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Revista Brasileira de Psicologia do Esporte
versión On-line ISSN 1981-9145
Rev. bras. psicol. esporte vol.3 no.2 São Paulo dic. 2010
A superação esportiva vivenciada por atletas com deficiência visual: análise fenomenológica
The experienced sport overcoming by athletes with visual disability: phenomenological analysis
La superación deportiva experimentada por atletas con discapacidad visual: análisis fenomenológico
Leandro Penna RanieriI; Cristiano Roque Antunes BarreiraII
IEscola de Educação Física e Esporte (EEFE) - Universidade de São Paulo
IIEscola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto (EEFERP) - Universidade de São Paulo
RESUMO
O objetivo desta investigação foi compreender o papel do esporte na vida de atletas com deficiência visual enfocando a noção da superação a partir dos relatos de suas experiências vivenciais. Buscou-se, através da análise fenomenológica de quatro entrevistas gravadas e transcritas com atletas com deficiência visual, compreender o que é e como se manifesta esta vivência. A superação no esporte, de acordo com a análise dos relatos, pode ser vista como uma dinâmica singular de vivências que se empenham junto a um obstáculo - imposto e favorecido pelos códigos e normas que delineiam as ações alvo da prática esportiva - solicitando tensão crescente e desafiadora, nas dimensões corpórea, psíquica e espiritual, e sendo ancorada, como elemento marcante, na intensidade de um momento hilético tátil reconhecido como superior e pleno de valor ao ponto de assumir uma função existencial na vida destes atletas.
Palavras-chave: Superação, Esporte, Vivências, Fenomenologia.
ABSTRACT
The goal of this research is to understand the role of sports in the life of athletes with visual disability focusing on the notion of overcoming from the reports of their lived experiences. It seeks, through the phenomenological analysis of four recorded and transcribed interviews with athletes with visual disability, to understand what this experience is and how it manifests. The overcoming in sport, according to the analysis of the reports, can be viewed as a singular dynamic of lived experiences that are engaged face an obstacle - impose and favored by the codes and standards that outline the actions of sports practice - demanding a growing and challenging tension, in body, psychic and spiritual dimensions, and being anchored, as landmark, in the intensity of a hyletic tactile moment recognized as superior and full of value to the point of taking an existential function in the life of these athletes.
Keywords: Overcoming, Sport, Lived experiences, Phenomenology.
RESUMEN
El objetivo de esta investigación era comprender el papel del deporte en la vida de atletas con discapacidad visual con atención a la noción de superación desde los informes de sus experiencias. Buscamos, a través del análisis fenomenológico de cuatro entrevistas registradas y transcritas con atletas con discapacidad visual, para comprender que es y cómo se manifiesta esta experiencia. La superación en el deporte, de acuerdo con el análisis de los informes, puede ser vista como una dinámica singular de experiencias que se dedican frente a un obstáculo - y favorecido por los códigos y las normas que delinean las acciones de la práctica deportiva - con creciente tensión en las dimensiones corporal, psíquica y espiritual, y anclada, como elemento llamativo, en la intensidad de un momento hilético táctil reconocido como superior y lleno de valor hasta el punto de tener una función existencial en la vida de estos atletas.
Palabras claves: Superación, Deporte, Experiencias, Fenomenología.
Introdução
Ao se tentar definir o esporte, “as dificuldades começam a surgir quando nós queremos passar de um saber pela intuição a um saber pelo conceito” (Jeu, 1987, p. 13, tradução própria). Segundo Garcia (2002), “uma teoria sobre o desporte deverá levar em consideração a diversidade humana, considerando-se ela mesma diversa, indicando possibilidades várias sem estigmatizar situações ou atitudes” (p. 334).
Um aspecto que costuma atrair a atenção pública ao esporte é seu alegado potencial de mobilização cultural, social e política, observados do ponto de vista de seus efeitos e conseqüências. Embora de relevância indiscutível, este ponto de vista, não raro, perde o alvo do que o fenômeno esportivo tem de próprio e passa a ocupar-se daquilo que foi instrumentalizado pelo esporte, como outros aspectos sociais, culturais e políticos, restringindo a capacidade de valorar o esporte a partir da emergência das próprias experiências esportivas. Assim, o valor do esporte é justificado por algo que não si mesmo. Mesmo que possa ser caracterizado estrita e freqüentemente como um local de competição, objetivando o alto rendimento, observa-se também que, de uma perspectiva fenomenológica, o esporte é um fenômeno em que são manifestadas diversas vivências por cada indivíduo e busca-se a prática com inúmeros objetivos - embora não se possa prescindir de uma essência competitiva em sua constituição.
