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Psicologia para América Latina

versión On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.26 México dic. 2014

 

PENSAR

 

Abuso sexual intrafamiliar: Um olhar multifacetado para o incesto

 

Abuso sexual intrafamiliar: Una mirada multifacética al incesto

 

Intrafamilial sexual abuse: A multifaceted look upon incest

 

 

Arnaldo RismanI, 1; Rosania Lucia FigueiraII, 2; Gabriela Medeiros VieiraII, 3; Lívia Teixeira de AzevedoII,4

ICentro de Estudos e Pesquisa em Comportamento e Sexualidade
IIUniversidade Severino Sombra

 

 


RESUMO

O abuso sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes ocorre de forma silenciosa e nos últimos anos o assunto vem ganhando espaço de discussão no meio social. Grande parte da sociedade não acredita que isso possa ocorrer no seio das famílias, mas a elevada frequência do abuso no mundo atual faz repensar o assunto que já existia, mas em total segredo. Com o propósito de demonstrar questões sobre o desenvolvimento dessas crianças e adolescentes, principalmente no seu papel biopsicossocial diante do fato, a relação do abuso com o Complexo de Édipo, a rede de apoio e assistência a crianças e adolescentes afetados violentamente, apresentamos através de uma revisão bibliográfica as consequências psicológicas que o assunto engloba, a importância da família, a lei perante a proteção das vítimas e a questão da cultura presente em relação ao abuso sexual.

Palavras-chave: psicologia, abuso sexual, incesto, aspectos psicológicos.


RESUMEN

El abuso sexual intrafamiliar contra los niños y adolescentes ocurre de forma silenciosa, y en los últimos años viene ganando espacios de discusión en el entorno social. Gran parte de la sociedad no cree que esto pueda suceder en el seno de las familias, pero la alta frecuencia de los abusos en el mundo de hoy hace repensar el asunto que ya existía, pero en total secreto. Con el propósito de mostrar algunos problemas en el desarrollo de estos niños y adolescentes, principalmente en el ámbito psicosocial, la relación del abuso con el Complejo de Edipo, las redes de apoyo y asistencia a los niños y adolescentes afectados violentamente, se presentan, a través de una revisión bibliográfica, las consecuencias psicológicas que el fenómeno engloba, la importancia de la familia, la ley acerca de la protección de las víctimas y la cuestión de la cultura con respecto al abuso sexual.

Palabras clave: psicología, abuso sexual, incesto, aspectos psicológicos.


ABSTRACT

The intrafamily sexual abuse against children and adolescents occurs silently and in recent years it has been increasing discussion in the social environment. Large part of society does not believe this can happen within families, but the high frequency of abuse in the world today is to rethink the matter that already existed, but in total secrecy. With the aim to demonstrate issues on the development of these children and adolescents, mainly in the bio psychosocial paper before the fact, the relationship of abuse with the Oedipus complex, the network of support and assistance to children and teenagers violently affected, presented through a literature review the psychological consequences that it encompasses, the importance of family, the law on the protection of victims and the issue of culture in relation to sexual abuse.

Keywords: psychology, sexual abuse, incest, psychological aspects.


 

 

Introdução

Sabe-se que o abuso infantil, seja ele de qualquer espécie é um crime que assombra a sociedade. O abuso sexual infanto-juvenil quando tornado público causa um grande desconforto na sociedade. Assim, através de um estudo descritivo, tendo como aporte teórico os conceitos psicanalíticos de Freud e Lacan, segundo relatos e práticas comprovadas em suas obras no que se refere ao abuso sexual contra crianças e adolescentes, este artigo traz alguns estudos, práticas de instituições e profissionais das áreas da saúde (médicos, psicólogos), da área jurídica e do serviço social, os quais identificam a posição da família e da sociedade frente ao abuso sexual intrafamiliar e seus aspectos psicológicos, objetivando possíveis soluções e tratamentos para os envolvidos.

Neste trabalho, considerou-se que o tipo de abuso sexual mais comum, causador de maior espanto à sociedade seria o incesto, representado pelo abuso sexual intrafamiliar, aquele onde há relação de criança ou adolescente com pessoa adulta da família, frequentemente pai e filho (a). Importante ressaltar que o tema incesto envolve cultura, aspectos psicológicos e causa forte impacto social, em que os protagonistas dessa história são os maiores sofredores, pois na verdade, crianças e adolescentes deveriam estar protegidas por suas famílias e o incesto é sem dúvida, uma anormalidade nesta relação de dever e obrigação familiar, um enigma que estudiosos buscam desvendar.

