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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versión On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. v.3 n.1 Florianópolis jun. 2003
ARTIGOS
A problemática de definição de psíquico nos estudos de Wanderley Codo e colaboradores sobre o sofrimento psíquico e trabalho1
The definition problem of 'psychological' in Wanderley Codo's and his collaborators' studies about psychological pain and work
Fernando de Castro
Mestre em Psicologia. Professor do Curso de Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina. (feir@uol.com.br)
RESUMO
A presente pesquisa estudou a definição de psíquico utilizada por autores brasileiros embasados no materialismo histórico em suas pesquisas sobre sofrimento psíquico e trabalho no Brasil. O material analisado consistiu de livros e artigos sobre o tema. A análise revelou uma definição de psíquico que, em sua essência, não se mostrou diferente da perspectiva analítica freudiana. As fontes teóricas mostraram ter abandonado as balizas da práxis e do materialismo histórico, enquanto a definição de psíquico não avançou para além do que tem sido realizado pelos pesquisadores brasileiros de perspectiva analítica no estudo do sofrimento psíquico e trabalho. Conclui-se que os autores brasileiros baseados no materialismo histórico realizam uma crítica social do sofrimento psíquico no trabalho. Sua definição de psíquico, entretanto, não atende aos objetivos e necessidades técnico-científicas reivindicadas pelo materialismo histórico à psicologia.
Palavras-chave: sofrimento psíquico e trabalho; saúde mental e trabalho; definição de psíquico; materialismo histórico.
ABSTRACT
The present research studies the definition of psychological used by Brazilian authors based on historical materialism in researches about psychological pain and work in brazil. The investigated material consisted of books and articles about this issue. The analysis has revealed the use of a definition of psychological that, in essence, is not different from the notion of analytical perspective. Therefore, the theoretical sources have shown to abandon the boundaries of 'praxis' and of historical materialism while the definition of psychological has shown not to go beyond what has already been studied by Brazilian researchers working in the area of psychological pain and work. We have concluded, then, that the Brazilian authors based on historical materialism conduct a social criticism toward psychological pain in the workplace, but their definition of psychological does not correspond to the technical and scientific objectives and needs claimed by historical materialism in relation to psychology.
Keywords: psychological pain and work; mental health and work; definitions of psychological; historical materialism
1. Introdução
O sofrimento humano no trabalho tem se mostrado um fenômeno regular na sociedade capitalista, uma verdadeira marca das relações de trabalho numa sociedade que se organiza em função das leis coercitivas da competitividade do mercado (Harvey, 1992). Fatos empíricos não faltam para expressar como o trabalho, desde que assume a forma de mercadoria, característica do modo de produção capitalista (Marx, 1988, I), vem a ser a relação humana que mais inviabiliza e aliena os homens impedindo-os da satisfação de suas necessidades e da realização de seus desejos.
Braverman (1981), ao considerar a natureza do processo de produção capitalista e seus efeitos no local de trabalho faz notar uma tendência contínua para a desqualificação a que são submetidos os trabalhadores na empresa taylorista-fordista em relação ao seu trabalho concreto. Os trabalhos de Dejours (1998; 1994) sobre o confronto entre a organização do trabalho e o 13 aparelho psíquico, não cansam de atestar que a resultante desta relação em nossa época tem sido, sempre, alguma forma de sofnmento psíquico. E ainda Seligmann-Silva, no Brasil, tem mostrado igualmente, por suas inúmeras pesquisas e revisões bibliográficas, como o trabalho dominado, próprio do modo de produção capitalista, produz o sofrimento "na medida em que a dominação esmaga a identidade e aprisiona a alma no medo" (1994:40).
Deste modo estamos diante de um fenômeno humano concreto, qual seja, o sofrimento do homem no trabalho. Este fenômeno, por sua complexidade, não se esclarece por uma única disciplina, sendo necessário um aporte interdisciplinar, incluindo desde a Psicologia, a Sociologia, a Ergonomia, a Administração, a Medicina do Trabalho, até muitos outros, como já fizeram notar autores como Codo (1992), Guimarães e Grubits (2000) e o próprio Dejours (1994).
No estudo deste fenômeno complexo, para sabermos os limites e alcances da contribuição científica que a psicologia pode lhe possibilitar, faz-se necessária uma demarcação do objeto dessa disciplina, nos termos definidos por Sève:
"O caráter adulto de uma ciência é algo objetivamente identificável, pois depende de três princípios básicos: uma definição que fornece a essência do objeto de uma determinada ciência, seus conceitos de base e as leis fundamentais de desenvolvimento deste objeto"(1979:37).
