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Winnicott e-prints
versión On-line ISSN 1679-432X
Winnicott e-prints vol.10 no.1 São Paulo 2015
ARTIGOS
Transtornos psicossomáticos e o brincar: um caso clássico
Psychosomatic disorders and play: a classic case
Tânia Corrallo Hammoud1
Centro Winnicott de São Paulo
RESUMO
Este texto traz algumas articulações entre a tarefa básica do amadurecimento, a integração psicossomática, e o brincar. Na compreensão winnicottiana, essa tarefa é entendida como uma das possibilidades fundamentais do espaço potencial. As articulações são tecidas por meio do caso da menina das convulsões, apresentado em três momentos diferentes na obra de Winnicott.
Palavras-chave: convulsões; integração psicossomática; brincar; espaço potencial.
ABSTRACT
This text presents some connections between the basic task of maturation, the psychosomatic integration, and play, seen on Winnicott's understanding as one of the possibilities of potential space. The theoretical articulations will be hold through the girl with convulsions' case, presented in three different moments in the work of Winnicott.
Keywords: convulsions; psychosomatic integration; play; potential space.
1. Introdução
Winnicott entende a natureza humana como um contínuo processo de vir a ser, que depende, para sua existência significativa, da possibilidade de interação entre a pessoa que cresce e o ambiente apoiador. Para ele, o que acontece de significativo no viver é criado no espaço potencial, âmbito intermediário entre o subjetivo e o objetivo. A conquista do amadurecimento se dá depois que o ambiente garantir a integração do bebê no espaço, no tempo e em seu próprio corpo.
No espaço potencial, duas pessoas encontram-se de maneira especial. A um só tempo, cada uma delas deve não só ser e estar nele pessoalmente como também conceder à outra a mesma possibilidade. Nesse processo de amadurecimento, duas garantias são necessárias: a continuidade da existência pessoal a partir de um movimento próprio de cada indivíduo, com suas características únicas, e o contato compartilhado com a realidade externa.
Uma das questões mais importantes no transcurso do amadurecimento é o estabelecimento da confiança do indivíduo em seu ambiente. Nessa base de confiança, o mundo, apresentado ao indivíduo em pequenas doses, será encontrado a partir do próprio indivíduo, levando-o à experiência da ilusão onipotente de sua criação. A partir dessa experiência, outras tornam-se possíveis nessa jornada.
A passagem pela transicionalidade que leva à existência do espaço potencial e ao brincar é de fundamental importância. Nela, conjugam-se as realidades pessoal e externa. Dessa forma, nas tramas do essencialmente pessoal e mesmo com o mundo percebido objetivamente, o indivíduo pode entrelaçar sua subjetividade, preservando-a até certo ponto. Ambos, mundo pessoal e realidade externa, podem existir e coexistir, enriquecendo-se mutuamente. O brincar é essencial nesse processo, pois cria as bases das conquistas pessoais e das que fazem parte da cultura e da convivência compartilhada entre os indivíduos: "Para mim, o brincar conduz naturalmente à experiência cultural e, na verdade, constitui o seu fundamento" (Winnicott, 1971q/1975, p. 147).
Embora seja "uma forma básica do viver" (Winnicott, 1968i[1967]/1975, p. 75), a possibilidade de brincar não está garantida para todos. "A precariedade do brincar está no fato de que ele se acha na linha teórica existente entre o subjetivo e o que é objetivamente percebido" (Winnicott, 1968i[1967]/1975, p. 75). Desse modo, o brincar pode ser ameaçado em função do lidar com a tarefa de se equilibrar nesse fio de navalha entre o pessoal e o externo.
A essencial integração psicossomática, por sua vez, atravessa todo o processo de amadurecimento. Ela se relaciona com algo árduo como tarefa e que pode vir a se perder a qualquer momento. Winnicott afirma que não existe área do desenvolvimento da personalidade não envolvida com essa tarefa específica de integração psicossomática (Winnicott, 1966d[1964a]/1994, p. 88). O espaço potencial e as possíveis experiências através dessa conquista desempenham papel essencial nessa integração. Vale ainda frisar que, ao se constituir como distúrbio em função de alguma falha nessa trajetória, a dissociação psicossomática carrega em si a esperança de que algo possa ser feito para que essa unidade pessoal não se perca, seja recuperada. Há ainda a esperança de que alguém possa ouvir e entender esse pedido de socorro (Winnicott, 1966d[1964a]/1994, p. 90).
