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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versión On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.3 no.1 Rio de Janeiro enero/jun. 2011
ARTIGOS TEMÁTICOS
Da memória familiar
Francisco Antonio Doria
RESUMO
O autor discute, num estilo não acadêmico, os mecanismos de transmissão da memória familiar através de um período de quatro séculos.
Palavras-chave: memória, memória familiar, judeus sefarditas, inconsciente.
ABSTRACT
The author discusses, in a non-academic style, the mechanisms of transmission of family memories through a period of four centuries.
Keywords: memory, family memory, Sephardic Jews, unconscious.
Meu avô morto sobre a cama. Tinha sido carregado, por mamãe e por uma das tias, do récamier que ficava no escritório, ao lado do quarto de vestir, para a cama. Morreu ali mesmo, em sua própria cama, numa alcova, nos apartamentos -assim diziam, e já explico melhor -na casa da vovó, os apartamentos de vovô e vovó. A alcova era ampla, com três portas, grande, sempre fechada; uma porta dava para o grande hall do segundo andar, a porta grande, em arco, abrindo-se para o quarto de vestir dos dois, de vovô e vovó, e a terceira, menor, sempre abertas essas duas, dirigindo-nos a terceira para a varanda dos apartamentos, de onde víamos do alto do segundo andar o jardim, quase um parque, à volta da casa da vovó.
Mamãe depois me contou o que fizeram. Primeiro, vovô morto, lavaram--lhe o peito e o rosto com álcool, "para desinfetar", me disse. Estava de pijama, cochilando no récamier do escritório, quando passou mal e morreu, e de pijama ficou. Envolveram-no, então, num lençol, como mortalha, e o deixaram na cama, debaixo do baldacchino de drapeados de uma cor indefinida, algo entre o beige e o bordô, ao fundo da cama, sobre as cabeceiras, na parede.
Vovô determinara que seu caixão seria de terceira, caixão que parecia feito com tábuas de pinho de caixote de carregar verdura, e foi assim -mamãe se impôs, exigindo que se cumprisse a vontade de vovô -que se fez. A Santa Casa protestou, veio até o provedor falar com mamãe, como é que o Doutor Justo queria ser enterrado num caixão de pinho vagabundo? Sim, mamãe disse, é o que ele queria; deixou escrito, e a gente cumpre. (Estava num papel em cima da grande mesa de trabalho no escritório, tudo determinado, mortalha, caixão de terceira. A lavagem com álcool foi coisa de mamãe, que dizia que corpos deviam ser sempre desinfeccionados.)
Vovô ia ficar exposto em cima da grande mesa do hall de baixo da casa de Copacabana, uma casa imensa, normanda, sombria. Já íamos levar a tal mesa, eu junto com meus primos e mais um dos jardineiros, a mesa para a varanda onde (determinara também a varanda do andar de baixo) queria ser velado, quando chegou a equipe da Santa Casa, trazendo eça e parafernálias outras fúnebres. E, sem crucifixos ou sinais religiosos, pois vovô era agnóstico, "livre pensador" era o termo, era como se autoqualificava, ficou na varanda, exposto como queria, todo amortalhado, rosto coberto "porque é indecente deixar defunto de cara de fora," no demoradíssimo velório que nos encheu a casa de deputados, senadores e ministros. Pois, caixão de terceira ou não, vovô era dos paredros da república. E era de uma família de paredros, filho do Marechal Luiz Mendes de Moraes, Ministro da Guerra no tempo de Afonso Pena, e de Mme la Maréchale, como se dizia então, a bisavó Cecília, que ainda conheci, gaúcha, maragatona, prima de Bento Gonçalves, o farroupilha. E vovô, sobrinho neto do velho Prudente, Prudente de Moraes, Presidente da República, e do Tio Manduca, seu irmão, Manuel de Moraes Barros, senador, presidente de São Paulo.
Assim se foi vovô, corpo lavado, amortalhado, e deixado em sepultura em terra virgem, o que permitia o caixão modesto. Por que tais praxes? Porque como todo mundo com sanguebrasileiro velho, vovô estava cheio de antepassado cristão novo. É assim em Pernambuco, onde os Holandas, Holandas Cavalcantis, e todos os colaterais, descendem de um casal de judeus ricos e influentes, possuindo negócios em Lisboa ao tempo de D. Manuel e de D. João III, Jacob de Holanda e Cosma Mendes, "a Dona Rica". Príncipes von und zu Sayn-Wittgenstein e Condes-Príncipes Schlitz zu Görtz, altezas sereníssimas e excelsas, estão na sua descendência, assim como também, num raminho colateral afim, surge Mme Greffulhe, Elizabeth de Caraman-Chimay, modelo para Mme de Guermantes em `A la Recherche du Temps Perdu. Ou os Suassunas Cavalcantis, descendentes de um mix de judeus e protestantes, hereges pra ninguém botar defeito.