No Brasil, autores de referência como Codo e seus colaboradores, vêm trabalhando no sentido de definir o objeto da Psicologia com base no materialismo histórico. Tais estudos e pesquisa decorrem em função de uma série de insuficiências que esses autores detectam na ciência psicológica e que tem impedido o seu avanço no conhecimento das relações entre trabalho e sofrimento psíquico.
Como afirma Codo, fazendo eco às palavras de Seligmann-Silva, "(...) é mentira que a crise econômica de 1929 tenha gerado suicídios, gerou algum mecanismo psicológico que, por sua vez, gerou o suicídio" (Codo, Sampaio e Hitomi, 1992:23). Neste sentido, Codo e seus colaboradores vão em busca da demarcação do objeto da psicologia ao amparo do materialismo histórico, para superar a situação teórica e prática na qual,
"(...) as investigações das relações entre saúde mental e trabalho não têm revelado sobre a questão nada mais que rápidas iluminações. Sabe-se, acredita-se, denuncia-se... mas não se comprova, não se apreende o como e o quando" (1995:85).
Ainda segundo os mesmos autores brasileiros, "(...) estamos na desconfortável situação de praticantes de uma ciência em busca de seu próprio objeto"(Codo e Sampaio, 1992).
Nossa pesquisa objetivou verificar em que medida a definição de psíquico utilizada por Codo e seus colaboradores proporciona uma contribuição cientifica para o esclarecimento e enfrentamento técnico do referido sofrimento no trabalho. Visamos deste modo contribuir para o avanço teórico das pesquisas sobre o sofrimento psíquico e trabalho no Brasil, verificando e discutindo a definição de psíquico utilizada por Codo e seus colaboradores, bem como sua contribuição para o conhecimento do fenômeno do sofrimento humano no trabalho.
2. A metodologia da pesquisa
A pesquisa delineou-se dentrodos moldes de uma investigação bibliográfica (Gil,1996; Luna, 1999) na medida em que o material de análise está constituído de livros e artigos científicos. O primeiro dos passos metodológicos caracterizou-se pela identificação dos autores com obras sobre o sofrimento psíquico e trabalho no Brasil, destacando-se neste conjunto aqueles que realizam suas pesquisas a partir do materialismo histórico. Para a devida obtenção do material bibliográfico, consultamos a base de dados Index Psi, procedemos à verificação das remisssões bibliográficas dos livros e artigos. Também consultamos na rede internet os sitesdos laboratórios de Psicologia do Trabalho.2
Após o levantamento do material bibliográfico com leitura e fichamento posteriores, identificamos, em função da noção de psíquico utilizada, autores de perspectiva analítica, baseados nos trabalhos de Dejours ou diretamente em Freud. O mesmo procedimento foi realizado com autores de perspectiva materialista histórica, buscando em Marx e Leontiev as bases para uma outra definição do objeto psicológico.
O segundo passo metodológico referiu-se à descrição e detalhamento dos estudos dos autores de perspectiva materialista histórica, no caso, Codo e um conjunto de colaboradores. Buscamos primeiramente verificar e detalhar a justificativa técnica dada por esses autores ao recorrerem ao materialismo histórico e, em seguida, descrevemos o conjunto de conceitos utilizados, bem como sua aplicação à prática de pesquisa.
A análise do material coletado constituiu o terceiro passo da metodologia, fase da pesquisa que privilegiou a observação de três focos fundamentais: (1) análise da definição de psíquico, com base no conjunto de conceitos e sua aplicação, demarcando as características da definição de psíquico utilizada; (2) análise das fontes teóricas que subsidiaram a definição de psíquico encontrada, com a finalidade de compreender como os autores chegaram a tal definição; e (3) análise da aplicação da definição de psíquico nos casos epidemiológicos e clínicos pesquisados por Cada e seus colaboradores, a fim de verificar os limites e alcances da definição de psíquico utilizada.
O quarto e último passo metodológico consistiu na discussão dos resultados da análise, utilizando-se para isso três parâmetros comparativos: (1) as características da definição de psíquico analisada em Codo e seus colaboradores com a noção de psíquico dos pesquisadores de perspectivas analítica; (2) os resultados de nossa análise com os objetivos e justificativas técnicas e científicas postas pelos próprios autores para recorrerao materialismo histórico; e (3) os resultados da análise da definição de psíquico com as exigências e reivindicações técnicocientíficas feitas pelo materialismo histórico à psicologia.