No esporte ”saboreamos o gosto carnal, intenso e quente, de nos sentirmos humanos” (Bento, 2002, p. 7). É um fenômeno em que oportunidades surgem, explorando as limitações e potencialidades, num momento de se autoconhecer, conhecer o outro e o mundo através do corpo em movimento. Nesse sentido, o fenômeno esportivo pode ser considerado e tematizado como um âmbito onde os seres humanos podem intuir e manifestar seus sentimentos, emoções, percepções, metas e vivências. “A riqueza do esporte está na sua diversidade de significados e re-significados” (Paes, 2002, p. 90) e na predisposição em atuar no mundo da vida, incluindo a relação interpessoal, através do corpo em movimento. Dessa maneira, ao adotar uma orientação ao olhar para o esporte como um fenômeno tematizado e como locus onde são manifestadas vivências intensas (Porto, 2005) por parte dos praticantes/atletas, assume-se uma postura mais sensível (Maffesoli, 1998), experiencial, isto é, fenomenológica, no sentido da apreensão da experiência humana enquanto tal. Portanto, o esporte, assim como qualquer fenômeno, também pode ser observado a partir daqueles níveis que caracterizam o ser humano enquanto tal, aferentes às dimensões corpórea, psíquica e espiritual, reconhecidas e individuadas pela análise fenomenológica clássica (Ales Bello, 2004, 2006; Coelho Junior & Mahfoud, 2006).
O esporte para pessoas com deficiência também pode ser lido a partir de uma ótica utilitária ou a partir de sua tematização fenomenológica. Uma perspectiva histórica da atividade física e esporte adaptados mostra que, de práticas terapêuticas e de reabilitação, esta modalidade passou por um processo com modificações em seus objetivos, no sentido do desenvolvimento de metas sociais e políticas, como a empregabilidade (Anderson, 2003) e a inclusão social. Contudo, segundo Moura e Castro (2002), o sujeito praticante não é, muitas vezes, o foco da discussão e reflexão sobre o tema ou, conforme Bredahl (2007), a pessoa com deficiência não participa de maneira efetiva no desenvolvimento das investigações na área. Acredita-se que, durante a prática esportiva, o atleta com deficiência pode viver num momento em que a sua condição, definida clinicamente pelo limite e de modo predominantemente estigmatizado durante sua vida cotidiana não é mais a característica primeira que define a percepção a seu respeito pelos outros e por si mesmo enquanto pessoa. Tal perspectiva vai de encontro com aspectos atuais discutidos na literatura científica, destacando o valor inclusivo do esporte e sua qualidade em alargar as possibilidades vividas nele, assim como outros argumentos discutidos por Rechineli, Porto e Moreira (2008).
Enfocando a experiência vivencial da pessoa no esporte, pode-se supor que a emergência da superação vá sobressair durante a prática esportiva. Segundo Rubio (2006, p. 86), “na Antigüidade o atleta competia, porém, sua busca pela vitória não estava fundamentada na derrota do adversário e sim na superação dos próprios limites, ou seja, ao alcançar o seu máximo na competição havia a experimentação de uma condição divina”. Garcia (2002) apresenta a superação como uma busca contínua à transcendência, relacionada intimamente com o rendimento, sendo um elemento presente na cultura humana e no esporte. Analogamente, segundo Silva e Rubio (2003), a superação é uma característica inata do esporte. O desafio proposto no esporte relaciona-se diretamente com a tentativa de ir além, de superação e, no caso dos atletas com deficiência visual, pode-se supô-la estimulando um sentido de si significativo, focalizado justamente na consciência das sucessivas “auto-superações” vividas na prática esportiva. O que é e como se configura essa experiência de superação?