Abuso sexual, por si só, é assunto delicado, perturbador e quando inclui a participação direta dos membros familiares, o incesto implica a violação de tabus sociais na relação de pais e filhos, possivelmente causando desconforto na família e fora dela. O abuso sexual é decorrente do processo edipiano que se inicia normalmente no desejo de seus progenitores, o qual se faz presente na constituição do sujeito.

O assunto abuso sexual envolve uma história cultural de longas décadas, em que a relação sexual intrafamiliar era ou é vista de forma "natural". Existe um processo de civilização, onde as normas de um povo facilitam o prazer em detrimento da integridade de crianças e adolescentes, mesmo apesar de todas as leis de proteção à criança e o adolescente. Desta forma, surgem concepções formadas pela sociedade acerca da sexualidade humana, do papel da família na estrutura da sociedade ao longo do tempo e da posição da criança e do adolescente nessa mesma sociedade.

O abuso sexual intrafamiliar atinge a todas as classes sociais, independente de cor, raça ou poder aquisitivo, e vem ocorrendo de forma desenfreada, podendo acarretar uma psicopatologia nos indivíduos abusados sexualmente. Isso se explica, em função da criança não estar preparada em seu desenvolvimento psíquico e corporal (Azevedo, 2001. p. 56).

É importante que o assunto seja discutido ampla e abertamente, para que as famílias superem o medo, a vergonha, pondo fim ao silêncio a fim de que as vítimas possam buscar ajuda sem serem apontadas, criticadas e/ou culpadas. Desta forma as informações passadas aos profissionais envolvidos nesta questão poderão ter um ambiente favorável de diálogo sobre o abuso sexual, e então objetivar a prevenção e tratamento adequado (Mee, 2001 pp. 30-32).

O abuso sexual infanto-juvenil traz prejuízos irreparáveis às vitimas e este artigo tem como objetivo mostrar que as crianças têm sua infância roubada, seu desenvolvimento psicológico afetado por uma pulsão sexual adulta, invadida pelo desejo sexual incontrolado, com o desencadear de relações que envolvem a cultura, o imaginário e a família. Daí surge à necessidade dessas crianças e adolescentes entenderem seu verdadeiro papel dentro da família, em que conceitos são violados, crenças e valores ficam confusos. Por óbvio, a consequência desse ato tão brutal deixa marcas profundas de uma infância perdida entre o certo e o errado (Abrapia,1997, p. 49).

Conceito de abuso

Para a psicanálise o conceito de abuso sexual abrange todo relacionamento interpessoal no qual a sexualidade veiculada ocorre sem o consentimento válido de uma das pessoas envolvidas. Quando se verifica a presença de violência física, o reconhecimento do abuso pode ser mais claro, pela objetividade dos fatos que indicam que o agressor fez uso de força para vencer a resistência imposta pela vítima (Faiman, 2004, p. 21).

Quanto aos tipos de abusos, considera-se como pedofilia os abusos sensoriais, como o exibicionismo, a pornografia e a linguagem sexualizada; abusos por estimulação envolvem carícias íntimas, masturbação, contatos genitais incompletos e abusos por realização, as tentativas de violação ou penetração oral, genital ou anal, chamados de estupro. Muitos ocorrem no seio familiar da própria criança ou adolescente, cujo arquétipo representado neste trabalho pelo incesto de pai e filho (a), sendo possível também ocorrer entre mãe e filho (a), apesar de ser incomum e mais difícil de detectar (Haas, 2009, p. 54).

Os fatores que envolvem crianças e adolescente no abuso sexual têm implicações diversas, quais são de questões culturais (o incesto) e de relacionamento (dependência social e afetiva entre os membros da família) em que o abusador é uma pessoa íntima da criança e do adolescente ou da família, dificultando a notificação, daí perpetua o "muro do silêncio", o segredo em torno da criança ou do adolescente em relação ao abuso sexual, em que ambos são vitimizados de tal ato de violência (Abrapia, 1997, p. 54).

