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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versión On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.21 no.1 Brasília ene./mar. 2021
https://doi.org/10.5935/rpot/2021.1.19315
O trabalho criativo em carreiras sem fronteiras: o caso da Boundary VFX
Creative work in careers without borders: The Boundary VFX case
El trabajo creativo en carreras sin fronteras: el caso de Boundary VFX
Chris Herbert Berenguer PereiraI; Fernando Gomes de Paiva JrII; Henrique MuzzioIII
IUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil
IIUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil
IIIUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil
RESUMO
O estudo discute a respeito do entendimento acerca de novos formatos de trabalho que emergem na sociedade pós-industrial, tendo a criatividade e a inovação como forças motrizes da economia contemporânea. O objetivo foi evidenciar o entendimento acerca de novos formatos de trabalho que emergem na sociedade pós-industrial, evidenciados na forma de carreiras sem fronteiras. Investigou-se uma empresa que opera com efeitos visuais (VFX) e presta serviços para produções cinematográficas ao redor do mundo. Foram utilizados dados secundários oriundos de redes sociais, portais na internet, artigos de imprensa e fóruns e dados primários, obtidos por meio de entrevista não estruturada. A análise revela que a fragmentação da força de trabalho na indústria criativa possibilita sua divisão por redes telemáticas, extrapolando as condições limitantes das fronteiras físicas.
Palavras-chave: indústrias criativas, efeitos visuais, carreiras sem fronteiras, trabalho criativo.
ABSTRACT
The study discusses the understanding of new forms of work that emerge in post-industrial society, with creativity and innovation as driving forces of the contemporary economy. The objective of the study isto show the understanding about new work paths which emerge in post-industrial society, evidenced in the form of the boundaryless career. This case study investigates a company that operates with visual effects (VFX) and provides cinematographic productions services around the world. The study used secondary data from social networks, internet portals, press articles, forums, and primary data obtained through unstructured interviews. The analysis reveals that the fragmentation of the workforce in the creative industry allows its division by telematic networks, overcoming limiting conditions of physical borders.
Keywords: creative industries, visual effects, careers without borders, creative work.
RESUMEN
El estudio discute sobre el entendimiento de nuevas formas de trabajo que surgen en la sociedad postindustrial, teniendo la creatividad y la innovación como fuerzas motrices de la economía contemporánea. El objetivo fue comprender las nuevas formas de trabajo que surgen en la sociedad postindustrial, evidenciada en forma de carrera sin fronteras. Se investigó una empresa que opera con efectos visuales (VFX) y presta servicios para producciones cinematográficas alrededor del mundo. Fueron utilizados datos secundarios provenientes de redes sociales, portales en Internet, artículos de prensa, foros y datos primarios, obtenidos por medio de entrevista no estructurada. El análisis revela que la fragmentación de la fuerza de trabajo en la industria creativa posibilita su división por redes telemáticas, extrapolando las condiciones limitantes de las fronteras físicas.
Palabras clave: industrias creativas, efectos visuales, carreras sin fronteras, trabajo creativo.
O estudo tem como objetivo evidenciar o entendimento acerca de novos formatos de trabalho que emergem na sociedade pós-industrial, evidenciados na carreira sem fronteira, tendo a criatividade e a inovação como forças motrizes da economia contemporânea (Beck, 2018). Diante da emergência da temática, a discussão realça a necessidade de entendimento a respeito da maneira como as novas configurações sociais e o mundo do trabalho estão moldando as carreiras e as percepções dos indivíduos com relação a ocupações funcionais desempenhadas por trabalhadores contemporâneos (Wiernik & Kostal, 2019).
O mundo pós-fordista se evidencia por uma profusão de novas configurações sociais e laborais que produz resultados indefinidos na trajetória ocupacional dos profissionais (Fiorini, Bardagi, & Silva, 2016), tais como demissões, excesso de terceirização, emergência de empregos temporários e probatórios, além de triagens e escrutínios do desempenho no trabalho (Crowley, Tope, Chamberlain, & Hodson, 2010). Isso tem demandado dos profissionais contemporâneos a busca por mecanismos de interação na esfera das relações de trabalho que contemplem dinâmicas de criatividade e inovação em ambientes que extrapolam as fronteiras empresariais e geopolíticas. Essa condição laboral complexa e transnacional revela certa lacuna nas investigações que vem a justificar a pertinência do estudo.
