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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versión On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. v.6 n.2 Florianópolis dic. 2006

 

ARTIGOS

 

Viver do lixo ou no lixo? A relação entre saúde e trabalho na ocupação de catadores de material reciclável cooperativos no Distrito Federal estudo exploratório

 

To live from the wastes or at the wastes? The relationship between health and work at the occupation of recyclabe material cooperativated collectors ub the Distrito Federal - exploratory study

 

 

Cleide Maria de SousaI; Ana Magnólia MendesII

IMestranda do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Universidade de Brasília (clcidesousa@gmail.com)
IIPós-doutorada em Psicodinâmica e Clínica do Trabalho pelo Conservatoire Nacional des Arts et Métiers (CNAM/Paris), Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (anamag@unb.br)

 

 


RESUMO

Este é um estudo piloto, de caráter exploratório, como objetivo de testar uma metodologia de investigação sobre a relação entre saúde e trabalho na ocupação de catadores de material reciclável cooperativados no Distrito Federal. Utilizou-se como referencial teórico a Psicodinâmica do Trabalho. A coleta dos dados foi realizada por meio de observação livre do ambiente de trabalho dos catadores e de quatro entrevistas individuais semi-estruturadas. Os dados foram tratados mediante análise de conteúdo do tipo categorial temática. Os resultados indicam que, para os catadores, o trabalho com o lixo parece adquirir sentido de sobrevivência. Para eles, saúde é ter condição para trabalhar, e a identidade profissional se apresenta corno possibilidade de inclusão social. A relação entre as precárias condições de trabalho e os riscos e danos à saúde é negada pelos trabalhadores. Outros estudos devem ser realizados, com enfoque multimétodo nacoleta de dados, para confirmar e ampliar os resultados encontrados.

Palavras-chave: saúde; trabalho; lixo; catadores de material reciclável; Psicodinâmica do Trabalho.


Abstract

This is an exploratory pilot study with the aim of testing a methodology for investigating the health-work relationship in the occupation of Recyclable Material Collectors who are organized into cooperatives in the Federal District in Brazil. The theoretical framework employed was that of Work Psychodynamics. The data collection was carried out through free observation of the collectors" work environment and four semi-structured interviews. The data were analyzed using thematic content analysis. The results indicate that, for the collectors, working with solid wastes seems to acquire a sense of survival. For them, health means being able to work, and professional identity represents the possibility of social inclusion. The relationship between the precarious working conditions and health hazards or loss of health is denied by the workers. Further studies must be carried out, with a multimethod approach to data collection, in order to confirm and broaden the findings ofthis study.

Keywords: health; work; solid wastes; recyclable material collectors; Work Psychodynamics.


 

 

1. Introdução

Este é um estudo piloto, de caráter exploratório, com o objetivo de testar uma metodologia de investigação sobre a relação entre saúde e trabalho na ocupação de catadores de material reciclável cooperativados no Distrito Federal (DF).

A ocupação de catadores de lixo existe, informalmente, há pelo menos cinqüenta anos no Brasil. Antigamente, esses trabalhadores eram conhecidos como "garrafeiros", "trapeiros" e "papeleiros", além de expressões pejorativas, como "burro sem rabo" (Gonçalves, 2001). Para Gonçalves (2001), os catadores de materiais recicláveis, nome dado formalmente à profissão desde 2001 no Código Brasileiro de Ocupações (CBO), "são pessoas que vivem e trabalham, individual e coletivamente, na atividade de coleta, triagem e comercialização de materiais recicláveis" (p. 11).

Segundo Nozoe et al. (2003), a profissão de catador se formalizou num contexto de profundas mudanças no mercado de trabalho brasileiro, mudanças que resultaram numa diminuição do nível de emprego e postos formais de trabalho, o que trouxe, conseqüentemente profundas alterações na estrutura ocupacional. Nessa linha de raciocínio, várias profissões desapareceram, outras vêem se redefinindo e outras emergiram. Esse é o histórico da inclusão da familia ocupacional dos catadores de material reciclável como uma profissão emergente no CBO, em 2001, com base na revisão realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

De acordo com o CBO (2002),a profissão é de livre acesso, sem exigênciade escolaridade ou formação profissional, e as atividades são exercidas a céu aberto, em horários variados, ficando os trabalhadores expostos a variações climáticas, acidentes na manipulação de materiais, acidentes de trânsito e violência urbana.

Segundo Gonçalves (2006), no Brasil, estima-se que entre 500 e 800 mil pessoas sobrevivam hoje da catação de material reciclável. Em paralelo, a atividade de reciclagem tem sido altamente estimulada pelo valor e pela importância que a reciclagem vem alcançando hoje, bem como pelo crescimento da receita da indústria de reciclagem no país. De forma paradoxal, no entanto, os catadores são expostos a um ambiente de trabalho com condições indignas, principalmente nos lixões. Tal situação se sustenta pela omissão das autoridades públicas, o que coloca em risco a saúde e a segurança dos trabalhadores (Reis, 2003).

A realidade da profissão de catadores de material reciclável, portanto, evidencia condições de trabalho precárias em função do contato direto com rejeitos em lixões, aterros e ruas das cidades (Abreu, 2001). Tal realidade contribui também para a precariedade do trabalho, a informalidade da ocupação dos catadores, condição que os deixa mais vulneráveis, uma vez que não gozam dos direitos trabalhistas e previdenciários. A informalidade faz com que os catadores, na realidade, se movimentem num mercado clandestino, não havendo reconhecimento da sociedade pelo trabalho que desenvolvem (Guimarães, 2000). Como forma de reação ao desemprego e à situação de exclusão em que se encontram, identifica-se, nos últimos anos, uma tendência de organização de catadores por meio de cooperativas de reciclagem de lixo, inspiradas e sustentadas pelos princípios da economia solidária (Singer, 2004). Segundo Lianza (2000), as cooperativas de trabalho, em geral, permitem incorporar os trabalhadores que estão fora do mercado de trabalho à legalidade, além de restituir direitos, renda e cidadania.

