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Contextos Clínicos

versión impresa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.9 no.2 São Leopoldo jun./dic. 2016

https://doi.org/10.4013/ctc.2016.92.12 

ARTIGOS

 

Influências da psicanálise neofreudiana na psicoterapia de Carl Rogers

 

Influences of neo-freudian psychoanalysis in Carl Rogers' psychotherapy

 

 

Paulo Coelho Castelo BrancoI; Emanuel Meireles VieiraII; Sérgio Dias CirinoIII; Jaqueline de Oliveira MoreiraIV

IUniversidade Federal da Bahia. Rua Rio de Contas, 58, 45029-094, Vitória da Conquista, BA, Brasil. pauloccbranco@gmail.com
IIUniversidade Federal do Pará. Rua Augusto Correia, 1, 66073-040, Belém, PA, Brasil. emanuel.meireles@gmail.com
IIIUniversidade Federal de Minas Gerais. Av. Antônio Carlos, 6627, 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil. sergiocirino99@yahoo.com
IVPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Av. Itaú, 525, 30535-012, Belo Horizonte, MG, Brasil. jackdrawin@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo, de cunho ensaístico e histórico, objetiva revisitar didaticamente alguns aspectos presentes no contexto estadunidense de ideias psicanalíticas que influenciaram Carl Rogers, durante a composição da terapia centrada no cliente, nas décadas de 1920 - 1950. Rogers indicou, especificamente, influências das psicanálises neofreudianas de Otto Rank e Karen Horney. Destarte, disserta-se sobre os momentos históricos do surgimento da psicanálise nos EUA. Em seguida, aprofundam-se algumas concepções clínicas de Rank e Horney. Finalmente, demarca-se o que Rogers contatou e apropriou das ideias desses psicanalistas. Conclui-se que Rogers esteve atento aos debates psicoterapêuticos estadunidenses e que estes o ajudaram a compor elementos da terapia centrada no cliente. Apontam-se, finalmente, outras possibilidades de estudos sobre o legado de Rogers.

Palavras-chave: escola neofreudiana, psicologia do self, terapia centrada no cliente.


ABSTRACT

This article, of historical and essayistic nature, aims to revisit didactically some aspects presents in the US context of psychoanalytical ideas that influenced Carl Rogers, during the composition of client centered-therapy, in the years of 1920 - 1950. Rogers specifically indicated Neo-Freudian influences of Otto Rank and Karen Horney. Thus, the historical moments of the rise of American Psychoanalysis are discussed. Then, some conceptions from the Neo-Freudian psychoanalysis of Rank and Horney are probed. Finally, what Rogers contacted and appropriated from those Psychoanalysts is delimited. It is concluded that Rogers was a mindful thinker of the American discussions about psychotherapy and that they helped him compose elements of the client-centered therapy. Other possibilities of studies are therefore outlined.

Keywords: client centered therapy, Neo-Freudian school, self psychology.


 

 

Introdução

É possível situar no pensamento de Carl Rogers diversas correntes de pensamento psicológico, filosófico e psicoterapêutico que o influenciaram na composição de sua teoria clínica da personalidade. A despeito disso, este artigo, de cunho ensaístico e histórico, objetiva revisitar didaticamente alguns aspectos presentes no Zeitgeist psicanalítico estadunidense que influenciaram Rogers durante a composição de sua teoria e terapia centrada no cliente1.

Na acepção utilizada pelo campo da História da Psicologia, o termo Zeitgeist alude a certos acontecimentos que enviesaram as ações teóricas e práticas de um indivíduo ou um grupo de pessoas em um tempo específico (Brožek e Guerra, 1996). Em outras palavras, existem fatores sociais e culturais que determinam um contexto científico de circulação de ideias. Por conseguinte, tal contexto afeta a preocupação, a apropriação e a produção intelectual de um período histórico (Watson, 1998). Urge, pois, entender Rogers em relação ao seu contexto sócio científico de circulação de ideias psicológicas e clínicas, considerando o seu momento histórico, sua participação em grupos profissionais e o seu conjunto particular de experiências pessoais.

Desse modo, constitui falácia distinguir os expoentes da Psicologia do seu Zeitgeist, pois incorre equívoco pressupor uma unilateralidade na influência de um pensador sobre os seus fatores contextuais e vice-versa (Hilgard et al., 1998). No transcurso do que foi argumentado, pergunta-se: que aspectos do Zeitgeist de Rogers são possíveis observar, caso se possa lançar nova luz sobre ele ou compreendê-lo sob outra perspectiva, no caso, a histórica?

Considera-se, pois, que uma possibilidade de resposta está na combinação de uma investida internalista ao construto teórico de Rogers e externalista ao seu contexto histórico. Rogers contatou e se apropriou de certas concepções psicanalíticas pertencentes ao Zeitgeist psicoterapêutico estadunidense, nas décadas de 1920 - 1950. Tais concepções lhe foram conhecidas durante o seu período de elaboração teórica e prática na Society for the Prevention of Cruelty to Children (de 1928 a 1938), na Universidade de Ohio (entre 1938-1945) e na Universidade de Chicago (de 1945 a 1957) (Rogers e Russell, 2002).