Existe a necessidade de os gestores e agentes criativos compreenderem o fenômeno de carreiras sem fronteiras para embasar decisões de investigação e conduta gerencial. Logo, o estudo colabora com a geração de um conhecimento crucial diante da célere transformação que vem ocorrendo no mundo do trabalho no que se refere ao setor criativo. Esse, por sua vez, por se constituir uma temática significativa na esfera socioeconômica, representa um emergente campo de interesse de indivíduos, empresas e governos (Anderson, Potocnik, & Zhou, 2014).
As carreiras refletem a materialização da personalidade humana e os arranjos de trabalho representam o elo entre o indivíduo e a sociedade. Elas são também responsáveis pelo alcance de resultados sociais e econômicos, em que são evocados relacionamentos profissionais de amplitude interna e externa às organizações. De certa forma, toda a vida pessoal do protagonista do processo de inovação está imbricada com questões vinculadas às âncoras de carreira dos profissionais intensivos em criatividade (Mainemelis, Nolas, & Tsirogianni, 2016; Schein, 2016). Os resultados do estudo são úteis por permitirem a gestores e pesquisadores a disponibilização de subsídios teóricos e empíricos com respeito ao modo como as emergentes configurações de vínculo de trabalho passam a ser estabelecidas no ambiente da criatividade. No aspecto temporal, o estudo é pertinente por vislumbrar características e comportamentos que podem ser tornar padrão em um futuro próximo, o que exige de acadêmicos e profissionais um prévio domínio desse campo de conhecimento.
O desmantelamento do paradigma fordista culmina na ascensão da sociedade pós-industrial, protagonizada pela ascensão do trabalhador do conhecimento e da classe criativa (Florida, 2011). Novas formas de relações de trabalho emergem no cenário organizacional vinculadas à chamada quarta revolução industrial, ancorada na digitalização e na automação do trabalho (Hirschi, 2018). Essa condição leva acadêmicos a se debruçarem sobre modalidades heterodoxas de carreira (Hall, Yip, & Doiron, 2018), a exemplo das chamadas carreiras pós-corporativas, em que valores e crenças individuais são alinhados aos objetivos organizacionais intermediados por contratos informais (Briscoe & Hall, 2006).
Existe aqui o intento de se equacionar uma abordagem de carreira profissional que avalie o papel catalisador do indivíduo criativo, um ser também condicionado por contextos relacionais, funcionais e organizacionais (Amabile, Conti, Coon, Lazenby, & Herrone, 1996). Nesse sentido, o ciberespaço parece uma alternativa útil para se verificar a superação de barreiras extrínsecas quando se possibilita o simulacro de um milieu inovativo, uma "ágora virtual" aberta ao compartilhamento de ideias de potencial transformador, cuja corporificação se produz nesse ciberespaço por meio de inteligências coletivas (Lévy, 2015).
Paradoxalmente, desenvolvedores de games, produtores de efeitos visuais, animadores e designers conceituais são exemplos de profissionais que se beneficiam da cocriação da experiência. Ela vigora como apoio psicossocial provido pela interação face a face de agentes operando no ecossistema criativo, fundamental para o alcance de desempenho favorável nessas áreas direcionadas pela criatividade, uma vez que se aperfeiçoa a capacidade absortiva e são potencializados mecanismos de aprendizagem recíproca (Albort-Morant, Leal-Rodríguez, & Marchi, 2018; Hoff & Oberg, 2015).
Nesse sentido, o presente estudo busca elucidar a compreensão do contexto de tal segmento das indústrias criativas, ao contemplar nuances de suas configurações de trabalho e de suas implicações no mercado. Essas lacunas e os indicativos aqui discutidos constituem base para a seguinte pergunta de pesquisa: Como o trabalhador criativo produtor de efeitos visuais engendra sua carreira sem fronteiras?
Os resultados decorrem de um estudo de caso em uma empresa representativa de fenômeno do desenvolvimento de carreira sem fronteiras. Tais achados realçam o papel do ciberespaço como alternativa ao modelo territorialista de criatividade e evidenciam que o ciberespaço funciona não apenas como uma janela para o mundo, mas também como uma vitrine expositora no âmbito digital de trabalhos centrados no talento, na criatividade e na capacidade técnica.
O Trabalhador Criativo em Carreiras sem Fronteiras
Os elementos que fundamentam a abordagem de carreiras sem fronteiras e a indústria de VFX (video effects) se originam da reflexão referente ao trabalhador criativo direcionado por aspirações individuais e o desenvolvimento de atividades que envolvem talento e gnose. Assim, o debate assume protagonismo arquetípico do trabalhador da sociedade pós-industrial (Florida, 2011, 2014).