O trabalho de reciclagem é tangenciado, essencialmente, pela questão ambiental ou destinação de resíduos sólidos urbanos - o lixo. Segundo Abreu (2001), mais de 80% do peso total do lixo produzido no país é despejado acéu aberto ou em lixões, o que resulta em degradação do meio ambiente, desperdício de recursos naturais e energéticos, poluição do ar, de águas subterrâneas e de lençóis hídricos. Do ponto de vista social, além de se caracterizar como vetor de doenças, atrai uma multidão de excluídos que, segundo Magera (2003), vivem da catação e fazem dessa atividade a sua única fonte de renda e sobrevivência.

O Brasil não tem uma política nacional de destinação de resíduos sólidos urbanos, aspecto que contribui para a precariedade das condições de trabalho de catadores de material reciclável (Reis, 2003). Essa lacuna perpetua e incentiva o descaso com o lixo nas metrópoles e cidades brasileiras, onde rejeitos e descartáveis são tratados da mesma forma. Na realidade, dos 5.560 municípios brasileiros, somente 237 mantêm sistema de coleta seletiva (Correio Web, 2004). Segundo Gonçalves (2003), essa prática é trágica para a saúde pública e para o equilíbrio do ecossistema. É parte da responsabilidade dos poderes públicos dar destinação correta aos resíduos sólidos urbanos, o que deve ser feito por meio da criação de aterros sanitários. Ainda é compreensão da autora que é responsabilidade do governo propiciar condições dignas de trabalho, bem como capacitação e infra-estrutura para a triagem dos materiais - recicláveis.

Além da questão social relacionada ao lixo, identifica-se um imenso desperdício econômico decorrente do descarte de resíduos sólidos. Para Calderoni (2003), a produção a partir da reciclagem é mais econômica do que a produção a partir de matérias primas-virgens, porque utiliza menos energia, matéria-prima e recursos hídricos, além de reduzir os custos de controle ambiental e de disposição final do lixo. Dessa forma, o lixo vem, cada vez mais, assumindo valor sob a égide da indústria de reciclagem no país, movimentando uma complexa cadeia onde catadores se apresentam como os primeiros agentes.

Os catadores, em geral, se confundem com populações de rua e se constituem de homens, mulheres e crianças que, diariamente, vasculham o lixo em ruas e lixões, sendo responsáveis pelo desvio de 10 a 20% do lixo urbano e por 90% do material reciclável que alimenta a indústria de reciclagem no Brasil (Abreu, 2001). Magera (2003) identifica que os catadores são os primeiros atares de um complexo circuito econômico, entendidos, assim, como agentes ambientais, na medida em que seu trabalho resulta na amenização do desperdício e redução da poluição e degradação ambiental que o lixo provoca.

Em geral e, principalmente, os catadores que trabalham nos lixões convivem com constantes perigos, como gás metano, poeira, fogo, bem como com resíduos químicos e tóxicos (Abreu, 2001). Porto et al (2004), em pesquisa realizada sobre as condições de vida, trabalho e saúde com 218 catadores no aterro do Gramacho, no Rio de Janeiro, identifica que 42,3% dos trabalhadores se alimentam do que encontram no lixo, 71,7% já tiveram algum acidente (corte com vidro, topada, queimaduras, atropelamento, perfurações, quedas e contusões na cabeça), 72% reconhecem que existem riscos no local de trabalho, mas somente 47,5% identificam que esses riscos podem causar danos à saúde. Segundo Porto et al (2004), o lixo adquire, para esses trabalhadores, um sentido de sobrevivência, e a saúde tem o sentido de condições para o trabalho. Esses trabalhadores negam a relação entre saúde e trabalho, embora as observações tenham apontado para a alta insalubridade e a periculosidade do lixão. As doenças mais citadas pelos trabalhadores foram: hipertensão (31,1%), varizes (20,2%), problemas osteomusculares (13,8%), problemas cardíacos (9,6%), asma (4,2%). Curiosamente, ao contrário do esperado, essas não são doenças classicamente relacionadas com o lixo, como leptospirose, alergias, entre outras. A hipótese dos autores é a de que os trabalhadores, conforme o tempo de trabalho, desenvolvem resistência e imunização às doenças mais comumente relacionadas ao lixo.

Silva (2002), em estudo socioeconómico e ambiental da atividade de catadores em Corumbá (MS), demonstra que 88% dos catadores já sofreram acidentes de trabalho. As principais ocorrências são: cortes (60%), queimaduras (20%) e atropelamentos por máquina pesada (20%). Dos trabalhadores acidentados, 60% não procuraram qualquer atendimento médico. Quanto ao uso de equipamentos de proteção, 42,2% dos catadores não se protegem, 35,6% fazem uso de botas e 15,6% fazem uso de luvas e botas, sendo que a maior parte desses equipamentos é retirada do próprio lixão (42,2%). O estudo se ampliou paraa investigação de alguns aspectos relacionados à saúde dos catadores, constatando que os problemas de saúde mais comuns entre eles são dores de cabeça e pressão (38,8%),e alergias e (ou) micoses (33,3%). Entre os trabalhadores entrevistados, 60% declararam não possuir problemas de saúde e 68,9% revelaram-se satisfeitos com o trabalho de catação.

1.1 As organizações cooperativas e associativas de catadores de material reciclável

Silva (2004) identifica que há forte tendência de organização associativista e cooperativista entre catadores de mate-rial reciclável no Brasil. O pesquisador desenvolveu um estudo qualitativo na Cooperativa 100 Dimensão, localizada na cidade satélite do Riacho Fundo II, no Distrito Federal, e concluiu, em seus resultados, que as formas cooperativistas de organização do trabalho constituem alternativas eficazes de inclusão social e econômica. Além disso, o cooperativismo favorece a formação de uma consciência coletiva, o resgate da auto-estima, da cidadania, dos valores da família e da solidariedade. Observa, no entanto, que esses empreendimentos têm viabilidade fortemente condicionada à ajuda financeira e ao suporte externo, sendo fundamental o apoio do Governo, de organizações não governamentais e de empresas privadas, para lhes garantir fomento, formação e qualificação profissional. Dados semelhantes também são relatados por Coutinho et al (2005).