Destaca-se que o estudo aborda, especificamente, as perspectivas psicanalíticas de Otto Rank e Karen Horney, devido ao fato de Rogers (1978, 1977, 1992, 1997, 2005) apontar explicitamente as influências desses autores em suas obras e entrevistas transcritas (Evans, 1979; Rogers e Russell, 2002). Com efeito, procede-se da seguinte lógica expositiva: disserta-se como a Psicanálise se propagou nos EUA; em seguida, aprofundam-se as psicanálises neofreudianas de Rank e Horney; finalmente, analisa-se o que Rogers contatou e apropriou desse Zeitgeist em sua teoria clínica.

 

Preâmbulo sobre o desenvolvimento da Psicanálise nos EUA

Considera-se que três momentos históricos foram imprescindíveis para o desenvolvimento da Psicanálise nos EUA. O primeiro (Millet, 1981), transcorrido na década de 1900, foi marcado pela visita de Sigmund Freud e Carl Gustav Jung a Clark University. Ambos foram convidados por Granville Stanley Hall, um psicólogo funcionalista estadunidense que se interessou pelas ideias da Psicanálise. Naquela universidade, Freud recebeu o título honorário de Doutor em Psicologia e teve suas palestras traduzidas e publicadas no American Journal of Psychology.

Esse primeiro momento também caracterizou-se pela militância de um grupo de médicos estadunidenses que leram as obras de Sigmund Freud, até então publicadas em alemão. Entre eles, destaca-se Abraham Brill, que, em 1907, foi a Zurique visitar Eugen Bleuer e Carl Gustav Jung. Em 1909, Brill colaborou com a tradução da obra de Jung intitulada The psychology of dementia praecox e, posteriormente, traduziu diversos livros de Freud para o inglês. Freud (1996a) credita o trabalho de Brill como difusor da Psicanálise nos EUA.

No segundo momento (Millet, 1981), decorrido nas décadas de 1910 - 1920, ocorreu uma efervescência de associações e sociedades psicanalíticas em terras ianques. Ao retornar para a Europa, Freud e Jung fundaram, em 1910, a International Psychoanalysis Association. Esta inspirou a formação da Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque, fundada em 1911, por Brill, que recém retornara de uma formação psicanalítica em Zurique e Viena. No mesmo ano, Ernest Jones estabeleceu a Associação Psicanalítica Americana. Tal internacionalização da Psicanálise culminou, em 1920, na criação do International Journal of Psychoanalysis.

O terceiro momento, procedido nas décadas de 1930 - 1940, foi ensejado pela assunção do nazismo na Alemanha e consequente migração de vários médicos analistas para os EUA. Curiosamente, enquanto a Europa exportava psicanalistas para os EUA, este país enviava os seus analistas nativos para servir ao exército na ocasião da Segunda Guerra Mundial. Minuta-se que, naquela época, em certos locais, como Nova Iorque, o número de analistas europeus ultrapassava a quantidade de analistas estadunidenses com formação local (Oberndorf, 1953). Com efeito, esse acontecimento tornou a Psicanálise mais popular em diversos centros de formação clínica, à medida que criava uma tensão com os profissionais locais. Ressalta-se que muitos psicanalistas dissidentes de Freud participaram da aludida migração e popularização.

Ainda no terceiro momento, houve um advento social de solicitação governamental para que a Psicologia transcendesse suas práticas experimentais com intuito de se tornar mais aplicada a diversos contextos profissionais. Vale dizer que a demanda pelo desenvolvimento de uma psicologia mais voltada para problemas práticos está diretamente vinculada à ocorrência da Segunda Guerra Mundial e ao retorno de veteranos daquele combate (Capshew, 1999). Nesse sentido, segundo De-Carvalho (1999), a terapia desenvolvida por Rogers teve grande impacto por ser um tipo de intervenção que era "[...] simples, informal, breve e requeria pouco treinamento (p. 142, tradução nossa). Foi nesse esteio que se deu o desenvolvimento de uma Psicologia Clínica (Capshew, 1999). Com a escassez de médicos psicanalistas, restritos a consultórios, muitos órgãos sociais se aproveitaram de psicólogos com o título de doutorado para executar funções na clínica (Oberndorf, 1953). Embora o ofício de psicoterapia naquela época não fosse uma atribuição do psicólogo clínico, muitos se apropriaram da prática psicanalítica, ou de elementos dela, para executar o trabalho. Eis por que muitas ideias psicanalíticas se tornaram populares em diversos centros sociais e educacionais.

Em decorrência dos três momentos históricos acenados, observa-se que o desenvolvimento da Psicanálise nos EUA foi caracterizado por uma heterogeneidade de perspectivas freudianas e neofreudianas que incorporaram outros problemas relacionados ao novo contexto cultural (Dunker, 2007).

Alguns aspectos podem diferenciar a Psicanálise europeia da Psicanálise americana. Um deles está no fato de que, na Europa, houve uma tendência de apropriação da Psicanálise por etologistas, psicofisiologistas e neurologistas. Nos EUA, tal apropriação foi mais patente por parte de psiquiatras, assistentes sociais e psicólogos (Figueiredo, 1991).

Outro ponto reside na concepção funcionalista que distingue a Psicanálise europeia da americana. Conforme elucida Figueiredo (1991), existe um aspecto funcionalista na Europa que aponta para o entendimento de que o organismo é regido por impulsos da ordem do instinto, que endogenamente se aglomeram e o fazem buscar no ambiente exógeno alguma forma de descarregar a energia acumulada. Essa liberação enseja padrões de comportamentos normais e patológicos. Nesse âmbito, a Psicanálise freudiana possui uma relação ambígua com esse modelo, porque, de um lado, foca-se no conflito decorrente das forças pulsionais antagônicas e da função do aparelho psíquico em libertar-se das tensões que isso produz, mas, de outro, substitui a ideia de instinto por pulsão, diminuindo a força de uma ênfase biológica.