A centralidade do trabalho em seu universo ocupacional revela um comprometimento afetivo específico com a carreira laboral. Pois, contrariando algumas situações de emprego, a vida pessoal e a profissional não configuram fronteiras bem delineadas; fato que dificulta o reconhecimento de competências contemporâneas associadas a perfis de liderança, a exemplo da liderança por mulheres em ambientes de prevalência masculina (Chamorro-Premuzic, 2013). Como consequência, os limites entre trabalho, lazer, diversão e vida pessoal podem se tornar difusos para profissionais que atuam nas indústrias criativas. Para esses profissionais, o trabalho tem significado na medida em que lhes permite expressar-se, fazer-se ouvir e pôr em exercício suas competências e aspirações (Bendassolli & Borges-Andrade, 2011). Nesse sentido, abordagens recentes têm associado o perfil empreendedor, caracterizado por proatividade e sensibilidade, a novas oportunidades de negócio e a uma mentalidade orientada para a transnacionalização laboral (Uy, Chan, Sam, Ho, & Chernyshenko, 2016).
Nos anos 1990, a discussão em torno de tipologias carreiras conduzia os estudiosos a questionar abordagens tradicionais, levando-os à proposição do conceito de carreiras sem fronteiras. Diante do advento da nova economia, esse tema se caracteriza pela ocorrência de atividades de trabalho independente, presentes em arenas nacionais e globais onde coexistem oportunidades, insegurança, flexibilidade e incerteza; e em que são integrados trabalhadores da atividade privada com agentes públicos. Na formulação de pressupostos que configuram as carreiras sem fronteiras, são minimizadas limitações características de uma carreira tradicional, pois a maioria dos atores constrói e conduz sua própria atividade profissional num ambiente de elevada incerteza, cujas relações contratuais ocorrem no formato de projetos, sem amparos institucionais contínuos (Arthur & Rousseau, 1996; Hall et al., 2018). Portanto, as carreiras sem fronteiras representam a antítese das carreiras organizacionais clássicas no sentido de que suas características vão de encontro àquelas típicas de situações laborais que inibem o acúmulo de conhecimento e ocupam função crucial no capitalismo informacional (Arthur, 2014).
Desse modo, essa ênfase mais proeminentemente ocorre quando há mobilidade através de fronteiras de diferentes empregadores - assim como no estereótipo de carreira do Vale do Silício nos Estados Unidos. Um segundo sentido ocorre quando uma carreira define validação e comercialização (marketabillity) fora de seu vínculo empregatício, permitindo ao trabalhador uma liberdade de escolha e múltiplos vínculos empregatícios em uma condição fluida e temporária. Um terceiro sentido se define quando uma carreira é sustentada por informações e relacionamentos extra organizacionais. Um quarto sentido ocorre quando princípios hierárquicos e relatórios de avanços - tradicionais amarras de carreiras, são extintos, a partir de uma perspectiva de rede de relações que se estabelecem com o apoio da comunicação digital. Um quinto sentido acontece quando pessoas rejeitam oportunidades de carreira organizacionais existentes por motivos pessoais ou familiares. Um sexto sentido depende da interpretação do ator da carreira, que pode perceber um futuro sem fronteiras independentemente de princípios organizacionais tradicionais de carreira (Arthur, 2014).
O modelo de profissional autônomo ocupa a centralidade das relações de trabalho nas indústrias criativas, em que são realizados trabalhos fundamentados em sistemas de projetos. Dessa forma, o perfil do profissional autônomo das indústrias criativas se remete às características de trabalho sem fronteiras que operam sob uma demanda contingente, possuem elevado risco de insucesso profissional e atuam em trabalhos não rotineiros (Hoff & Oberg, 2015; Menger, 1999, 2014). As relações laborais nessas modalidades de operação ocorrem por meio de networking em lugar de esquemas de hierarquias e seus contratos são elaborados por intermédio de acordos relacionais. Não obstante, a economia criativa ter entrado em pautas de políticas públicas de desenvolvimento regional em vários países nos últimos anos, os profissionais criativos autônomos permanecem na obscuridade diante dessas políticas (Mould, Vorley, & Liu, 2014). Logo, a concepção de carreira sem fronteira é tratada aqui como a condição de o profissional atuar de forma competitiva em diferentes contextos culturais e laborais, a partir de suas habilidades e expertises, ao se articular com sua rede de relações sociais que lhe permite flexibilidade e amplitude na articulação profissional em meio à oferta de sua força de trabalho (Hatala & Yamkovenko, 2016).
A Produção Audiovisual de VFX pelo Trabalhador Criativo sem Fronteiras
O mercado de produção audiovisual tem sofrido mudanças significativas após inovações possibilitadas pela difusão da CGI (computer generated imagery) e a ascensão dos blockbusters. Estes são filmes que se utilizam de estratégias arriscadas de alto investimento, praticadas por grandes estúdios que "alocam uma parte desproporcionalmente alta do orçamento de marketing e produção para um pequeno subconjunto de produtos, na esperança de que tragam a maior parte das receitas e lucros" (Elberse, 2014, p.18).
