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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versión On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.12 no.spe Rio de Janeiro set. 2020

 

ARTIGOS

 

História e mito na Psicanálise

 

History and myth in Psychoanalysis

 

Historia y mito en psicoanálisis

 

 

Ana Maria Rudge

Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida - UVA. E-mail: amrudge@outlook.com

 

 


RESUMO

As relações da história e do mito com a Psicanálise são abordadas. A importância dos mitos na tessitura da Psicanálise é tematizada, não só em relação aos mitos com os quais Freud busca contribuir com as teorias sobre a cultura a partir de descobertas oriundas da clínica psicanalítica, mas também em instrumentos clínicos, como a construção em análise, que são análogos ao valor dos mitos na cultura. A reflexão freudiana sobre a como a história e a Psicanálise coincidem em trabalhar em um tempo que é uma cristalização entre passado e presente, é seguida da observação de que a especificidade epistemológica de cada campo de saber deve ser respeitada em nome do rigor.

Palavras-chave: MITO; HISTÓRIA; INTERDISCIPLINARIDADE.


ABSTRACT

The relationship of history and myth with psychoanalysis is addressed. The importance of myths in the fabric of psychoanalysis is examined, not only in relation to the myths with which Freud seeks to contribute with theories about culture that are based on discoveries from the psychoanalytic clinic, but also in clinical instruments, such as the constructions in analysis, which are analogous to the value of myths in culture. Freud's reflection on how history and psychoanalysis coincide in working in a time that is a crystallization between past and present. The specificity of each field of knowledge is emphasized.

Keywords: MYTH; HISTORY; INTERDISCIPLINARITY.


RESUMEN

Se abordan las relaciones de la historia y del mito con el psicoanálisis. La importancia de los mitos en el tejido del psicoanálisis es examinada, no solo en relación con los mitos con los que Freud busca contribuir con teorías sobre la cultura basadas en los descubrimientos de la clínica psicoanalítica, sino también en instrumentos clínicos, como la construcción bajo análisis, que son análogos al valor de los mitos en la cultura. Freud considera la coincidencia entre la historia y el psicoanálisis, al trabajar en un tiempo que es una cristalización entre el pasado y el presente. Se enfatiza la especificidad epistemológica de cada campo de conocimiento. conocimiento son heterogéneos y que la diferencia debe respetarse en nombre del rigor.

Palabras clave: MITO; HISTORIA; INTERDISCIPLINARIEDAD.


 

 

A relação entre mito e história pode ser abordada em sua diversidade. O mito, embora costume versar sobre origens, não supõe a ambição de constituir um discurso objetivo e comprovado sobre fatos do passado, mas é uma narrativa ficcional. No campo da Psicanálise, entretanto, parece diluir-se a nitidez dessa diferenciação. A bem da verdade, não é apenas no campo da Psicanálise que esta distinção pode ser nebulosa. O historiador E.H. Carr (1982) usa como epígrafe a observação de uma personagem de Jane Austen sobre a História: "Chego a estranhar, muitas vezes, que ela seja tão monótona, pois grande parte dela deve ser invenção".

Freud tratou de indicar àqueles que desejavam exercer a função de analistas que importassem conhecimentos da história das civilizações e da mitologia. Com efeito, a implicação do conceito psicanalítico de recalque originário se sustenta na ideia de que toda a memória de nossa primeira infância é inteiramente fundada em fantasias de desejo com as quais preenchemos retroativamente as lacunas da memória, e relatos que ouvimos de familiares. É certo que, tal como a ciência da História, temos certos documentos dessa fase, como fotos e livros do bebê, mas nenhuma recordação que testemunhe fatos ocorridos. Qualquer narrativa que substitua esse vazio é ficcional, recordação encobridora, mas não arbitrário. Articula-se à fantasia e às pulsões e, em última instância, às primeiras experiências, as mais poderosas, mas anteriores ao advento da linguagem.

