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Revista de Psicologia da UNESP
versión On-line ISSN 1984-9044
Rev. Psicol. UNESP vol.17 no.2 Assis jul./dic. 2018
ARTIGOS
Percursos de cuidado a usuários de álcool e outras drogas: a clínica em movimento
Angela Slongo Benetti; Bruno Ferreira Emerich; Rosana Onocko Campos; Ellen Ricci
Universidade Estadual de Campinas
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo discutir a dimensão de território no contexto do cuidado em saúde mental e saúde coletiva. A partir da experiência enquanto residente multiprofissional de Saúde Mental em um CAPS AD III de Campinas/SP, buscou-se discutir sobre os sentidos que as práticas em território trazem para a construção e o projeto terapêutico singular dos usuários. Para isso foram usadas narrativas de casos, com o intuito de articular o conceito de território nas práticas da atenção psicossocial. Ao final, concluímos que a relação do usuário com seu território é parte essencial na construção do cuidado em saúde, possibilitando um olhar cuidadoso para a singularidade de seu modo de vida, e para qual clinica é possível realizar a partir disso.
Palavras-chave: território, saúde mental, reforma psiquiátrica, atenção psicossocial.
ABSTRACT
The objective of this study is to discuss the territorial dimension in the context of care in mental health and collective health. From the experience as a multiprofessional resident of Mental Health, in Campinas /SP, sought to discuss the meanings that the practices done in territory bring to the construction and the singular therapeutic project of users. In order to do so, we will use narratives of cases, in order to articulate the concept of territory in th e practices of psychosocial care . In the end, we conclude that the relatio n with the user is an essential part of the construction of health care, allowing attention to the singularity of their way of life, and to which clinic it is possible to perform from there.
Keywords: territory, mental health, psychiatric reform, psychosoc ial care.
Introdução
O presente trabalho tem por objetivo apresentar e discutir a experiência em um CAPS AD III de uma grande cidade do interior de São Paulo, como parte do primeiro ano como Residente Multiprofissional em Saúde Mental no ano de 2017, tendo como balizamento o cuidado em território, por meio de casos acompanhados em visitas domiciliares e acompanhamento de sujeitos pelos territórios em que habitam. Os casos serão apresentados por meio de narrativas, construídas a partir das experiências de campo ao longo deste ano.
Sobre o uso das narrativas, Campos e Furtado (2008) discorrem a respeito e apontam que, segundo Ricoeur (1997), as narrativas nada mais seriam do que "histórias não (ainda) narradas" (Ricoeur, 1997, p 115, citado em Campos e Furtado, 2008). Assim, os autores apontam para a simbolização da ação, dentro da cultura, e, portanto, que compartilha de uma articulação com o público: uma inter-ação.
Neste sentido, a experiência, segundo Bondia (2002) é aquilo que "nos passa", que nos toca, nos acontece e nos transforma. O autor disserta sobre o sujeito da experiência, e define este por sua passividade, sua receptividade, disponibilidade e abertura - passividade no sentido de paixão, de padecimento, paciência, atenção, uma disponibilidade fundamental. Nesse sentido, ele aponta que podemos pensar a educação do ponto de vista da relação entre a teoria e a prática, nos remetendo principalmente a uma perspectiva política e crítica. Dessa forma, as narrativas apresentadas partem da experiência, daquilo que tocou e transformou neste processo e nos encontros com os usuários.
O CAPS tipo AD III é aquele de funcionamento 24 horas e que conta com a oferta de 8 leitos noite - vagas para hospitalidade integral de curta duração. A existência de um CAPS III no cuidado territorial é essencial para um cuidado no momento de maior sofrimento e fragilidade do sujeito, ao apostar na construção de outro lugar social para o sofrimento advindo do uso problemático de álcool e outras drogas (Brasil, 2011). Assim, constituem-se em equipamentos inseridos no território, diferentes das instituições fechadas como os manicômios e as Comunidades Terapêuticas, que isolam os sujeitos de seu convívio social.