O abuso sexual também pode ser resultado de um mau uso da sexualidade, quando o bom e o mal se baseiam em regras postas pela sociedade compartilhadas e sustentadas, qual serve de apoio para a organização social e também para a organização psíquica dos indivíduos. Dentro dessa visão social, a relação incestuosa pai e filho tornam-se inadequada, ou seja, abusiva, em que o próprio psiquismo, com a colaboração do meio externo, constrói barreiras contra sua realização. Isso é resolução de cada cultura, a qual tem suas próprias regras, estabelecendo o que é ilícito e o que é proibido. Quando o código é internalizado pelo indivíduo, transgredi-lo dá margem a intensos sentimentos de vergonha, humilhação e medo, ou de ser cúmplice do adulto abusador num pacto de silêncio, aprisionando a vontade, o desejo da criança ou adolescente. O abuso pode ser utilizado para definir negligência, violência psicológica, física e sexual, de maneira repetitiva e intencional, perpetrado por um adulto ou alguém em estágio de desenvolvimento superior (idade, força física, posição social, condição econômica, inteligência, autoridade) (Habigzand & Caminham, 2004, p. 67).

Classificação etária da ocorrência do abuso sexual

O abuso sexual, assim como o incesto, não apresenta uma idade definida para acontecer, mas há relatos de vítimas de quatro a doze anos, com períodos de risco particularmente alto entre quatro a nove anos. A criança pequena facilita a ocorrência e existência do abuso sexual por não apresentar entendimento do fato, em que o abusador faz o sexo parecer afeição ou treino, induzindo a criança com ameaças e/ou subornos e explorando lealdade. Por volta dos dez anos de idade é que a criança começa a compreender que intimidade sexual não deveria acontecer entre pai e filho, sendo proibida tal relação (Silva, 1998, p. 76).

O abuso sexual e a relação com o complexo de Édipo

A história da infância se fundou na prática da violência em vários obstáculos a transpor na ordem de sua reconstrução. Freud analisa estruturas das histórias e contos que envolvem crianças e adolescentes. A violência dos adultos contra crianças e adolescentes é uma prática comum na sociedade desde a civilização primitiva, como castigos físicos, agressões verbais e abuso sexual, em que o abusador envolve, seduz suas vítimas de menor poder, elaborando mentiras e confundindo sua percepção quanto ao comportamento aguçado e cheio de sexualidade. Lacan, em seus estudos, seguindo as teorias de Freud, na leitura do complexo de Édipo, permite ver como se inicia o desejo e qual direção deste em relação ao progenitor do sexo oposto, o qual faz parte de uma mesma cadeia de constituição do sujeito (Haas, 2009, p. 56). O complexo de Édipo trabalha como se fosse guiado pelo desejo do falo e o temor à castração, subdivido em três tempos (Mee, 2001, p 43).

Nessa linha de tempo, o primeiro momento do primeiro tempo edípico, a maternagem, conduz o bebê a se identificar com o fato. Já no segundo momento (dentro do primeiro tempo) do complexo de Édipo –a mãe está completa, devido aos cuidados para com a criança. E no terceiro momento (do primeiro tempo) a criança se identifica com a mãe fálica, em que a aceitação dos cuidados vindo da mãe, a criança se torna um sexo em ereção. O pai, então, se apresenta no segundo tempo edípico como privador, qual priva a criança do objetivo de seu desejo –a mãe– e priva a mãe de seu objeto fálico –seu bebê. Através da interdição paterna, o objetivo de desejo da mãe é questionado, possibilitando o outro foco materno, representado aqui pela figura do pai (Mee, 2001, p. 45).