Segundo o Fórum Regiónal Lixo e Cidadania, no Distrito Federal existem hoje, pelo menos, quatorze cooperativas de catadores, duas associações profissionais, além de muitas outras em fase de formação, quase todas em estágio embrionário, nas primeiras fases de organização. Grande parte dessas iniciativas está sustentada em ações de apoio e incentivo do Governo Federai à economia solidária e ao cooperativismo, cujos princípios compreendem, sobretudo, a cooperação e a solidariedade entre os membros, a autogestão e a atuação econômica guiada pela viabilidade econômica, como alternativa de inclusão social e econômica para catadores. Dentre as cooperativas do DF, a maior referência é a cooperativa 100 Dimensão, criada desde 1997, e que hoje exporta artesanáto para Estados Unidos e Alemanha. A 100 Dimensão vem sendo reconhecida como um projeto de êxito na área social e de preservação ambiental, com vários prêmios recebidos, inclusive do exterior (Correio Web, 2005; 2006).

Magera (2003), em pesquisa socioeconômica e etnográfica com catadores organizados em cooperativas, no interior do estado de São Paulo, identifica que 78% dos trabalhadores entrevistados declaram não conhecer o sistema de cooperativa e que, em 100% das cooperativas, é identificada a presença de um mentor que estabelece uma ralação de hierarquia entre os trabalhadores. No estudo, o autor conclui que a baixa escolaridade dificulta o envolvimento dos associados com as questões administrativas e que a origem na pobreza e na marginalidade confere uma estrutura de trabalho fragmentada e de poucos recursos, sendo que, mesmo quando organizados em cooperativas, o trabalho é precarizado, inclusive para crianças e idosos.

Com base na pesquisa de Magera (2003), identifica-se, portanto, que, muitas vezes, os trabalhadores ainda podem permanecer reféns de uma contradição, como agentes econômicos e ambientais, ou como massa explorada e excluída.

1.2 A Psicodinâmica do Trabalho e a relação entre saúde e trabalho

Com base no aporte da Psicologia e da Psicodinâmica do Trabalho, não foi identificado estudo algum sobre a relação entre saúde e trabalho na ocupação de catadores. Este, portanto, é estudo exploratório, que se propõe a testar uma metodologiade investigação sobre o tema, com o intuito de identificar fronteiras, limites e perspectivas da contribuição da Psicologia para a questão. O referencial teórico utilizado é o da análise Psicodinâmica das situações de trabalho, escolha essa justificada em função da preocupação que esse modelo guarda com a saúde psíquica dos trabalhadores e por se ocupar da investigação da relação entre trabalho e saúde.

Na perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho, a relação entre homem e trabalho se define pelos seguintes pressupostos: (1) o trabalho é entendido como estruturante psíquico, estabelecendo-se como um dos cenários para construção da identidade do indivíduo, bem como é sempre permeado por contradições marcadas, essencialmente, pela diferença entre trabalho prescrito e real; (2) A relação entre homem e trabalho está em contínuo movimento, aberta a evoluções e transformações; (3) o homem não está passivo frente às restrições impostas pela organização do trabalho, buscando sempre mecanismos para exercer sua liberdade e manter sua integridade e saúde; e (4) a normalidade, e não a doença, passa a se configurar como enigma e objeto privilegiado de investigação (Dejours, 2004).

A Psicodinâmica do Trabalho, para dar conta do sujeito no trabalho, utiliza conceitos psicanalíticos como inconsciente, defesa e conflito (Ferreira, Mendes, 2003). Institui-se como uma abordagem científica de estudo da saúde no trabalho, tomando como principal ponto de análise a dinâmica de prazer-sofrimento, os processos intersubjetivos que sustentam as interpretações do trabalho pelos indivíduos, bem como as estratégias de defesa individual e coletiva utilizadas para ressignificar ou superar as contradições vividas no contexto de trabalho (Ferreira, Mendes, 2003; Dejours 1994;.2004). Assim, o trabalho apresenta-se como fonte de prazer e sofnmento, ocupando um papel eminentemente dialético. São pressupostos fundamentais, portanto, para a Psicodinâmica do Trabalho, a noção freudiana do princípio de prazer - a atividade psíquica tem como objetivo evitar desprazer e proporcionar o prazer (Laplanche, Pontalis, 1998) - e a centralidade do trabalho como operador fundamental na construção do próprio sujeito e do homem como ser ativo, sempre em luta para conservar a sua identidade e sua normalidade (Dejours, 1994; 2003).

A Psicodinâmica privilegia o estudo do homem no trabalho, na sua relação com os outros sujeitos e com o coletivo. Parte do pressuposto de que o trabalho é um lugar privilegiado para o exercício da palavra e da enunciação e, portanto, situa-se como um operador fundamental de construção do próprio sujeito, fazendo a mediação entre inconsciente e campo social (Dejours, 1994).

A organização do trabalho - dimensão que, na visão de Dejours (1994), compreende a divisão do trabalho e a divisão dos homens - impõe uma distância entre real e prescrito na realização das atividades. Essa discrepância, associada à rigidez da organização do trabalho, exerce papel central da determinação de sofrimento dos indivíduos. O sofrimento, portanto, apresenta-se intrínseco ao trabalho e, por si só, não é patológico, assumindo um papel de regulador e de sinal de alerta contra o adoecimento configurando-se como uma "vivência subjetiva entre a doença mental descompensada e o bem-estar psíquico" (Rocha, 2003). O sofrimento é resultante do confronto dos trabalhadores com as adversidades e contradições encontradas no contexto de trabalho, quando elas não podem ser negociadas e efetivamente alteradas ou superadas. O adoecimento constitui conseqüência e manifestação da intensidade do sofrimento vivenciado, quando as estratégias de defesa contra o mesmo fracassam (Mendes, Cruz, 2004). A organização do trabalho, como correia de transmissão ou imposição da vontade externa, inclusive, potencializa os efeitos patogênicos das condições de trabalho, quando precárias, causando bloqueio contínuo do funcionamento mental, causando sofrimento e, em última instância, a descompensação e (ou) o adoecimento (Dejours, 1992). A organização do trabalho, segundo Ferreira e Mendes (2003), pode ser flexível ou rígida e, dessa forma, mais propiciadora de saúde ou adoecimento.