A Luta Antimanicomial teve como traço importante a destruição dos muros manicomiais. Viver a cidade, a cultura, circular pelo território, construir uma clínica antimanicomial e ampliada. Vivemos em uma sociedade cheia de padrões, estereótipos, aceitações e rejeições, e dentro destes padrões quem costuma ficar de fora são os pobres, negros, usuários de drogas, loucos. Porém são estes que estão 'para fora' que acabam ficando 'para dentro' das instituições de saúde mental. Mesmo que suas portas estejam abertas. Contou-nos Antônio Lancetti (2014) que uma das primeiras atitudes durante o processo de intervenção na Casa de Saúde Anchieta, foi pregar um mapa da cidade de Santos numa parede do hospício, para colocar a cidade na cabeça de todos.
Nesse sentido, Jean Oury (1991) aponta que é preciso "estar à escuta", ou seja, estar sensível para manifestação do que aparece, a partir da noção de "espaço de dizer". Assim, é possível trabalhar na construção de qualquer espaço como um "espaço de dizer", a partir daquilo que o autor chama de "espera ativa", uma espera instrumentalizada que vai permitir ao outro se manifestar no seu tempo e no seu espaço. A partir disso, ofertar uma clínica tratada em liberdade e com dignidade, intervindo sobre a cultura da exclusão, descontruindo estigmas sociais dos usuários de drogas, é tarefa inicial para co-construir a singularidade da experiência da drogadição.
Território e Clínica Territorializada
A maior parte dos hospícios brasileiros sempre esteve situado em lugares distantes dos centros urbanos, tendo como principal função a exclusão de indivíduos "não adaptáveis ou resistentes à ordem social" (Lima e Yasui, 2014, p. 595). Os territórios são construídos a partir de relações políticas e sociais, daquilo que pode e daquilo que não pode aparecer. Sobre isso, Souza (2000, citado por Furtado et al, 2016) aponta que é possível compreender o território como "um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder" (p. 78) e, dessa forma, perguntar por território significa perguntar "quem domina ou influencia quem nesse espaço, e como" (p 79). Assim, ir ao encontro do território é olhar para a organização, a articulação, a resistência e as formas de sobrevivência que as pessoas daquele espaço vão inventando no seu cotidiano. Por isso é importante lembrar que, da mesma forma que trabalhar no território pode ser resistência, também pode ser enquadramento, é preciso superar tendências de normatizar e encaixar os desviantes, avançando para a transformação da sociedade e o convívio com as diferenças. (Lima e Yasui, 2014).
Ao definir Territorialização em Saúde, Godim e Monken (2008) apontam que território de saúde não é só físico ou geográfico. A territorialidade resulta das relações políticas, econômicas e culturais, com diferentes configurações e heterogeneidades. Assim, o território materializa as articulações estruturais e conjunturais da qual os indivíduos e grupos sociais estão submetidos no seu tempo histórico, e esse aspecto processual de desenvolvimento do território estabelece a "territorialização". Os autores falam do reconhecimento do território segundo as relações entre ambiente, condições de vida, situação de saúde e acesso às ações e serviços de saúde. De forma ampla, aponta-se para um processo de habitar e vivenciar um território, um método para obtenção e análise sobre as condições de saúde e de vida da população, para entender os contextos do território nos níveis econômicos, sociais, culturais e políticos.
Segundo Milton Santos (2002) o território é dinâmico, vivo, cheio de inter-relações, envolvendo as características físicas de uma área e também as marcas produzidas pelo homem. O território "seria formado pelo conjunto indissociável de substrato físico, natural ou artificial, e mais o seu uso, ou, em outras palavras, a base técnica e amis as práticas sociais, isto é, uma combinação de técnica e política" (p 87). Ele aponta uma abordagem do espaço como processo e construção social, permitindo uma visão integral dos diversos processos sociais, econômicos e políticos. Assim, transitamos na ideia de território do político para o cultural, permeando as fronteiras entre os povos, os limites do corpo e os afetos entre as pessoas (Lima e Yasui, 2014).