Na Bahia, persiste até hoje a descendência de Heitor Antunes, senhor de engenho que diziam ser do sangue dos Macabeus, da dinastia hasmoneia, que reinava em Jerusalém ao tempo dos romanos e de Cristo. Tradição talvez equivocada, indocumentada afinal, mas é certo que Heitor Antunes e sua mulher Leonor mantinham em casa uma esnoga, sinagoga clandestina. Deles descendem famílias das mais notórias na elite colonial baiana. Na Bahia, ainda, têm sangue judaizante os Costas Dorias, família de meu pai; nos Costas provém do Doutor Mestre Afonso Madeira, que se converte do judaísmo ao catolicismo em 22 de novembro de 1451 (existe o documento que atesta com precisão a data). Doutor em Medicina por Salamanca, físico-mor -ministro da Saúde e médico privado d'El Rei. Seu neto, Fernão Vaz da Costa, casa-se com a genovesa Clemenza Doria, aliás de uma família de cátaros, e iniciam uma vasta descendência de senhores de engenhos e de figurões da administração colonial.
Em São Paulo, o mesmo. Todas as grandes famílias do período colonial têm ancestrais judaizantes, porque dois ou três grandes troncos paulistas, cujo sangue novamente aqui também se dispersa na elite da região, têm clara origem marrana. Dou dois exemplos: dos Vaz de Barros e Pedrosos de Barros descendem os barões e marqueses de Itu, e muito da classe dominante, oligárquica, semibuchesca, paulista de sempre, Paes Lemes, Barros Penteados, Moraes Barros. Pesquisas de Luiz Gustavo de Sillos apontam-lhes origem conversa, judaizante, pois Pedro Vaz de Barros, que se fixa em São Paulo em fins do século XVI, filho de Jerônimo Pedroso e de Joana Vaz, tem duas irmãs, Bernarda e Lucrécia Pedroso, convocadas à inquisição em Portugal, em 1591 e em 1592, por crime de judaísmo.
Outras raízes judengas foram recentemente investigadas por Christiane Alcântara, e corroboradas por Manuel Abranches de Soveral. Trata-se da origem da família dos Bicudos, de S. Paulo. Bicudos ou Beiçudos. Gente de prol nas judiarias, os bairros judeus de Portugal, por determinação régia lá exercem cargos burocráticos no governo dos hebreus portugueses. Os de S. Paulo parecem provir de certo Isaac Bicudo, judeu de Aleppo a serviço de Lourenço Pires de Távora, embaixador português em Roma. Seu sobrinho Matias Bicudo, convertido e tornado frade franciscano, aparece em S. Miguel, nos açores, de onde chegam, pouco depois, em S. Paulo, os primeiros dessa gente, notadamente Antonio Bicudo Carneiro, antepassado dos Bicudos paulistas todos antepassados de meu avô. Isso pode explicar-lhe os rituais, tradicionalmente marranos, de seu sepultamento. Mas, como se deu, como se dá, efetivamente, essa transmissão da memória judaica, das práticas judaizantes, intrafamílias? Vou propor uma hipótese arriscada, mas tentadora: a hipótese de que existe um inconsciente familiar, onde se guardam e se manifestam tais memórias.
Elaboro, agora, a respeito.
É possível que tenha visto esse mecanismo de transmissão da memória inconsciente, ou quase inconsciente, da família em funcionamento com Tia Neta, que era chamada de "A Tia Boa" por meus primos Moraes, em contraste e oposição a mamãe, obsessiva e ansiosa, "A Tia Chata", como diziam meus primos, o que eu muito ressentia; é possível que Tia Neta nos mostrasse esse mecanismo quando nos mandava a todos para a cama, para dormir, à noitinha, e nos dizia e avisava, comportem--se, fiquem quietos, ou a Princesa da Armênia vem de noite puxar os pés de vocês.