O trabalho como fonte de sofrimento e indicador de adoecimento está relacionado à precarização das condições em que é realizado, à rigidez da sua organização, ao conteúdo pouco significativo das tarefas e ao espaço inexistente ou limitado para discussão e mudança dessas condições (Dejours, 1992). O sofrimento pode ser identificado por vivências de desgaste e insegurança (Mendes, Cruz, 2004). O desgaste é caracterizado por sentimentos de desânimo, cansaço, ansiedade, frustração, tensão emocional, sobrecarga e estresse (Mendes, Cruz, 2004); a insegurança refere-se ao sentimento de incompetência para atender às exigências relacionadas ao desempenho e à produtividade no trabalho (Mendes, Cruz, 2004). Dejours (1994) afirma que o sofrimento pode ser transformado, não eliminado. A transformação do sofrimento beneficia a identidade e aumenta a resistência à desestabilização psíquica e somática.

A organização do trabalho, repleta de contradições, impõe aos indivíduos uma atividade de interpretação contínua entre o prescrito e o real. O trabalho aparece como um produto das relações sociais, pois a construção dos modos operatórios reais envolve compromisso, negociação e uma gestão social das interpretações dos trabalhadores, por excelência, os criadores do saber-fazer e dos novos modos operatórios para a sua eficiência (Dejours, 2004). Assim Dejours (2004) define trabalho como "atividade manifestada por homens e mulheres para realizar o que ainda não está prescrito pela organização do trabalho" (p. 65).

O trabalho, portanto, implica criação do novo, exige uma inteligência-prática. As descobertas e engenhosidades, advindas da interpretação dos trabalhadores sobre a organização do trabalho, fundam-se sobre os princípios de solidariedade e cooperação que, a priori, não podem ser prescritos pela própria organização do trabalho. A cooperação só pode ser construída a partir da liberdade dos indivíduos, de uma vontade coletiva, além de relações de confiança, entendidas aqui como acordos e regras que enquadram a maneira como se executa o trabalho. Observa-se ainda que a cooperação só se mostra efetiva se os sujeitos demonstrarem esse desejo - o de cooperar. Todos esses processos estão relacionados à mobilização subjetiva desencadeada pelo trabalho nos indivíduos e que, em última análise, representa a contribuição específica e insubstituível que cada trabalhador pode oferecer à organização do trabalho (Dejours, 2004).

A mobilização subjetiva mantém-se à proporção que a organização do trabalho apresenta o reconhecimento ao indivíduo - reconhecimento fundamentalmente de natureza simbólica, dividido em duas dimensões: constatação da contribuição individual à organização do trabalho e gratidão pela contribuição à organização do trabalho. A falta do reconhecimento resulta numa tendência de desmobilização, na medida em que repercute na gratificação identitária (Dejours, 2004).

A conquista da identidade social passa pela dinâmica do reconhecimento. E, se entendemos o reconhecimento como resultante dos julgamentos de pares, ele somente é possível se tivermos um coletivo ou comunidade de pares (Dejours, 2004). A dinâmica do reconhecimento, portanto, sugere que "a cooperação é indissociável da economia da identidade e da saúde mental no trabalho" (p. 76). Além disso, o reconhecimento, pela mediação do trabalho, opera a transformação do sofrimento em prazer (Dejours, 2004). Se a dinâmica do reconhecimento está paralisada, o sofrimento não pode ser transformado em prazer e só poderá gerar acúmulo, caracterizando o sofrimento patogênico, ou seja, instituindo o trabalho como mediador de desestabilização e fragilização da saúde (Dejours, 1994; 2004).

Dialeticamente, podemos afirmar que o trabalho também se apresenta como fonte de prazer e indicador de saúde, na medida em que representa, para o sujeito, a possibilidade de realização e construção da sua identidade pessoal e social. Como afirmam Mendes e Morrone (2002), "o ato de produzir permite um reconhecimento de si próprio como alguém que existe e tem importância para a existência do outro" (p. 27), ato imbuído de subjetividade e que, portanto, extrapola a esfera do concreto, a atividade em si e o emprego. O prazer é definido por vivências de liberdade e realização e está relacionado à interação com os outros e ao reforço adquirido para a identidade social, ao ato de aprender sobre um fazer específico, criar, inovar e criar novas formas de execução das tarefas (Mendes, Cruz, 2004). Liberdade refere-se ao sentimento de sentir-se livre para pensar, organizar e falar sobre o trabalho (Mendes, 1999; Rocha, 2003; Rezende, 2003; Ferreira, Mendes, 2003; Mendes, Cruz, 2004). A realização define-se por sentimentos de gratificação, orgulho e identificação com o trabalho (Rocha, 2003; Rezende, 2003; Ferreira, Mendes, 2003; Mendes, Cruz, 2004).

Prazer e sofrimento são vivências concomitantes e intrínsecas ao trabalho, podendo haver prevalência de um sobre o outro a depender do contexto de produção e cujo pano de fundo são as relações subjetivas e de poder (Heloani, 2003). O movimento do indivíduo, no entanto, sempre será empreendido no sentido da busca do prazer e de ressignificação e (ou) evitação do sofrimento para, assim, manter seu equilíbrio psíquico (Morrone, MENDES, 2002) e afastar o adoecimento e os riscos à saúde.

A Psicodinâmica vai nos interessar na medida em que "tem por objeto de trabalho os processos intersubjetivos que tornam possível a gestão social das interpretações do trabalho pelos indivíduos" (Dejours, 2004), sendo o trabalho entendido como construto central na construção da identidade dos trabalhadores e como um espaço de interação e de construção, eminentemente, coletivo. A Psicodinâmica, então, nos conduz ao entendimento de saúde como integridade fisica, psíquica e social, resultante do uso de estratégias de mediação do sofrimento e ressignificação e mudança das adversidades e contradições presentes no contexto de trabalho (Ferreira, Mendes, 2003).