Além disso, Deleuze e Guattari (1997) trabalham com a noção de território como uma articulação entre os sentidos etológicos, subjetivos, sociológicos e geográficos, introduzindo a noção de 'território existencial', que diz de territórios construídos com elementos materiais e afetivos, a partir da história pessoal de cada indivíduo.
Há território a partir do momento em que componentes de meios param de ser direcionais para se tornarem dimensionais, quando eles param de ser funcionais para se tornarem expressivos. Há território a partir do momento em que há expressividade do ritmo. (Deleuze e Guattari, 1997, p. 121).
Assim, ao pensar no cuidado em um CAPS AD para fora dos muros institucionais, falo daquilo que Lancetti (2014) chamou de Clinica Peripatética, uma clínica em movimento. "Vamos ao encontro, as vezes de surpresa, de famílias que passam por grandes dificuldades; transitamos pelas cidades com pacientes psicóticos; transpomos os portões de clinicas e hospícios; transbordamos os consultórios" (p 19). Trata-se, então, de sustentar a construção de territórios existenciais, cuidar e investir em movimentos de reterritorialização, traçar linhas de vida, construir coletivamente novas formas de convivência com a diferença.
1. Visita Domiciliar
V. e T. fazem uso abusivo de Bebida Alcoólica (BA) , T. iniciou o uso aos 18 anos, V. desde os 8 anos faz uso de álcool, vivem juntas há 9 anos em um a região rural. Depois de discutir o caso delas no serviço, e estando os profissionais muito preocupados com as condições de vida do casal, ficou decidido que iríamos realizar uma Visita Domiciliar. Com tudo acordado e pactuado com ambas, chegamos em sua casa em uma quarta - feira de sol. Era cedo quando ch egamos, por volta de 8:30 da manhã, e T. e V. já estavam na rua agilizando o que era preciso para manter suas necessidades básicas. É um terreno enorme onde elas vivem, com uma grande plantação de hortaliças que pertence ao dono do terreno e da casa que elas moram. No prontuário de V. há relato de profissionais que referem que elas vivem em "regime de semiescravidão em troca de moradia", já que elas colhem e carregam as hortaliças para o proprietário das terras, e as sobras de verduras elas vendem para conseguir algum dinheiro . E las contam que vivem ali desde 2008 , quando receberam a proposta de morar na casa e cuidar do imóvel, não pagam aluguel, porém tampouco recebem algum auxílio para manutenção da mesma. Contam que c ostumam sair logo cedo para vender hortaliças em seu carrinho, uma vai empurrando e a outra oferece. No terreno também há uns dois ou três vizinhos da qual, contam elas, volta e meia arrombam a casa, roubam seus pertences e destroem as portas e janelas, "deve ser porque somos duas mulheres que vivem juntas", foi o que V. me falou diversas vezes durante a visita. Com partes da casa destelhada, sem luz nem água desde 2012, sem saneamento básico , três quartos, uma cozinha, um banheiro e uma sala - onde V. adora deitar em sua rede, e dois cachorros, "nossos parceiros". V., neste dia, me mostra tudo nos arredores da casa, as plantações, as árvores, as tentativas de plantar que não deram certo, e que 'as vezes o dono vem aí e coloca fogo em tudo'; ela me explica que pega água da caixa d'agua para lavar roupa, e para tomar banho também, e quando é frio elas esquentam no fogão a lenha. O riacho que tem logo embaixo da casa é o que recebe os dejetos da casa delas, assim como é este riacho que rega as hortaliças, que dá agua para elas lavar a roupa, limpar a casa e tomar banho; V. conta o quanto ela precisa trabalhar, capinar, limpar, "pra manter as coisas um pouco em ordem". Para beber agua elas pegam o galão e buscam água 'lá em cima'. A casa delas fica há mais ou menos 30 min caminhando do posto de saúde, e para chegar no CAPS são 2 horas de deslocamento.