A partir de Lacan, a leitura do edípico, envolve a constituição do sujeito. Desde relação mãe-bebê, até a chegada do pai nessa relação, bem como seu papel, as divisões de registro do pai, o que importa são os tempos que configuram o sujeito. Tanto a relação edípica quanto a sedução dizem respeito à constituição do sujeito, sendo que o complexo de Édipo lacaniano abrange esses dois instantes. A sedução é a interação de duas pessoas na qual uma delas, por meio de algum gesto carregado de sexualidade, desperta na outras sensações e fantasias de caráter erótico. Na sedução não há uma resistência clara à aproximação sexual, ambas as pessoas envolvidas na relação encontram-se eroticamente estimuladas para o contato. Ocorre que em determinadas situações, a erotização do vínculo consiste no próprio abuso. Nesse momento não há repressão no inconsciente, pois nessa fase a criança não tem o objeto sexual definido, somente uma excitação de uma zona erógena pré-sexual. Fica explícita a sedução perversa do abusador, que busca na criança a satisfação sexual, sendo na maioria das vezes o autor desse ato assustador para a sociedade. A criança em seu comportamento repetitivo busca encontrar satisfação de suas pulsões parciais em zona erógenas, com uma disposição perversa polimorfa qual apontado por Freud, em que a criança com influência da sedução é capaz de participar da transgressão com pouca resistência, pois nessa fase a criança ainda não está desenvolvida psicologicamente e sim em desenvolvimento, não estando presentes ou suficientemente desenvolvida a vergonha e a moral (Mee, 2001, p. 23).

Na visão social e cultural, o relacionamento sexual entre parentes (exceto cônjuges) é proibido. Ocorrendo o incesto, há a plena violação dessas normas que cerca e que estruturam o indivíduo, bem como as transformações que elas representam. O incesto está relacionado ao complexo de Édipo, que representa as fantasias sexuais incestuosas, os impulsos, com a interdição na relação de pai, mãe e filho. No complexo de Édipo é que são apresentados os limites, os desejos e a forma como lidamos com os aspectos da realidade psíquica, no desejo sexual. A organização psíquica da criança e do adolescente na situação do abuso sexual incestuoso está na experiência e na maneira como é vivido e registrado por eles, podendo desencadear traumas, caso não haja integração que corresponda à elaboração psíquica (Faiman, 2004, pp. 35-36).

Posição da mãe diante do abuso

Na maioria dos casos, a mãe se torna permissiva diante do incesto cometido pelo pai da criança, podendo ter sido abusada quando criança, e recusa-se a falar do assunto. Em alguns casos sua relação negativa com o marido de frigidez e hostilidade, resulta em desgaste conjugal, com pouco envolvimento sexual, aceitando assim, a inversão de papéis com sua filha, a qual assume a responsabilidade e privilégios da "mulher da casa", que seria de praxe da mãe. A mãe tem um papel importante no abuso sexual, pois muitas se sentem culpadas por não acreditar na criança ou adolescente e tão poucas protegê-las, confiando no homem de sua escolha para ser pai de seus filhos, autor principal da família em relação à proteção.

Importante é quando o abuso em geral ocorre durante a visitação, na casa do próprio agressor, que é divorciado da mãe, sendo comum encontrar casos em que o pai perverso tenta subverter a ordem das coisas, rotulando sua ex-mulher de "mentirosa", "vingativa" e acusando-a de manipular o (a) filho (a) contra ele, colocando a vítima no lugar do culpado induzido. A criança então fica indecisa entre o amor do pai e o ódio diante da violência física e emocional exercida por este. Nesse momento ela não vivencia a situação edípica (estruturante do sujeito), pois a fantasia concretiza-se antes dessa estruturação de maneira abrupta, dificultando seu desenvolvimento normal. No complexo de Édipo, quase todas as crianças brincam, imaginam em ocupar o lugar do progenitor do mesmo sexo, para se tornar cônjuge do sexo oposto (Silva, 1998, pp. 23-25).

O problema se torna maior a partir do momento que o incesto passa a ser mantenedor da própria família, onde pai não busca fora de casa à satisfação sexual, pois a filha supre as insuficiências da relação conjugal, talvez um exemplo para justificativa da passividade, cumplicidade silenciosa de muitas mães ao abuso sexual. O abuso sexual intrafamiliar, muitas vezes é revelado na adolescência ou na vida adulta, pois a criança, depois do abuso perde a confiança nas pessoas, as quais ela ama e convive dentro do seu lar, sendo os pais os agressores principais. Aquele pai, símbolo de proteção, de lei, o qual deveria resguardar a criança de colocar-se como "falo" materno, apresentam numa outra posição em que na interdição do gozo, não há lugar para a lei, em que a criança é posta como causa de prazer, objeto de uso de um pai perverso.

O pai incestuoso ocupa o lugar da permissividade, da violência, da pulsão de destruição, através de uma ruptura vital, libidinal, decisiva e podendo ser na maioria dos casos irreversível, tanto na dimensão do gozo, quanto na dimensão do castigo, da sanção, da culpa (Faiman, 2004, pp. 27-28).