Este texto buscará mostrar a relação entre a tarefa básica do acontecer humano, a integração psicossomática, e sua possível dissociação. O brincar será entendido como condição para a saúde, a participação e a construção do mundo cultural e para a análise. "Quando um paciente não pode brincar, o psicoterapeuta tem de atender a esse sintoma principal" (Winnicott, 1968i[1967]/1975, p. 71). O caso que dará suporte a essa articulação é citado por Winnicott em diferentes momentos de sua obra: é o de uma menina que apresenta uma dissociação psicossomática e convulsões e perde a possibilidade de brincar.
2. A integração psicossomática e o brincar na obra de Winnicott
Em seu primeiro livro, Clinical Notes on Disorders of Childhood (1931e), voltado basicamente a casos psicossomáticos, Winnicott relata o caso de uma menina que sofria de convulsões – mesmo caso retomado no texto "A observação de bebês em uma situação estabelecida" (1941b/2000). O psicanalista estava então interessado na observação de bebês, na situação que viria a ser conhecida como o jogo das espátulas. Algum tempo depois, ele retoma o mesmo caso em O brincar e a realidade (Winnicott, 1971a/1975), relatando o significado e a importância do brincar.
Através desse caso, Winnicott percorre todo o seu desenvolvimento teórico e faz um entrelaçamento entre a integração psicossomática e o brincar. Ao longo deste texto, buscarei expor em detalhes as articulações que se sucedem em seus escritos.
Em 1931, o autor afirma que a menina sofria de convulsões muito frequentes. Relata, então, um fato ocorrido em seu consultório: "Sentada em meu colo, depois de muito chorar, a menina mordeu violentamente a junta de meu dedo. Esse ataque agressivo coincidiu exatamente com a cessação das convulsões e com uma melhora clínica bastante pronunciada (...). Enquanto estava no meu joelho, ela conseguiu participar da brincadeira" (Winnicott apud Araújo, 2005, pp. 165-166).
Ele se refere a outro caso, citado por outro médico: ao mamar, um bebê morde o seio da mãe e esta reage gritando. Nesse mesmo dia, a criança teve sua primeira convulsão.
Ao articular a compreensão desses dois casos, Winnicott, ainda bastante fiel à teoria kleiniana, conclui que as convulsões estão relacionadas a um tipo de culpa, vinculada ao morder e ao machucar aquilo que também é amado. "É uma experiência bastante comum. Ao investigarmos o início das convulsões, encontramos uma relação entre a primeira convulsão e uma situação na qual a atitude dupla da criança em relação à mãe na fase oral veio à tona" (Winnicott apud Araújo, 2005, pp. 165-166).
Embora a ênfase de sua análise esteja concentrada no mundo interno – culpa inconsciente de machucar o que é amado –, é possível perceber que em 1931 está aberto o caminho para a compreensão de que a reação da mãe como ambiente externo entra na formação do sintoma. O brincar propiciado por outro ambiente tem participação decisiva na cura do sintoma. A mãe que grita e o médico que não reage à mordida da menina parecem apontar que o ambiente/mãe tem participação na formação e na cura do sintoma.
Em 1941, no texto "A observação de bebês em uma situação estabelecida", presente no livro Da pediatria à psicanálise, Winnicott retoma o caso. Ele descreve sua experiência com bebês que se relacionam com a espátula usada em um exame clínico. Trata-se de um jogo no qual Winnicott não interfere nos movimentos do bebê e pede à mãe que também não o faça. Ele está interessado em demonstrar como a observação de bebês comprova sua teoria a respeito do desenvolvimento humano, e como uma simples experiência pode, por si mesma, contribuir para a melhoria dos sintomas (Winnicott, 1941b/2000, pp. 115-116).