V. e T. fazem uso de Bebida Alcoólica , e foi conhecendo a realidade em que elas vivem, a situação de vulnerabilidade, falta de acesso a bens materiais e de saúde básicos para viver, que foi possível compreender um pouco melhor o lugar do uso de SPA . Todos os dias de manhã elas já "tomam os primeiros goles, e as vezes passam o dia chumbadas" como nos conta V. ; e em meio ao caos elas se organizam, se entendem, se cuidam e cuidam do espaço onde vivem.
Essa VD nos fez perceber que a Redução de Danos é essencial no caso delas, que as vezes vamos inseri-las em Leito Noite para dar uma amenizada nas consequências do uso abusivo, para que elas possam se organizar, cuidar do corpo e da saúde . Porém, a firmar que o uso de BA é unicamente 'a escolha delas', quando a situação de vida delas é violenta e adoecedora, a demanda social e a negação de direitos básicos são claras , é trabalhar na perspectiva da abstinência e da moralização individualizada. Reduzir Danos é lutar junto com elas por luz, água, segurança, saúde, moradia digna, alimentação. Reduzir Danos é, junto com elas, encontrar outras alternativas para "segurar o fardo" do dia a dia de uma realidade precária e extremamente vulnerável ".
A visita domiciliar, segundo Duarte (2014) é uma atividade que envolve na assistência à saúde o indivíduo, a família e a comunidade, dentro de seu contexto social. Constrói-se uma possibilidade alternativa de acolhimento e troca, que permite um cuidar humano, sensível e diferenciado daquele centrado na instituição.
Ao trabalhar na perspectiva de que a constituição do espaço está vinculada com a subjetividade dos sujeitos, e que o "adoecer psíquico" está atrelado ao entendimento de como o sujeito se articula no mundo, de como concebe seu espaço e seu território, torna-se essencial construir uma ampliação nas possibilidades de intervenção através de uma ampliação da clínica, que podemos chamar de 'clínica do território' (Gama, 2011).
Para entrar em contato com as particularidades da realidade de V. e T. é preciso pensar nos Determinantes Sociais de Saúde e se pautar na noção de território de forma complexa, considerando o sujeito como um todo - que adoece também pelas condições em que vive, levando em consideração saneamento básico, moradia, realidade socioeconômica, educação, transporte, acesso a lazer, educação, saúde, alimentação (Buss e Filho, 2007).
Aunque no tienes la información precisa intuyes que la aparición, evolución, pronóstico y desenlace de muchos de los episodios que atiendes todos los días tienen que ver con las condiciones de vida de esas personas. Es decir, con el lugar donde viven, cómo viven, cómo trabajan o cómo se relacionan. Su código postal influye más en su salud que su código genético. Una cosa son estilos de vida y otras son condiciones de vida (Irigoyen, 2010 em Marmot, 2013, p 127).
Ao longo do ano, nos encontros com V e T no CAPS, ouvíamos seus relatos sobre a situação de moradia em que se encontravam, e com isso refletíamos sobre suas rotinas, seus afazeres e as dificuldades com a vizinhança. Estar lá foi viver com elas os relatos, foi entender melhor sobre aquilo que aparecia dentro do CAPS, foi dar voz, confiança e olhar para o território habitado por elas.
Estar no território e na casa de T. e V. é ouvi-las a partir de uma outra perspectiva, não necessariamente verbal e não apenas pautada no uso de BA, é olhar e ouvir a vida que pulsa neste local. A casa é o lugar delas, seu território existencial, e na prática de Redução de Danos, aproximar-se deste ambiente apresenta-se como um novo campo para a clínica e seu modo de operar (Tedesco e Souza, 2009).