Os grandes estúdios (major studios) mantém um portfólio diversificado de produção tecnológica e cultural; porém, apostam recursos em um número relativamente pequeno de títulos, predominantemente franquias consagradas e oriundas de outras mídias ou filmes de sucesso garantido. Elberse (2014) constata que os lucros decorrentes da produção e exibição de um filme são diretamente proporcionais ao tamanho dos seus orçamentos, estratégia que a autora define como "o vencedor leva tudo". Ela argumenta que a banalização da tecnologia e a desmaterialização do mercado doméstico possibilitam a hiper exposição de produções de todos os segmentos e nichos, resultando na necessidade de os estúdios elevarem os investimentos em produções de cunho mais comercial, uma vez que elas tendem a atrair maior atenção do público de massa. Ao mesmo tempo, há o risco de se tornarem fiascos (flops), o que torna a indústria hollywoodiana um expoente de custos irrecuperáveis (sunkcosts), uma vez que os investimentos não podem mais ser restaurados (Caves, 2003). Portanto, o trabalho criativo nos estúdios de VFX se efetiva pela necessidade de acesso a soluções tecnológicas voltadas para a prática de manipulação de imagens em movimento, objetivando a verossimilhança e o alinhamento narrativo; contudo, limitado pelas decisões criativas dos diretores (Ruling & Duymedjian, 2014).
De acordo com Parker e Cox (2013), firmas baseadas em VFX buscam vantagem competitiva na cadeia global de valor recorrendo a diferentes estratégias; sendo a primeira a abstenção, quando identificam um segmento de mercado e optam por se manterem ativos por meio dele em detrimento de outros setores. A segunda, adaptação, quando recorrem a outros mercados que empregam VFX como televisão e comerciais de TV. A terceira é a imitação das firmas dominantes atuando como produtoras de conteúdo.
A fragmentação das empresas que atuam em Hollywood ocorre desde os anos 1950, quando os estúdios, que até então funcionavam como grandes fábricas, começaram a sofrer redução do quadro de pessoal (downsizing), mantendo seus núcleos administrativos e terceirizando o restante da produção, no que resultou em um processo de redes de produção verticalmente desintegradas. A partir dos anos 90, com a difusão dos computadores pessoais e a comercialização de softwares de prateleira (off-the-shelf), os serviços especializados de VFX ulteriores passaram a apresentar menores barreiras de entrada, barateando os custos de produção desses serviços (Ahmed, Uddin, & Shimul, 2015; Parker & Cox, 2013) e possibilitando, assim, que firmas satélite operem ao redor do globo, nas quais o trabalhador criativo emprega suas competências técnicas (Samaras & Johnston, 2018).
Diante de um modelo verticalmente desintegrado, os estúdios de VFX se defrontam com demandas de trabalho contingentes. Segundo essas, o processo organizacional se fundamenta em projetos conectados por atuação das lideranças em redes organizacionais (networking) e efetivada por acordos inter firmas. Nesses acordos,as relações de trabalho são configuradas por heterarquias, mediadas por formas organizacionais complexas, multifacetadas e se sobrepondo em estruturas desconexas e organizacionalmente desregradas.
Método
O estudo caracteriza-se como pesquisa qualitativa (Creswell, 2010), em que buscou-se verificar as implicações e variáveis possíveis evidenciadas nas carreiras sem fronteiras recorrentes em uma empresa baseada em CGI (computer-generated imagery), tendo como unidade de análise a empresa Boundary VFX, por meio de um estudo de caso, o qual ocorreu em razão da empresa analisada ser um caso típico de ocorrência do fenômeno, o que justifica sua escolha. De acordo com Yin (2015), um estudo de caso é uma investigação empírica de um fenômeno contemporâneo em profundidade e em seu contexto de mundo real, sobretudo, em situações nas quais os aspectos limitantes entre fenômeno e contexto não são claramente evidentes.
Participantes
Tomamos como fenômeno contemporâneo a cibernetização do trabalho nas indústrias criativas de efeitos visuais (na perspectiva das carreiras sem fronteiras) e suas possibilidades de internacionalização, já que a empresa escolhida enfrenta "situação tecnicamente diferenciada em que existirão muito mais variáveis de interesse do que pontos de dados" (Yin, 2015, p.18). A empresa foi escolhida baseada em suas características elucidativas dos constructos teóricos da literatura sobre carreiras sem fronteiras.