3. Sobre os resultados da análise da definição de psíquico em Codo e seus colaboradores
3.1 A análise da definição de psíquico
Em seus aspectos essenciais, a definição de psíquico estudada em nossa pesquisa, considera que por meio da atividade se forma a consciência ou representação que o indivíduo tem de si mesmo, através da impressão de energia afetiva nos objetos ou produtos do trabalho. O conjunto destas representações, que se consubstanciam em idealizações ou fantasias em relação ao futuro, em papéis sociais, em convicções sobre si, os outros e o mundo, vão configurando a identidade como um processo.
A noção de afeto ou energia afetiva aparece nesta definição cumprindo uma importante função, à medida que, de uma marieira ou de outra, o afeto sempre precisa ser impresso, pois é através dele que o indivíduo imprime sua marca, seus significados pessoais e representa a si próprio. Assim é que se forma a sua identidade. Nesse processo estão inseridos os mecanismos de reapropriação, buscando defender a identidade ou a realidade psíquica interior contra as agressões externas de um trabalho alienado e impessoal (Cada, Sampaio e Hitomi, 1992). Esses mecanismos podem operar clara ou obscuramente, tratando sempre de dar vazão à energia afetiva bloqueada, de forma a encontrar maneiras alternativas para impressão do afeto.
Desta forma, a definição de psíquico de Codo e colaboradores aparece demarcada pelas noções de representação, energia afetiva, mecanismos de reapropriação ou de defesa e pela noção de conversão. Ou seja, noções que caracterizam esta definição como mentalista e, neste sentido, idênticas tanto às descrições freudianas de aparelho psíquico como dinamismo mental, como às concepções psicopatológicas do pai da psicanálise. E ambas, por sua vez, herdeiras do dualismo cartesiano.
Os resultados de nossa análise mostram não existirem diferenças essenciais entre a definição de psíquico dos autores da perspectiva materialista histórica e aqueles de perspectiva analítica. O mentalismo e a psicopatologia freudiana permanecem inalterados à medida que Codo e seus colaboradores rechaçam superficialmente essas idéias para, no decorrer do desenvolvimento das pesquisas, incorporá-las com uma roupagem marxista3
Não existem, portanto, diferenças essenciais entre a perspectiva analítica de Dejours, para a qual a energia pulsional, de origem sexual, necessita ser sublimada - sendo a organização do trabalho aquela que pode viabilizar ou inviabilizar que isso aconteça - e a perspectiva de Codo e seus colaboradores, para a qual a energia afetiva tem no trabalho sua forma fundamental de expressão.
De modo análogo, quando tal energia se encontra impedida de realização através do trabalho, necessita encontrar seus canais alternativos: entre esses, inclusive, a doença mental. As noções de mecanismo de defesa, de inconsciente, de processos simbólicos, de mundo interior versus mundo exterior, encontram-se presentes na definição de psíquico trabalhada por Codo e seus colaboradores, tanto quanto nos estudos de perspectiva analítica que os mesmo autores pretendem superar mediante apelo ao materialismo histórico.
3.2 Análise das fontes teóricas da definição de psíquico
Uma das fontes teóricas fundamentais para a definição de psíquico utilizada por Codo e colaboradores é o conceito de atividade do psicólogo russo Leontiev. Nossa análise revelou, primeiramente, a maneira como a partir deste recurso ao autor russo, Codo e seus colaboradores acabaram por desconsiderar o conceito de praxis, essencial ao materialismo histórico.
Ora, se considerarmos Marx (1998, I), quando esclarece, n'O Capital, como o operário não se limita a mudar as formas da matéria que lhe oferece a natureza, mas essencialmente, realiza nela suas finalidades; ou ainda quando Vásquez, (1977), Kosik (1986) e Gramsci (1987), esclarecem como no homem, a determinação não vem exclusivamente do pa.ssado, mas fundamentalmente do futuro, com.o aquela finalidade que organiza e transcende o presente, podemos vislumbrar o quão fundamental é ter em conta o conceito de práxis. Ou mesmo, o quão prejudicial para compreendermos o homem concreto é ter como ponto de partida um autor tal como Leontiev, que não trabalha com a práxis.