O desenvolvimento da Psicanálise em solo estadunidense, por outra via, desenvolve uma concepção funcionalista, oriunda daquele contexto, de impulso, em que os conflitos entre natural (instinto) e social (civilização) dão lugar ao ajustamento e à adaptação do organismo ao ambiente. Há, ainda, uma premência nos estudos da personalidade do indivíduo em suas esferas conscientes e autônomas (Figueiredo, 1991).

A assimilação da Psicanálise nos EUA foi integrada, pois, à sua tradição funcionalista. Isso resulta em uma ênfase maior no Ego (self), como função adaptativa em relação ao Id - caldeirão das pulsões (Freud, 1996b) - e ao Superego - constituído pelas exigências da civilização. O que Freud considera efetivamente insolúvel na relação entre o natural e o social, nos EUA, passa a ser entendido com base em uma "[...] dinâmica de ajustamento sob a regência do ego" (Figueiredo, 1991, p. 99).

Reconhece-se, destarte, que outros momentos poderiam ser elencados para aprofundar o desenvolvimento da Psicanálise neofreudiana nos EUA, tal como outros aspectos distintivos entre as Psicanálises europeia e americana. Entretanto, optou-se por delimitar somente os momentos ora raciocinados, por entender que eles melhor atendem a uma descrição do Zeitgeist psicanalítico que Carl Rogers contatou.

 

Psicanálises neofreudianas de Otto Rank e Karen Horney

Desenvolvem-se aqui os aportes que dizem respeito às psicanálises de Otto Rank e Karen Horney que encontraram maior circulação e assimilação nos EUA. Por um critério didático, baseado na cronologia da assunção das ideias psicanalíticas dos expoentes mencionados, apresenta-se, inicialmente, o pensamento de Rank e, em seguida, o de Horney, destacando e ponderando alguns dos seus elementos históricos e teóricos.

Rank foi um analista que, entre 1906 e 1924, pertenceu ao ciclo psicanalítico de Viena. Observa-se que Rank não possuía formação médica, sendo ele um diletante da Psicanálise que chamou a atenção de Freud, que o convidou a secretariar a Sociedade Psicanalítica de Viena. Rank, que apenas tinha uma formação superior técnica, foi - o que Freud considerou - o primeiro psicanalista leigo a tratar doentes (Eisenstein, 1981). Posteriormente à sua ascensão na Psicanálise, Rank cursou um doutorado em Medicina na Universidade de Viena.

Nos anos em que esteve vinculado a Freud, Rank lançou diversos livros de fundamentação psicanalítica. Contudo, em 1924, junto com Sandor Ferenczi, Rank publicou um livro, intitulado O desenvolvimento da Psicanálise, no qual protesta contra o fato de a atuação do analista se focar predominantemente no material inconsciente do analisando. O ponto inicial da dissidência rankiana consiste, segundo a reconstrução de Eisenstein (1981), em enfatizar mais os aspectos relacionais que acontecem no momento presente da clínica do que os conteúdos inconscientes de formação anterior ao encontro analista-paciente. Vale ressaltar que, de um ponto interno à Psicanálise freudiana, a interpretação que Rank e outros analistas neofreudianos dão à relação psicoterapêutica dentro da teoria psicanalítica pode ser considerada um equívoco, na medida em que o conceito de transferência se refere ao modo de relação estabelecido entre analista e analisando. Destarte, a transferência é a base da análise e é definida como uma repetição em ato e atual dos conteúdos inconscientes, não cabendo, portanto, a crítica de que a relação analítica se prende totalmente ao passado. Rank publicou, ainda, outros livros que o afastaram da Psicanálise freudiana.

Devido às rejeições de Freud e dos seus fiéis seguidores, Rank mudou-se para a França, residindo em Paris entre 1926 e 1935. Nesse ínterim, Rank visitou os EUA diversas vezes, até mudar-se em definitivo para Nova Iorque, onde encontrou maior aceitação de suas teorias no campo da Assistência Social. Salienta-se que, na Filadélfia, as ideias rankianas também encontraram alento nos trabalhos de Frederick Allen, Virginia Robson e Jessie Taft, que as aplicaram em diversos trabalhos sociais (Millet, 1981).

Considera-se que as ideias rankianas se tornaram populares nos EUA, por sua proposta de psicoterapia romper com o monismo instintivo e pulsional de Freud e tratar o eu (self) como algo ativo e criativo (Eisenstein, 1981). Rank (1934) propõe um modelo de psicoterapia baseado na realização consciente de escolhas. Conforme o autor, a vontade é uma força cósmica primitiva atuante no indivíduo, que o faz transcender seus instintos para produzir os próprios ideais.

No entendimento de Rank (1934), o eu é consciente e criador, e não apenas um escravo que serve a três senhores, Id, Superego e Realidade. Desse modo, cabe à psicoterapia voltar-se para os sentimentos e emoções que acontecem no devido momento da relação clínica, evitando interpretações. É pela consciência que se apreende a vontade, são estabelecidos ideais e se avança sobre as forças naturais que fazem do homem um refém.