Diante do abuso paterno, a mãe teria de confiar na criança dando-lhes suporte, proteger e tomar decisões que possa ajudar a criança a não sofrer mais. A presença da mãe no lar é essencial para que tal ato seja impedido, mas com as mudanças sociais, quais hábitos, compromissos e acontecimentos, ocorrem dentro da família, facilitam à ocorrência do abuso, algumas delas são: separação, doença, divórcio, morte e até o trabalho.

Há ainda, o incesto materno, um tipo de violência incomum no meio social, mas praticado por algumas mães e difícil de ser detectado, pois a mãe é uma das primeiras pessoas a ter acesso direto a criança, e o laço afetivo de contato mais íntimo entre as partes, sem que haja qualquer suspeita de ato incestuoso se torna frequente, colocando também em risco o desenvolvimento dessa criança, não permitindo nascer a autoridade da mesma, bloqueando assim o processo de organização libidinal; num caso mais grave pode ocorrer a produção subseqüente de uma psicose, mantendo a criança limites do seu corpo para o corpo do outro, possibilitando uma intervenção psicanalítica para não haver uma desestruturação do ego (Azevedo, 2001, p. 56-57).

Consequências do abuso sexual intrafamiliar

Os efeitos negativos em relação ao incesto são muitos. Com o passar do tempo, não havendo tratamento adequado, os efeitos negativos se desenvolvem e vão penetrando cada vez mais na vida da vítima. São persistentes e podem emergir muitos anos após o abuso, prejudicando a relação da vítima com o meio social e afetivo. Algumas pessoas que sofreram abuso sexual procuraram tratamento por apresentarem desequilíbrio decorrente do incesto prejudicando o desenvolvimento psicológico, sua autoimagem, sua habilidade em manter relações positivas com amigos, família de origem, filhos, incluindo também o desenvolvimento do caráter. Com isso algumas famílias, onde ocorre o incesto desenvolvem características de personalidade que se repetem com frequência. Essas características funcionam como um alarme, queixas, que apesar de serem vistas como secundárias, passam a ser detectadas no atendimento médico ou psicológico (Silva, 1998, p. 35).

As seguintes linhas sobre as consequências do abuso sexual são baseados em Habigzang e Caminha (2004). O abuso sexual intrafamiliar é severamente disfuncional, de motivos diversos, tais como: pai e/ou mãe que sofreram abusos, drogas lícitas (álcool) ou ilícitas, papeis sexuais rígidos, estresse, individualismo, dificuldades conjugais, mãe passiva e/ou ausente, famílias reestruturadas (presença de padrasto ou madrasta), isolamento social, pais que sofreram transtornos psiquiátricos, doença, morte ou separação do cônjuge.

A Síndrome de Segredo e a Síndrome de Adição estão interligadas em casos de abuso sexual infantil. O Segredo está diretamente relacionado com a psicopatologia do agressor que, por gerar intenso repúdio social, tende a se proteger um uma teia de segredo, mantido à custa de ameaças e barganhas com a vítima. A Síndrome de Adição é caracterizada pelo comportamento compulsivo do descontrole de impulso diante do estímulo gerando dependência. Outras características abrem margem para o abuso acontecer, uma delas é a Síndrome de Acomodação da Criança, em que a vítima é seduzida e depois se adapta a situação abusiva, por medo, vergonha e como meio de sobrevivência, ao modo que as alterações psíquicas são prejudiciais a sua personalidade. Essa síndrome consiste em: segredo, desamparo, aprisionamento e acomodação, revelação retardada, conflitada e não convincente e retratação. No Segredo, a criança sabe que está fazendo algo errado e ao mesmo tempo o abusador, paralelo ao abuso, faz promessas de segurança para a criança e a família; no Desamparo mostra a realidade dessas crianças que aprendem a lidar com o silêncio para sua sobrevivência emocional. Muitas pessoas acreditam no estereotipo da "criança sedutora", que seduz o pai e aprecia o abuso, mas essa história está longe da nossa realidade, uma vez que cabe ao pai, ou deveria, o papel de protetor da criança.