Pois é justamente nesta direção que se mostra o conceito de atividade de Leontiev (1978a, 1978b), revelado pelo detalhamento da macro-estrutura da atividade desenvolvida pelo autor russo. Como características desta macro-estrutura temos um sentido pessoal, caracterizado pelo significado subjetivo e pessoal, que depende, por sua vez, da apropriação dos significados socialmente disponíveis e que vão formar a consciência, reflexo psíquico ou, se se quiser, o aparelho mental. Tal aproriação dos significados socialmente disponíveis está determinada pela atividade, que se move em resposta a um objeto que carrega uma necessidade. É este objeto/necessidade que se constitui no motivo para o qual o sujeito responde com sua atividade e que, por conseguinte, o impele a agir.
Compreende-se então que os motivos vão sendo refletidos na consciência (mundo interior) e, com o decorrer da atividade, vão ganhando um lugar numa certa hierarquia de motivos que vão constituindo a unidade da personalidade. Tal esclarecimento da macro-estrutura da atividade mostra-nos que, para Leontlev, a atividade humana acontece à medida que o indivíduo responde ao estímulo vindo de um objeto para satisfazer uma necessidade. Fica claro, neste sentido, a razão dos elogios de Leontiev (1978a) ao materialismo de Pavlov e, ao mesmo tempo, a razão pela qual desconsidera o definição de práxis.
Prosseguindo com o esclarecimento das fontes da definição de psíquico utilizada por Codo e colaboradores, recorremos aos princípios da Psicologia Social no Brasil quando esta buscou no materialismo histórico as bases para edificar a ciência psicológica. Podemos observar, a partir da leitura do livro "O homem em movimento" (Lane e Codo, 1984), que a apropriação realizada do conceito de atividade, em síntese, apreende do autor russo a indissociabilidade entre indivíduo e mundo social. O mesmo acontece com a noção de consciência como reflexo psíquico superior, resultante da atividade que tem como característica básica o surgimento do significado e do sentido pessoal.
Deste modo, a Psicologia Social brasileira de inspiração marxista, ao buscar compreender o homem concreto e estabelecer uma demarcação de psíquico compatível, ficou circunscrita aos parâmetros da atividade e da aquisição da linguagem. Os desdobramentos e desenvolvimentos futuros que este recorte permite realizar implicam nas noções de representação, de identidade e de inconsciente, que vão colocar a definição de psíquico dentro do território mentalista e psicanalítico, como assinalado.
Neste sentido, com base em Leontiev e na Psicologia Social que nele se inspirou, a noção de consciência fica compreendida como uma realidade interior, constituída por um conjunto de representações. Em outras palavras, como conteúdos de uma realidade interior que espelham ou refletem a realidade exterior de uma forma ao mesmo tempo genérica - através dos significados - e individual - através do sentido pessoal. Este conjunto de representações genéricas e pessoais vão formar a identidade na concepção formulada por Ciampa (1987), sendo este conceito mais um elemento chave das fontes teóricas que estão na base da definição de psíquico de Codo e colaboradores.
A tese central defendida por Ciampa é a da identidade como metamorfose. A sua construção implica na "(...) predicação de uma atividade anterior" (1987:133), o que significa dizer que a identidade vem-a-ser, à medida que a ativida de vai ganhando atributos característicos que a vão qualificando. Dessa forma, a atividade vai assumindo predicações por intermédio dos papéis sociais, ganhando a especificidade que o personagem vai lhedando, num constante processo de assumir e desfazer uma série infinita de personagens. A categoria identidade aparece definida na forma de personagem, do indivíduo se fazendo um representante de si mesmo perante os outros, da mesma forma como os outros comparecem cada um como representante de si em toda a trama social, implicando numa rede de representações que permeia todas as relações.
Na busca de instrumentos conceituais para fundamentar sua noção de devir e, afirmando-se assim, a identidade como metamorfose, Ciampa, recorre ao amparo de Hegel, especialmente à Ciência da Lógica (Ciampa, 1987) e também a Habermas, em sua definição de Identidade do Eu. A forma de apreender a lógica dialética do processo histórico, ao valer-se de Hegel, desconsidera, neste aspecto, toda crítica a respeito da dialética hegeliana empreendida por Marx, nos Grundrisse (Seve, 1979). Nessa perspectiva, os princípios especulativos e abstratos, que consistem em reconhecer por toda e qualquer parte as determinações da lógica (dialética), são superados em função da necessidade concreta e científica de conhecer a lógica específica do objeto específico.