Sob essa perspectiva, Rank (1934) reconhece que a relação terapêutica "[...] não é uma compreensão interpretativa; é uma experiência imediata, uma forma de criação [...] Temos procurado, a todo o momento, um meio de escapar a esse constrangimento interpretativo onde vontade e consciência se torturam mutuamente" (p. 26-27). No entendimento de Rank (1934), essa tendência consciente e criadora se manifesta em todos, com formas diferentes e tem, ao mesmo tempo, algo de "[...] superindividual, de primitivo, de cósmico, que possui um valor geral humano ou universal" (p. 45). O problema da interpretação reside, pois, em perder esse caráter micro e macrocósmico que pertence ao indivíduo. Por isso, o autor ressalta que, na psicoterapia, "[...] devemos evitar introduzir julgamentos definitivos de valor, porque não lhe conhecemos a origem psicológica" (p. 45).

Cabe à psicoterapia, portanto, trabalhar a adaptação do indivíduo à sua vontade real, fazendo-o suportar a própria personalidade. Isso ocorre somente quando o indivíduo aceita sua vontade, em vez de negá-la (Rank, 1934). A flexibilidade da técnica psicanalítica de Rank possibilitou a circulação de sua terapia relacional entre psicólogos, assistentes sociais e educadores.

Saindo do percurso rankiano para adentrar o decurso de Horney, salienta-se que esta foi uma analista alemã de formação médica que desenvolveu o seu trabalho em Berlim, durante os anos de 1919 - 1932. Embora tenha se vinculado ao Instituto Psicanalítico de Berlim, desde o início, Horney exerceu a Psicanálise com um viés crítico a certos elementos cabais à teoria freudiana (Natterson, 1981). Especificamente, aproximou-se de uma reflexão culturalista para refutar a tese freudiana, que generaliza a inveja do pênis por parte das mulheres, acusando-a de ser oriunda de um preconceito masculino comum à cultura germânica.

Diante dessas críticas, Horney, assim como Rank, foi severamente excluída do circuito psicanalítico freudiano, ao passo que, em 1932, ela aceitou o convite de migrar para os EUA e se tornar diretora do Instituto de Psicanálise de Chicago. Ao se mudar para lá, Horney igualmente não encontrou aceitação e interlocução, situação que a fez mudar-se para Nova Iorque, em 1934, na busca de continuar o seu trabalho (Natterson, 1981). No ano seguinte, as ideias culturalistas e psicanalíticas de Horney a fizeram conferencista na New School for Social Research. Nesse contexto, Horney encontrou amparo e reconhecimento, o que motivou a criação da Associação para o Avanço da Psicanálise e da Associação Americana de Psicanálise, ambas presididas por ela.

A tese de Horney, em epítome, consiste em negar a universalidade do Complexo deÉdipo, ressaltando que existem certos aspectos etnológicos que demonstram a não existência de tal complexo em condições culturais diversas (Natterson, 1981). Horney (2007) se afinou ao contexto americano de Psicanálise ao questionar as primazias etiológicas das forças instintivas que compõe o psiquismo humano e a neurose, repensando-as segundo suas funções culturais. Horney, assim como Rank, aspira a eliminar o que entende por falácias biológico-mecanicistas de Freud, para focar em uma Psicanálise da realização das plenas capacidades do indivíduo. O pensamento de Horney tenta superar, pois, as teorias instintivas e sexuais freudianas, dando maior destaque aos relacionamentos interpessoais, que não são somente permeados por impulsos sexuais, pois também trazem padrões culturais e sociais que se internalizam nos indivíduos. Esses padrões internalizados podem trazer alienações intrapsíquicas e interpessoais. Quando acontecem alienações decorrentes dessas internalizações, o indivíduo começa a ter perturbações psíquicas, havendo reações neuróticas de desamparo e busca pelo reconhecimento dos outros (Hall et al., 2000).

Segundo Horney, a neurose ocorre em razão de carência e do medo de perder o amor desejado. Essa ansiedade básica enseja necessidades excessivas de afeição. Quando elas não são satisfeitas, surgem impulsos de hostilidade, autorrepressão e sentimentos de insegurança, inferioridade e desamparo. Tudo isso produz no indivíduo um quadro irrealista e idealizado de si (Hall et al., 2000).

Em conformidade com o pensamento de Rank, Horney (1959) compartilha a ideia de que a natureza humana não é escrava dos instintos primitivos e que sua essência não é destruidora. No pensamento da autora, existem forças construtivas que permitem aos humanos realizarem suas potencialidades criativas na luta pela autorrealização. Segundo ela, a neurose desvia as forças construtivas para canais inertes e destrutivos, no entanto, há uma força autorrealizadora que funciona como impulso autônomo e direcionador de forças para superar a neurose.

Para isso ocorrer, é necessário que a psicoterapia priorize uma compreensão consciente a respeito de nós próprios, a fim de conseguir a libertação dessa força de crescimento espontâneo. Destarte, conforme Horney (1959, p. 16), "[...] o ideal, para nós e para os outros, consiste, sempre, na libertação e no cultivo das forças que levam a autorrealização". Assim, "[...] o indivíduo sempre crescerá no sentido de sua autorrealização" (p. 119). Essa crença em uma força autorrealizadora é sustentáculo das questões teórico-práticas da psicoterapia de Horney. No que concerne à autorrealização, Horney (1959) se remete aos estudos de Kurt Goldstein, apesar de se diferenciar dele, por investigar o eu. Conforme o raciocínio de Horney (1959), a expressão eu real se refere ao crescimento do indivíduo no sentido de sua autorrealização, ou seja, de sua força interna, central, comum a todos os indivíduos e, ao mesmo tempo, singular a cada um. O eu real se desenvolve em favor das condições internas e valores do indivíduo.