As estratégias de mediação, segundo Mendes (2004), podem ser entendidas como estratégias defensivas e de mediação coletiva. As estratégias defensivas são mecanismos muitas vezes inconscientes, individuais e (ou) compartilhados, de negação ou racionalização das contradições vividas no trabalho. As estratégias de mediação coletiva são modos de agir por meio de espaços públicos de discussão e cooperação entre os trabalhadores, para a superação das contradições vividas no trabalho. Baseado em Ferreira, Mendes (2003), o contexto de trabalho é compreendido e entendido mediante três dimensões, inter-relacionadas e interdependentes em ter si: a) Condições do Trabalho, constituída pelo ambiente fisico, equipamento e materiais de trabalho; b) Organização do Trabalho, constituída pela divisão da tarefa, bem como ritmos e pausas; e c) Relações Socioprofissionais, definidas como gestão do trabalho, comunicação e interação profissional.

Podemos afirmar que a saúde depende, em ultima análise, da dinâmica entre três dimensões específicas: (1) a da organização do trabalho, essencialmente fundada em contradições e constantes ajustes entre trabalho prescrito e trabalho real; (2) a do outro, referência fundamental à convivência, normas, valores, acordos e cooperação; e (3) a do próprio trabalhador e sua subjetividade (Rocha, 2003; Dejours, 2004).

Isso posto, o objetivo geral desta pesquisa é testar uma metodologia de investigação da relação entre saúde e trabalho na ocupação de catadores de material reciclável cooperativados no DF. Os objetivos específicos são, respectivamente:

1) Descrever o contexto de trabalho dos catadores a partir das condições, organização e relações sociais de trabalho;

2) Investigar o processo de mediação frente às contradições e dificuldades eventualmente, vividas no contexto de trabalho;

3) Identificar riscos e danos à saúde mental dos trabalhadores.

 

2. Método

A pesquisa realizada constituiu-se no piloto e primeira etapa de um projeto mais amplo de investigação sobre o trabalho de Catadores de Material Reciclável. O trabalho de campo foi desenvolvido entre maio e junho de 2005 e representou o primeiro esforço de aproximação da realidade e do contexto de trabalho dos catadores.

A seguir, apresenta-se a descrição do método empregado para a coleta de dados, bem como a descrição geral do Lixão da Estrutural, local onde está organizada a Cooperativa Araucária1, cujos trabalhadores participaram do estudo.

A Cooperativa Araucária e o Lixão da Estrutural

A cooperativa está constituída há pelo menos sete anos e tem 650 trabalhadores cadastrados. Os catadores associados são todos moradores da Vila Estrutural, sobrevivem da catação de materiais recicláveis retirados das 2,5 mil toneladas de lixo diário que são despejados no lixão. A cooperativa não tem boa estrutura física, como banheiros e refeitórios, não tem recursos para oferecer equipamentos de segurança, plano de saúde e qualificação e formação profissional aos associados. A relação dos trabalhadores com a cooperativa resume-se ao cadastro que os "legaliza" no acesso à área do Lixão e à contribuição obrigatória de 2% sobre as vendas de material reciclável efetuadas pelos associados.

Hoje, a diretoria e os membros tentam se articular politicamente para conseguir recursos e melhorar as condições de trabalho dos catadores no lixão.

A Vila Estrutural, inicialmente uma invasão de terras públicas nas imediações do Lixão da Estrutural, caracteriza-se como um assentamento e não tem estrutura de abastecimento de água e esgoto, as residências são precárias e não há calçamento nas ruas. A proximidade com o lixão impõe aos moradores o mau cheiro, em função do chorume, o risco de doenças infecto-contagiosas pela presença de ratos, moscas, urubus e outros vetores de doenças, além do risco de explosões por gás metano.

O Lixão da Estrutural está esgotado, sendo que sua parte mais baixa tem hoje quase 14 metros de rejeitos. O controle e administração do Lixão são concedidos a uma empresa terceirizada pelo Governo do Distrito Federal, mas não existe qualquer fiscalização sobre a entrada de pessoas na área, tendo sido observada a presença de adolescentes e idosos. Com o esgotamento sanitário e ambiental da área, o governo deve transferir o local de despejo dos rejeitos, mas não existe qualquer definição quanto ao endereço de transferência do Lixão e quanto à recuperação da área. Também não está clara a política a ser desenvolvida pelo governo para garantir a inserção e sustentabilidade social e econômica das famílias que trabalham da reciclagem do lixo na comunidade da Vila Estrutural.

2.1 Participantes

Participaram do estudo piloto quatro catadores de material reciclável, todos associados à Cooperativa Araucária, do Lixão da Estrutural, dois do sexo feminino e dois do sexo masculino. Os trabalhadores foram indicados pela própria cooperativa, segundo a disponibilidade de tempo que cada um tinha para participar das entrevistas, e desde que tivessem pelo menos um ano de trabalho com a catação de lixo e estivessem formalmente associados à cooperativa.

Dentre os quatro participantes, o que tinha menos experiência com a catação está há quatro anos na reciclagem; os demais estão na catação há mais de doze anos. A renda mensal declarada gira em torno de R$ 400 reais, e todos são casados, com uma média de três filhos por família; somente um dos trabalhadores não é acompanhado pelo cônjuge na catação. Dois catadores cursaram até a 1ªsérie primária, um até a 3ª série, e uma catadora se declarou analfabeta. O trabalhador mais jovem tinha, à época, 26 anos; o mais velho, 50 anos. Nenhum dos trabalhadores passou pela experiência do trabalho formal, com carteira assinada.

2.2. Instrumento

Para a realização das entrevistas individuais semi-estruturadas, foi elaborado e desenvolvido um roteiro, composto por duas questões:

1) Como é o seu trabalho? (descrição detalhada do que faz, como faz: controles, normas, ritmos, etc.; conteúdo da tarefa: organização do trabalho);

2) Como lida com as dificuldades do trabalho? (Como se engaja no trabalho: corpo, inteligência prática, criatividade, afetividade, emoções e constituição da subjetividade).