O mito fundamental da Psicanálise, conhecido como o mito de Totem e Tabu (Freud, 1912/1913) foi qualificado por Lacan como o único mito moderno. Trata-se da narrativa do assassinato do pai da horda qualificado por Freud de "mito científico", mostrando o alcance que lhe dava, de uma construção ou ficção teórica que o tempo mostrou como sendo de inegável valor. Embora o autor tenha consultado antropólogos com os quais cotejar sua invenção, o mito de Totem e Tabu foi basicamente criado a partir do campo das descobertas em Psicanálise, ou seja, a clínica psicanalítica que o convenceu da importância estrutural do Complexo de Édipo na história de todos.

 

 

No campo da Antropologia, encontramos a concepção do mito como algo vivo, com o poder de conferir significação e valor à existência, fornecendo modelos para o comportamento humano em uma dada cultura. Como mostrou Malinovski (1922), o mito é vital para a cultura porque, longe de ser uma ficção vã, é uma realidade viva à qual se recorre incessantemente, por representar a verdadeira codificação de um saber prático. O mito é justificado por sua função de estruturar a vida presente. É, sem dúvida, uma ficção o relato de algo que não ocorreu na realidade e, entretanto, o mito não deixa de portar sempre um enlace com algo de factual. Ele lida com "o que é supratemporal e permanente, que nunca deixa de ocorrer, e que, como um paradigma, vale para todos os tempos" (Mora, 1988, p. p 2237).

Voltando à Psicanálise, discute-se a partir de algo dito por Freud, se ele considerava que o assassinato do pai efetivamente ocorreu no ponto zero da história da humanidade. Bem advertido estava ele, entretanto, de que os mitos não têm compromisso com a realidade factual da narrativa que os constitui. Um dos indícios disso é o fato de que, em 1915, ele escreve um mito diverso em vários pontos daquele de 1913, mas também sobre as origens da cultura. Esse mito estava em manuscrito descoberto tardiamente e publicado apenas em 1985, "Neuroses de transferência" e, nele, Freud apresenta construções que propõem uma correspondência entre a psicopatologia e o passado filogenético de nossa espécie.

A catástrofe, entendida como condição da representação, constitui um dos pontos de interesse do manuscrito freudiano. Nele, encontramos um mito das origens diverso daquele de Totem e Tabu, mas igualmente fascinante. Enquanto no mito de Totem e Tabu, o assassinato do tirânico chefe da horda, que privava a todos das mulheres e os expulsava, marca a origem da cultura, da moralidade e da religião, o mito de 1915 parte das catástrofes da era glacial que teriam jogado os hominídeos, que até então viviam em harmonia com a natureza, em intensa angústia, fome e desamparo. Só então os primatas erigem um pai da horda, justamente aquele que conseguira certo domínio sobre o mundo, inclusive rudimentos da linguagem. Em troca do seu saber e proteção, entretanto, exigia o domínio absoluto. Nessa forma modificada do mito, o papel do pai como proteção contra a angústia e o desamparo é colocado como precedente ao do pai tirânico e obstáculo às mulheres e ao sexo. Os dois mitos correspondem a uma longa discussão que Freud afirmava sustentar na época, sobre qual seria a primeira, se a angústia real ou a angústia nostálgica, essa de ordem libidinal. Há ainda um terceiro mito importante com o qual Freud retorna às origens da cultura, a do Moisés egípcio, do qual Betty Fuks (2014) soube extrair importante e original trabalho de interpretação, que enriquece o texto freudiano.

Não é apenas no terreno da contribuição da Psicanálise para o estudo da cultura, no entanto, que o valor que Freud concede aos mitos em nosso campo tem lugar, também entre seus trabalhos especialmente concernentes à prática clínica, o mito mostra sua centralidade na epistemologia da Psicanálise.