A Princesa da Armênia era uma antepassada lá longe, muito longe; inominada, terrível. Imaginava-a uma mulher bem moça, bonita, cabelos pretos encaracolados compridos e pele morena e lábios grossos, mas olhos claros, quase uma Angelina Jolie, vestida como cigana, brincos de argola, um manto sequinado de moedas, manto colorido -e um sorriso malvado, em cuja imagem só muito tempo mais tarde pude perceber as conotações eróticas que fazia, implícitas, inconscientes, sobre aquela mulher moça e bonita e de sorriso malicioso que viria, se mal me comportasse, viria debruçar-se sobre mim de noite, sua boca semiaberta no riso de mulher má, mulher malícia. Assim era a Princesa da Armênia.
Volto ao chão: de onde vinha a história da Princesa da Armênia? Vinha, vem, provém do Livro Velho de Linhagens, livro de genealogias portuguesas do fim do século XIII, e falava da origem da família ancestral, ou suposta ancestral, dos Moraes todos de São Paulo, nas gentes dos antigos senhores de Bragança, ditos Braganções, cujo primeiro antepassado, certo Dom Mendo Alam, teria seduzido e engravidado uma Princesa da Armênia, vindo peregrinar em Santiago de Compostella, e se teria hospedado no mosteiro de Castro de Avelãs, cujo patrono era Dom Mendo.
A história é quase um mito: outros pensam de maneira diferente, mas acho que se trata de um reflexo e reelaboração das raízes armênias do grande presor de Coimbra, esse sim, personagem histórico, autoproclamado Conde de Coimbra em 878, Mendo Guterres, descendente do Conde Ardabasto ou Artavazd, visigodo, mas filho de mulher nobre mamikoniana, mulher de alta nobreza na Armênia. Essa, imagino, a fonte da lenda, ou quase lenda. Algo como as narrativas sobre os Nibelungos, cuja base histórica são as lutas nas cortes dos merovíngios e burgúndios, e que transformaram a dinastia dos Condes Nibelung, senhores de Nivelles (donde seu nome) nos anões do Ring. O ciclo de óperas de Wagner.
Como chegou à Tia Neta essa patacoada? Do Livro Velho, a lenda da Princesa da Armênia passa a todos os livros portugueses de genealogia, e em especial ao de Freire Montarroyo, setecentista, de quem ainda no século XVIII Pedro Taques de Almeida Paes Leme, ao escrever sua Nobiliarquia Paulistana, faz a cópia da supostamente muito antiga linhagem dos Moraes de Antas, a família ancestral em São Paulo. E os elos finais que trazem isso à Tia Neta são simples: Silva Leme, o autor da Genealogia Paulistana, era amigo de meu bisavô Mendes de Moraes e de seus irmãos, e passou-lhes a história familiar, ainda em fins do século XIX.
Esse, o caminho concreto. Mas por que, de tantos ancestrais, ficou para os contos da beira da cama de Tia Neta apenas a imagem, sensual, terrível, plena de malícia, da princesa quase cigana, de lábios carnudos e brincos de argola e véus coloridos com sequins pendurados na beira? Pelo mesmo motivo que se preservaram ritos judaicos ancestrais nessa família de gentios e agnósticos.
A mulher preserva e transmite os mitos e lendas que embasam a unidade simbólica do grupo familiar; os conteúdos do inconsciente familiar. São as mulheres da família as administradoras do patrimônio simbólico íntimo: lembro de minha mãe, eu com sete ou oito anos, me fazendo ler um livro (que tenho até hoje) de história sacra. E me dizendo: é importante você saber a história de Cristo - mas eu sou livre pensadora, não acredito nisso. Essas palavras de mamãe teriam uma profundidade no tempo, no passado da família, que eu nunca suspeitaria, àquele tempo. Perguntome: refletiriam, na verdade, o judaísmo originário da família?
E lembro disso quando recordo que foi mamãe quem lavou com álcool o rosto e o peito de vovô, morto, e depois de lhe ajeitar o pijama com o qual morrera, amortalhou-o e arrumou-o sobre a cama onde sempre dormira, e que lhe serviu de leito fúnebre.
Maria Luiza Delleur cita-me Lacan a respeito. Não vou ser fiel à sua citação, mas digo o que pensei sobre o que me contou. Tais memórias permanecem nos interstícios, nas margens, nas franjas, bordas, de nossa realidade, algo como grumos de poeira que se acumulam nos cantos das estantes, e insistem em crescer, pequenos abscessos abertos, mesmo que os limpemos insistentemente, obsessivamente, cirurgicamente. E esses grumos empoeirados que resistem, se mantêm, tais crescem sempre, ainda que lentamente, e nos trazem o chão simbólico, o sentido originário, primevo, que nos dá a unidade da família, ao menos dessas famílias. Ou talvez de todas?
