente, para tomar atalhos e seguir os desvios sedutores da linguagem, mas a isso renuncia em prol do caminho reto do esclarecimento conceituai: "Não pretendia inicialmente começar esse trabalho pelas origens e fontes da G.T. Pensava ser um tanto monótono, sem graça, recorrente etc. Mas cedi a esse movimento e pude justificá-lo a posteriori".

Os motivos são apresentados, mas a autora conclui:

como esse capítulo não acabava nunca mais, descobri que refazer o histórico é uma história sem fim e que deve haver algum grau de arbitrariedade, de escolha, para brecar esse movimento. Nesse caso, supus que esse cenário já estava suficiente para dar abrangência à montagem das peças que viriam a seguir.

Porém, o corte é feito tarde demais e o cenário monótono (concordo com a autora), torna-se figura (mesmo como fundo ele é parte da estrutura) e determina os caminhos que o livro deverá tomar. Os capítulos 3 e 4 são a prova: a discussão recorrente e sem fim das questões de método suplantam e sufocam uma outra questão que muito timidamente desponta para logo desaparecer: a questão do estilo ("uma das características que definem um Gestalt terapeuta é a busca de um estilo próprio"). Ou seja, o livro opta claramente pelo caminho reto, o do método, ao invés do desvio que a poesia representa e encarna e que a autora percebe presente no contexto terapêutico e que poderia ser trabalhado melhor via noção de estilo.

Se um dos ângulos pelo qual os mal-entendidos da G.T. podem ser apreendidos é o que leva a enquadrar a abordagem gestáltica como anti-intelectual ou anti-teoria, parece-me que o texto de Ana Loffredo quer se colocar como um antídoto, às voltas com certas ginásticas intelectuais, para desfazer o mal-entendido original, apegando-se às questões de método para saná-lo ou requalificar, teoricamente a sua abordagem. Entretanto, com o procedimento adotado no livro, corremos o risco de perder de vista o poético enquanto linguagem e experiência. Nessa medida, a leitura que este trabalho pede é árdua porque vai se tornando ansiosa. Isto é, para quem espera alcançar um saber poético pelo sabor das imagens, a questão que se impõe é a mesma que a autora formula ao final do trabalho — "cadê a poesia?'. E a resposta que se propõe, também ao final, através de O. Paz, não é inteiramente convincente:

não dizia Paz que a poesia pode estar em qualquer lugar, que não se restringe ao poema, embora nele se condense na forma mais plena? Que nenhuma situação nem ninguém, tem, a priori, a propriedade da experiência poética? Que a poesia, de certa forma, está disponível para qualquer um que tenha condições de, a ela, se dispor? (...) Descobri que eu já tinha chegado a algum lugar, que era meu ponto de partida e não, eventualmente, meu ponto de chegada.

Há que se concordar com a autora, no sentido em que o círculo do mesmo se impõe à sua reflexão. No entanto, como pensar a poesia como o já dito e explicitado no princípio quando para a própria autora, neste texto em particular, é um não-saber que move o poeta?

É porque há esse indeterminado que todo o terceiro tópico do capítulo 2 se justifica. Pode-se ler aí: "ao ler O. Paz, parecia-me reconhecer, na sua vivida apresentação da criação poética, algo aparentado com o que eu vivia no processo terapêutico... estava ali algo obscuro, porém envolvente" — obscuridade da qual a autrora procurou se aproximar não só por Paz, mas também por Barthes, Bachelard, João Cabral, Leminsky, Valery. E é da conjunção de todos eles que lhe surge ser o poético uma experiência rigorosa ligada a um projeto de lucidez, uma turbulência de sentidos, que se faz presente como atrevimento. E, finalmente, uma experiência do abandono que instaura a possibilidade do imprevisível.

Ora, para polarizar discurso neurótico e discurso poético, como "A Cara e o Rosto" propõe, caberia desenvolver, pela via dessas poéticas escolhidas, a tematização do tornar visível o invisível, operação subjacente a todo estado poético e que só se realiza no encontro do objeto sensível que é o poema com o leitor que o consagra pela percepção. A obra que aspira ser poética precisa induzir no leitor o que Valery chama de estado poético, um modo de ser da subjetividade que é suscitado pelo ser do objeto, atualizando a intenção que o anima.