A expressão eu ideal (Horney, 1959), por seu turno, vincula-se às imagens alheias que o indivíduo adota como suas, funcionando de modo a manter ou a atingir essa idealização. Ocorre que tal autoidealização se transforma em um ponto de referência em que o indivíduo a adota como se lhe fosse real. Uma idealização, contudo, pode se tornar real quando o indivíduo busca atingir seus desejos com base em suas necessidades próprias. São características do eu ideal: o afastamento dos próprios sentimentos, desejos e crenças; a perda da sensação de ser um todo orgânico; e o alheamento do eu verdadeiro. É próprio da neurose o desvio de energias autorrealizadoras, destinadas ao desenvolvimento do eu real, para potencialidades fictícias de um eu ideal ou idealizado. Quanto maior for o consumo de energia pelo sistema do eu ideal, menores serão os impulsos em favor da autorrealização e menor será a capacidade do indivíduo de assumir a responsabilidade por si mesmo (Horney, 1959).

As ideias de Horney foram bastante populares nos EUA entre psicólogos e psiquiatras, ao contrário do que lhe aconteceu na Europa. Muitos de seus livros se tornaram best-sellers, em razão da sua didática e da alegação de que pessoas leigas poderiam receber formação analítica para resolver questões específicas, caso guiadas por um psicanalista (Horney, 1976).

Em comum, Rank e Horney apresentam proposições teóricas e clínicas que repensam e divergem da Psicanálise freudiana. As dificuldades de circulação de pensamento na Europa, a abertura dos EUA para receber psicanalistas europeus e o advento da perseguição nazista foram fatores que influenciaram a migração de Rank e Horney para o continente americano. Em Nova Iorque e Chicago, predominantemente, havia um contexto institucional de associações e sociedades psicanalíticas favoráveis à difusão do pensamento desses autores, que obtiveram maior aceitação entre psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e educadores.

 

Relação de Carl Rogers com as Psicanálises neofreudianas de Otto Rank e Karen Horney

Após obter o seu título de doutor em Psicologia Clínica e Educacional na Universidade de Columbia, Carl Rogers trabalhou em Nova Iorque com crianças desajustadas no Rochester Institute for Child Guidance, de 1927 a 1928, e na The Society for the Prevention of Cruelty to Children, de 1928 a 1938. Naquela época, Rogers (2001) lidou com a impossibilidade de atuação no campo da psicoterapia, dada a sua formação em Psicologia. Segundo ele, não cabia ao psicólogo o emprego da psicoterapia, devido a sua restrição ao campo da Psiquiatria. Rogers atendia sob a égide do aconselhamento psicológico para exercer intervenções clínicas, a partir de entrevistas. Evitando enfrentar a questão de frente com o campo da Medicina, ele acumulou significativas experiências clínicas e diversas pesquisas, que demonstraram a possibilidade de atuação do psicólogo em nível de psicoterapia.

Esse contexto decorre do terceiro movimento psicanalítico nos EUA, mencionado anteriormente. Contudo, a despeito da questão política envolvida em relação ao domínio da psicoterapia na clínica, Rogers aproximou-se das concepções de Otto Rank e Karen Horney, devido à abertura que eles tinham com profissionais não médicos.

Após ter o seu trabalho clínico reconhecido, em 1938, Rogers partiu para a docência na Universidade de Ohio, onde desenvolveu pesquisas e intervenções sob a égide de aconselhamento psicológico. Contudo, nessa atuação, Rogers (2005) se aproximou do campo da psicoterapia, argumentando que uma relação de aconselhamento bem facilitada produz efeitos semelhantes aos resultados de uma psicoterapia. Tal proposição culminou, em 1942, na obra Counseling and Psychotherapy, que promoveu uma aproximação do campo do aconselhamento psicológico com a Psicologia clínica (Scorsolini-Comin, 2014) e levou Rogers a ser contratado pela Universidade de Chicago, em 1945, com o intento de desenvolver pesquisas em psicoterapia. Ressalta-se que, naquele período, a American Psychological Association (APA) estava interessada em financiar os estudos de Rogers para legitimar um lugar de psicoterapia para a Psicologia (Rogers e Russell, 2002). Não por acaso, por exemplo, Rogers foi eleito presidente da APA, em 1946 (Capshew, 1999).

Nas obras de Rogers oriundas desse contexto fértil de trabalho e pesquisa, é possível encontrar diversas menções à Psicanálise neofreudiana. Por exemplo, ao caracterizar sua proposta teórica de psicoterapia, Rogers (2005, p. 27) reconhece suas raízes a partir das novas perspectivas clínicas críticas aos métodos freudianos, aludindo às teorias de Rank, modificadas por Taft, Alen e Robison (o chamado Grupo da Filadélfia), e ao trabalho de Horney. Nos anos em que trabalhou na Universidade de Chicago, ao alcunhar sua proposta clínica de terapia centrada no cliente, Rogers (1992, p. 10) reconhece que esta apresenta fontes nos pensamentos psicanalíticos de Rank, do Grupo da Filadélfia e de Horney. Discorre-se, pois, o que foi contatado e apropriado por Rogers em relação à Psicanálise neofreudiana de Rank e Horney.

Rogers revelou que as concepções de Rank exerceram profunda influência no seu pensamento, com ideias que possuía apenas em estado embrionário. Em 1928, Rank chegou a ministrar alguns cursos na Pennsylvania School of Social Work, organizados por Rogers e alguns terapeutas rankianos da Escola de Filadélfia, como Jessie Taft, Virginia Robson e Frederick Allen (Rogers e Russell, 2002).