Instrumentos
A pesquisa baseia-se em múltiplas fontes de evidência (uma fonte primária e fontes secundárias), buscando uma convergência de dados de maneira triangular, com objetivo de expandir e generalizar proposições teóricas presentes na literatura.
Procedimentos de Coleta de Dados e Cuidados Éticos
A construção do corpus se deu por coleta de dados primários (entrevista) e secundários (sites como IMDB - Internet Movie Database), redes sociais como Linkedin e Facebook, fontes de imprensa, blogs e o web portal da empresa. Os dados apresentados sobre a empresa abordada no estudo encontram-se publicamente disponíveis em sítios da internet e entrevistas encontradas em blogs especializados, além de informações disponibilizadas virtualmente no portal da própria empresa. Além disso, foram consideradas as recomendações do Manual de Publicação da American Psychological Association (APA, 2012) em relação aos cuidados éticos na preparação do material descritivo do caso, bem como a exposição preliminar desse material ao sujeito do relato (desempenhado por um dos membros fundadores como representante da empresa citada) e a utilização de termo um de consentimento. Dessa forma, os dados descritivos e o relatório final da pesquisa passaram pelo processo de avaliação e aprovação perante um representante legal da organização abordada.
Procedimentos de Análise de Dados
Os dados foram separados em categorias estruturantes, visando contemplar aspectos sobre: gênese da empresa; relações de trabalho e comércio; tomadas de decisão; trajetória da empresa e suas vantagens competitivas. Os dados primários foram obtidos através de entrevista semi-estruturada com um sócio fundador realizada via Skype e durou cerca de 1 hora e vinte minutos. Os conteúdos empíricos obtidos foram analisados por meio da análise de conteúdo (Bardin, 2016), em que atentamos para a técnica de análise categorial na qual são operados desmembramentos do texto em unidades de categorização segundo reagrupamentos analógicos, objetivando-se aplicações em um discurso direto (significação manifesta). As esferas de discussão que diz respeito a carreiras sem fronteiras convergem para a estruturação de seis categorias, delimitando o escopo analítico: 1) Autogerenciamento de carreira; 2) Mobilidade entre empregadores; 3) Relações comerciais extra organizacionais; 4) Acúmulo de conhecimento diversificado; 5) Cibernetização da força de trabalho; e 6) Acordos contratuais baseados em relações de confiança.
Resultados
O Caso da Boundary VFX, uma Empresa sem Fronteiras
A Boundary VFX é uma firma especializada em efeitos visuais fundada em meados de 2009 pelos artistas digitais Magno Borgo (BR/QA), Nick Lambert (UK), Rob Geddes (QA), James Piña (US) e David Hackenburg (US). Essa firma presta serviços de composição visual, que envolvem reconstrução digital, tracking, rotoscopia, key, remoção de fios, remoção de rig, tracking 2d e 3d para filmes, séries de TV e comerciais (Boundary VFX, 2017). A composição visual ou vídeo composição consiste no processo final presente na criação de tomadas de cenas com efeitos visuais. É nessa etapa que artistas digitais trabalham em múltiplas camadas que se sobrepõem, dando a ilusão de que os elementos tenham sido filmados juntos. Esse trabalho é realizado por artistas que dominam conjuntos de técnicas capazes de manipular imagens em movimento e inserir elementos que não faziam parte da gravação bruta.
Diante de interações na comunidade on-line Pixel corps., um fórum dedicado a estudantes e entusiastas de VFX, surgiu a ideia de se construir um empreendimento digital, ausente de amarras burocráticas e limitações de instalações físicas. Assim, ocorreu o início da Boundary Visual Effects, uma empresa do segmento de eletrônica que realizava trabalhos para comerciais de TV, contando com a participação de cinco membros fundadores.
Após os primeiros filmes centrados na produção de longa metragens, a Boundary VFX tem prestado serviços para produções diversas. Trabalhou tanto com filmes blockbusters, como Harry Potter e as Relíquias da morte: parte 2 (2012), Os Smurphs (2011) e Kingsman: serviço secreto (2014); quanto com filmes independentes, como Anomalisa (2015).
A Boundary VFX também tem prestado serviço para séries como a exclusiva do Xbox One, Halo: Nightfall, The Hour e Californication. Além de filmes publicitários para Moe's, Ford e Intel. Seu modus operandi ocorre completamente "na nuvem", permitindo extrapolar limitações físicas e recrutar artistas talentosos ao redor do mundo para que executem tarefas especializadas, podendo expandir ou reduzir o tamanho das equipes sem elevadas despesas com infraestrutura (Boundary VFX, 2017).