O bebê fica no colo da mãe e uma espátula é colocada em um canto da mesa, ao alcance do bebê. Nessa situação, os bebês que estiverem se desenvolvendo bem agirão de forma muito semelhante.
O jogo tem basicamente três fases. Na primeira delas, a criança tem sua atenção despertada pela espátula e busca alcançá-la. Assim que a pega, descobre que a situação merece reflexão. Ela hesita. É nesse momento que os bebês, sentindo alguma ansiedade, mostrarão seu mal-estar. Se tudo estiver correndo bem, eles rapidamente passarão para a segunda fase. Caso contrário, a hesitação se prolongará e se manifestará sob várias formas – esse é o caso do bebê das convulsões.
Na segunda fase, o bebê percebe, olhando para a mãe sempre tranquila, que tudo está bem e agarra de novo a espátula. Nesse momento, ele saliva intensamente, coloca a espátula na boca e a morde. A hesitação se transforma na manipulação confiante da espátula. Em seguida, começa o brincar, forma que os bebês usam para relacionar-se com o mundo. Ele se comporta como se quisesse devorar, com grande prazer, a espátula. Na elaboração imaginativa, ele devorou, de fato, o objeto que agora lhe pertence e que pode ser usado por ele. Ele "pede" para que a mãe entre na brincadeira. Faz de conta que a alimenta e ela aceita entrar no faz de conta. O mundo do bebê se enriquece e ele enriquece o mundo, pois tem algo a oferecer.
Na terceira fase, o bebê deixa cair furtivamente a espátula. Quando ela lhe é restituída, ele repete seu gesto, e a deixa cair voluntariamente. Parece sentir um grande prazer nisso. Ele quer deixar a espátula cair. O brincar acontece, então, na sua plenitude. A partir daí, abandonando esse objeto, ele passa a interessar-se por outras coisas. Poderíamos dizer, assim, que a experiência do brincar e do viver se completaram, com princípio, meio e fim (Winnicott, 1949c/1977, pp. 83 e 87).
Winnicott quer demonstrar que propiciar o brincar pode ajudar na retomada do desenvolvimento do bebê e em suas várias integrações. Quando é possível a um adulto estar com uma criança que se relaciona com o mundo exterior, sem invadir sua experiência com questões que não pertençam ao bebê, a experiência do brincar sempre surgirá. Sendo uma experiência completa, esta levará o bebê a uma integração e o conduzirá a uma nova experiência. Se tudo correr bem, a criança se enriquece, enriquece o mundo e a vida segue (Winnicott, 1949c/1977, p. 86).
Em 1971, o caso foi retomado com mais detalhes. Winnicott conta que, aos seis meses de idade, a menina que tinha convulsões foi internada em um hospital, com problemas digestivos. Aos sete meses, foi levada a uma consulta porque não dormia e chorava durante a noite. Além disso, adoecia após alimentar-se. O desmame aconteceu em poucas semanas. Aos nove meses, ela teve uma convulsão. Continuou a tê-las, mais ou menos um quarto de hora após o despertar. Aos onze meses, as convulsões tornaram-se frequentes. A criança tornou-se nervosa, sobressaltando-se ao menor ruído. Com um ano de idade, sofria quatro a cinco convulsões por dia. Às vezes, sentava-se após uma refeição, dobrava-se sobre si mesma e desmaiava. Mesmo nesse período mais grave, a mãe conseguia interromper uma convulsão em sua primeira fase, distraindo a filha. Não havia sinais de doença física.