Segundo Rogers (1992, p. 17), a abordagem rankiana o influenciou pelo fato de esta ser "[...] a extensão das experiências práticas com uma orientação terapêutica baseada principalmente na capacidade do cliente". A despeito de não ter dado importância ao modelo teórico de Rank, Rogers (1978) reconheceu que a terapia rankiana influenciou o seu pensamento, por se focar mais em atitudes e emoções do que em técnicas e racionalizações clínicas, possibilitando maior autorrealização (DeCarvalho, 1999).

Kirschenbaum (2007), contudo, pondera que Rogers não chega a citar textualmente Rank em suas obras ou mesmo explicitar de modo conceitualmente mais denso de que modo foi impactado por seu pensamento e que seu contato pessoal com Rank num seminário ocorrido em Rochester no início de sua carreira não durou mais que dois ou três dias. Nesse sentido, Kirschenbaum (2007) assegura que não foi Rank que diretamente influenciou Rogers, mas a escola rankiana que se desenvolveu nos EUA e o contato que Rogers teve com estudiosos dessa escola. DeCarvalho (1999), também, compartilha desse ponto de vista. Salienta-se que, a despeito do que foi exposto, existe uma linha de argumentação que defende a terapia tal como desenvolvida por Rogers como fundamentalmente uma elaboração da terapia rankiana (Ellingham, 2011).

Sollod (1978) concorda com os pontos de vista de Kirschenbaum e DeCarvalho e afirma que rankianos que desenvolveram a terapia da relação, como Jessie Taft, tiveram impacto sobre a prática de Rogers. Tal influência se deu quanto: à ênfase no presente; à valorização da expressão de emoções e sentimentos; ao foco no potencial de crescimento do cliente; à relação terapêutica desprovida do lugar de autoridade do terapeuta; ao não julgamento; a uma atitude mais compreensiva e menos interpretativa; à concepção de relação como um encontro real entre terapeuta e cliente; à aposta no fato de o cliente saber mais de si do que o terapeuta; e ao enfoque no autodesenvolvimento e na responsabilidade do cliente perante sua situação e busca por autorrealização.

Devido às características acima, presentes tanto na terapia da relação quanto, posteriormente, na terapia centrada no cliente, Sollod (1978) afirma que Rogers não desenvolveu algo tão original no campo da psicoterapia, senão que tomou para si ideias da terapia da relação, simplificou-as "[...] e, o mais importante, trouxe-as para o reino da Psicologia acadêmica, onde poderia ser objeto de uma avaliação experimental" (p. 100, tradução nossa). DeCarvalho (1999) não chega a tanto, mas reconhece que a noção não biológica de crescimento, a valorização da experiência imediata da relação terapêutica e sua representação como não invasiva e passiva constituem o fundamento do que viria a ser a terapia centrada no cliente.

Mesmo que consideremos a originalidade da obra de Rogers, é notório que ele se apropriou de alguns aportes rankianos. De acordo com Kirschenbaum (2007), de todas as características que Rogers assimilou do pensamento rankiano, talvez a mais importante tenha sido a ênfase na autocompreensão e autoaceitação do cliente no momento da relação terapêutica. Ainda segundo Kirschenbaum, para os rankianos, "[...] se o paciente pode desenvolver a capacidade de viver como um indivíduo saudável na hora terapêutica [...], isso poderia ser transposto para a vida diária" (p. 88, tradução nossa).

Rogers (1978), todavia, criticou a terapia de Rank, devido a seus critérios não serem passíveis de investigação científica e pelo seu sucesso estar mais relacionado à sustentação de um ponto de vista relacional que não estabelece uma ordem do processo psicoterápico e medição dos seus resultados. DeCarvalho (1999) acrescenta as seguintes diferenças entre Rogers e Rank: o uso de terminologia psicanalítica no trabalho de Rank, como a importância da relação mãe-bebê e o trauma do nascimento, é ausente na obra de Rogers; a noção de crescimento em Rank ainda se ancora num quadro psicanalítico de organização da personalidade, enquanto Rogers a simplifica, apresentando-a como autorrealização; finalmente, ao contrário de Rank, Rogers explicitou minuciosamente as condições para uma relação terapêutica efetiva.

Kirschenbaum (2007) ainda menciona que, embora Rank condenasse as técnicas de instrução e interpretação, muitas passagens de sua obra trazem uma forte carga interpretativa. Kirschenbaum acredita que isso se justifica na medida em que "[...] enquanto está proibido de interpretar o significado do conteúdo passado do paciente [...] é possível interpretá-lo segundo o significado do seu comportamento presente na relação terapêutica" (p. 87, tradução nossa). Definitivamente, esta não é uma característica da qual Rogers se apropriou na construção de seu pensamento.

No que concerne à teoria de Karen Horney, é interessante notar como Rogers (1977) a ela se assemelha pela noção de condições de valia (valores). Quando um indivíduo se ajusta em favor das condições de valores que lhe foram impostas, pode desenvolver estratégias para pleitear uma não perda de amor, mesmo que para isso tenha que assumir um eu ideal (Hall et al., 2000; Paris, 1999).