Desta feita, a emergência de vivências intensas e singulares durante a prática esportiva privilegia objetivos de investigações por possibilitar a emergência de um processo revelativo, por parte do sujeito, de vivências que abarcam as dimensões humanas que o caracterizam, sendo potenciais objetos de estudo em investigações qualitativas. Aponta-se para a atitude diferenciada presente neste estudo, ao se buscar compreender o fenômeno esportivo a partir do que o próprio sujeito vive e com os significados dados por ele, contrariamente às perspectivas objetivas e quantitativas. Nesse sentido, colocada numa perspectiva fenomenológica, a experiência esportiva deverá se predispor à sua autenticidade, isto é, sujeitar-se ao encontro de um vínculo estreito entre a narrativa e a experiência vivida.
Conforme argumentação de Hochstetler (2003), os praticantes precisam promover uma relação entre suas práticas e a reflexão sobre elas, valorizando o processo - ao contrário da ênfase no resultado - através da narrativa. Overboe (1999) argumenta que as pessoas com deficiência podem retomar aspectos legitimadores contrários àqueles que cotidianamente as desvalorizam através do reconhecimento das suas experiências vividas e significativas. Além disso, Kerry and Armour (2000) argumentam que raríssimos estudos na área preocuparam-se em observar este conteúdo subjetivo da experiência vivencial do sujeito em atividade física através do relato e da análise fenomenológica, assim como Brown and Payne (2009), mais recentemente, enfatizam uma “marginalização” das poucas investigações deste tipo. Ainda nesta perspectiva, mas sem um enfoque na experiência do sujeito praticante, os trabalhos de Kunz (2000), Moreira, Porto, Carbinatto e Simões (2008) e Surdi e Kunz (2009, 2010), em língua portuguesa, também exploram a potencial contribuição de aspectos fenomenológicos para as ciências da atividade física e do esporte, buscando a compreensão do movimento humano. Nesse sentido, problematizando os princípios e contribuições da fenomenologia à área, Loland (1992, 2006a, 2006b) vem discutindo as potencialidades e a necessidade da fenomenologia para compreensão das experiências do praticante/atleta. A presente proposta de aplicação da análise fenomenológica encontra consonâncias com estes autores para quem a complexidade do fenômeno esportivo e da experiência manifestada durante a prática podem receber uma contribuição significativa dentro da área de ciências do esporte, comunicando-se de modo interdisciplinar com as ciências humanas.
Objetivo
A partir da tematização do esporte e da delimitação do objeto de estudo, o objetivo desta investigação foi compreender uma faceta existencial do esporte na vida do atleta com deficiência visual enfocando o lugar e a noção de superação a partir dos relatos de suas experiências vivenciais.
Metodologia
Foram realizadas entrevistas abertas e em profundidade, seguindo roteiro semi-estruturado, com 4 atletas com deficiência visual, praticantes de diferentes modalidades esportivas, como o atletismo, o futebol e o goalball, que já competiram pelo menos algumas vezes em competições regionais, bem como em competições nacionais e/ou internacionais. As entrevistas foram gravadas, transcritas e submetidas, em seguida, às leituras analíticas de inspiração fenomenológica, buscando-se compreender o que é e como se manifesta a superação a partir das vivências esportivas destes sujeitos.
A Fenomenologia, como ciência e método teórico-filosófico rigoroso, foi proposta e desenvolvida por Edmund Husserl (1859-1938), tendo como princípio o retorno às coisas mesmas, isto é, suspende-se momentaneamente os pré-conceitos, as pré-teorias explicativas sobre o objeto, buscando aproximar-se da vivência em si e atingir sua configuração vivencial, a fim de compreendê-lo e descrevê-lo (Ales Bello, 2004, 2006; Stein, 2000).
Elaborou-se um roteiro de entrevista contendo questões que visam acessar e aproximar-se, através da narrativa, da experiência vivida do outro. Com efeito, uma questão aberta inicial (Como surgiu o esporte em sua vida?), previamente elaborada, favoreceu que as narrativas e as experiências vividas dos sujeitos no esporte fossem atreladas de modo congruente. Já na entrevista, o pesquisador posiciona-se atentamente, buscando testemunhar a experiência relatada e a retomada do relato caso este tenha se desviado para falas secundárias, isto é, falas que não contém a descrição da própria experiência do sujeito.