É importante observar como a relação singular e universal dentro deste horizonte mais hegeliano do que materialista histórico, só ganha pleno sentido na medida em que faz entrar a noçao de Inconsciente como uma força atuante em todas as individualidades que faz realizar, através delas, os desígnios do espírito absoluto (D'Hondt, 1987). Como pano de fundo do conceito de identidade como metamorfose aparece então a noção de inconsciente, como o empreendedor de seu vir-a-ser. O inconsciente percebido como um fundo manancial que impulsiona a atividade humana à metamorfose e ao rompimento das barreiras das representações fixas e atemporais. Posição mais metafísica, impossível.
Com respeito a Habermas, o conceito de identidade de Ciampa irá apoiar-se na noção de identidade do eu do autor alemão. Esta noção caracteriza-se pelo conceito de mundo da vida ligado à noção de intersubjetividade transcendental do idealismo fenomenológico de Husserl (Fragata, 1985; Antunes, 1999), bem como ao conceito de universo simbólico, que vai se integrar, por sua vez, à dinâmica psíquica freudiana.
A estruturação da identidade do eu exposta por Habermas, portanto, ocorre no plano da consciência, da elaboração consciente no nível interativo, ou seja, no plano do juízo, que corresponde a uma determinada competência interativa (Habermas, 1983). No entanto, Habermas esclarece que, ao acontecer uma debilidade qualquer neste plano consciente do eu, existem os mecanismos de defesa para as situações em que se deseja evitar a elaboração consciente dos conflitos. Posição mais analítica, impossível.
Podemos verificar, com este esclarecimento das fontes teóricas da definição de psíquico utilizada por Codo e colaboradores, onde estão as bases que permitem a esses autores formularem uma definição de psíquico que, apesar de partir do materialismo histórico, vai concretizar-se como compatível com o mentalismo e a psicopatologia freudiana, caindo no extremo oposto daquilo que pretendiam alcançar. Ou simplificando: no idealismo, do qual nem a Teoria Crítica da Sociedade, nem Habermas ou seus mestres, jamais escaparam.
3.3 A análise da aplicação da definição de psíquico
A análise realizada valeu-se basicamente dos estudos realizados por Codo e seus colaboradores nos livros "Sofrimento psíquico nas organizações" (1995) e "Educação: carinho e trabalho" (1999), onde a definição de psíquico utilizada foi aplicada a estudos empíricos.
Importante antes de tudo é ter presente a finalidade técnica de Codo e seus colaboradores quanto a:
"(...) não mais isolar as variáveis e cuidar de cada uma delas em uma 'caixa de Skinner', mas ao contrário, relacioná-las entre si, compreender sua dinâmica interna, tentar traçar toda uma hierarquia de determinações" (1999:248)".
Nossa análise revelou como a definição de psíquico utilizada desviou-se desse objetivo fundamental. Tivemos oportunidade de examinar como Codo e seus colaboradores acabam por trabalhar com fatos isolados, fornecendo explicações especulativas, não relacionando as variáveis entre si. Desta forma perdem a lógica do fenômeno singular e objetivo, isto é, a lógica específica do objeto específico, chegando a conclusões estranhas à realidade do fenômeno estudado.
Estes resultados se objetivaram durante a análise do relato das pesquisas de Carvalho, "Professora primária: amor e dor"; e de Borsoi e Codo, "Enfermagem: cuidado e carinho" (Codo e Sampaio, 1995), onde encontramos elaborações teóricas sobre os problemas sem respaldo objetivo na realidade do fenômeno investigado.
A debilidade da definição de psíquico foi revelada também pela análise da pesquisa de Borsoi, Ruis e Sampaio, "Trabalho e identidade nas telefonistas" (Codo e Sampaio, 1995) onde os autores são forçados a concluir que:
"(...) temos consciência de que os resultados realizados sobre o trabalho humano, mesmo aqueles presos a uma abordagem que presta tributo ao marxismo em psicologia, não tem conseguido abarcar com êxito o objeto em questão" (1995: 172).
Foi ainda com o olhar atento a tais debilidades que Codo, na apresentação realizada dos mesmos trabalhos, assinalou que:
"(...) por melhores que sejam as descrições sobre o trabalho das telefonistas e suas neuroses, por mais que o pesquisador desta área tente a incursão no problema, ainda não o compreendemos" (1995: 14).