Segundo DeRobertis (2006), tanto Rogers quanto Horney elaboraram concepções de desenvolvimento a partir do mesmo método: "[...] um estilo de coleta de dados retrospectivo, baseado em casos, significando que cada um deles revela temas do desenvolvimento infantil por meio da reconstrução das infâncias de seus pacientes" (p. 178, tradução nossa). Para ambos, portanto, a experiência clínica serviu de fundamento para suas reflexões a respeito das condições de valores que moldam a assimilação da experiência na relação com os outros.

Em relação à teoria do eu, de Horney, Rogers (1992, 1977) se aproxima dela ao reconhecer como hipótese central a noção de que o indivíduo possui uma capacidade latente para compreender os aspectos de si mesmo. O indivíduo tem, potencialmente, recursos para desenvolver um direcionamento à autorrealização e à maturidade de um eu mais integrado com as suas experiências organísmicas, autoconceitos e valores próprios. Para DeRobertis (2006), Horney tem concepção semelhante a respeito do eu, uma vez que, para a aludida autora, o eu se move em direção ao crescimento - concepção muito cara à de autorrealização postulada pela Psicologia Humanista. Para Paris (1998), a ênfase que Horney dá à self-realization tendency (tendência à autorrealização ou atualizante - a depender da tradução brasileira) como fonte de valores saudáveis e meta de vida a torna uma das fundadoras da Psicologia Humanista. Em outro trabalho, Paris (1999) aproxima Maslow, expoente da Psicologia Humanista, e Horney quanto à aposta na self-actualization mesmo diante de eventuais dificuldades encontradas no cotidiano.

Nota-se que a teoria da personalidade e do comportamento de Rogers (1992) baseia-se na relação do eu real e do eu ideal com as autor regulações do organismo e a autorrealização da personalidade. Conforme expressa o autor,

[...] a noção do 'eu' - elemento importante a nossa teoria - não é um 'agente especializado' que funcionaria em conjunção com a tendência atualizante. O 'eu' nada faz; representa simplesmente uma expressão de tendência geral do organismo para funcionar de maneira a se preservar e se valorizar (Rogers, 1992, p. 160).

[...] Considerando-se que a tendência atualizante rege todo o organismo, ela se exprime igualmente no setor da experiência que corresponde à estrutura do 'eu' - estrutura que se desenvolve à medida que o organismo se diferencia. Quando há acordo entre o 'eu' e o 'organismo', isto é, entre a experiência do 'eu' e a experiência do organismo', na sua totalidade, a tendência atualizante funciona de maneira relativamente unificada. Ao contrário, se existe conflito entre os dados experienciais relativos ao 'eu' e os relativos ao 'organismo', a tendência à atualização do organismo pode ser contrária à tendência à atualização do 'eu' (Rogers, 1992, p. 161).

Nessa ótica, destaca-se a influência de Horney. Convém mencionar que Rogers (1992) utiliza as noções eu real e eu ideal para fazer alusões às autorregulações que o comportamento pode esboçar mediante o eu e as necessidades do organismo. Salienta-se que Esselyn Rudikoff (1954), em uma obra organizada por Carl Rogers e Rosalind Dymond, apontou sobre essa semelhança com a teoria de Horney e comentou que as pesquisas empíricas rogerianas a comprovam.

Destarte, é possível perceber que os aportes de uma personalidade que funciona mediante os impulsos da autorrealização e um ajustamento em função do eu real ou eu ideal têm raízes em Horney. Para Horney, segundo DeRobertis (2006), o eu real tem em si a potencialidade de resolver conflitos e de ser mais espontâneo. Rogers faz, no entanto, uma releitura da teoria do eu de Horney, incluindo alguns elementos funcionalistas, como a noção de autorregulação.

Para DeRobertis (2006), as aproximações entre Rogers e Horney no que se refere à teoria do eu permitem que se vislumbre uma concepção comum a ambos acerca do desenvolvimento humano. Segundo esse ponto de vista, "Individualidade é uma expressão do desejo inerente de crescer e se desenvolver em todas as crianças humanas, o qual é essencialmente vivido, sentido, profundamente pessoal e interpessoal em vez de intelectual" (p. 189, tradução nossa). A força que motiva o desenvolvimento, tanto para Rogers quanto para Horney, é a self-actualization, mediada pela relação com os outros, que podem ou não facilitar esse processo. Nesse sentido, o self não é uma entidade fixa e individualizada, senão que se apresenta como um processo que se atualiza no contato com os outros (Paris, 1999). É interessante destacar que, a despeito da nítida similitude entre as concepções a respeito da constituição do self em Rogers e Horney, não há menções específicas a influências desta sobre aquele em duas das mais relevantes biografias de Rogers (Rogers e Russel, 2002; Kirschenbaum, 2007).

Conforme DeRobertis (2006), Rogers e Horney se diferenciam em dois aspectos principais. O primeiro diz respeito ao fato de que, de acordo com o referido autor, a concepção de Horney a respeito do self é pouco precisa, caracterizando-se como uma força quase mística que impulsiona a pessoa ao crescimento. Já o entendimento de Rogers sobre o mesmo conceito, embora não entre em choque com aquele apresentado pela psicanalista neofreudiana, é mais claro e preciso - especialmente no que diz respeito ao fato de ser uma diferenciação do organismo como um todo (Rogers, 1992).

