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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versión On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. v.1 n.2 Florianópolis dic. 2001
RESENHA
Diagnóstico psicológico e trabalho. uma questão de método?1
Soraya Rodrigues MartinsI; Silvio Paulo BotoméII
IPsicóloga. Mestranda em Psicologia. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (sorayarm@terra.com.br)
IIDoutor em Psicologia. Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, (botome@cfh.ufsc.br)
Diagnosticar é "conhecer através de...". Usar um método implica seguir de forma ordenada e regular um caminho pelo qual um certo objetivo ou finalidade são alcançados, para adquirir ou demonstrar conhecimentos (Chauí, 2001).
A tese de doutoramento do pesquisador Roberto Moraes Cruz - Psicodiagnóstico de síndromes dolorosas crônicas relacionadas ao trabalho,2001 - é um estudo descritivo, de corte transversal, no qual o autor desenvolve um método de investigação dos transtornos psicológicos em pessoas portadoras de síndromes dolorosas músculo-esqueléticas, combinando duas tradições teóricometodológicas da Psicologia (psicométrica e projetiva), associadas à análise das queixas relatadas por trabalhadores na sua relação com a doença. Esse estudo vem contribuir para a reflexão e produção do conhecimento referente a problemas pertinentes, primeiro, à realidade social do diagnóstico psicológico, em particular das doenças relacionadas ao trabalho; depois, para a prática profissional de psicólogos e seus modos de intervenção nas relações entre saúde e trabalho.
As constantes e aceleradas transformações no mundo do trabalho, trazendo inevitáveis conseqüências para a saúde do trabalhador, ampliam, enquanto tornam mais complexa, a avaliação do sofrimento, da dor e do desconforto físico e psíquico presentes nas relações entre trabalho e saúde. Vários estudos2 apontam a progressiva incidência das doenças relacionadas ao trabalho, sendo essas definidas a partir de estudos epidemiológicos e pesquisas interseccionais, dado que as condições de trabalho constituem um fator de risco adicional3 de adoecimento. Sob as mais diferenciadas contribuições teóricas e denominações (estresse do trabalho, fadiga mental, fadiga patológica, burnout,neurose do trabalho, etc.), o problema principal desses estudos está em dimensionar o papel histórico (e cultural) que o trabalho desempenha no processo saúde-doença (somática e psíquica).
A incidência dessas doenças nas últimas três décadas favoreceu o questionamento das concepções existentes sobre o processo saúde-doença, sobre os procedimentos atuais de diagnóstico, além das relações homem e trabalho. A dificuldade de diagnóstico adequado (e precoce) e a complexidade dos fatores envolvidos no processo saúde e trabalho destacam a importância em discutir o método de investigação para conhecer esses fenômenos. No caso das doenças relacionadas ao trabalho, que justapõem os planos individual e coletivo, o pensar sobre o fato psicológico envolve uma análise sistêmica ou dinâmica da situação de trabalho.
Cruz, inclusive, procede a uma revisão bibliográfica das pesquisas na área de saúde e trabalho, destacando o papel da Ergonomia e da Psicologia francesas, tanto com relação a aspectos psicodinâmicos do trabalho, quanto no estudo das cargas físicas e psíquicas no trabalho. Seu trabalho ressalta, como uma das grandes dificuldades da pesquisa sobre as patologias relacionadas ao trabalho, a compreensão da influência das características individuais e dos fatores psicológicos (estados emocionais e transtornos psíquicos) na modulação da intensidade e na exacerbação das síndromes dolorosas músculo-esqueléticas.
Segundo Dejours (1987,1994) e Laurell & Noriega (1989), as síndromes dolorosas crônicas evidenciam de forma marcante o sofrimento "físico e psíquico" no trabalho. A pesquisa sobre a relação entre os fatores psicossociais e as doenças músculo-esqueléticas delimita três tradições: os estudos dos fatores estressores relacionados ao trabalho atuando como moduladores do estado de saúde dos trabalhadores; os estudos epidemiológicos sobre os determinantes fisiológicos e ocupacionais das doenças músculo-esqueléticas, nas quais fatores mecânicos do trabalho (posturas) são os mais estudados, com pouca atenção aos fatores psicológicos; e uma terceira linha, que busca estabelecer as relações entre características individuais, transtornos psicológicos, condições de trabalho e síndromes músculo-esqueléticas. Cruz destaca essa última como área de contribuição no desenvolvimento do quadro de diagnóstico: a pesquisa sobre as características psicológicas associadas aos quadros de dores crônicas, em especial aquelas que podem ser consideradas mantenedoras e exarcebadoras dos sintomas. Porém, nas três tradições de pesquisa prevalece a idéia de que o caminho para a compreensão das manifestações psicopatológicas relacionadas ao trabalho passa pela análise crítica da situação de trabalho e dos mecanismos ou formas de enfrentamento das exigências e das condições nas quais o trabalho é realizado.