A criança não encontra mecanismos para se defender do abuso, se conscientiza de traição e de estar sendo vista como um objeto por alguém, principalmente ser esse alguém o pai, ficando o poder e a responsabilidade de manter a família unida, assumindo as funções maternas, não resistindo às exigências sexuais do abusador, buscando mecanismos para garantir a própria sobrevivência psíquica, que acarretam em dificuldade psicológicas cada vez maiores em seu desenvolvimento. Na Revelação retardada, conflitada e não convivente, a criança relata o abuso para mãe, que não acredita, negando para a salvação do seu casamento. Em consequência, a criança sente culpa, medo e ainda confusa, apresenta ansiedade e relatos inconscientes dificultando a identificação do abuso.

Na Retratação, após a revelação do abuso, a criança nega, pois seus sentimentos paternos são ambivalentes, a culpa e a família a faz voltar atrás, dizendo que inventou, o que leva mais credibilidade dos adultos de que ela não é confiável, restabelecendo o "equilíbrio" familiar, evitando a catástrofe familiar. Surge o silêncio perante a sociedade que pode ocorrer por vários motivos: temor pela reação da própria família, manutenção da aparência de "sagrada família", convivência entre as pessoas que sabem do fato e não denunciam, a ideia de que nada pode ser feito para resolver o problema, por ser um assunto tabu.

Diante do desenvolvimento psíquico interrompido através do abuso sexual pode-se observar que as vítimas podem apresentar efeitos mínimos ou nenhum efeito aparente, mas alguns podem ter efeitos severos, traumáticos no âmbito emocional, social e/ou psiquiátricos.

Uma experiência sexual precoce causa efeitos devastadores no psiquismo infantil, impedindo o desenvolvimento tanto sexual quanto social e moral, além da imagem corporal destruída. O convívio da criança e do adolescente no seio familiar em que acontece o abuso sexual tende a resultar num comportamento de violência, o qual causou angústia, medo, ódio, ansiedade, terror e hostilidade, dificultando suas relações. O impacto do abuso sexual está relacionado com o temperamento, resposta ao nível de desenvolvimento neuropsicológico da criança e do adolescente.

Os efeitos das relações familiares incestuosas são devastadores e persistentes, pois as vítimas chegam à vida adulta sem os benefícios da infância. As vítimas se culpam pela ocorrência/perpetuação do incesto e desempenham esse sentimento de culpa como um papel essencial no cotidiano, na auto identidade e na estimativa daquilo que nos é devido nos relacionamentos. As crianças que foram vítimas de abuso sexual apresentam critérios para transtornos do estresse pós-traumático, podendo desenvolver quadros de depressão, transtorno de ansiedade, transtornos alimentares, transtornos dissociativos, personalidade borderline. A vítima perde os referenciais familiares, como instituição básica.

Equipes multidisciplinares que atenderam vítimas deste tipo de violência relataram que podem reagir com intenso estado de estresse à ação, choque recuo, isolamento afetivo, mutismo, manifestações psicossomáticas, perdas de progresso escolar, irritabilidade, ideações suicidas, condutas hipersexualizadas, fugas do lar, sendo possível aparecer consequências psicológicas a curto, médio e longo prazo. Um estudo canadense sem referência, envolvendo 125 crianças com menos de seis anos de idade, hospitalizadas por abuso sexual, informam que dois terços manifestavam reações psicossomáticas e desordens no comportamento, tais como: mal-estar difuso, impressão, alteração física, dores abdominais agudas, falta de ar, desmaios, náuseas, vômitos, anorexia e bulimia. Crianças que sofreram penetração anal tiveram sintomas de enurese e a encoprese, interrupção da menstruação e rituais de "se lavar" compulsivamente. Pode-se observar que a consequência vinculada ao abuso sexual, compromete seriamente a saúde das crianças e adolescentes vítimas de tal abuso, tanto física como psicológica, necessitando de profissionais especializados e um tratamento adequado e de longa duração para se detectar o problema, pois quanto mais cedo for tratado, menor será a perda física ou psicológica.

Rede de apoio e assistência

Quando se fala em assistência à criança e adolescente, pensa-se numa instituição de primeiro contato, a família; em seguida, a escola. Quando a primeira falha, não oferecendo proteção se faz necessária a intervenção do Estado para cumprir-se a lei, com profissionais habilitados para tal, como funciona o Conselho Tutelar. Assim foi aprovada a Lei 8.069 (1990, 13 de julho) que chamamos de Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

  • Art. 5. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
  • Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra a criança ou o adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.
  • Art. 130. Verifica a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsáveis, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.
  • Art. 245. Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente aos casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente: Pena: multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em casos de reincidência.