Winnicott fez a seguinte observação, importante para a compreensão que buscamos:
Colocada sobre meus joelhos, ela chorava incessantemente, mas não demonstrava hostilidade. Puxa minha gravata de maneira descuidada, enquanto chora. Voltando ao colo da mãe, não mostra interesse na mudança e continua a chorar, chorando cada vez mais lastimavelmente enquanto é vestida; continua assim, até ser levada para fora do prédio [...]. No correr de uma das consultas, fiquei com a criança sobre os joelhos, observando-a. Ela tentou, furtivamente, morder a junta de meus dedos. Três dias mais tarde, coloquei-a novamente sobre os joelhos e esperei para ver o que faria. Mordeu a junta de meus dedos, por três vezes, tão fortemente que quase me cortou a pele. Brincou então de atirar espátulas no chão, incessantemente, durante quinze minutos. Chorava durante todo o tempo, como se estivesse infeliz. Dois dias depois, tive-a novamente sobre os joelhos, por meia hora. Ela sofrera quatro convulsões nos dois dias anteriores. A princípio, a menina chorou, como de costume. Mordeu novamente meu dedo, com força, dessa vez sem demonstrar sentimento de culpa. Depois brincou de morder e de jogar fora as espátulas; enquanto estava sobre meus joelhos, tornou-se capaz de sentir prazer em brincar.
Após certo tempo, começou a mexer nos artelhos com os dedos. Fiz com que lhe tirassem os sapatos e as meias. O resultado foi um período de experimentação que absorveu todo seu interesse. Parecia estar descobrindo e experimentando, repetidas vezes, para sua grande satisfação, que, enquanto as espátulas podiam ser postas na boca, jogadas e perdidas, os artelhos não podiam ser arrancados fora.
Quatro dias mais tarde, a mãe informava que, desde a última consulta, o bebê tornara-se "uma criança diferente". Não só não tivera mais convulsões, como também havia dormido bem a noite – feliz durante todo o dia, sem brometo. Onze dias depois a melhora se mantivera sem remédios; não tivera convulsões durante quatorze dias e a mãe pediu sua alta. (Winnicott, 1968i[1967]/1975, pp. 73-74)
Esse relato demonstra a teoria do amadurecimento de Winnicott e sua relação com a importância do brincar. Além disso, põe à luz os primórdios do pensamento sobre as condições do atendimento analítico, que ele formulará mais tarde:
A psicoterapia efetua-se na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. Trata-se de duas pessoas que brincam juntas. Em consequência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é. (Winnicott, 1968i[1967]/1975, p. 59)
3. Articulações teóricas entre o amadurecimento, o brincar a as convulsões desse bebê
No estado de dependência absoluta, a confiança se desenvolve quando a mãe pode atender à necessidade do bebê. Este começa a fruir de "experiências" baseadas no "casamento" da onipotência dos processos internos com o controle do real (Winnicott, 1971g/1975, p. 71). Nesse momento, a confiança na mãe cria um espaço intermediário, o espaço potencial. Nele, surgirá o objeto transicional e, depois dele, o brincar. Quando o mundo chega à criança no momento em que ela o procura, a experiência vivida dá origem a esse sentimento: o mundo é um esplêndido lugar para se viver. Com base nessa experiência, cria-se a possibilidade da existência do espaço potencial e de tudo o que dele se origina. O espaço potencial é criado da confiança no ambiente, conquistada gradativamente. Diante das primeiras necessidades de afastamento, é preciso que aquilo que acontece nesse espaço una mãe e bebê em vez de separá-los. Essa experiência de união na separação só acontece nesse primeiro momento se a mãe puder aceitar a necessidade do bebê de ir e vir, de aproximar-se e afastar-se de seu seio e de seus sucedâneos. O mundo tem que ser criado por ele, para que ele não entre no mundo de forma desintegradora.
Fazendo ligações com o caso que nos serve de base aqui, podemos pensar que, sem essa experiência de união na ausência, a menina se viu diante da ausência de forma precoce. Assim, ela parou de brincar. Talvez a apresentação de um objeto que pudesse ser usado por esse bebê como um objeto transicional tivesse colocado tudo de novo no bom caminho.
Penso que a menina, de toda forma, ainda faz uma tentativa de comunicação importante a respeito da dificuldade que se anunciava. Ela chora e protesta veementemente, pois, nessa fase, uma das coisas mais importantes para ligar psique e soma é justamente "chorar, gritar, berrar, protestar iradamente" (Winnicott, 1989vm[1969]/1994, p. 92). Ao chorar e ao protestar, a menina buscava a comunicação que poderia levá-la de volta para a via da integração, caso a mãe pudesse contê-la sem ansiedade excessiva.