O início da análise intencional buscou identificar categorias primeiras extraídas dos relatos por meio de suas sínteses intencionais e a subtração de elementos que não constituem material fundamental o objeto. Esta é a primeira etapa do método fenomenológico, denominada redução fenomenológica, deixando de lado os aspectos superficiais do fenômeno e partindo das manifestações singulares para os elementos comuns da vivência. Buscou-se apreender a estrutura da experiência vivencial - como se manifesta a experiência -, testemunhando atentamente o conteúdo expresso da vivência no fluxo de consciência do sujeito e realizando a análise intencional para apreender a estrutura típica, a qual é específica e própria do objeto, daquilo que se mostra a ele. Fenomenologia é exatamente a compreensão (-logia, logos) daquilo que se manifesta (fenômeno), aquilo que se dá intencionalmente à consciência da pessoa. Num conjunto de relatos obtidos, pode-se, através de um processo que envolve ações de comparação - diferenciação e associação - e definição, separar e exprimir esta estrutura pré-categorial (aspectos comuns) de elementos predicativos do objeto. Nesse sentido, a redução possibilita a entrada em um terreno não explícito anteriormente: o fluxo de consciência, e, a partir de um processo semelhante a uma escavação, uma arqueologia fenomenológica, busca-se quais são e como se configuram as vivências (Ales Bello, 1998, 2004, 2006).
Por fim, a descrição fenomenológica visa apresentar todo o processo, desde a subtração até a compreensão da essência que se individua pela análise.
Resultados e Discussões
Os resultados estão organizados a partir das análises de cada uma das entrevistas dos sujeitos, sendo que, num primeiro momento, apresentam-se os recortes existenciais de prática esportiva na vida deles, destacando as particularidades presentes nestas situações e para o modo como o esporte se enraíza existencialmente a partir de experiências significativas. Num segundo momento, apresentam-se vivências esportivas singulares de cada um, as quais contêm, em comum, uma dinâmica própria, o movimento da experiência de superação.
Na narrativa do sujeito 1, há dois momentos peculiares: um momento escolar, em que ele conhece o esporte a partir da influência de amigos, e um momento extra-escolar. No primeiro momento, para ele caracterizado como lúdico e recreativo, a experiência da prática cria gradualmente raízes em sua vida, se tornando cada vez mais importante e rotineira. Já no segundo momento: hoje em dia [...] eu nem ligo muito pro campeonato, só por tá jogando... [...] eu me preocupo mais em brincar mesmo, [...] apenas jogar. Em comparação com outras atividades que possivelmente não adquiriram preferência, comprometimento ou significado existencial tão intenso como a prática esportiva, segundo ele, não dá para parar [de] jogar bola.
O sujeito 1 relata uma fase delicada em sua vida esportiva: a passagem por um período de lesão.
Foi muito ruim. [...] É difícil eu ficar parado sem competir. [...] Eu fiquei muito triste. [...] Eu sabia que eu podia render muito mais se meu braço tivesse bom. [...] Treinava, mas eu saia bem insatisfeito comigo mesmo. [...] Insatisfeito porque eu podia produzir mais, mas não produzia devido ao medo de tá indo na bola. [...] Eu fiquei bem receoso de machucar de novo que tava recente. É, mas passou...
Em seguida, ao perceber a alteração positiva no seu desempenho, re-emerge uma satisfação pessoal; ele se sentia “recuperado” emocional e fisicamente, confiante, sem a presença do medo de jogar e da insatisfação pelo desempenho reduzido.
A percepção da sua condição física, do seu corpo, permitiu a manifestação de um sentimento referente a seu estado corporal, dinâmica entre vivências do tipo corporal e psíquica; num primeiro momento, o sentimento de tristeza se sobressai acompanhado por uma avaliação (atividade espiritual): a insatisfação surge. Posteriormente, a percepção do corpo se modifica, transformando também seu estado afetivo: ele se sente satisfeito com a renovação da sua condição física; assim, ele novamente se avalia - há a satisfação por ser possível realizar o movimento corporal de forma plena, sentindo-se apto à prática. Para ele, este é um momento de “auto-superação”, o que implica, consoante a análise, limite corporal, afeto des-animado, espírito avaliativo e determinado procurando orientar a atitude pessoal frente à adversidade, bem como, finalmente, modificação da situação geral com a correlativa apreciação de si e da atitude pessoal assumida. Os dois primeiros momentos, corporal e psíquico, segundo Ales Bello (2006, p. 39), acontecem ao sujeito, se impõem reativamente, enquanto normalmente o momento espiritual é imediatamente passível de controle pelo sujeito, lida com as outras dimensões se posicionando em relação a elas. Essa faceta voluntária da pessoa é que define a superação como originada do sujeito, portanto, auto-colocada, já que, porventura, a deliberação voluntária poderia ser a desistência das futuras atividades esportivas. Esta possibilidade de auto-superação - que não é qualquer tipo de imperativo moral, mas um problema existencial que traz à tona tanto a liberdade como os limites pessoais - incide na diversidade dos graus de “presença e realização” das dimensões humanas, cuja abordagem “é o núcleo da educação, física, psíquica ou espiritual” (Ales Bello, 2006, p. 42).