2.3 Procedimentos

O acesso ao Lixão e aos trabalhadores se deu mediante contato prévio com o presidente da Cooperativa Araucária. Em primeiro lugar, foram realizadas duas visitas para observação livre do ambiente de trabalho dos catadores, com o objetivo de reconhecer o contexto de trabalho e também promover a familiarização mútua entre pesquisador e trabalhadores. As observações foram realizadas no ponto central do lixão, onde os caminhões de transbordo descarregam os resíduos. Foram realizadas, aproximadamente, cinco horas de observação.

Ao longo da segunda visita, foram feitas quatro entrevistas individuais semi-estruturadas, que se constituíram na principal fonte de dados do estudo piloto. Cada entrevista teve duração aproximada de trinta minutos e foram desenvolvidas no próprio Lixão, com aqueles trabalhadores que voluntariamente quiseram participar da pesquisa. Com autorização prévia dos participantes, as entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente integralmente transcritas.

2.4 Análise dos dados

Os dados foram tratados mediante análise deconteúdodo tipo categorial temática. Com base na propostade Bardin (1977), a análise foi realizada em três etapas cronológicas: pré-análise, exploração do material (leitura flutuante) e tratamento dos resultados, inferência e interpretação.

 

3. Resultados

A análise de conteúdo dos dados coletados permitiu a construção de seis categorias empíricas. Com exceção da categoria 1 e 3, todas as demais categorias temáticas foram nomeadas com frases dos próprios trabalhadores, marcadas no texto por aspas e, em princípio, sintetizam o conteúdo identificado pela análise de conteúdo.

1) Condições de Trabalho.

2) "Aqui você trabalha à vontade".

3) Relações socioprofissionais.

4) "O meu trabalho é igual ao trabalho de qualquer outra pessoa".

5) "Graças a Deus me sinto bem ".

6) "Nunca fiquei doente".

Abaixo se apresentam as categorias-síntese encontradas: definição, temas e exemplos de verbalizações dos trabalhadores.

Categoria síntese 1 - Condições de Trabalho

Definição: Descrevem o ambiente de trabalho como perigoso e difícil; confirmam ocorrência freqùente de acidentes porcorte, perfuração e atropelamentos, inclusive comcasosde morte. Falam queos equipamentosdesegurança,quandoutilizados, são improvisados com material encontrado no própriolixo. Afirmam queo local de trabalho não oferece nenhuma estrutura sanitária e de segurança. Os roubos de material são freqüentes.

Temas: Ambiente de trabalho e acidentes e segurança no trabalho.

Exemplos de verbalização:

"Há pouco tempo, um colega da gente morreu atropelado por uma máquina; passou em cima dele".

"Aqui é perigoso por causa de corte, por causa de injeção que pode furar o dedo com caco de vidro".

Categoria síntese 2 -"Aqui você trabalha à vontade"

Definição: Afirmam que não existe horário definido para início e término da jornada de trabalho; os trabalhadores se organizam de maneira independente, no ritmo que podem e conforme a própria vontade. Relatam que as pausas ocorrem somente para as refeições e, muitas vezes, trabalham durante o dia e à noite, tendo sido descritos casos de até 24 horas seguidas de trabalho. Identificam que é uma vantagem não terem relação de mando entre os trabalhadores. O trabalho com o lixo é cansativo. Quando não podem trabalhar, mesmo em caso de doença, não recebem assistência ou ajuda da cooperativa.

Temas: organização do trabalho; ritmos e pausas; liberade e autonomia; auto-imposição de trabalho.

Exemplos de verbalização:

"Agente trabalha por conta da gente; quando quer trabalha, quando não quer vai pra casa; é conta própria mesmo da gente".

"Eu já fechei 24 horas direto! Vale por causa do dinheiro (..) você tem que trabalhar pra pagar dívida ".

Categoria síntese 3 -"Relações socioprofissionais"

Definição: Afirmam que não têm reconhecimento pelo trabalho que fazem. Dizem que são unidos e querem cada vez mais se unir, embora tenham discussões e casos de roubo entre os próprios catadores. Afirmam que sentem satisfação quando podem comprar comida para os filhos por meio da venda de materiais retirados do lixo.

Temas: falta de reconhecimento do trabalho; união entre catadores; satisfação pela sobrevivência.

Exemplos de verbalização:

"Para falar a verdade, aqui não tem reconhecimento nenhum,"

"Às vezes eu chego em casa e minhas meninas às vezes estão querendo uma coisa ou outra; naquele momento, eu não tenho dinheiro, mas eu tenho uma latinha ali, um alumínio (..) eu vou lá e vendo. O meu reconhecimento é eu ver meus filho chegar, pedir um pão, uma coisa pra comer e eu tenho um material em casa guardado, que foi retirado daqui, pra matar a forme dos meus filhos. O reconhecimento que eu tenho é esse."

Categoria síntese 4 - "O meu trabalho é igual ao trabalho de qualquer outra pessoa"

Definição: Afirmam que o trabalho de catação de lixo é como qualquer outro trabalho, não oferecendo dificuldades. Descrevem que trabalham com dignidade, que o trabalho é digno e que encontram nele a oportunidade para sustentar a família. Informam que não trocam o trabalho por outro e se sentem felizes com a profissão. Dizem que lutam para se fazerem mais reconhecidos e que, embora haja muitos vagabundos dentro do Lixão, a maioria é gente de bem e que tem família.

Temas: sentido do trabalho; dignidade do trabalho; satisfação com a profissão.

Exemplos de verbalização:

"(...)Eu gosto de trabalhar aqui, eu não troco meu trabalho aqui por um trabalho lá fora de jeito nenhum (..) tenho muito tempo que trabalho aqui dentro e gosto de trabalhar (. ..). Eu gosto de trabalhar aqui".

"Numa palavra só, eu acho que todo trabalho é digno (..) É um trabalho digno".