Além de uma forma de comunicação, o choro também é raiva, raiva de ter sido tirado de seu lugar seguro, de seu conforto. Um bebê raivoso não se sente inofensivo. Diante da raiva, o bebê chorará, morderá, arranhará e se for realmente decidido, reterá a respiração até o ponto de uma convulsão (Winnicott, 1945j[1944]/1977, p. 69).
Para que a integração aconteça, é preciso que a mãe receba o grito de ajuda sem se desesperar, sem desconsiderar a comunicação e sobrevivendo a ele. Quando o bebê chora de raiva, ele se desintegra e pode viver como se tivesse destruído o mundo. Nas palavras de Winnicott:
Se o bebê chora num acesso de raiva e se sente como se tivesse destruído o mundo inteiro, mas em sua volta pessoas mantêm-se calmas e ilesas, essa experiência fortalece enormemente sua capacidade de apreender que o que ele acha ser verdadeiro não é necessariamente real, que a fantasia e o fato concreto, ambos importantes, são entretanto distintos um do outro. (Winnicott, 1945j[1944]/1977, p. 69)
Um bebê zangado não é um bebê perigoso. Se a mãe viver como se o fosse, o bebê confundirá essas duas realidades, até que alguém possa ajudá-lo a desfazer essa confusão.
Pelo que se segue na história desse bebê, podemos pensar que foi com angústia que esse choro de protesto foi vivido e uma intrusão se deu, uma confusão se instalou, e o bebê passou a viver como se tudo, dentro e fora, fosse muito perigoso. Poder diferenciar real de imaginado, como no brincar, é fundamental. Se a mãe pode de alguma forma brincar, sendo alguém que recebe o ataque sem se transformar em uma espécie de vítima, ela ajuda seu bebê nessa tarefa tão complexa.
Essa deve ter sido a primeira falha no caso da menininha, mas não foi a única. Possivelmente, ela era colocada para comer, dormir e acordar de forma desarticulada de seu tempo. Logo após comer ou ser acordada, apresentava as convulsões, como a encenar a desarticulação com o seu próprio tempo e com o ritmo de suas necessidades. Essa desarticulação encontrava no corpo sua expressão. Nas palavras de Winnicott:
A psique de uma criança pode normalmente perder contato com o corpo, e pode haver fases em que não é fácil para a criança retornar de súbito para o corpo, como ao acordar de um sono profundo. As mães sabem disso. Antes de pegar no colo uma criança adormecida, acordam-na gradualmente, para não provocar choro de pânico. Este pode advir de uma mudança de posição corporal num momento em que a psique encontra-se ausente. (Winnicott, 1958j/2005, p. 8)
A pequena criança, que vivia uma incipiente integração psicossomática a partir dessas intrusões, passou a viver esse momento de forma persecutória. Passou a sobressaltar-se frente a variados ruídos e a não conseguir estar ali tranquila em seu próprio corpo. De novo nas palavras de Winnicott:
O desenvolvimento para frente se acha muitíssimo associado com a morada, tal como com outros aspectos da integração, mas ele é, sob todos os sentidos, assustador para o indivíduo interessado se não for deixado aberto o caminho de volta à dependência total. (Winnicott, 1971d[1970]/1994, pp. 203-204)
Esse bebê provavelmente não teve o retorno à dependência totalmente garantido. Possivelmente, essa menininha precisava de um desmame mais gradativo, mais característico de um ir e vir que pudesse atender à sua necessidade de recusar a mãe e de voltar a ela de forma absoluta.