Respaldando o Estatuto da Criança e do Adolescente, temos ainda a Constituição Federal de 1988:

  • Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito a vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Parágrafo 4. A lei punirá severamente o abuso a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

A medida de proteção, para ser cumprida, exige o apoio do poder judiciário representado sob a forma de lei, como explicita o Estatuto da Criança e do Adolescente:

Cap. I. Das medidas de proteção

  • Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis isolada ou cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo.

[...]

Cap. II. Das medidas específicas de proteção

  • Art. 101 – [...] a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas;

I. Encaminhamento aos pais ou responsáveis, mediante o termo de responsabilidade;

II. Orientação, apoio e acompanhamento temporários;

IV. Requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatório.

[...]

Cap. I. Conselho Tutelar

  • Art. 131. O Conselho Tutelar é o órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente definidos, nesta lei.

[...]

Cap. II. Das atribuições do Conselho

  • Art. 136 – são atribuições do CT

I . Atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos art. 98 e 105, aplicando as medidas previstas no art. 101, I a VII.

Frente às determinações previstas em lei citadas, acreditamos que o atendimento ás crianças e adolescentes vitimas de abuso sexual, poderia funcionar de forma mais clara e objetiva auxiliando um trabalho preventivo no meio social.

A prevenção ao abuso sexual

Segundo a OMS, a prevenção é classificada em:

  • Prevenção primária: Aquela que tem como objeto a eliminação ou redução dos fatores sociais, culturais e ambientais que favorecem a violência contra a criança e o adolescente, atuando nas suas causas.
  • Prevenção secundária: Aquela que tem como objeto a detecção precoce de criança ou adolescente em situação de risco, impedindo os atos de violência e/ou sua repetição; Atua em situações já existentes.
  • Prevenção Terciária: Aquela que tem como objetivo o acompanhamento integral da vítima e do agressor (citado em Abrapia, 1997, p. 25).

Buscando fornecer informações sobre sexualidade, assim como criar espaço de reflexão, questionamentos sobre posturas, tabus, crenças e valores, respeitos de relacionamentos e comportamentos sexuais o papel de um sexólogo é importante para que possamos oferecer um projeto de ação sobre vários temas que posam englobar o assunto em questão. A escola é um bom lugar para realizar um trabalho informativo, tendo em vista o contato com as crianças e adolescente, pais e professores, conscientizando-os sobre não manterem o silêncio em relação à evidência de violência sexual, não se sentindo atemorizado pela situação e reação dos pais e, por fim, fornecer-lhes segurança para um processo contra o abuso e quando iniciado possa ser levado até o fim. Junto ao Conselho Tutelar, a escola tem um compromisso ético e legal de notificar às autoridades competentes para atuarem de forma correta e ágil em prol á proteção às vítimas de abuso, garantindo a qualidade de vida (Abrapia, 1997, p. 25).

 

Considerações finais

Em observação aos estudos realizados, pode-se observar que o assunto abuso sexual contra crianças e adolescentes é complexo, dinâmico, tendo como foco o abuso intrafamiliar, com maior incidência entre pais e filhos. No meio intrafamiliar há a facilidade de cometer tal ato pelo envolvimento da criança ou do adolescente com o membro da família, que necessariamente não precisa ser o pai ou mãe, mas fazer parte da família, adquirindo a confiança da vítima.

A facilidade de seduzir a vítima é constante e fácil, pois nesse momento há uma relação de troca, em que o abusador usa da atenção e afeto por ter acesso a elas sem que as outras pessoas desconfiem. Isso prejudica o desenvolvimento da criança, apresentado de alguma maneira na adolescência e ou principalmente na vida adulta, comportamentos antissociais.

A ocorrência do abuso sexual é vista na maneira como a sociedade vive e também como os traumas sofridos na infância que vem refletir no comportamento futuro dessas crianças e adolescentes. O estudo revela a inocência da criança e o despertar sexual do adolescente, que são violados sem qualquer maturidade por esses, de forma abrupta e violenta, causando consequências ainda mais devastadoras, não só pelo ato, mas por quem foi praticado, representado na maioria dos casos pela figura paterna.