Os sócios da Boundary possuem reputação na indústria dos VFX, sendo constantemente convidados a dar cursos e palestras em universidades e instituições de ensino diversas ao redor do mundo. Até no momento dessa pesquisa, Magno Borgo, o sócio da empresa, ministrou treinamentos no Brasil e na China. Nick Lambert, outro sócio, realizou duas vezes palestras na Siggraph, em Los Angeles (considerada a maior convenção de computação gráfica do mundo). James Piña leciona no bacharelado de artes da California State University Monterey Bay, além de dar treinamentos nas escolas online Pixelcorps e FXPHD (BORISVFX, 2015; FXPHD, 2018).
O modus operandi da Boundary ocorre completamente "na nuvem", o que permite a extrapolação de limitações físicas e recrutamento daqueles artistas talentosos ao redor do mundo para que executem tarefas especializadas. Com isso, ela pode se expandir ou reduzir o tamanho das equipes sem elevadas despesas com infraestrutura. A empresa mantém parceria com estúdios internacionais e administra as demandas contingentes de distribuição temporária de trabalho, evitando, assim, uma política de "contratação e demissão" exacerbadas, tendo sua organização e divisão de trabalho realizada completamente por vias remotas ao desempenhar atividades de cunho técnico e artístico.
Discussão
Frente ao cenário das políticas neoliberais de desenvolvimento regional, não se pode dizer que a Boundary VFX se revela com alguma nacionalidade específica, o que a torna menos vulnerável a políticas nacionais de governos, uma vez que não possui sede ou sequer endereço físico, ao operar de maneira flutuante e latente e podendo ser definida como uma empresa sem fronteiras. Apesar de tal modelo organizacional parecer inconcebível diante de abordagens tradicionais de estudos organizacionais. Sua gênese se deu de maneira orgânica e "desfronteirada" por fóruns tecnológicos na web. Tal como observado por estudos sobre carreiras sem fronteiras (Mainemelis et al. 2016; Mirvis & Hall, 1994), segundo os quais atores constroem e conduzem sua própria atividade profissional em ambientes de elevada incerteza em uma atuação em rede (Hatala & Yamkovenko, 2016). Tal característica é evidenciada no seguinte relato:
Meu colega sênior pegava um trabalho e me chamava, e chamava os outros, então a gente começou a trabalhar muito frequentemente um com o outro, que na verdade são hoje em dia os meus quatro sócios... a gente se conheceu lá nessa comunidade, então chegou a hora e eu falei: "pessoal, a gente está aqui toda hora trabalhando junto, vamos nos organizar, vamos criar um nome, uma marca e vamos trabalhar sobre a "umbrella" dessa marca que eu acho que vai dar mais resultado. E todo mundo gostou da ideia, cada um entrou com o que podia em termos de tempo, investimento, criatividade etc.; montamos um website e a marca... foi quando eu deixei de ser um artista de composição e me tornei "Boundary", isso se tornou bem mais atrativo para os clientes. [E1-p.1]
A atuação da empresa investigada eleva o constructo de carreiras sem fronteiras a um nível de organização baseada inteiramente neste modelo, possibilitando uma força de trabalho de design latente e cibernético (Hirschi, 2018). As afirmações do entrevistado corroboram com o fato de o trabalhador criativo sem fronteiras no setor de VFX tomar partido de seu próprio posicionamento mercadológico, o que implica num autogerenciamento dos resultados da própria carreira (Hall et al., 2018), o que gera menos dependência de amarras burocráticas das carreiras organizacionais clássicas (Arthur, 2014; Arthur & Rousseau, 1996).
No contexto da nova economia, as formas heterodoxas das carreiras emergentes de relações laborais baseadas no capital reputacional vão de encontro ao paradigma fordista, logo, a demanda por trabalhadores do conhecimento com distintas competências operando num mercado hipercompetitivo significa que tais trabalhadores dispõem de maior poder para negociar suas condições de trabalho, sob a égide de seus próprios valores e crenças, o que resulta na despadronização das relações laborais (Briscoe & Hall, 2006; Mould et al. 2014; Rousseau, 1998).