Esse bebê estava às voltas com a percepção ainda incipiente do mundo externo. Porém, já podia dar-se conta, ainda que precariamente, de que a pessoa de quem dependia era a mesma que era usada sem compaixão. Estava, portanto, diante dos primórdios da tarefa de integração de amor e ódio nessa relação. Era preciso poder integrar a motilidade agressiva, não destrutiva, na relação com o seio, para poder integrá-la em si e em seu corpo. Para tanto, seria necessário um ambiente que lhe permitisse a experiência de devorar essa mãe, esquecê-la depois e voltar a ela para poder dela depender de novo e novamente devorá-la. Era importante poder ir e vir sem a sensação de tê-la destruído.
Winnicott lhe propicia na consulta terapêutica a integração psique e soma, motilidade e agressividade, amor e ódio. Ao permitir ser mordido sem retaliar, ele propiciou o encontro com o brincar. Ela pôde, então, usar livremente a espátula, que podia ser jogada, repelida e recuperada. Entrou em contato com seus pezinhos, experimentando a diferença entre eles e a espátula. Verificou que seus dedinhos não podiam ser jogados fora. Através dessa experiência, o brincar foi resgatado.
Winnicott termina o relato do caso dizendo: visitei essa criança um ano depois e "encontrei-a inteiramente sadia, feliz, inteligente e amistosa, que gostava de brincar, e liberta das ansiedades comuns" (Winnicott, 1968i[1967]/1975, p. 74).
4. Mais sobre o mesmo à guisa de conclusão
O psique-soma inicial só pode prosseguir ao longo de uma determinada linha de desenvolvimento na medida em que sua continuidade não seja quebrada por qualquer tipo de fator. A saúde, assim propiciada no início do desenvolvimento individual, leva a uma continuidade de ser, uma experiência fundamental no âmbito da existência.
A criança sente que mora em seu corpo porque vive experiências em que todo o seu corpo está envolvido. Ela come, chora, chuta, morde, grita, anda, corre e, assim, vivencia seu corpo como o lugar em que mora. É fundamental que o ambiente possa, em função do manejo suficientemente bom, propiciar essa integração. Caso o ambiente não possa fornecer essa experiência, torna-se, então, uma invasão, e isso exige que o psique-soma reaja. É basicamente essa reação que perturba a continuidade de ser.
É evidente que não se pode afirmar que as pessoas vivem em seu corpo de forma pronta e acabada. Várias vezes em seus textos, Winnicott faz referência ao fato de que as coisas podem caminhar bem desde que a pessoa em questão não esteja, por exemplo, muito cansada. Caso estejam excessivamente cansadas, com sono ou fome, mesmo adultas, as pessoas podem descobrir-se num lugar um pouco diferente. Terão a sensação de que o corpo no qual vivem não lhes pertence ou de que ele ainda não está lá.
Para ilustrar melhor essa hipótese, embora já bastante clara no caso de Winnicott, trago rapidamente uma vinheta do caso de um paciente, já há alguns anos em análise. Por respeito ao sigilo, faço algumas mudanças no caso. Elas não comprometem a compreensão do que desejo abordar. Trata-se de um adulto, casado, sofrendo no início do tratamento de dificuldades com a profissão, com o casamento e com a vida, como ele mesmo dizia. Aos dois anos de idade, ele sofreu uma quebra na relação muito próxima com a mãe, em função do nascimento de um irmão muito doente. O paciente estruturou uma defesa que oscilava entre certo isolamento, marcado por muitas "idas para o mundo das ideias", segundo sua própria formulação, e uma dependência das pessoas que o aprisionava a elas. A necessidade intensa de ser visto, ouvido e entendido pelo outro levava-o a perder-se de si mesmo.
Em uma determinada sessão, referindo-se a esse tipo de dificuldade no trabalho e, sobretudo, com a mulher, lembrou-se de um episódio ocorrido na adolescência. Estava vivendo o término de um longo namoro. Mantivera um relacionamento muito intenso com a namorada. O contato corporal no e para além do sexo era reassegurador, proporcionando-lhe muito bem-estar. Diante da proximidade desse término, que relutava em admitir, viveu sensações muito estranhas e angustiantes no corpo. Não conseguia manter-se em contato com ele e tinha medo. Ele dizia que tinha sensações muito estranhas. Procurou então um acupunturista. Logo ao chegar, o profissional olhou para ele e o abraçou, sem que nada tivesse sido dito. Por que ele escolheu esse tipo de profissional e como o acupunturista pôde se dar conta do que fazer, não é possível saber. Na sessão, ele comenta: "Não era um abraço afetuoso, era um forte abraço de contenção, como se ele segurasse meu corpo todo". Depois dessa experiência, as sensações corporais e angústias diminuíram e ele pôde terminar o namoro.