Que importância atribui Freud às construções em análise? Em um artigo de 1937, um dos seus últimos escritos, o único cujo tema central são as construções em análise, ele procura definir estritamente sua natureza, distinguindo-as das interpretações. É digno de nota que, junto à escrita de Construções em análise, Freud escrevia: O homem Moisés e o monoteísmo, uma construção histórica que desembocou na criação do mito sobre a origem de um povo. Através das Escrituras e do trabalho de egiptólogos de sua época, Freud procurou encontrar os rastros deformados do processo de construção do judaísmo e, para tanto, foi preciso construir a verdade histórica em jogo na religião de Moisés, o egípcio (Fuks, 2014).

Sabe-se que a interpretação é uma intervenção do analista em uma associação, sonho ou ato falhado específicos. Uma ferramenta sobre a qual a Psicanálise, em seus primórdios, desenhou seu campo específico. Quando Freud se viu diante dos impasses do fenômeno de compulsão à repetição no tratamento analítico cria, entretanto, outro procedimento clínico, a construção, para atender ao paciente que repete, como acting out, aquilo que, de alguma forma, o marcou. Trata-se da produzir um fragmento determinado da história do analisando, uma pequena narrativa que visa à investigação de um período de sua infância.

Freud nos apresenta um exemplo da forma que uma construção poderia assumir: "Até x anos, você se considerou o único e irrestrito dono de sua mãe; então veio outro neném e trouxe a você uma grave desilusão. Sua mãe o abandonou por algum tempo e, depois que reapareceu, nunca mais se devotou exclusivamente a você. Seus sentimentos em relação a sua mãe se tornaram ambivalentes, seu pai tomou uma nova importância para você, ...etc." (Freud, 1937/1975, p 261). Nesta curta narrativa, o analista busca atingir uma provável verdade histórica com relação à existência do analisando, e seu romance familiar.

O objetivo do tratamento analítico poderia ser descrito por Freud como um levantamento do recalque. A análise deveria permitir ao analisando lembrar-se de importantes experiências de sua infância. O ideal a que Freud se ateve no início seria o de que um quadro completo de seu passado estivesse disponível à rememoração. Quando escreve, porém, "Construções em análise", esse ideal havia sido há muito abandonado. O texto marca uma descrença na noção de que o processo analítico pode atingir o objetivo de levantar a amnésia infantil; objetivo, aliás, que por muito breve tempo teve lugar na Psicanálise, tendo sido descartado desde que as recordações encobridoras mereceram um artigo (1899), e que a metáfora do "umbigo do sonho", em Interpretação dos Sonhos (1900)1 antecipou no terreno da descoberta clínica o que viria a constituir o conceito de recalque originário, formulado em 1915.

A tarefa do analisando é relembrar quantos fatos possa, mas qual a do analista? Nos sonhos, atos falhos, associações livres, mas principalmente pela repetição na transferência, procura pistas do que desapareceu. Através dessas pistas, traços deixados pelo recalque, procura construir o que está submerso. O papel da construção é inseparável da atividade de investigação do analista.

Freud propõe uma analogia entre o trabalho do analista e o do arqueólogo. A escavação a que este se dedica assemelha-se à atividade do analista em suas construções. Ambos têm que completar com inferências a informação a que têm acesso em suas pesquisas. O analista dispõe, entretanto, de condições mais favoráveis. O arqueólogo escava em busca de restos das edificações que foram destruídas e soterradas. O material de que o analista dispõe, ao contrário, está enterrado no sentido de que se tornou inacessível, mas apenas para o analisando. Para o analista, trata-se de algo do passado, mas que está vivo na repetição e é frequentemente encenado no palco da transferência.

A tarefa de construir o passado é descrita como um vai e vem em que o analista comunica suas inferências, o analisando responde com novas associações, que por sua vez permitirão ao analista novas inferências e assim por diante.

Sem dúvida, o analista pode elaborar construções errôneas. Para abandonar um caminho que se mostrou equivocado, precisa de critérios para avaliar as suas construções, que pertencem ao campo da conjectura. O analista, para decidir do acerto de uma construção, conta apenas com confirmações indiretas que recebe do analisando. A mais conclusiva destas confirmações se dá quando as construções despertam memórias que complementam e ampliam a construção. Isso nem sempre ocorre, porém. Muitas vezes, a construção não evoca memórias e só no decorrer da análise poderá surgir alguma pista quanto ao seu valor.