Ao trazer a reflexão para este relato - e para tantos outros que aparecem no dia a dia do CAPS- podemos construir estratégias de como reduzir os danos do uso, e assim, pensar na realidade diária destas usuárias, como na reativação da energia elétrica e da água de volta para o domicilio; no acesso aos cuidados de saúde pelo Centro de Saúde, que está mais próximo do dia a dia delas; no cuidado com a segurança e o estabelecimento de respeito entre os vizinhos e a comunidade. A coparticipação do usuário é um dos princípios do SUS que precisamos incorporar na clínica. Assim, não se trata necessariamente de fazer T e V pararem de beber, mas sim fazer emergir o sujeito, suas potencialidades e construir junto com elas condições mínimas de vida e moradia, novas possibilidades de relações e de vida, no que entra também (mas não apenas) a substância (Ribeiro e Nascimento, 2017).
Ao pensar na dimensão do território para a constituição de subjetividade destas usuárias, e de como o uso de BA está imbricado nessa relação, Augé (1994, citado por Gama, 2011) nos aponta que um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico. Pensar os lugares a partir disso significa compreende-los como fazendo parte da subjetividade dos sujeitos. Diz respeito ao habitar, inscrito por marcas históricas, carregadas de conteúdos afetivos e simbólicos (Gama, 2011). Entrar em contato com o viver de V. e T. nos é muito valioso, porque traz para nós, profissionais da Saúde Mental, a subjetividade inscrita no lugar vivencial delas, onde elas residem e constroem seu cotidiano, inclusive sendo também seu território de uso de BA. Assim, estar lá é ampliar o olhar clinico voltado para estas usuárias, ao conhecer o lugar em que habitam suas ações, paixões, forças e fraquezas, onde se constitui e se constrói sua existência.
Nessa perspectiva, o cuidado neste território é atravessado pela clínica ampliada e pela política. Reinventar o território, em suas dimensões geográficas, políticas e culturais, potencializando os encontros e afetos, e também provocando e convidando o território a construir coletivamente novas formas de conviver com a diferença (Tedesco e Souza, 2009). É preciso, para isso, pensar longitudinalmente e trabalhar em rede e intersetorialmente.
2. Bienal de dança
No centro da cidade a cena do uso de drogas é bastante evidente, e é ali pelos arredores da rodoviária que fica o albergue da cidade para pessoas em situação de rua. É também ali perto da rodoviária que fica o SESC, e foi para lá que nos deslocamos em um dos plantões de sábado à tarde. Estava acontecendo a Bienal de Dança, e haviam duas atividades programadas: um jogo de queimada para discutir diversidade, e uma performance chamada Máquina de Desenhar, onde as pessoas da plateia participavam da pintura com a máquina. - ela funcionava a partir de 6 pontas que precisavam ser assumidas por voluntários da plateia, que era m amarrados por cintas na cin tura e o desenho se formava a medida em que os voluntários iam se movimentando, movimentando assim a máquina e os pincéis. Chegando lá, o grupo ficou dividido, estávamos em 5 ou 6, mais eu e um técnico de enfermagem, então fica mos um pouco em cada atividade. A tarde foi tranquila, descontraída e divertida, porém finalizou com canseira, ansiedades para retornar ao CAPS e um caminho de volta um tanto quanto peculiar. Aquela é a região onde a maioria deles circula como cena de uso, e não por acaso, eles que nos indicaram o caminho, para onde ir, por onde passar e qual ônibus iriamos tomar. Alguns comentários 'particulares' sobre o território também apareceram, comentários da qual eu não partilhava/compartilhava, e, portanto, não con segui compreender, e angustias e fissuras também estiveram presentes no trajeto. Foi ali que me percebi sendo apresentada ao território deles. Para mim era apenas o SESC, a rodoviária e o terminal de ônibus. Para eles, um turbilhão de sentimentos, lembranç as e sensações. Vár ios foram os relatos , de insegurança e recordações que surgiram no caminho, da fissura sentida na pele e na memória .
E foi no caminho de volta que, sentada ao lado de A., pude ouvi-lo contar sua história de vida, história essa que ele já havia me contado diversas vezes, porém dessa vez ouvi uma história despida de todas as defesas que comumente ele coloca em seus relatos, ele me contou "algo que talvez possa te ensinar sobre história de vida e dramas vividos". Contou de momentos important es de sua infância, dos abandonos e de como aprendeu a viver na rua. Chegando ao CAPS, entretanto, voltei a ouvir o final da história do mesmo jeitinho de sempre.