Não fogem à mesma constatação as pesquisas relatadas em "A histeria em creches" (Codo e Sampaio, 1995), onde a busca de referenciais na psico patologia clássica não tira o objeto da psicologia daquele 'jogo de esconde-esconde" que se pretendia superar (Codo, Sampaio e Hitomi, 1992). Tampouco a grandiosa pesquisa realizada em "Educação: carinho e trabalho" (Codo,1999), sobre o fenômeno de burnoutnos professores das escolas públicas estaduais. Nesta, a debilidade da definição de psíquico utilizada apresenta-se logo no ponto de partida, quando os pesquisadores esbarram com:
"(...)um velho problema que persiste ainda na ciência: porque as pessoas desistem? Por que fracassam? Como e quando fogem quando não há razão aparente? Quando a ação não ocorre, o que está imobilizando o sujeito?" (Codo,1999:239).
Não podemos deixar de assinalar, por fim, os estudos clínicos de Sampaio e Carneiro, "Saúde mental e trabalho têxtil" (Codo,1995); "Saúde mental e trabalho: estudo de caso da mulher policial" (Silva Filho e Jardim, 1997), e o de Almeida, "O trabalho na clínica psicológica" (Codo e Sampaio, 1995), todos estes com conclusões que contradizem os fatos observados, caindo em especulações e interpretações estranhas à objetividade do fenômeno.
Cumpre portanto reafirmar que os resultados da nossa análise atestaram que Codo e colaboradores não viabilizaram as pretensões técnicas e científicas pretendidas. Ou seja: acabaram trabalhando com fatos isolados e não teceram uma hierarquia de suas determinações a fim de traçar uma compreensão da dinâmica interna do fenômeno. Deixaram, em conseqüência, ainda incompreensíveis as relações entre trabalho e sofrimento psíquico.
4. Considerações finais
Nossas considerações finais, como já assinalamos, foram pautadas em três comparações. Na primeira delas, comparamos os resultados de nossa análise com a noção de psíquico de perspectiva analítica. Podemos dizer, neste sentido, que Codo e seus colaboradores permaneceram dentro do mesmo quadro conceituai que pretendiam superar. Esses autores concebem o psíquico no domínio do simbólico e da representação, trabalham com a noção de mecanismos de defesa e energia afetiva, com a divisão consciente/inconsciente, comungam da noção de mundo interior, estando, portanto, inseridos no mesmo conjunto de conceitos que a perspectiva analítica.
Com relação aos objetivos postos pelos autores, justificando a necessidade técnica de uma outra definição de psíquico de forma a esclarecer a função do trabalho nos quadros psicológicos e psicopatológicos estudados, podemos dizer que Codo e seus colaboradores perderam a preocupação, no decorrer de seus trabalhos, com a questão de uma definição de psíquico compatível com o materialismo histórico. Em detrimento de uma crítica social à alienação e ao sofrimento no trabalho na sociedade capitalista, não alcançaram uma outra definição de psíquico como pretendiam e, por conseqüência, um esclarecimento científico do fenômeno estudado.
Finalmente, face às reivindicações feitas pelo materialismo histórico a uma psicologia científica - considerando neste sentido, os trabalhos de Sève (1979), Vigotski (1996) e Politzer (1965,1969) - podemos concluir que Codo e seus colaboradores não fornecem uma resposta positiva com respeito a uma definição de psíquico que respeitasse o conjunto de exigências técnicas postas para uma psicologia cientificamente madura.
Podemos sintetizar este conjunto de reivindicações do materialismo histórico para a psicologia em três aspectos fundamentais, quais sejam: (1) o ontológico, (2) o antropológico e o de método, como princípios da ciência.
1. O àspecto ontológico: definir o objeto de uma ciência é definir a essência daquilo que se investiga, sendo que esta essência deve ser real e não 'ideal' à maneira do idealismo. Deve ser concreta e apreensível no concreto e não puramente uma elucubração da razão. O conhecimento, desta forma, deve ser uma expressão lógica de um objeto determinado no espaço e no tempo, para ter consistência científica. Por estas razões, torna-se indispensável esclarecer as bases ontológicas de um fenômeno, de forma que sua essência abandone o plano metafísico de uma substância última e eterna da matéria ou do espírito, que dita os destinos do mundo, para formar parte da realidade do mundo.
Se como vimos, a essência expressa, por definição, as características reais de um determinado universo e suas regularidades, ou seja, o movimento de um determinado objeto, podemos concluir que o não equacionamento desta questão ontológica, ou seu abandono, impede uma solução satisfatória para a definição do objeto psíquico.