A partir do relato do sujeito 2 também pode-se perceber dois momentos em sua vida esportiva: a prática do futebol na rua com os colegas videntes e a prática e competição do futebol dentro de instituições. Para ele, na rua era só recreação: Antes era só diversão. [...] Jogar por diversão era jogar a qualquer hora qualquer, qualquer dia. [...] Jogava na rua, jogava descalço mesmo, não tava nem aí. Também era um momento de aprendizado e percepção gradual de sua maneira de jogar, ao comparar seu movimento com o movimento do outro que vê.
Como eu jogava só com os moleques na rua, só com o pessoal que enxerga, então eu queria fazer aquilo que o pessoal que enxerga fazia. Aos poucos foram me ensinando as diferenças e fui pegando, [...] porque a gente não joga parecido com eles. [...] Eu queria fazer tudo o que eles faziam: saber dar “chapéu”, essas coisas. Como eu não conseguia, não me sentia muito bem não. [...] Eu ficava besta: “por que eles conseguem e eu não? Vou ficar treinando aqui até conseguir”. Uma vez a cada ano a gente acertava o jeito de bater na bola.
Quando inicia a prática numa equipe de futebol de cegos, a comparação se configura a partir do outro na mesma condição que ele, construindo, assim, sua própria maneira de jogar. O futebol de cego ele é meio diferente. Tem que ter mais contato, mais comunicação ainda. Eu fui aprendendo e, cada vez que eu aprendia mais, gostava mais. Assim, durante a prática esportiva, há a percepção, a comparação e o aprendizado: ele conhece e aprende sobre seu corpo próprio, em movimento, e constrói o seu movimentar-se, a partir de si e dos outros, videntes e cegos.
Um momento significativo para o sujeito 2 é estar com a posse de bola.
Na hora vem um monte de coisas pra gente fazer: [...] “Eu faço isso? Eu faço aquilo? Se eu cortar pra cá, o que acontece? E pra lá, o que acontece? E se eu fizer esse movimento?” [...] Eu fico ansioso pra saber o que vai acontecer se eu fizer determinada coisa. Nisso, eu tenho que pensar muito rápido.
Com a posse de bola, ele tem uma sensação de possibilidades múltiplas da realização da próxima ação; ele intui as possibilidades e, antes de tomar a ação, emerge uma ansiedade da expectativa da realização desta nova ação. Após a execução, ele sente que aprendeu algo novo. Nesse sentido, o esporte, especificamente a realização do movimento corporal, tende a um aprendizado que, para ele, é motivador. Cada momento é novo, solicitando uma atenção e uma preparação, possibilitando o aprendizado gradual a partir da experiência esportiva.
A infância e o início da adolescência do sujeito 3 foram marcados por brincadeiras e atividades na rua com os colegas, período em que ela possuía um pouco de visão, a qual foi sendo reduzida com o tempo. Na rua, ela percebia que seu desempenho nas brincadeiras e jogos não era o mesmo que o dos seus colegas videntes e esta comparação, com o tempo, gerava barreiras e diferenças, restringindo a sua prática de atividades na rua. Segundo ela, havia alguma característica pessoal que a diferenciava e que a colocava num certo estágio de inferioridade perante os colegas. Eu comecei a perceber: “eu tenho alguma coisa que é diferente dos meus amigos e não vai permitir que eu tenha o mesmo desenvolvimento que eles”. [...] Eu comecei a perceber que eu não era como eles e eu não tinha as mesmas condições que eles. Ela começa a tomar consciência de suas características, limitações e capacidades. Assim, vai construindo a percepção de sua deficiência a partir de uma relação intersubjetiva, a partir da realização de movimentos corporais na rua em brincadeiras e jogos.