Um inconsciente que se estrutura sobre o Ewigweibliche (O Eterno Feminino), que sempre nos convoca, nos atrai:
Das Ewigweibliche
zieht uns hinan
O Eterno Feminino
nos leva para cima
NOTAS
1. Cássia Albuquerque et al., Os Cavalcantis, Lulu/Jardim da Casa (2011). Disponível em: http://www.lulu.com/product/paperback/os-cavalcantis/16323012 [ Links ]
2. Christiane Alcântara, Manuel Abranches de Soveral e Maria Luiza Delleur fizeram-me comunicações pessoais.
3. Livro Velho é um texto clássico, fonte manuscrita hoje nos ANTT, Lisboa, Portugal.
Recebido em: 15/12/10
Aprovado em: 31/05/11
Apêndice
Mostro aqui as duas linhas ascendentes de meu avô, nos Barros e nos Bicudos.
Barros
Luiz Mendes de Moraes (1850 -1914), marechal, ministro da Guerra (1909), era filho de Frederico José de Moraes Barros (1825 -1909) e de Maria Mendes; n.p. de José Marcelino de Moraes Barros e de Catarina Maria de Moraes (ver abaixo, nos Bicudos), bn. p. de Fernando Antonio de Figueiró e de Isabel de Barros.
D. Isabel de Barros, filha do cap. Inácio Barbosa de Araújo e de sua mulher D. Maria Leite de Barros. Neta paterna de Gervásio de Amorim Dantas e de sua mulher D. Maria Pais Mendonça.
Neta materna, Isabel de Barros, do capitão Francisco Gonçalves de Oliveira, n. de Viana do Castelo (filho de Pedro González, castelhano, e de sua mulher D. Maria Pires de Oliveira, de Viana), e de sua mulher D. Maria de Barros.
E era D. Maria de Barros filha de Manuel Correia Penteado (filho de Francisco Rodrigues, de alcunha "o penteado", e de sua mulher D. Clara de Miranda), casado Manuel Correia com D. Beatriz de Barros.
Neta materna, D. Maria, de Pedro Vaz de Barros "o moço", n. 1646 e fal. em 1695, e de sua mulher D. Maria Leite de Mesquita.
Por D. Maria Leite, bisneta de Domingos Rodrigues de Mesquita, n. de Torre de Moncorvo (Portugal), que em 1636 casou com Maria Dias, irmã inteira de Fernão Dias Pais, o "governador das esmeraldas", e filhos de Pedro Dias Pais Leme, fal. em 1633, e de sua mulher D. Maria Leite, fal. em 1670 (filha de Pascoal LeiteFurtado, açoreano, e de sua mulher Isabel do Prado).
Pedro Vaz de Barros, "o moço", era n. 1646 e fal. em 1695, filho de Antonio Pedroso de Barros, fal. em 1632, e de Maria Pires de Medeiros, e era n.p. de Pedro Vaz de Barros, "o velho", e de Luzia Leme.
Bicudos
Catarina Maria de Moraes era filha de Manuel Vieira de Brito e de Izabel de Moraes.
Manuel Vieira de Brito, da varonia dos Bicudos de SP. Filho de Gaspar Nunes de Brito, fal. em 1787, e de s.m. D. Isabel Vieira da Silva, bisneta de João de Figueiró e de Maria Ribeiro Furtado.
Neto paterno de Miguel Bicudo de Brito (1681-1749) e de sua mulher D. Ana Maria Nunes, filha de Gaspar Nunes Sarmento.
Bisneto, nessa linha, de Manuel Bicudo de Brito, fal. em 1718, e de sua mulher D. Tomásia de Almeida, filha de Antonio de Almeida Cabral.
Na mesma linha, trineto do capitão João Bicudo de Brito e desua mulher D. Ana Ribeiro de Alvarenga, casados em 1632 em S. Paulo, filha do cap. Francisco de Alvarenga e de s.m. D. Luzia Leme.
Tetraneto, na mesma linha, de Antonio Bicudo, fal. em 1650, e de sua mulher Maria de Brito, filha de Diogo Pires e de sua mulher Isabel de Brito. Teve terras em Carapicuíba e explorou ouro nas faisqueiras do Jaraguá.
Sempre nos Bicudos, 5º neto de Antonio Bicudo Carneiro, ouvidor de S. Paulo em 1585, e de sua mulher Isabel Rodrigues.
6º neto, nos Bicudos, de Vicente Anes Bicudo, atestado na Ribeira Grande em 1548, e casado com Mecia Nunes, filha de Nuno Gonçalves, da Graciosa, e de Mecia Rodrigues Furtado.