Categoria síntese 5 -"Graças a Deus me sinto bem"

Definição: Referem-se a Deus, agradecendo por nunca terem sofrido acidentes, ou acidentes mais graves, por se sentirem bem e estarem trabalhando. Descrevem que se acostumaram com a ocupação, com a rotina no lixo e que não percebem dificuldade na rotina da catação. Citam que o trabalho com o lixo é fonte de sobrevivência e estar com saúde é ter condições para trabalhar. Embora citem acidentes com caco de vidros e seringas, relatam não perceberem dificuldades no trabalho ou prejuízo à saúde. Deus é invocado para agradecimento, e o dinheiro ganho com o trabalho com o lixo é descrito como "desabençoado" porque não rende.

Temas: Deus e gratidão pela integridade; adaptação ao trabalho; sentido do dinheiro ganho com o lixo.

Exemplos de verbalização:

"(...) Nos primeiros dias, você sente um pouquinho de nojo, mas com o tempo você vai indo, você vai se acostumando". (referindo-se ao trabalho com o lixo)

"Nunca tive acidente. Graças a Deus. Nunca!".

Categoria síntese 6 -"Nunca fiquei doente"

Definição. Relatam que sentem febre, mas por causa da gripe, que nunca fizeram exames médicos, mas nunca precisaram ir ao hospital. Verbalizam que já se acidentaram por corte, que sentem febre, infecção, mas que nada grave aconteceu. Dizem que trabalham há anos com o lixo e que nunca ficaram doentes; quando acontece ficarem doentes, é em função de gripe, pelo sereno que tomam no trabalho noturno. Os cortes são descritos como inerentes ao trabalho com o lixo e que não representam ameaça ou risco de doença. Citam ainda dor de cabeça, pressão alta, falta de ar, mais como doenças associadas à gravidez e como males corriqueiros, sem relação direta com o lixo e a atividade de catação de lixo.

Temas: saúde, adoecimento, relação lixo-saúde e trabalho.

Exemplos de verbalização:

"Tem quinze anos que eu trabalho aqui dentro e nunca adoeci. Nunca fiquei doente, tive meus filhos tudo aqui e nunca fiquei doente".

"Eu não tenho problema de saúde. O problema de saúde que eu tenho é pressão alta, mais nada, e isso por causa da gravidez; não tenho outro problema, não".

 

4. Discussão

As três primeiras categorias-síntese apresentadas, "Condições de Trabalho", ""Aqui você trabalha à vontade", e Relações socioprofissionais permitem a caracterização do contexto de trabalho no qual estão inseridos os catadores. A organização do trabalho, em função do caráter autónomo da atividade dos catadores no Lixão, é essencialmente flexível. Essa flexibilidade tem um efeito perverso - a auto-imposição de longas e extenuantes cargas de trabalho, num esforço dos trabalhadores para aumentarem a renda auferida. As condições de trabalho, semelhantes ao descrito nas pesquisas de Silva (2002), Porto et al (2004) e Magera (2003), são precárias e insalubres, sendo comuns os acidentes de trabalho, como cortes, perfurações e atropelamento, inclusive com casos de morte. Os trabalhadores não dispõem de equipamento de segurança individual. Os que utilizam proteção, em geral o fazem com luvas, botas e sapatos encontrados no próprio lixo; portanto, são equipamentos improvisados. O uso de proteção, no entanto, não é a regra. Nas observações livres realizadas no Lixão, foi possível identificar que grande parte dos catadores, de fato, parece não utilizar nenhuma forma de proteção.

As condições de trabalho ainda oferecem perigo pelo contato direto com o chorume, pela proximidade com fogo e os riscos de explosões em função do gás metano, bem como pelo contato com materiais químicos e contaminados. Além disso, o ambiente de trabalho não oferece nenhuma estrutura sanitária para os trabalhadores, não havendo água potável, nem local específico para a realização de refeições.

As relações socioprofissionais entre os catadores são percebidas positivamente, baseadas na união do grupo, embora sejam comuns ocorrências de brigas e linchamentos, quando identificam roubos de material. A percepção de apoio entre pares parece mais sustentada pela condição de vulnerabilidade dos trabalhadores do que propriamente por uma mobilização coletiva promovida pela organização cooperativa de trabalho. Essa inferência sustenta-se pela relação basal estabelecida entre os associados e a cooperativa, uma vez que ela apenas tem como função legalizar a entrada dos catadores na área do Lixão, não representando qualquer ganho em termos de exercício de direitos e cidadania. De qualquer modo, as relações socioprofissionais percebidas positivamente pelos trabalhadores caracterizam-se como um elemento que favorece a gratificação identitária, pois essa parece ser a única via de reconhecimento que possuem pelo trabalho realizado.

A formação ainda incipiente da cooperativa, a baixa escolaridade dos trabalhadores, na sua maioria analfabetos funcionais, a falta de recursos materiais e a ausência de formação e qualificação profissional para trabalhar com o lixo tornam frágil o sentido de coletividade. Na fala e elaboração dos trabalhadores, não foi identificado conteúdo que tivesse relação direta com a filosofia cooperativista e os princípios relacionados à economia solidária. Infere-se, por esse dado, que os trabalhadores não vivenciam a autogestão e não têm fortalecido o coletivo de trabalho. Essa condição, provavelmente, interfere na relação com o trabalho.

Talvez pela precariedade das condições de trabalho e pela falta de estruturação da cooperativa, as estratégias de mediação do sofrimento caracterizam-se, majoritariamente, como defensivas - racionalização e negação. Essa inferência sustenta-se na análise da Categoria temática 4, "O meu trabalho é igual ao trabalho de qualquer outra pessoa", pelo emprego da racionalização, evidenciada no esforço de valorização do trabalho. O conteúdo dessa categoria, no entanto, também parece relacionado à percepção, entre os catadores, da profissão como possibilidade de inclusão social e econômica. Embora não percebam reconhecimento para a profissão, é comum na elaboração dos catadores, a defesa do trabalho, utilizando-se, para tanto, de expressões como "trabalho digno" e o compromisso com a família.