Esse relato aconteceu em um período da análise no qual ele pôde relatar um episódio que pudemos considerar juntos, tempos depois, como um momento de extrema importância em seu processo analítico. Ele conta como viveu uma experiência de perda angustiante dos limites do próprio corpo e de sensações apavorantes de desintegração corporal na relação com a mulher e como pôde sair dessa vivência apavorante. Diante de uma recusa em atender a um pedido da mulher de participação em seu trabalho, instalou-se uma briga. A mulher reagiu violentamente, gritando que nunca mais iria querer ouvir ou saber nada da vida dele. Em um primeiro momento, ele foi tomado por um grande temor, como se fosse ficar abandonado para sempre. Passou a sentir como se fosse morrer e seu corpo estava profundamente envolvido nesse sofrimento. Viveu um momento de quase agonia. Porém, em meio a essa dor, conseguiu dizer a si mesmo: não, eu não quero morrer, e se eu não puder ser mais ouvido, então, não vale a pena viver. É justamente em meio a essa dor que consegue se recompor e expressar suas vivências, fazendo-se ouvir pela mulher, que, nesse momento, o entende e o acolhe.
Entrar nesse estado e sair dele tem sido uma conquista no seu desenvolvimento. Vale ressaltar que essa análise foi marcada por várias manifestações da necessidade de viver a experiência de ir e vir, aproximar-se e afastar-se, sem receber críticas ou ameaças de abandono. Testar a capacidade de ser ele mesmo numa relação de dependência, por vezes extrema, era condição para a realização dessa análise.
Constatamos, assim, a precariedade da morada da psique no corpo, que está longe de ser um fato dado. Trata-se de uma conquista que tem que acontecer permanentemente. Ela pode romper-se por simples cansaço, intrusões ou demandas excessivas da realidade.
Para que a integração de si mesmo se dê, é preciso estabelecer um vínculo consistente entre o contato com a realidade e o sentimento de que vivemos num corpo que nos pertence e não vamos perdê-lo muito facilmente. É igualmente importante a experiência desse vínculo entre a realidade subjetiva e objetiva, para que não nos percamos em uma queda para um dos dois lados: nem totalmente para dentro, nem totalmente para fora.
A área intermediária entre essas duas realidades é a área do espaço potencial. Nela, os objetos transicionais constroem o caminho para o brincar e este, para o mundo cultural compartilhado. Essa área, como diz Winnicott, não deve ser contestada, mas aceita. Ela dá argamassa a esse vínculo, possibilitando a realização das várias integrações que precisam acontecer ao longo de toda a vida.
Esse mesmo paciente progrediu em sua profissão e em seu casamento. Fazendo referência ao meu e ao seu trabalho, ele disse: "Para que uma aprendizagem ocorra, é preciso que o mundo possa entrar um pouquinho na pessoa e que a pessoa possa entrar um pouquinho no mundo".
Para concluir, vou me permitir citar a canção "A linha e o linho" (1983), de Gilberto Gil, porque acho que os poetas de todas as envergaduras conhecem muito bem tudo isso. Expressam-se de diferentes formas, e elas nos enriquecem. O cantor e compositor fala de uma relação de amor entre um homem e uma mulher. Como sabemos, ela é engendrada nessa primeira relação básica com a mãe. Diz ele:
É a sua vida que eu quero bordar na minha
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha
E a agulha do real nas mãos da fantasia
Fosse bordando ponto a ponto nosso dia a dia. (Gil, 1983/1990)
Referências
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1 Psicóloga, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora colaboradora do Centro Winnicott de São Paulo. E-mail: taniac.h@uol.com.br