As pessoas que trabalham para a gente não precisam necessariamente trabalhar full time. Tem pessoas que trabalham no fim de semana, pessoas que trabalham só a noite. Meus sócios mesmo têm empregos fixos em outras empresas e eles trabalham às vezes, quando podem. Também temos artistas full time que trabalham para a gente, então é uma flexibilidade que, na verdade eu acho que o maior conceito e a palavra-chave é responsabilidade. [E1-p.3]
A posição da Boundary na cadeia produtiva está atrelada a serviços que objetivam a verossimilhança das composições visuais digitais (Ruling & Duymedjian, 2014). Dessa maneira, seu processo de criação está condicionado pela obtenção do realismo nas cenas, como a remoção de objetos, explosões e mapeamentos de câmera. Esse setor segue as solicitações dos clientes, visando a obtenção da excelência na ilusão de realismo nas cenas criadas digitalmente. A opção por atuar em funções técnicas e menos relacionadas às indústrias culturais é uma decisão estratégica, caracterizada por mobilidade entre empregadores.
A gente não se envolve com 3d, a gente se envolve com partes bem técnicas como rotoscopia. A gente trabalhou muito tempo só com rotoscopia e agora composição e etc.. Eu acho que a gente trabalha com áreas bem específicas, não tem um envolvimento muito criativo, normalmente, mas é uma opção nossa. Criativo eu digo de criar coisas. A gente pega a cena, executa e entrega, recebe o pagamento e passa para o próximo trabalho. [E1-p.7].
Devido ao fato de a Boundary optar por uma estratégia de posicionamento centrada na flexibilização de serviços de VFX, atuando em filmes, séries e comerciais de TV, eles não possuem, no momento, projetos audiovisuais autorais. Assim, evitam os elevados riscos e oscilações do mercado da indústria cultural, sendo possível classificá-la na definição de estratégia de adaptação, descrita por Parker e Cox (2013).
Por se transitar por diversas áreas do conhecimento nas indústrias criativas, o acúmulo de conhecimento diversificado permeia o perfil dos profissionais criativos sem fronteiras. Isso se coaduna com os achados de Mainemelis et al. (2016), em que os agentes criativos possuem uma experiência eclética ao longo de suas carreiras, que são caracterizadas pela descontinuidade de vínculos laborais. Corroborando Arthur (2014), carreiras sem fronteiras são demarcadas por uma ampla variedade de tarefas, facilmente ou não facilmente embutidas no emprego, com redefinições periódicas de uma profissão, resultando em reencaixes e recomeços em cursos de carreiras. Tal característica é evidenciada no trecho:
Na verdade, a minha origem é no design. Eu fiz faculdade de Design, comecei a trabalhar com web nos anos 90 e sempre trabalhei com essa parte de multimídia e tal e daí eu comecei a migrar para o vídeo aos poucos. Trabalhei com edição de vídeo durante muito tempo, motion graphics... e então eu finalmente fui fazendo essa transição para a área de efeitos visuais e sempre me interessei muito por 3D. Na verdade, então eu trabalhei com animação 3D, com modelagem, com todas as áreas de 3d por um bom tempo, mas aos poucos eu fui vendo que no 3D eu precisava aprender a fazer composição também, porque a composição ajudava a economizar tempo na pós-produção [E1-p.2].
Em ambientes de incerteza, cujas relações contratuais se concretizam na forma de projetos, os acordos comerciais são pautados por relações de confiança, dada a complexidade das diferenças nas relações laborais em nacionalidades distintas (Mould et al., 2014; Parker & Cox, 2013).
As relações contratuais são... a gente que trabalha com contrato ...na verdade, com o cliente. Ele manda um contrato para a gente de confidencialidade para qualquer trabalho, é bem comum nessa área, então a gente já assina um contrato de confidencialidade, mas, efetivamente, pela forma de trabalho que a gente faz de trabalho remoto, é muito complicado essa jurisprudência entre países e entre artistas em vários lugares... enfim, na verdade é uma coisa que não tem contrato formal. O que a gente tem são garantias, por exemplo, eu pego um contrato muito grande, então a gente pede um adiantamento logo no fechamento do contrato para já garantir um dinheiro, um pagamento para os artistas começarem a trabalhar e daí a cada mês a gente acerta uma parcela do pagamento. Se esse pagamento não ocorrer, a gente para de trabalhar, esse tipo de coisa, mas em 7 anos trabalhando e sempre é uma coisa muito séria, nunca tivemos problemas [E1-p.5].