A sociedade vem exigindo, da prática do psicólogo, posições e intervenções mais claras quanto ao conhecimento dos aspectos psicológicos que interagem nas patologias de modo geral e, em particular, nas psicopatologias. Apesar do procedimento de diagnóstico ser esperado dessa atividade profissional, acontece que durante o exercício profissional, assim como durante a sua formação, o psicólogo vê tais procedimentos relegados a querelas entre linhas teóricas e metodologias de investigação divergentes em Psicologia. Assim, uma das grandes questões colocadas pelo estudo de Cruz é a de como definir uma estratégia que possa subsidiar pesquisadores e psicólogos, ao investigar, organizar e sistematizar o conhecimento, de forma a fomentar discussões e ampliar as condições teórico-metodológicas para a investigação das relações entre saúde e trabalho e do diagnóstico psicológico no trabalho. Questões que poderiam ser facilmente estendidas para todo e qualquer processo de diagnóstico psicológico.
Nesse contexto, da produção de conhecimento em Psicologia e do "processo saúde-doença", o estudo de Cruz desenvolve um método de investigação psicológica dos transtornos psicológicos em trabalhadores com síndromes dolorosas crônicas de incidência músculo-esquelética. Nesse percurso, combina dois métodos distintos em Psicologia, o psicométrico e o projetivo. Os métodos referidos são operacionalizados com o uso do teste SCL-90-R (Symptom Checklist) - instrumento de medida de padrões psicológicos associados à vivência de dor - e da técnica de psicodiagnóstico de Rorschach - instrumento para o diagnóstico dos transtornos psicológicos -, associados a uma anamnese clínico-ocupacional, criada especialmente para esse fim4. Apesar desses instrumentos possuírem validação científica internacional, no Brasil não há, segundo o autor, validação do uso do SCL-90-R, nem produção científica significativa dos transtornos psicológicos associados aos distúrbios músculo-esqueléticos.
O estudo de Cruz está organizado sobre as contribuições na área de diagnóstico psicológico, psicopatologia relacionada ao trabalho e síndromes dolorosas crônicas, sistematizando os dados necessários a sua pesquisa. Justifica a utilização do termo "transtorno psicológico" em detrimento de outros, por considerá-lo mais distante do reducionismo patológico impregnado do dualismo "corpo/mente" e da concepção de uma etiologia individual do processo saúde-doença, enfatizando o fenômeno em si que ocorre nas pessoas(Cruz, 2001, p.10).
O conceito e o procedimento de psicodiagnóstico são explorados e caracterizados de forma que o processo de psicodiagnóstico é concebido a partir do fenômeno psicológico a ser estudado, organizando-se em função da perspectiva de trabalho adotada pelo psicólogo. A ordenação e a sistematização dos dados colhidos durante o processo acontecem pela delimitação e identificação dos elementos recorrentes (estáveis) orientadas pelo referencial adotado.
O autor defende a aproximação de ato de diagnosticar na prática psicológica com a atividade de pesquisa: para conhecer e descrever o fenômeno a ser investigado é necessário construir um método que possibilite a organização de uma rede de informações e estratégias para o psicólogo pensar e significar o que é observado. O diagnóstico, portanto, não se reduz a questões de procedimentos e aplicações técnicas. Ele exige uma postura ética na construção e produção do processo de conhecer o fenômeno, na qual e a habilidade de pensar do pesquisador sobre o acontecido e os pressupostos teóricos utilizados desempenham fundamental função.
Sobre o recurso de testagem psicométrico, oriundo da tradição metodológica das ciências naturais, considerando tudo que existe como passível de ser quantificado ou medido, Cruz adverte sobre a falsa segurança que a suposta simplicidade de manuseio dos testes oferece, levando a equívocos de avaliação, muitas vezes com graves conseqüências tanto na problemática psicológica averiguada, quanto em suas prováveis conseqüências sociais. Negada a complexa fundamentação dos testes psicológicos, quando separadas teoria e técnica, acabam os testes por se confundirem com aqueles exibidos nas revistas informativas de con-sumo geral.
Por outro lado, também o método projetivo é examinado nesse estudo, ao qual se anexa o manual de aplicação e interpretação da técnica do Rorschach confeccionado para pesquisa. O psicodiagnóstico de Rorschach, cujos fundamentos derivam da Psicanálise e da Gestalt, busca o diagnóstico clínico dos aspectos dinâmicos da personalidade. A técnica tem como pressuposto o conceito de projeção, no qual as respostas dadas pela pessoa aos estímulos não estruturados a partir de uma realidade não conhecida configuram uma rede de significados presentes em seu discurso, que precisa ser compreendida pelo pesquisador.