Ao conhecer o esporte adaptado, no final da adolescência, ela percebe que os outros em condições semelhantes à dela - com a mesma deficiência - necessitam dos mesmos recursos para praticar uma atividade esportiva, as habilidades se assemelhavam e a comparação dos desempenhos poderia ser feita sem o impacto primeiro do impedimento da deficiência, como acontecia nas brincadeiras de rua. Nesse momento, ela se identifica com as outras pessoas com deficiência visual, pois havia
a oportunidade de ser completa naquilo que eu tava fazendo, porque eu tava participando num grupo de iguais e também tinha recursos pra desenvolver o meu melhor naquilo ali. [...] Quando eu encontrei pessoas com a mesma deficiência que eu, que praticavam uma atividade física e que eu podia expressar a minha necessidade ali, pra mim foi maravilhoso, não tem palavras pra descrever! Foi muito legal, porque eram pessoas iguais a mim, as habilidades eram semelhantes e os recursos que eram oferecidos para a prática estavam vindo de encontro às minhas necessidades no que se refere à questão da deficiência. Então, pra mim foi uma descoberta, foi novos horizontes se abrindo.
Mesmo que a deficiência visual seja essencialmente um elemento de restrição corporal, o relato evidencia que não se trata de viver na restrição ou com a restrição sobressalente, mas justamente de viver na possibilidade, isto é, a partir da validade da experiência e sensação corporal, presente e dinamicamente solicitada em sua possibilidade mesma. Há espaço, portanto, durante a prática esportiva, para as possibilidades de movimento manifestarem-se, sendo estas não submissas à imposição de valores negativos a partir do conceito de deficiência e dos preconceitos conectados ao mesmo.
O sujeito 3 descreve como vive a experiência durante uma das modalidades esportivas que ela pratica revelando a densidade da presença no agora e do sentido de encontro com uma prática de pertencimento: o goalball.
Era como se eu e a bola fôssemos uma coisa só, é como se eu me sentisse capaz de pegar aquela bola em qualquer lugar que ela fosse e em qualquer velocidade que ela fosse. Eu me sentia muito conectada com a bola e com as minhas companheiras de equipe. Era uma energia de unicidade diferente. [...] É como se eu pertencesse àquele momento antes mesmo dele existir.
A defesa no goalball, principalmente de um bom arremesso adversário, é um dos momentos mais prazerosos e intensos para ela durante a prática esportiva.
Eu ouço a bola, primeiro passo. Segundo passo, eu percebo a velocidade que ela vem, percebo a trajetória que ela tá fazendo e uso o meu corpo pra chegar lá. [...] Expectativa. [...] Eu to em alerta. Eu me sinto como um bicho, pronto pra pegar a caça: a minha caça é a bola. [...] Você sente a velocidade da bola e você sente quanto tempo ela vai demorar pra chegar e aonde ela vai chegar. E aí você pula. Sentiu, sentiu, sentiu, pula. Parece que consigo sentir em mim. [...] É como se você fosse adrenalina, adrenalina, lina, lina, lina e explode. Se você não tiver conectada desse jeito, você não joga.
Portanto, toda a concentração no momento de expectativa se transforma, após o ápice, na ação da defesa do arremesso, ou seja, no direcionamento corporal para entrar em contato com a bola arremessada a ser defendida.
Há uma semelhança entre a descrição anterior e outro momento significativo e prazeroso para ela: o salto em distância no atletismo:
Eu acho uma sensação de liberdade muito boa, [...] quando você, correndo, que você salta. É uma sensação de voar mesmo: você tá ali, de braço aberto, teu corpo tá suspenso, não tem nada segurando você e você tá voando. É uma sensação de [inspirando profundamente e espirando, com tranqüilidade]... de entrega. E eu me entrego muito assim pra esse momento. Talvez é uma sensação similar a sensação do vôo da defesa, porque é um vôo, é um momento de entrega, é um momento de mergulho, é um momento de se aprofundar, eu não sei explicar direito. [...]
Entrevistador - O que é essa entrega?