A emergência de tecnologias e plataformas de distribuição de mídia possibilitam a ampliação do escopo de atividades econômicas dos profissionais das indústrias de efeitos visuais. Evidências de sensibilidade para novas oportunidades de negócio, aliadas à autoaprendizagem e à capacidade de adaptação, caracterizam o perfil do profissional das indústrias criativas de efeitos visuais. Como verificado em estudos como os de Mirvis e Hall (1994) e Mainemelis et al. (2016), tornam-se características cruciais para o êxito da solidificação conjunta em enriquecimento na forma de carreira: uma estrutura suficiente, habilidade, senso de interpretação da complexidade de cenários, flexibilidade, auto design, e a habilidade de aprender-a-aprender
É uma área que vai se popularizando cada vez mais, cada vez mais produções menores têm acesso a mais recursos de efeitos visuais. Isso torna mais comum você usar os recursos visuais dos efeitos em filmes menores, vai se tornando mais acessível e cada vez mais áreas precisam de mais efeitos visuais, então agora tem realidade virtual tem, realidade aumentada e só vai aumentando o leque de opções de trabalhos, então tem que ficar sempre atento ao mercado e se adaptando às mudanças, ver novas áreas no mercado que você pode atuar e acompanhando a tecnologia para tomar um benefício disso. [E1-p.10]
O agente criativo das indústrias de efeitos visuais demonstra sua propensão à adaptação a cenários definidos pelo advento de novas tecnologias (Ahmed et al., 2015; Fiorini et al., 2016; Parker & Cox, 2013). A crescente popularização de recursos visuais em filmes alternativos ao modelo blockbuster (Elberse, 2014) possibilita portas de entrada para empreendimentos criativos nas áreas de efeitos visuais, bem como o emprego de recursos de computação gráfica em setores que vão além do mercado audiovisual são possíveis demandas futuras. A sensibilidade para novas oportunidades de negócio e atuação profissional corrobora com os achados de Uy et. al (2016), evidenciando características empreendedoras nos trabalhadores criativos sem fronteiras, pois, a atribuição do desdobramento de carreira cabe ao próprio indivíduo, em oposição a uma obediência a princípios hierárquicos de uma carreira corporativa tradicional (Briscoe & Hall, 2006).
Considerações Finais
O estudo discutiu as características organizacionais das carreiras sem fronteiras na Boundary VFX, uma empresa intensiva em tecnologia cujo design organizacional é capaz de se corporificar diante de uma complexa e rizomática cadeia produtiva que se redimensiona por meio de redes telemáticas. O caso aqui investigado torna possível refletir a respeito do fato de a empresa analisada representar a aprovação de uma empresa sem fronteiras.
Uma contribuição desse estudo reside no fato de evidenciar que serviços atrelados às indústrias criativas, como é o caso de empresas de efeitos visuais, podem ser executados por modalidades remotas sem que fique comprometido tecnicamente o processo de criação; já que se depende menos de aprovações dos gatekeepers, uma vez que objetivam alcançar níveis verossímeis de realismo em vez de produzir bens simbólicos que possam vir a dar lucro, algo característico das indústrias culturais. Além de evidenciar o papel do ciberespaço como alternativa ao modelo territorialista de criatividade predominante na literatura (Florida, 2011).
Outra contribuição profícua diz respeito à evidência de que o ciberespaço funciona como uma vitrine expositora de trabalhos baseados no talento, na criatividade e na capacidade técnica nos âmbitos nacionais e internacionais. O caso selecionado nos possibilitou verificação teórico-empírica das variáveis de investigação propostas na sessão de trilhas metodológicas, que são: a) o autogerenciamento de carreira; b) a mobilidade entre empregadores; c) relações comerciais extra organizacionais; d) acúmulo de conhecimento diversificado; e) cibernetização da força de trabalho; f) acordos contratuais baseados em relações de confiança. Diante desse entendimento sobre possibilidades nas carreiras sem fronteiras, a cibernetização do trabalho emergiu como uma variável não explorada na literatura atual, residindo o principal achado do presente estudo.
Pesquisas futuras podem contemplar a compreensão para execução eficaz do gerenciamento de atividades remotas, oriundas de distintos profissionais atuando em redes cibernéticas. Ainda, podem se centrar na investigação sobre as possibilidades de fronteiras em setores atribuídos às atividades de produção de bens simbólicos (p. ex.: games, animação, música) ao se possibilitar investigar se o estilo de design organizacional latente e cibernético seria mais ou menos aplicável a atividades que contemplam ações profissionais sem fronteiras geofísicas. Ainda, em que circunstâncias a força de trabalho nas indústrias culturais poderia ser desmaterializada em meio a tais universos globalizados.
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Informações sobre os autores:
Chris Herbert Berenguer Pereira
CCSA, Av. dos Economistas s/n (UFPE), Cidade Universitária
50670-901 Recife, PE, Brasil
E-mail: chris.berenguer@ufpe.br
Fernando Gomes de Paiva Jr.
E-mail: fernando.paivajr@ufpe.br
Henrique Muzzio
E-mail: henrique.muzzio@ufpe.br
Submissão: 30/10/2019
Primeira decisão editorial: 14/01/2020
Versão final: 11/07/2020
Aceite: 19/02/2021