A prática do abuso sexual é difícil de ser revelada, pois existem alguns aspectos comportamentais, culturais que dificultam a revelação do abuso, deixando as vítimas sem os cuidados necessários, referentes a esses tipos de problemas. O abuso sexual intrafamiliar sempre existiu e precisa ser aprendido como lidar com o assunto de maneira a ajudar as vítimas a terem uma vida melhor. Isso se dá através de divulgação do tema, denúncia de famílias agressoras, escola e quando possível denúncia da própria vítima. Realizar tratamento de prevenção nas escolas, comunidades e conscientizar os pais que uma vez agressores os filhos possivelmente se tornarão agressores, e isso pode ajudar a diminuir o abuso.

Nem todos os casos de abuso sexual contra a criança e o adolescente são de conhecimento social, pois a vergonha, o medo de dizer que tem um filho abusado em casa e principalmente por um dos membros da família, faz dessa prática um segredo velado entre os membros e em principal pela mãe. Responsável este que não fica isento do abuso.

As vítimas precisam ser ouvidas, acreditadas e valorizadas dentro do seio familiar, para poder estruturar seu superego dentro do que chamamos de certo ou errado. A família precisa de tratamento adequado e especializado junto à criança ou adolescente, para que esses possam retornar ao seu lar em segurança e sem maior dano.

As relações incestuosas de crianças e adolescentes envolvendo principalmente pai, e em alguns casos a mãe, não podem ser visto no sentido moralista, nem com a intenção de julgamentos, mas com a finalidade de responsabilizar aqueles que fazem parte desse ato seja por algum motivo para o qual cabe tratamento. Quando a mãe não está envolvida diretamente no abuso, ela está envolvida psicologicamente, apresentando comportamento de permissividade. Esses que não entendem nada, pois veem naquela mãe o único caminho para sua liberdade sexual. Só que essa mãe é presa no seu medo, vergonha e papel de esposa, qual deverá ficar fielmente calada para manter sua vida afetiva e até mesmo financeira, incluindo também a violência física que em alguns casos sofrem. Esse comportamento da mãe se dá pelo fato de não acreditar que o companheiro que escolheu para dividir uma vida, seria o autor do abuso sexual do seu próprio filho.

O abuso sexual é revelado na fase adulta, no momento do sentimento de descredibilidade que toma conta de si, impedindo qualquer aproximação que possa precisar de uma amizade, envolvendo confiança. A perda dessa característica é que dificulta o envolvimento do adolescente ou adulto com o meio social, trazendo consequências psicológicas importantes que afetam sua vida afetiva, social, profissional e familiar. Incluindo o desenvolvimento de caráter em que ocorre o incesto, desenvolvendo características de personalidade que se repetem com frequência.

Diante dos fatos apresentados como o incesto, à influência da cultura no abuso, as consequências, a forma de identificação, o comportamento psiquiátrico e a lei de proteção à criança e o adolescente, inseridos de alguma forma numa instituição familiar falha, cabe-nos substituirmos por outros discursos possam dar subsídios a essas vítimas para que não fiquem desamparados e frágeis, trabalhando sua autoestima, buscando na instituição de amparo jurídico, um recurso para seu problema que possui amparo legal.

Não podemos nos calar ou perder a visão para os casos de abuso e um caminho importante é elaborar uma sequência de ações no campo da educação sexual para alertar de forma preventiva o fato das consequências do abuso sexual que podem prejudicar o futuro da criança fazendo de seu caminho um território de dificuldades em sua vida social, afetiva e sexual.

 

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1 Psicólogo. Mestre em Sexologia Humana pela Universidade Gama Filho. Trabalha em Centro de Estudos e Pesquisa em Comportamento e Sexualidade. São Paulo, Brasil. Correo electrónico: arnaldo_risman@hotmail.com
2 Psicóloga pela Universidade Severino Sombra (USS). Docente na USS. Vassouras, Brasil, Correo electrónico: drarosania@gmail.com
3 Psicóloga. Mestrado em Neurociência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UNIRIO. Docente na USS. Vassouras, Brasil. Correo electrónico: gabrielam_vieira@yahoo.com.br
4 Psicóloga pela USS. Trabalha como psicóloga clínica. Vassouras, Brasil. Correo electrónico: liviaazevedo@hotmail.com

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