Ao discutir a Clínica do Território e as relações entre identidade e espaço, Gama (2011) ressalta que o território não é visto como algo exterior, mas sim como pertencimento, como uma parcela da identidade que aparece como uma ligação afetiva com relação ao espaço. "O território é construtor e sustentáculo da identidade" (p.66).
Sair com os usuários do CAPS naquele final de semana nos fez atravessar diversos territórios em um mesmo trajeto, diversas histórias e memórias em um mesmo território. Caminhar com eles naquele espaço foi ouvir seus relatos e (re)conhecer um novo saber e viver daquele lugar. Pelbart (2014), ao se questionar sobre como investir na autonomia dos sujeitos, traz em seus escritos a clínica praticada em movimento, fora dos espaços de reclusão convencionais, "com o que se inauguram outras formas de engate terapêutico, bem como outras possibilidades de conexão com os fluxos da cidade e da cultura" (p. 12).
Efetivamente, o terapeuta é quem vai estar no limite, vivendo a tensão do trabalho de substituir os muros da instituição pelo seu próprio corpo. Lancetti (2014) fala da onipotência vivida nas experiências do fora, "o analista peripatético depara-se a cada hora com a própria onipotência" (p. 104), ou melhor, com o fato de estar exposto aos conflitos e vivencias diárias daquele território, onde o ato clinico, para este autor também diz respeito a força afetiva, produzida pelo encontro, que é capaz de afetar e ser afetado em processos de subjetivação e dessubjetivação, "nos processos de emergência da subjetividade ou de decomposição da subjetividade" (p. 103). Assim, ele aponta que antes de tudo, é preciso que o terapeuta se entregue a causa e tenha disponibilidade para trabalhar em ambiente não protegido.
Trabalhar no território com os usuários de substâncias psicoativas é essencial a partir do momento em que não se propõe a construção de vigilância, punição ou abstinência, mas sim produção de vida, produção de (des)subjetivação, atenção às subjetividades a partir da potência de encontro e dos sujeitos. Reduzir danos é ampliar vida, e ampliação da vida é um conceito essencial para desbravar este campo, é vital para sustentar a posição de terapeutas (Lancetti, 2014). O ganho maior está em entender o processo a partir da sensibilização por outros olhares sobre a droga e, sobretudo, outros olhares sobre o usuário (Tedesco e Souza, 2009).
Tedesco e Souza (2009), ao falar sobre território e RD, compartilham a reflexão de que ao acessar os territórios existenciais dos usuários a partir de uma nova intervenção clinica que não mais é a droga em si, mas os agenciamentos que no território se efetuam com as drogas, novas produções de subjetividades são possibilitadas, abre-se a possibilidade de substituir os protocolos de tratamento pela experimentação, base essencial do exercício clinico. Assim, afirmam que tirar a droga do foco da intervenção e "focalizar no processo de produção de uma subjetividade-drogadita, se apresenta como uma orientação que amplia as possibilidades da clínica sem perder de foco o objetivo de transformar investimentos mortíferos que se imprimem em maus encontros com as drogas" (p. 147).
Naquele dia, ao ouvir em suas palavras e em seus corpos o quanto aquele espaço trazia de memórias, sentimentos e sensações, compreendi um pouco sobre seus territórios de existência, o mapa inscrito em suas vivencias e os detalhes cotidianos que sempre se apresentaram para mim, que são muito diferentes daquilo que é experienciado por eles cotidianamente naquele lugar. Sobre os territórios existenciais, trazidos por Deleuze (1997), Tedesco e Souza (2009) falam que "a droga compõe com um cenário complexo de trajetos e afetos, mapas extensivos e intensivos" (p150).