A racionalização também é ilustrada na Categoria temática 5, "Graças à Deus me sinto bem", que explicita uma percepção de bem-estar com o trabalho atribuído a um ente, superior. Além disso, identifica-se, prevalentemente, uma estratégia de negação na Categoria temática 6: "Nunca fiquei doente", que explicita e ilustra o não reconhecimento das precárias condições de trabalho no lixo e dos danos e riscos à própria saúde. Sobre esse aspecto, o modelo da Psicodinâmica nos auxilia a entender como a integridade psíquica é mantida pela mobilização subjetiva dos catadores em torno da minimização da relação entre lixo e condição de saúde, dado também relatado por Porto et al. (2004).

Adicionalmente, na Categoria síntese 5, "Graças a Deus me sinto bem", identifica-se, um dado novo, relacionado a um sentimento, entre os trabalhadores, de conformação com a situação a que estão submetidos. Todas as falas com essa construção remetem a uma percepção da condição de vida e do trabalho como algo que independe da própria vontade, cabendo à "Deus" o fato de não adoecerem e se acidentarem, pelo menos de maneira mais grave. À vontade de Deus também é atribuído o fato de terem saúde para trabalhar. Á semelhança dos resultados descritos por Porto et al (2004), nessa categoria temática identifica-se que o sentido do trabalho está circunscrito à mera sobrevivência e manutenção da vida e da família; ter saúde é ter condições para trabalhar e produzir. Depreende-se que o sentimento de bandono ou o acolhimento é atribuído a Deus como instância divina e independente, numa atitude de conformismo, alienação e alheamento da própria condição a que estão submetidos. Esse dado se aproxima das análises de Dejours (2004), quando afirma que as estratégias defensivas caracterizam-se por num arranjo mais frágil de mediação do sofrimento. Isso porque as estratégias de defesa, embora num primeiro momento contribuam para a estabilização subjetiva e para a adaptação à organização do trabalho, em geral, também levam à alienação e à resistência à mudança.

Pode-se inferir, com base nas categorias temáticas apresentadas, que o trabalho com o lixo pode resultar em inúmeros riscos e danos à saúde dos catadores. Foram relatados pelos trabalhadores doenças e males também citados na pesquisa de Silva (2002), especificamente dor de cabeça e pressão alta. Os acidentes de trabalho talvez representem os maiores perigos de danos à integridade física dos trabalhadores, sendo as mortes por atropelamento eventos freqüentes na rotina no Lixão. As doenças relatadas pelos catadores entrevistados neste estudo não se caracterizam por sua associação com o lixo, dado semelhante aos resultados encontrados por Porto et al (2004). A hipótese deste estudo é de que os trabalhadores naturalmente desenvolvem imunidade no contato direto com o lixo; aqueles trabalhadores que não adquirem resistência acabam por abandonar a atividade.

De modo geral, percebem-se vivências de prazer, relacionadas à organização flexível do trabalho, e relações socioprofissionais sustentadas sobre bases de apoio e cooperação. As vivências de sofrimento parecem relacionadas às precárias condições de trabalho, à falta de reconhecimento da profissão e ao cansaço, resultante da auto-imposição de longas jornadas de trabalho. Infere-se que a falta de estruturação da cooperativa não favorece a consolidação de um coletivo de trabalho. As contradições vividas na organização do trabalho e as vivências de sofrimento são mediadas, essencialmente, por estratégias de defesa - racionalização e negação - , ficando a saúde mental dos catadores mais vulnerável a riscos de desestabilização.

Os resultados encontrados permitem ampliar a compreensão sobre o contexto de trabalho dos catadores e a psicodinâmica envolvida na atividade de reciclagem do lixo. Além disso, o referencial teórico utilizado mostrou-se adequado para investigar a relação entre saúde e trabalho na ocupação de catadores. A metodologia de pesquisa, embora tenha permitido o alcance dos objetivos propostos, deve ser ampliada. Para tanto, sugere-se o desenvolvimento de entrevistas coletivas semi-estruturadas, ou grupos focais, análise documental e maior tempo de observação do contexto de trabalho dos catadores.

 

5. Considerações Finais

Os resultados demonstram que, para os catadores:

a) O trabalho parece adquirir sentido de sobrevivência. O trabalho não explicita um sentido como fazer; parece estar destituído da simbolização, criação e elaboração, numa dimensão mais ampla, perpetuando a condição de alienação e anestesiamento entre os trabalhadores.

b) Saúde é ter condição para trabalhar: a saúde é preservada por um arranjo frágil, uma vez que a estabilização psíquica ocorre essencialmente pelo emprego de estratégias de defesa - racionalização e negação do sofrimento.

c) A identidade profissional se apresenta como possibilidade de inclusão social: devido à condição de pobreza e vulnerabilidade dos trabalhadores, ter um trabalho, mesmo que sob as precárias condições a que se submetem, é melhor que ser estigmatizado como "vagabundo". Dessa forma, ter um trabalho parece ser um dos principais fatores de estabilização psíquica e manutenção da saúde entre os catadores.

d) A relação entre as precárias condições de trabalho e os riscos e danos à saúde é negada pelos trabalhadores, exemplo mais explicito do uso de estratégias de defesa como forma de mediação e ressignificação do sofrimento no trabalho.

A organização do trabalho como cooperativa parece trazer poucos ganhos - reais e simbólicos - aos catadores. Nesse caso, mesmo cooperativados, os trabalhadores permanecem desassistidos de direitos básicos como cidadãos e trabalhadores.

Este estudo apresenta um avanço teórico, na medida em que amplia a compreensão da psicodinâmica do trabalho de catadores. Apresenta relevante contribuição social, por detalhar o contexto de trabalho da reciclagem na perspectiva da subjetividade dos trabalhadores. A abordagem teórica utilizada e a metodologia empregada, portanto, mostraram-se adequadas para a investigação proposta.

Sugere-se que outros estudos sejam desenvolvidos, com enfoque multimétodo de coleta de dados, enriquecendo-se as análises e os resultados aqui descritos, de modo a ampliar a compreensão da relação entre lixo, saúde e trabalho de catadores de material reciclável.

 

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1 Nome fictício, com o propósito de preservar a identidade da cooperativa e dos trabalhadores que participaram do estudo.

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