O segundo ponto de discordância entre Rogers e Horney, ainda de acordo com DeRobertis (2006), diz respeito à maneira como eles reagem a relações parentais que não facilitam seu desenvolvimento. Para Rogers, em nome da manutenção do amor de pessoas significativas, em relações de consideração positiva condicional, a criança passa a adotar comportamentos rígidos, buscando cumprir as expectativas alheias a seu respeito. Horney, por sua vez, afirma que, diante de tais relações, a criança pode adotar uma de três possíveis formas de se relacionar com o outro: ou vai em sua direção, ou foge dele, ou vai contra ele. Na teoria de Horney, essa forma de relação adotada pela criança soma-se às regras (ou aos shoulds, como a autora chama) para moldar um eu idealizado.

Rank, Horney e Rogers, ao assumirem uma posição de destaque para a autorrealização, para as adaptações do eu e ao papel da consciência, distanciam-se de Freud, quando defendem a ideia de que os conflitos psíquicos advêm de determinadas condições sociais e ambientais, não se limitando somente a questões de ordem sexual, pulsional e instintiva. Rank, Horney e Rogers reconhecem a influência do contexto social em que o indivíduo vive, detendo-se a seus aspectos íntimos em interação com os fatores que moldam e afetam a personalidade. Indica-se, pois, que as teorias dos três autores em tela, em comum, cultivam uma visão positiva do ser humano, com suporte em suas forças interiores e criativas, bem como sublinham a possibilidade de o indivíduo se estabelecer como único e criativo ante as condições sociais e culturais.

No que se verifica, é notório que Rogers se apropriou de alguns elementos da Psicanálise neofreudiana desenvolvida nos EUA. Embora esses elementos psicanalíticos o tenham influenciado na composição de certos aspectos de sua teoria clínica, é equivocado afigurar Rogers exclusivamente como um expoente ou representante do movimento psicanalítico neofreudiano, dado que ele não o continuou. Em outros termos, nos EUA, as ideias psicanalíticas eram populares em um circuito de formação composto por associações, institutos e consultórios, alheios às exigências universitárias de ciência psicológica, com as quais Rogers se deparou. Seja freudiana ou neofreudiana, em comum, as vertentes psicanalíticas de psicoterapia não dialogam com os tradicionais ditames empíricos e experimentais de fazer ciência, pois se resguardam a um paradigma próprio de produção e validação do seu conhecimento clínico.

Rogers desenvolveu suas ideias em um contexto em que os psicólogos clínicos estadunidenses pleiteavam o direito de exercer o ofício da psicoterapia, bem como o reconhecimento acadêmico num contexto em que os trabalhos de laboratório tinham mais prestígio que a prática clínica (Capshew, 1999; Grogan, 2012). Naquela época, como as perspectivas disponíveis e chanceladas de fazer psicoterapia eram psicanalíticas, a aproximação de Rogers com a Psicanálise foi inevitável. A terapia centrada no cliente, entretanto, dialoga com a Psicanálise a partir de um lugar de Ciência psicológica, dado que o seu contexto universitário lhe exigia pesquisas empíricas sobre a clínica. Com efeito, Rogers tentou incorporar elementos da psicanálise horneyana ao seu corpo de estudos sobre processos de mudança de personalidade em psicoterapia. Além dis-so, Rogers (1978) ressalvou a necessidade de pesquisas empíricas sobre a terapia relacional rankiana.

Curiosamente, Rogers, em um momento final de sua vida, abandonou o discurso acadêmico da necessidade de fundamentação científica, por meio de pesquisas empíricas e experimentais, e desenvolveu sua abordagem como um jeito de ser que não necessariamente envolve uma formação científica (Rogers, 1983).

 

Considerações finais

O pensamento de Carl Rogers é composto por uma diversidade de influências históricas explícitas e implícitas que merecem ser elucidadas e discutidas, dado que ele foi um homem atento às contestações psicoterapêuticas que aconteciam nos EUA. Com efeito, conquanto o pensamento de Rogers seja claro em relação àqueles que o influenciaram, exercitou-se um retorno ao Zeitgeist psicanalítico estadunidense que ele contatou, de modo a elucidar e refletir o que foi apropriado. O estudo aponta, pois, para a síntese dos seguintes pontos de influência.

Rogers se inspira em Otto Rank para elaborar atitudes clínicas menos interpretativas e mais compreensivas, com enfoque nos aspectos emocionais da relação terapêutica e atenção ao seu presente imediato. Da Psicanálise horneyana, Rogers apropria-se das noções de eu real e eu ideal e de como essa dinâmica da personalidade afeta as autorrealizações do organismo e inspira-se nela para formular a noção de condições de valia (valores).

Considera-se, finalmente, que a via de estudo histórico sobre a relação de Rogers com o seu Zeitgeist psicoterapêutico estadunidense possibilita a (re)constituição de alguns dos elementos envolvidos na edificação de sua terapia centrada no cliente. Assinala-se que existem outros aspectos do mencionado Zeitgeist possíveis de serem revisitados historicamente, a saber: o contato de Rogers com a Teoria Interpessoal da Psiquiatria desenvolvida por Harry Stack Sullivan, na década de 1950.

 

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Submetido: 22/01/2016
Aceito: 22/07/2016

 

 

1 Após se aposentar, em 1963, Rogers deixou de exercer e pesquisar a terapia centrada no cliente, interessando-se pelos fenômenos grupais, familiares e educacionais. Ao perceber que o alcance de suas ideias excedia o espaço clínico, Rogers (1983, 2001), em 1977, nomeou sua prática de abordagem centrada na pessoa (ACP), indicando uma definição mais ampla, que envolvia outros âmbitos das relações humanas que não apenas a psicoterapia. Alguns colaboradores, como Maria Bowen, desenvolveram a ACP na clínica, mantendo interlocução com Rogers.

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