A boa construção sempre encontra a convicção do paciente, o que não ocorre necessariamente a partir do surgimento das recordações correspondentes. Nesse caso, a convicção do analisando e alguma mudança de posição subjetiva, em que a repetição compulsiva é atenuada, é tudo com o que podemos contar como confirmação e basta para caracterizar o valor da construção.

A introdução da noção de construção reflete duas novas ênfases no pensamento de Freud. A primeira é a desistência de um ideal que se costuma pensar que ele acalentou: recuperar as memórias que desapareceram sob a amnésia infantil. Na verdade, ele não acalentou tal ideal, exceto no que poderia de se chamar de uma pré-história da Psicanálise. A memória, tal como pensada na teoria freudiana, apresenta paradoxos que surpreendem a uma primeira vista. O primeiro diz respeito ao papel estruturante das experiências da primeira infância, que Freud representa metapsicologicamente como uma memória pulsional permanente e inerradicável. Pois essa potência da memória é relativizada pelo fato de que não se expressa em recordações. As primeiras memórias sucumbem inteiramente à amnésia infantil, e toda a nossa ideia do passado é constituída de recordações encobridoras. Como observa Lacan, "o próprio conceito de recordação encobridora mostra a desconfiança do analista de tudo o que a memória pensa que reproduz" (Lacan, 1976, p. 22).

Quanto ao texto de 1899, sobre as recordações encobridoras, ele já esclarece que não havia qualquer esperança ou desejo, por parte do pai da Psicanálise, de recuperar memórias da primeira infância, essas estranhas memórias que são pulsionais e não se atualizam em recordações.

Mesmo se não evoca memórias perdidas, mesmo sendo uma narrativa que, como dizem os italianos, "se não é verdadeira, é bem pensada", a construção é efetiva no tratamento porque, de alguma forma, se articula a uma experiência recalcada. A construção sempre traz algo de verdade histórica; é isso que explica o sentimento de convicção que desperta. Freud chega a comparar as construções aos delírios, que também são tentativas de explicação e cura, e carregam algum fragmento de verdade histórica. Comparação que não deixa dúvidas de que Freud não acredita no poder do fragmento construído de reproduzir o que na verdade ocorreu.

Afinal, sobre o que recai a construção? Esclarece eventos esquecidos, enterrados pela amnésia, ou revela desejos e fantasias recalcados no passado?

Na busca de uma resposta, vamos a um texto freudiano de 1919, 'Bate-se em uma criança', no qual o tema da construção começa a tomar um lugar na teoria. Freud aborda a fantasia de espancamento, ao qual atribui um desenvolvimento histórico. A primeira fase da fantasia pode ser representada pela frase "meu pai bate numa criança". Há uma segunda fase da fantasia, porém, que possui um cunho masoquista, que pode ser expressa na frase "estou sendo espancado por meu pai". Embora seja a mais importante, e a que é acompanhada de mais intenso prazer, esta fase da fantasia não costuma ser recordada nunca. Mais do que isso, parece que "jamais teve uma existência real" (Freud, 1919/1975, p. 185), sendo apenas uma construção da análise. O termo construção aparece, portanto, mostrando-a como uma narrativa que se refere a fantasias produzidas pelo desejo inconsciente, e não a fatos da infância. Não há acesso à rocha do evento que não seja intermediado por fantasias e desejos, este é o reinado da realidade psíquica. Se, nesse mesmo texto, Freud reafirma seu antigo ideal, ao afirmar que a Psicanálise só ocorre quando "tem sucesso em remover a amnésia que esconde do adulto o conhecimento sobre sua infância desde o início..." (Freud,1919, p 183), podemos entender que essa amnésia diz respeito não ao puro evento, mas a fantasias e desejos.