Mikel Duffrene, um dos grandes estetas contemporâneos de índole fenomenológica, pensou sobre o poeta e o poético. E sua reflexão, como a de Bachelard e de todos os poetas aos quais Ana Loffredo se expos, é fulminante: Ele diz:

habitar poeticamente o mundo (como queria Hõlderlin com a poesia e como pretendeu Merleau-Ponty com a filosofia) é experimentar uma situação originária que não se resolve num ato como os que a necessidade ou o hábito suscitam, mas que se quer dizer.

E, conclui,

nenhuma disposição conceituai poderá traduzir esse sentimento fundamental do mundo, porque todo conceito está voltado à inteligência dos objetos. Somente a linguagem poética pode exprimi-lo. O poetizável e, mais geralmente, o que é passível de arte, é o objeto cujos contornos se esfumam, ou melhor, cuja significação se ilimita, e que se torna figura ou centro de um mundo.

Esse sentimento é o da união do homem com o mundo, união da qual fala a linguagem propriamente poética que se desdobra em mito, que se organiza em cosmogonia ou em teogonia. São as potências e os deuses que a palavra poética evoca, porque é do poeta moderno remontar às origens da linguagem, aquém da prosa, para facultar a emergência das imagens primordiais, àqueles que não possuem a clareza e a univocidade da coisa sabida em si mesma, embora já sejam percebidas. São imagens que formam a primeira repercussão do mundo no homem. E é do poeta libertar essas imagens fixando as nas palavras que solicitam, abrir por essa via um mundo onde o leitor, seu outro, possa, por sua vez, penetrar. Experiência da intersubjetividade é concretamente o que realiza a experiência poética, como experiência estética. Ou seja, se os poetas são sedutores, como diz Leyla Perrone-Moisés, é porque foram vítimas de uma sedução primeira, exercida pela própria linguagem. Porém, é pela via desviante da poesia que o teórico encontrará junto ao poeta matéria-prima para pensar um encaminhamento para a tensão sujeito-objeto, para a questão da intersubjetividade que, essencialmente, é a questão deste livro tenso, fundado que é na experiência clínica-terapêutica da autora e na sua interrogação. Se a experiência poética é uma manifestação da alteridade constitutiva do humano é porque ela surge concretamente pela palavra que é o meio de que o homem dispõe para fazer-se outro. Ao transformar-se em imagem poética, pensa O. Paz, a palavra converte o eu do diálogo (cada um fala consigo mesmo ao falar com os outros) em tu do monólogo (não sou eu que ouço, mas sim o outro que escuta aquilo que diz a si mesmo), reconciliando pluralidade e identidade, sujeito e objeto. Nessa medida, pela "via noturna do homem poético" (Bachelard), caminho das metáforas e das imagens, nem sempre reto, Ana Loffredo certamente teria encontrado mais facilmente o horizonte que tanto procura e que vislumbrou, afinal, em sua conclusão do livro. Pela via do poético, via da promiscuidade aderida ao verbo, da sedução, do devaneio, da androginia do originário, a autora teria encontrado a força necessária para cumprir seu projeto que é, em princípio, também filosófico, isto é, desfazer mal-entendidos sem se ater ao discurso clarificado, isento de frouxidão e ambigüidade, pois como dissera Bachelard:

o poeta é o guia natural do metafísico que quer compreender todas as potências de ligações instantâneas, o ímpeto do sacrifício, sem se deixar dividir pela grosseira dualidade filosófica de sujeito e objeto, sem se deixar deter pelo dualismo do egoísmo e do dever.

A Cara e o Rosto não é, portanto, um livro para ser lido apressadamente. Se o leitor quiser, pode exigir meditação. Ao procurar explicar o poético pela via ensolarada das abstrações conceituais, a autora deixa um belo trabalho correr o mesmo risco da Gestalt Terapia: o risco dos mal-entendidos.

 

João A. Frayze-Pereira
Instituto de Psicologia — USP