A questão da definição da essência do objeto da psicologia, portanto, nos conduz à necessidade ontológica deste objeto possuir uma consistência de ser própria. Que seu ser não seja um esse est percipi àmoda do idealismo de Berkeley ou Husserl. Que essa essência afirme, ao mesmo tempo, a irredutível singularidade dos fenômenos psíquicos, mas também suas condições essenciais, aquilo que os faz serem efetivamente um fenômeno psíquico e não acontecimentos de outra ordem (fisiológicos, orgânicos ou puramente sociais).
Sem considerar e equacionar tal problema ontológico, de forma que se garanta a realidade dos fenômenos psicológicos para além de um idealismo da linguagem, da representação ou das puras interações simbólicas e inconscientes, que colocam o fenômeno psicológico para além da realidade objetiva, a ciência psicológica não responde a uma das principais exigências que o materialismo histórico lhe faz para que se viabilize com uma ciência efetiva na teoria e na prática.
2. O aspecto antropológico: se um dos grandes tropeços do conhecimento psicológico tem sido ancorar-se numa vida interior e buscar fazer desta a matéria de seu trabalho ou apenas negar a existência de qualquer ordem psíquica singular, apelando para a recusa de ranços metafísicos ou individualistas, isto implica uma indefinição com relação ao que seja o ser humano. Existe neste sentido uma carência antropológica na base desses desvios.
Assumir uma vida interior ou mental é partir de uma definição de homem que remete, no mínimo, a Descartes com seu cogito, ergo sumoAo mesmo tempo, reduzir os acontecimentos humanos às raízes fisiológicas é ignorar totalmente a essência social e histórica do ser humano e desconhecer como se objetiva um homem, de forma a fazer deste um ser irredutível a um animai comum ou a alguma desordem puramente orgânica ou fisiológica.
O problema antropológico manifesta-se, ainda, quando encontramos no conhecimento psicológico o abismo subjetividade-objetividade, indivíduo-coletivo ou ainda o dualismo mente-corpo pois, na medida em que o homem fica concebido dentro do paralelismo subjetividade (definida como representações internas, pura linguagem, conteúdos mentais, etc.), objetividade (definida pelas manifestações fisiológicas, comportamentais, ou puramente sociais), o fenômeno humano, em sua base antropológica, acaba cindido, repartido em pedaços. Caso estes pólos não sejam unificados numa compreensão sintética da realidade humana, o homem concreto fica perdido, a realidade incompreensível e a demarcação dos fenômenos psíquicos se tornando imprecisa e repleta de distorções.
3. O aspecto de método (como princípios da ciência): um primeiro ponto a destacar é o da definição do objeto, como ponto de partida da ciência. Não considerar esta exigência técnica faz com que a psicologia examine fatos e mais fatos, acumule observações e experimentos, aplique estatísticas e cálculos complexos, sem, no entanto, ter uma compreensão exata do que, afinal, está investigando.
Nestes termos, portanto, fica expresso que a ciência não estuda fatos, mas objetos. Estudar fatos é acumular material indiscriminadamente, é perder-se no empírico, ao passo que estudar objetos é demarcar fenômenos reais, definir suas características essenciais, seu conjunto de determinações com suas relações internas. É o objeto enquanto fenômeno, portanto, o ponto de partida da ciência, tal como podemos compreender a partir dos autores referidos, e não fatos isolados ou, muito menos, os criticismos da razão, seja analítica ou dialética, como em Hegel.
Se a Psicologia se preocupa primeiro em definir seus métodos - agora no sentido de instrumentos e técnicas de investigação - e estabelecer conceitos com recurso unicamente ao Mito da Razão (Bertolino, 1998; Gusdorf, 1980), estes procedimentos subvertem o princípio da ciência. Tratar o problema do conhecimento psicológico no plano da discussão sobre as técnicas e instrumentos de investigação é colocar-se num plano superficial de análise da questão. É começar a meio caminho.
Outra questão que convém destacar, ainda neste aspecto dos princípios da ciência, é o fato da Psicologia, na tentativa de definição dos fenômenos psíquicos, com base em investigações empíricas, acabar não obedecendo os limites em que realizava suas investigações, o âmbito possível de suas comprovações, chegando a conceitos tão amplos e indeterminados que acabaram por perder sua validade científica.
Perde-se, assim, outro princípio expresso por esses autores ligados ao materialismo histórico e preocupados com a ciência psicológica que nos dizem: os rumos de uma prática científica deve, ao mesmo tempo, delimitar seu âmbito e restringir suas conclusões ao conjunto de ocorrências contidas dentro dos limites do objeto demarcado, bem como estender -suas generalizações somente para a mesma classe de fenômenos estudados.