Não poderia ser de outra forma. Desde o abandono da teoria da sedução infantil na etiologia das neuroses, não há mais fatos traumáticos sob os sintomas, mas fantasia, ou uma fantasia fundamental. A natureza da fantasia é ser em si mesma uma interpretação (Freud, 1919, p. 185). No caso do Homem dos Lobos (1918 [1914]), por mais que Freud persiga o acontecimento, acaba por construir uma cena primária que é mítica. Com ela, tenta dar conta dos efeitos sintomáticos que acompanharam a vida do paciente. Desde que atenda a esse propósito, é "indiferente considerar a cena de origem como real ou como uma fantasia primária" (Freud, 1918 [1914], 1975). É seu valor heurístico na compreensão do estado sintomático, assim como seu poder de alterá-lo, que eventualmente confirmará uma construção.

 

 

Há uma nova ênfase no discurso teórico freudiano que se reflete na elaboração da noção de construção. Com essa noção, Freud parece dar uma maior importância à atividade do analista na condução da análise e em seus resultados, do que fazia anteriormente. Assim, afirma que "o trabalho de análise consiste em duas partes bem diferentes; "envolve duas pessoas, a cada uma das quais uma tarefa distinta é atribuída. Pode parecer estranho que um fato tão fundamental não tenha sido assinalado há muito tempo atrás..." (Freud, 1937, p. 258).

Se a rememoração é abandonada por Freud, é porque ele se dá conta de que as narrativas derivadas da análise são construídas tanto pelo analista quanto pelo analisando a partir do que é vivido transferencialmente durante o próprio processo. O trabalho do analista está já incluído no que é construído a título de um quadro do passado. Assim como o mito é um produto social, por ser um elemento importante da cultura, o mesmo se dá com a construção, que é fruto da prática social em que é forjada. Fornece um sentido às reações, ao sofrimento e sintomas do analisando, como o mito com a realidade cultural. A construção não pode ser considerada um mito individual, porque deriva da Psicanálise como uma prática social. É uma produção social, no sentido de que não é criada nem pelo analista nem pelo analisando, não tem autor, mas emerge do processo psicanalítico provendo uma história transferencial com um sentido.

Mircea Eliade (1994) observa como é difícil encontrar uma única definição de mito que satisfaça a todos, por ser o mito uma realidade cultural muito complexa. O mito é a narrativa de uma história fabulosa ou sagrada ocorrida em um passado remoto, relacionada à origem de algo que é uma realidade atual. É a narrativa de uma criação. Pode ser tomado como verdadeiro, sendo acompanhado de convicção, ou compreendido como um relato alegórico. Os ritos vão lado a lado com os mitos, complementando e revelando seu sentido. Encontramos nesses aspectos da função do mito na cultura, uma possível correspondência com as construções em Psicanálise. Se uma reconstrução fiel da realidade do passado é impossível, Freud se contenta com a ideia de que a construção contém apenas um fragmento deste passado. Passa a apreciá-la por seu valor estratégico no tratamento, um valor certificado apenas por seus efeitos.

Os mitos e a história fornecem, ambos, um quadro do passado. São dois caminhos alternativos para a abordagem do passado que não são fáceis de separar. O mesmo acontece com as construções, que combinam memórias do passado com elementos míticos. Esses elementos míticos funcionam como uma moldura que complementa e organiza as memórias, fornecendo um certo sentido para o passado. Sentido que emerge da possibilidade de desvelar como certos desejos estiveram implicados na história de um analisando, desejos que não foram, até então, reconhecidos por ele como capazes de estruturar sua vida e escolhas.

 

História e temporalidade na Psicanálise

O que será o fato histórico? O fato básico com que trabalha o historiador, tal como, por exemplo, a informação: - a Batalha dos Guararapes ocorreu em dois confrontos, em 1648 e 1649, entre os holandeses e os defensores do Império Português. Sobre a verdade desse fato, há documentos. O historiador deve usá-los com exatidão; entretanto, embora zelar por isso seja uma função necessária do historiador, essa não é sua função essencial. Não existem dados sólidos que independam da interpretação do historiador, nem documentos que não tenham sido redigidos por alguém. O historiador atenta para os fatos, seleciona-os e interpreta-os. O presente e o passado estão em questão, o passado representado pelos fatos e o presente pelo historiador. A história, portanto, pode ser definida como um campo em que o saber "se constitui de um processo contínuo de interação entre o historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre o presente e o passado" (Carr, 1982, p. 29).