Além disso, ao estar fora do equipamento de saúde e poder experienciar diferentes formas do sujeito se apresentar e narrar a vida, de dizer das suas sensações e histórias, apostamos na sustentação e acolhimento de uma multiplicidade de modos de existência e também de seus agenciamentos em redes de sentidos que possibilitem a criação de novos territórios (Lima e Yasui, 2014). Segundo Fernandes (1989, citado em Gama, 2011)
Apoiados nas construções da psicologia social é possível pensar a partir do plano de lugares possíveis e ofertados por uma instituição aos seus membros. Podemos refletir sobre o lugar que o sujeito ocupa na estrutura institucional, determinado pelas relações de poder e determinante de sua condição de liberdade ou aprisionamento (saúde ou doença). (p. 71).
Estar em movimento junto com o usuário é ouvir de outra forma, longe das paredes da instituição, um outro estar no mundo, e como aquele mundo é para ele. É a construção de vinculo baseada no convívio e na espontaneidade.
Considerações Finais
Em tempos difíceis de retrocessos da Reforma Psiquiátrica, a iminência de repetição de práticas manicomiais precisa nos fazer pensar em qual clinica estamos investindo na Rede de Atenção Psicossocial, a partir do que destacamos dois pontos.
Em primeiro lugar, é preciso construir e fortalecer a crítica a respeito do cuidado em saúde mental ter como centralizador a instituição CAPS. Afinal, para a clínica ser reinventada é preciso destruir as barreiras das paredes da instituição. Apresentamos uma outra clínica, fora do setting tradicional, que se faz urgente na Saúde Mental, sem com isso deslegitimar a importância complementar do cuidado "para dentro" do CAPS, com toda potencialidade que ali também é colocada. Como afirma Lima e Yasui (2014), não se trata apenas de pensar os deslocamentos geográficos, mas de problematizar o olhar sobre o território, é pensar quais modos de vida estão sendo produzidos e qual clinica é possível realizar a partir disso.
Conhecer a casa, o território, a rua, a relação dos usuários com isso, é parte essencial da clínica porque nos convoca, profissionais, a entrar em contato com uma subjetividade outra do usuário. Para que possamos atuar na via ampliada de cuidado e da redução de danos precisamos lembrar, constantemente, que nossa intervenção não se baseia no uso ou não uso, mas sim nas subjetividades das pessoas. Precisamos sempre lembrar o que nos alertou o psiquiatra e professor na UNIFESP, Dr. Dariu Xavier da Silveira, que o oposto da dependência não é a abstinência, mas sim a liberdade.
Além disso, estar fora junto com eles é estar em movimento, é construir vida junto com o usuário. O que trata é viver! E é por isso que a clínica em movimento, no território, nos mapas e na cidade, precisa existir, porque enquanto vamos vivendo com o sujeito, ele compartilha e abre a possibilidade de construir, junto conosco, novos agenciamentos de vida, novos caminhos ou ressignificações e sensações para seu percurso.
Assim, a segunda reflexão a ser feita é a respeito da construção dos Projetos Terapêuticos Singulares dos usuários. Lancetti (2015) nos lembra do conceito de PTS como organizador do cuidado, onde é preciso incluir
A família, a biografia, o território geográfico onde a pessoa habita, os recursos desse território e - o que é mais difícil de considerar - o território existencial do usuário e seu contexto. E, por fim, a potencialidade do sujeito individual e coletivo em questão. (p.122).
Muitas vezes o PTS se reduz a uma agenda, porém é preciso ir além, é preciso ofertar novas experiências de vida, oferecer elementos novos para seu repertório de elaborações.
Estar ao lado dos usuários "dentro" e "fora" do CAPS AD, em suas vivências, precisa fazer parte do tratamento. Precisamos manter viva a certeza de que, para a construção de uma sociedade sem manicômios, necessitamos cerzir junto com os usuários trajetórias e clinicas onde a história do sujeito plenamente se realiza a partir das manifestações de sua existência.
Referências
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Recebido em: 28/06/2018
Aprovado em: 04/02/2019