Definir e investigar um objeto para concluir a respeito de outro é, neste sentido, uma distorção do princípio científico. Estudar as emoções dos macacos e concluir a respeito das emoções dos seres humanos é, portanto, um equívoco crasso, dentro destes princípios científicos. Estudar as determinantes sociais, para esclarecer a articulação das variáveis psicológicas em suas funções é, também, um equívoco do mesmo gênero.
Por este conjunto de reivindicações técnicas colocadas pelo materialismo histórico à Psicologia é que se tornam precisas as palavras de Sartre:
"O resultado de tantas preocupações é que a Psicologia, na medida em que pretende ser uma ciência, só pode fornecer uma soma de fatos heteróclitos, dos quais a maioria não tem qualquer relação entre si. Que haverá de mais diferente, por exemplo, do que o estudo da ilusão estroboscópica e o estudo do complexo de inferioridade? Esta desordem não tem origem no acaso, mas nos próprios princípios da ciência psicológica "(1965:10).
Postas todas estas reivindicações à Psicologia, podemos afirmar que o materialismo histórico exige e necessita de outra definição de psíquico para realizar uma crítica científica ao sofrimento psíquico no trabalho, além da noção analítica expressa pelos autores que são objeto de nosso estudo. E, nos remetendo à noção de psíquico de Codo e colaboradores, podemos dizer que tais autores não respondem a estas reivindicações. Pois não tratam e nem mencionam a questão ontológica para responder à questão da essência, sem a qual não se faz possível lograr uma definição da essência do objeto psíquico com suas categorias e leis fundamentais.
Com relação à questão antropológica, mantêm-se dentro do dualismo, do mentalismo, da noção de representação e de simbólico, comungam do conceito de inconsciente, desconsiderando a complexidade do conceito da práxis. Perdem assim o homem concreto, em função de exposições genéricas, especulativas, sobre homens abstratos. Com relação à exigência de método, investigam os fenômenos sem terem uma definição do objeto em questão, como é o caso, por exemplo, do estudo sobre burnout.
Desta forma Codo e colaboradores, ao longo do desenvolvimento de suas pesquisas, na medida em que vão perdendo a preocupação com o problema da definição do objeto, acabam por cair em um acúmulo de explicações e fatos isolados, para os quais são forçados a criar relações arbitrárias e especulativas. Dessa forma é que vão tratando, cada vez mais, de um homem genérico, realizando abstrações vazias que não apreendem a dialética do objeto específico, perdendo os limites dos fenômenos investigados.
Detectamos enfim uma incompatibilidade entre a noção de psíquico exigida e reivindicada pelo materialismo histórico à psicologia e a noção de psíquico utilizada por Codo e colaboradores em suas pesquisas. Um problema que a psicologia brasileira tem por resolver, visto que os autores pesquisados em nosso estudo não responderam satisfatoriamente ao conjunto das reivindicações técnicas e científicas preconizado pelo materialismo histórico.
Referências
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Recebido: 27/01/03
Revisado: 10/05/03
Aceito: 24/06/03
1 Este artigo representa uma síntese dos resultados da dissertação de mestrado do autor, defendida em abril de 2001 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.
2 Identificamos com este procedimento as pesquisas mais significativas nessa área: o trabalho pioneiro de Seligmann-Silva (1987, 1990, 1992, 1994, 1996, 1997); os trabalhos de Silva Filho e de uma série de pesquisadores associados ao Instituto de Psiquiatria da UFRJ; na área de Organização do Trabalho e Saúde Mental (1989, 1990, 1993a, 1993b, 1994, 1997a, 1997b); os trabalhos do Laboratório de Saúde Mental e Trabalho (2000), da Universidade Estadual de Campinas, coordenado pela psicóloga Guimarães; o trabalho de Tittoni (1994, 1995, 1997), da Universjdade Federal do Rio Grande do Sul; o trabalho de Lima (1994, 1996a, 1996b, 1997, 1998) da Universidade Federal de Minas Gerais; e o trabalho de Codo e colaboradores (1984, 1985, 1988, 1992, 1993, 1995, 1999), do Laboratório de Psicologia do Trabalho, da Universidade Federal de Brasília.
3 Esta afirmação aparece devidamente sustentada e desenvolvida no segundo capítulo da referida dissertação, onde ficam esclarecidas "as fontes teóricas da definição de psíquico pesquisada".