Embora a Psicanálise e a História sejam campos distintos, ambos envolvem esse diálogo entre passado e presente. No belo texto sobre Leonardo da Vinci (1910), Freud propõe uma analogia entre a Psicanálise e a historiografia. Considera as recordações da infância como fundamentalmente diversas das que correspondem à idade adulta. As memórias da vida adulta são fixadas durante as experiências, tal como a escrita histórica que é crônica dos eventos atuais. Já as recordações da infância são fantasias construídas depois e sofrem amplas deformações, respondendo a tendências posteriores.

Interrogando a origem da escrita da história, Freud dirá que os homens, ao desejarem compreender de onde vieram e como chegaram até o presente, interpretam os traços da antiguidade que sobreviveram nos costumes para criar a história do passado. Esta jamais será um quadro verdadeiro do passado, não só porque muita coisa se perdeu ou sofreu distorção na memória da nação, mas porque a historiografia, como narrativa, não pode deixar de expressar desejos, interesses e crenças do presente

A história que se constrói expressa os desejos atuais e situa-se na confluência do passado com o presente, reordenando em uma segunda instância esse passado. Por que em segunda instância? Porque já é como enlaçado aos acontecimentos e vínculos atuais que esse passado pode atualizar-se, essa simples transferência já significa uma reordenação do passado.

Nesse aspecto, existe uma aproximação entre história e a Psicanálise. Nesta, a noção de Nachträglichkeit, já presente nos primeiros escritos freudianos e que foi destacada por Lacan em sua releitura, define inicialmente uma temporalidade própria à formação dos sintomas neuróticos nos quais as experiências infantis são tomadas como centrais.

A noção de Nachträglichkeit (Freud, 1895) surgiu na Psicanálise para designar o movimento pelo qual uma memória só adquiria a qualidade de traumática bem após o acontecimento. Ainda num período que pode ser qualificado como dos antecedentes da Psicanálise, em que a neurose era atribuída ao abuso sexual da criança, essa experiência não teria efeitos imediatos, mas só com a puberdade e com o advento da sexualidade viria a colorir-se de um valor sexual, o que precipitaria o recalque. O pressuposto desta teoria era que a maturação, fator de ordem biológica, se encarregaria de introduzir a sexualidade na vida do púbere transformando a memória, com o que ela passaria a ser dotada de uma significação sexual antes inexistente.

A contribuição de Lacan ao alertar para o valor da noção foi muito valiosa, já que a tradução do termo para o inglês - deferred action - não foi mantida de forma coerente ao longo dos textos freudianos, mas o termo alemão foi traduzido de formas diversas nos vários contextos e artigos. Esta oscilação de tradução obscureceu o fato de que, no original da obra freudiana, o termo Nachträglichkeit aparece com grande frequência e de forma consistente o suficiente para ficar caracterizado o valor conceitual que Freud lhe atribuía, inapreensível para o leitor das traduções.

Para Laplanche e Pontalis (1967), deferred action não é uma boa tradução para Nachträglichkeit porque sugere que o evento passado exerce seu efeito causal a partir de um adiamento temporal, interpretação da qual discordam. O que o conceito introduz de original é que ocorre uma determinação retroativa, do presente sobre o passado. A ideia de temporalidade aqui introduzida, sem dúvida, representa uma concepção de causalidade diversa da concepção tradicional, que é a de uma ação linear do passado sobre o presente.

Não é necessário, entretanto, atribuir qualquer direção a este movimento causal, seja ele progressivo ou retroativo. A temporalidade em questão, no Brasil traduzida como "só depois" ou "a posteriori", situa não apenas os sintomas, mas todas as formações do inconsciente como produções que se dão na interseção entre presente e passado, como cristalizações em que as experiências recentes e infantis se encontram a partir de alguma analogia ou ponte.