Eu acho que tem alguma coisa a ver com tensão, tensão, tensão e depois explosão, explodir. Então, no salto você corre, corre, corre, corre e depois você se joga, com o destino certo. E na defesa também, a mesma coisa: você vai, vai, vai, vai, de repente você explode. Você se solta, você se projeta, você se entrega, é a palavra que eu consigo achar, você deixa aquilo que você se preparou acontecer.
A descrição dessas duas experiências, tanto a experiência da defesa, como a do salto, possui seu núcleo na corporeidade, pois, só possui significado para a pessoa devido a essa atividade corpórea, com o componente da hilética fenomenológica1 oferecendo a matéria constitutiva aos contornos intencionais da experiência. Além disso, a temporalidade presente revela como esta atividade corporal é constituída por sucessivas vivências, as quais, em conjunto, formam um momento importante para o sujeito. A apreensão dos momentos da passagem mostra as variações nas dosagens de intensidade da atividade corporal: no início, a vontade que antecipa e que a lança ao movimento, este cada vez mais rápido, mais intenso; há a elevação de uma tensão sucessiva, de acordo com o percurso da prova que precisa ser cumprido para se chegar à meta - ou seja, a tensão se eleva de acordo com o quão rente se aproxima da meta - culminando no instante do salto; toda a tensão é direcionada ao impulso do salto e no seu decorrer há uma espécie de distensão que prepara o aguardar do pouso. Percebe-se que a relação temporal entre cada passagem é a de uma retenção da passagem anterior - àquilo que precede o momento - e de uma pro-tensão do que virá - aquilo que sucede a passagem. Cada elemento da passagem, no fluxo de consciência do sujeito, constitui a totalidade da experiência2.
O sujeito 4 conheceu o esporte na infância, período em que ela ainda enxergava totalmente, praticando e competindo na modalidade basquete. Desde cedo, o esporte é importante em sua vida não somente pelo gosto de praticá-lo, mas também pelo aprendizado de valores, como a disciplina: O esporte mostrou pra mim que eu posso crescer, e não só no esporte, mas em todos os aspectos da vida. Segundo seu relato, praticar e treinar contém uma busca contínua por uma renovação, um processo cíclico contínuo:
É uma força: [...] parece que quanto mais eu treinava, mais eu queria treinar, e quanto mais eu aprendia, mais eu queria colocar em prática. [...] Eu sentia que eu tinha que buscar mais. [...] Eu luto bastante pra chegar num lugar e quando eu chego, eu não fico ali. [...] Eu me sinto muito bem buscando, sempre buscando. [...] Eu não deixo de valorizar aquilo que eu busquei e alcancei também, só que eu preciso de renovação constante. [...] Eu sinto falta, eu começo a sentir falta de alguma coisa. Eu começo a ter novamente aquela sede, aquele desejo, aquela vontade de buscar outra coisa.
Na adolescência, ela perde a visão e se percebe impossibilitada de seguir sua vida esportiva.
Derrotada. [...] Me sentia muito triste, sempre faltava alguma coisa. [...] Depois que eu perdi a visão, que eu vi realmente que eu não podia mais, aí foi triste, aí foi doído. [...]Eu me senti “a podada”, me senti presa, e eu não gosto de me sentir presa. [...] Foi uma sensação amarga.
Pela situação - a qual de alguma maneira impedia a oportunidade de estar em movimento, praticando esporte - a sensação de aprisionamento corresponde a uma involuntária repressão corporal imposta na mundanidade.
Após alguns anos, a entrevistada conhece uma modalidade esportiva específica para pessoas com deficiência visual, o goalball, e se inicia um processo de comparação e de descoberta, a partir dos elementos presentes na modalidade. Eu senti que eu podia crescer, que eu podia continuar com aquela coisa de buscar, de buscar, de buscar, de treinar, de ter um objetivo. Foi uma nova possibilidade de “renovação constante”. A prática esportiva, na condição de deficiência, possibilitou a ela aprendizados e descobertas, assim como benefícios práticos na vida cotidiana, como a confiança em se locomover na rua. A atividade esportiva é como uma “bússola” que, segundo ela, proporcionou-lhe novos caminhos, novos horizontes, novos objetivos, novas motivações, guardando a possibilidade de uma prática que parece se fortalecer e renovar a si mesma.