Em sua pesquisa, Cruz examina os critérios técnicos e a validade do teste SCL-90-R e da técnica de Rorschach, avaliando o desempenho de ambos no diagnóstico de síndromes dolorosas crônicas músculo-esqueléticas. A população pesquisada tem setenta trabalhadores - atendidos em dois serviços de atendimento psicológico5 na cidade de Florianópolis (SC). Os resultados obtidos nos dois métodos de investigação foram associados às variáveis sociodemográficas, clínicas e ocupacionais, obtidas na anamnese. Os dados obtidos apontaram para a existência de uma correlação entre os métodos empregados - psicométrico e projetivo -, indicando diferenças de desempenho no diagnóstico de transtornos psicológicos. A técnica de Rorschach mostrouse mais eficiente na descrição e na análise dos impactos estruturais do adoecimento, com o predomínio de indicadores neuróticos, destacando-se, além da depressão, a hostilidade e a fobia. A escala de sintomas SCL-90-R, por sua vez, apresentou limitações no diagnóstico de fobia e depressão.
O autor não traz conclusões finais sobre o seu estudo, parecendo preferir seu aspecto descritivo e apontando a importância da continuidade da reflexão e, provavelmente, realização de novas pesquisas nessa área. Uma das conclusões que depreendemos desse trabalho consiste na contribuição para a melhoria da compreensão e avaliação da ocorrência e prevalência de síndromes dolorosas músculo-esqueléticas, que não podem estar limitadas aos aspectos físicos do ambiente ou do desempenho das tarefas (cargas físicas de trabalho). Incluem-se, nessa compreensão, os fatores psicossociais (familiares, afetivos, percepção da queixa, história familiar e vida social), associados à intensificação das cargas cognitivas (melhor seria dizer psíquicas- grifo nosso), e os aspectos emocionais: principalmente, quando esses são qualificados em termos de transtornos e/ou alterações das funções psíquicas sinalizadoras de um estado geral de desequilíbrio, sentido como desprazer ou desconforto (sofrimento psíquico). O autor ressalta que o aprimoramento metodológico das estratégias de avaliação psicológica sobre as síndromes estudadas é uma condição necessária ao desenvolvimento técnico-científico das pesquisas sobre psicopatologias relacionadas ao trabalho.
Após a leitura do trabalho de Cruz é possível concluirmos que o adoecimento no trabalho é habitualmente percebido e conceituado como pertinente à esfera individual (referindo-se à pessoa do doente), embora seja, o trabalho, uma ação reconhecidamente coletiva. O fato "psicológico" e o "estar doente", entretanto, são imediatamente remetidos ao plano individual, o que significa que o adoecer é responsabilidade exclusiva do doente. E, com o autor, é possível considerarmos, inclusive, que uma compreensão mais ampla dos fatores envolvidos no processo de adoecimento deverá contribuir decisivamente para a realização de diagnósticos adequados à complexidade da problemática e, conseqüentemente, a tratamentos e medidas preventivas mais eficazes no combate ao adoecimento que ocorre no contexto do trabalho, o que acabaria promovendo concretos benefícios à saúde do trabalhador.
Referências
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1 Resenha da Tese de doutoramento de Roberto Moraes Cruz - Psicrxliagnóstico de sindrames dolorosas crânicas relacionadas ao trabaUw- apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis -2001.
2 Laurel & Noriega (1989), Dejours (1987; 1994), Wisner (1994), Lacaz & Ribeiro(1984), Selligman-Silva (1994), Codo & Sampaio (1995), Settimi (2000), Cruz (2001), Lemos (2001).
3 Os fatores de risco adicional ocupacional ocorrem quando o trabalho podeser um fator de risco, contributivo, mas não necessário ao adoecimento, sendo o estabelecimento do nexo de natureza epidemiológica (grupo II); ou ainda quando o trabalho é provocador de um distúrbio latente ou agravador de doença já estabelecida ou persistente (grupo III). Diferenciando-se das "doenças profissionais" nas quais o trabalho é causa necessária do adoecimento. Brasil, Ministério da Saúde, Lista de doenças relacionadas ao trabalho:Portaria n.1339/GM, de 18/11/1999, 2000.
4 Derogatis, L. SCL-90-R Symptom Checklist,1994; Rorschach, H Psicodiagnóstico, 1978.
5 NIDI - Clínica de Dor e no SAPSI -Serviço de Atendimento Psicológico da Universidade Federal de Santa Catarina.