Este esquema temporal formulado na teoria da sedução traumática, resistiu à virada da introdução do conceito de realidade psíquica e da descoberta da sexualidade infantil, e continuou a vigorar depois do abandono da teoria da sedução e do método catártico. Recebeu especial atenção na análise do Homem dos Lobos, em que a cena primária, de ordem traumática, não pode ser lembrada, mas é construída em minúcias pelo analista a partir do sonho dos lobos. Além do mais, seu valor de determinação é considerado independentemente de se ela foi realmente vista, ou se foi construída pelo menino ao observar o coito de animais.

Lacan (1986), em seminário de 19/05/1954, valoriza o momento do acontecimento como uma cunhagem, em um inconsciente não recalcado, de uma cena não dotada de significação, limitada ao domínio imaginário. Quando o menino entra no mundo simbólico, o que foi cunhado sofrerá uma transformação. O trauma, que só intervém a posteriori, é recalcado como núcleo do inconsciente. Este recalcado não será mais integrado ao mundo simbólico do sujeito, mas continuará a falar através de seus sintomas.

Neste mesmo âmbito estrutural, Freud (1923b) retorna a esta temporalidade ao afirmar que ameaças de castração só são dotadas de seu valor traumático a posteriori, quando o menino se depara, pela primeira vez, com o genital feminino com o sinal de menos, que é como pode apreendê-lo inicialmente. Pode então representar a possibilidade de perda do próprio pênis.

A temporalidade Nachträglichkeit é correlativa da importância da experiência infantil na obra freudiana. O acontecimento recente se reforça com a energia latente do recalcado, enquanto este só consegue agir através do recente, o que mantém vivos os rastros, no psiquismo adulto, das experiências infantis. A experiência analítica, para Freud, convence a todos da verdade de que "a criança é pai do adulto" (Freud, 1940, p.187), tal a importância dos primeiros anos de vida.

As analogias e aproximações entre os campos da história e da Psicanálise podem ser férteis, mas as especificidades epistemológicas destes campos do saber não podem ser ignoradas. Peter Gay, em seu grande interesse e simpatia pela Psicanálise, escreveu o artigo "A Psicanálise e o historiador" (Gay,2000), em que tenta absolver a Psicanálise das ácidas críticas que vinha recebendo na época:

Afinal a Psicanálise, assim como a história, concentra-se em compreender o passado, trabalha no sentido de tornar legíveis as pistas ilegíveis e escava sob as superfícies até atingir as camadas ocultas, obscuras e distorcidas pela passagem do tempo ou pela necessidade dos autores - ou do público - de negar verdades desagradáveis. A Psicanálise, tal como a história, é uma investigação empírica que embora guiada pela teoria e apesar de todos os seus procedimentos misteriosos, tem um compromisso com a busca escrupulosa de provas (Gay, 2000 p. 108).

Gay busca aproximar a Psicanálise da ideologia positivista, para torná-la mais defensável do ponto de vista desse modelo de ciência único que consagra a prova, especialmente a experimental, como selo de qualidade.

Freud, entretanto, jamais desejou que a Psicanálise correspondesse a esse ideal. O roteiro de sua investigação o alheava irremediavelmente desta tradição, e ele sabia disso. Ainda em 1909 (Freud, 1909, p.104), ele se desobriga de verificar ou falsificar sua teoria, defendendo a especificidade de sua construção. Diz ele: "A Psicanálise não é uma investigação científica imparcial, mas uma medida terapêutica. Sua essência não é provar nada, mas meramente alterar algo". A Psicanálise é a teoria de uma prática.

Finalmente, é preciso salientar que a especificidade de cada campo de saber exige o cuidado, na pesquisa interdisciplinar, para não transpassar fronteiras prejudicando o rigor no tratamento de cada um deles.

 

Notas

1 Há duas menções do umbigo do sonho no texto, a primeira em nota de rodapé no capítulo 2, a segunda no capítulo 7.

 

Referências

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