Conclusões
Pode-se destacar elementos que foram manifestados durante os relatos e que apontam para a importância do esporte para estes atletas. Um elemento importante é a fluida percepção de si, do outro e do mundo durante a prática esportiva, permitindo um processo constante de autoconhecimento situado no mundo. Tal experiência de conhecer, mesmo com variações no que tange aos conteúdos desta, acontece na relação com outro a partir do corpo em movimento e de sucessivas percepções e avaliações, social e intersubjetivamente ancoradas, mas sem o referencial orgânico e fenomênico da visão. Assim, o processo de percepção e autoconhecimento pode ser considerado, a partir de um conceito mais comum, um elemento de superação no esporte.
Do corpo lesionado ao corpo apto nova e plenamente à prática (sujeito 1), da expectativa dos possíveis movimentos a serem executados quando se está com a bola durante um jogo de futebol à decisão, à realização efetiva da ação com sua sedimentação enquanto aprendizado advindo desse momento (sujeito 2), da corrida inicial do salto em distância como uma tensão contínua durante a aceleração até o ápice desta tensão, dando-se o salto e, após este, o sentimento de entrega e liberdade durante o vôo e a espera da queda para finalizar a prova (sujeito 3) e da preparação para a defesa de um arremesso no goalball como um momento de concentração, acabando no direcionamento corporal para realizar o movimento da defesa (sujeito 3 e 4): estas são experiências particulares que trazem um conteúdo prazerosamente significativo para estes atletas e que possuem, antes de serem representadas, um conteúdo corpóreo-material (dado hilético) bastante latente e expressivo.
Realizado este percurso analítico, pode-se retomar a pergunta inicial que o estimulou a fim de respondê-la sinteticamente: o que é e como é essa experiência de superação? A partir da análise destes relatos, a superação no esporte pode ser vista como uma dinâmica singular de vivências que se empenham junto a um obstáculo - imposto e favorecido pelos códigos e normas que delineiam as ações alvo da prática - até torná-lo rastro, deixá-lo para trás, antes tendo solicitado tensão crescente e desafiadora, nas dimensões corpórea, psíquica e espiritual e sendo ancorada, como elemento marcante, na intensidade de um momento hiléticotátil reconhecido como superior e pleno de valor ao ponto de assumir um significado fundamental na vida destes atletas. Tal significado não poderia se elevar sem o dar-se conta imediato no momento do empenho desafiador e a apreciação retrospectiva do esforço e determinação espirituais. Se esta estrutura não é diferente entre videntes e não videntes, sendo, portanto universal, deve-se, contudo, dar destaque à intensificação da ancoragem, sobretudo tátil, para os últimos.
A partir disso, a experiência de superação pode ser uma condição que estimula uma existencialidade esportiva, ou seja, é uma das experiências centrais no fenômeno esportivo que motivam à prática e tem neste entrelaçamento existencial da objetividade esportiva com a subjetividade vivida a fonte que dá um significado singular ao esporte na vida deles.
Referências
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Endereço para correspondência
Leandro Penna Ranieri
Avenida Celso Garcia, 5706, ap 33
CEP 03064-000, Tatuapé, São Paulo/SP
tel: (11) 9465-7875; E-mail: leandro.owen@gmail.com
Cristiano Roque Antunes Barreira
Av. Bandeirantes, 3900, CEP 14040-900
Monte Alegre, Ribeirão Preto/SP
tel: (16) 3602-0344; E-mail: crisroba@gmail.com
Sobre os autores
Leandro Penna Ranieri
Escola de Educação Física e Esporte (EEFE)
Universidade de São Paulo (USP)
Cristiano Roque Antunes Barreira
Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto (EEFERP)
Universidade de São Paulo (USP)
Sobre o trabalho
Agência de Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
1Segundo Ghigi (2003), o componente hilético, material (dados sensoriais e perceptivos, emoções, sentimentos), é elemento das vivências, sendo um produto da redução fenomenológica. Dessa maneira, através da arqueologia fenomenológica que se dirige para a constituição da consciência, no estrato corporal localiza-se a esfera hilética.
2Para outra descrição sobre a temporalidade e a síntese passiva no contexto esportivo, como, por exemplo, a antecipação de um movimento, ver Vannatta (2008).