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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.47 no.87 São Paulo dic. 2014

 

RESENHAS

 

Crise pseudoepiléptica

 

 

Cynthia Peiter

Psicanalista. Membro do Departamento de Formação em Psicanálise Sedes Sapientiae, mestre em Psicologia pela USP. Membro filiado do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, e autora do livro Adoção - Vínculos e rupturas do abrigo à família adotiva. São Paulo: Zagodoni, 2011. São Paulo. cynthia.p@terra.com.br

 

 

Autora: Berta Hoffmann Azevedo
Editora: Casa do Psicólogo, 2011
Resenhado por: Cynthia Peiter,São Paulo

E por onde anda a histeria de outrora?

Que bela estreia! Assim Renato Mezan refere-se ao trabalho de Berta Hoffmann Azevedo, em seu primeiro livro: Crise pseudoepiléptica.

Temos em mãos uma importante contribuição para a acirrada polêmica sobre patologias contemporâneas. Estaríamos diante de uma nova psicopatologia ou assistimos aos velhos quadros sob novas roupagens? Ou teriam sido nossas teorias que amadureceram, permitindo-nos observar os mesmos velhos fenômenos psíquicos de outras formas?

Berta Azevedo nos oferece um valioso material para incrementar essas discussões, levantando a pergunta: a velha histeria ainda existe?

Iniciamos a leitura com uma interlocução com autores que têm defendido o desaparecimento dos casos da histeria clássica com sua fascinante sintomatologia, vista como fruto de uma época distante, "patrimônio de um tempo passado" (p. 31). Tal perspectiva sustenta que a clínica contemporânea nos desafia com novas patologias referidas muitas vezes a problemáticas pré-edípicas e modos de funcionamento psíquico primitivos, assim como novos modos de adoecer próprios da pós-modernidade, entendidos como decorrência de uma fragilidade da capacidade simbólica.

Já não assistiríamos mais ao cenário de mulheres desmaiando e sendo socorridas por gentis cavalheiros, e estaríamos às voltas com casos de desamparo extremo, depressões e pânico? Pergunta-se um de seus interlocutores.

Frente dessas posições, a autora faz a seguinte indagação: "Todas essas novas patologias devem ser consideradas pela psicanálise como novos fenômenos, ou podem tratar-se, muitas vezes, de disfarces contemporâneos de velhos conhecidos?" (p. 31).

Berta nos oferece a cena a seguir: "o paciente cai no chão, debate-se em movimentos convulsivos, contorce seu corpo, eleva o quadril em movimento em arco de círculo e apresenta momentos de rigidez corporal seguidos de relaxamento" (p. 39).

Trata-se de uma cena frequente no Hospital das Clínicas de São Paulo, onde a autora desenvolveu suas pesquisas junto a intrigantes casos, que, desafiando a neurologia, acabam por ser diagnosticados como pseudoepilépticos.

Um quadro assemelhado a uma crise epiléptica, que conduz o psicanalista a um certo déjà-vu, remetendo-nos ao final do século XIX, nos primórdios dos estudos freudianos sobre a histeria, quando surgiam inquietações similares diante dos intrigantes casos investigados da Clínica Salpêtrière.

Crises pseudoepilépticas? A caracterização pseudo nos inspira certa falsidade, um caráter de simulação, que já circulava em torno dos casos de histeria estudados por Freud e quando a veracidade da dor vivida por tais pacientes parecia desacreditada, afirma Berta Azevedo. De fato, assim como na antiga histeria, o padecimento desses pacientes também não encontra comprovação nos mais especializados exames neurológicos para o diagnóstico da epilepsia, o vídeo-eeg, que deveria justificar a exuberância sintomatológica. E, dessa forma, a medicina é levada a uma nomenclatura um tanto incerta sobre essas crises, recorrendo à indigesta caracterização "pseudo".

Estaríamos diante do espectro das antigas histéricas a assombrar ambulatórios de saúde mental nos hospitais?

Imbuída do mesmo espírito investigativo freudiano que buscava compreensão sobre a organização psicopatológica geradora de tal padecimento, Berta nos reconduz aos caminhos percorridos pelo jovem Sigmund. A partir do instrumental psicanalítico, utiliza-se da escuta atenta que busca por sentidos e imagens não apreensíveis no referido vídeo-eeg, mas possivelmente encenadas na relação transferencial.

Mas Berta mostra-se sabiamente cautelosa, evitando afirmar que tais crises possam ser imediatamente consideradas equivalentes a crises histéricas. Passar de um diagnóstico a outro incorreria no risco de "uma apressada 'pseudocompreensão' do sofrimento" (p. 49), diz ela.

A leitura nos leva a acompanhá-la na busca de alguma verdade psíquica nesse sofrimento nomeado como "pseudo", destacando a complexidade do padecer marcado pelo estigma do falso: "Refiro-me à verdade psíquica, verdade esta que não comporta ser chamada de pseudo, pois é sempre uma verdade do sujeito, singular, a verdade daquele que fala" (p. 25).

E tal como Freud, quer "compreender o que levaria esses pacientes a usarem do corpo como terreno para manifestações de dores psíquicas" (p. 22). Surgem curiosas observações clínicas nos relatos de seus casos.

O primeiro caso apresentado nos conduz a importantes pistas. Marco, menino de 13 anos, evidencia condições presentes na histeria como apresentadas na obra freudiana:

o modo como se apresentaram as relações edípicas e a saída sintomática de Marco pela via do corpo ... a triangulação edípica, a manifestação corporal e a posição subjetiva de Marco são coordenadas que apontam para a pertinência da categoria de histeria para o entendimento do caso e para o auxílio no manejo durante o atendimento. (p. 64)

Berta compreende que o entendimento de Marco como um paciente histérico vai além da observação de seus sintomas. Seu diagnóstico está apoiado "em sua maneira de colocar-se em relação ao desejo de seus pais, mas eles parecem ter surgido como única forma de incluir a sexualidade numa história em que esta, em sua forma viril, era repleta de perigos" (p. 64).

A observação de seus casos vai configurando uma invariante, "o que parece se manter são as dores envolvidas na histeria e o privilégio do corpo como palco para a encenação do que não pode ser colocado em palavras" (p. 174), explica a autora.

Tendo em mãos uma escuta clínica que confirma, na grande maioria de casos, um modo de funcionamento histérico, Berta faz uma revisão teórica do caminho trilhado ao fim do século XIX. Somos conduzidos a uma interessante viagem. Visitamos desde as lições da Salpêtrière e Nancy, reestudando o conceito de trauma, fantasia e realidade psíquica, quando o "sintoma ganha, então, para Freud, o valor de uma mensagem cifrada que precisa de trabalho de tradução" (p. 116).

Berta nos traz a argumentação freudiana para sustentar substancialmente o posicionamento a favor da histeria como um quadro ainda presente na atualidade, não somente em sua forma mais branda, mas também em toda sua riqueza sintomatológica.

Mas, não satisfeita com a visitação ao corpo teórico sobre a histeria, adiciona sua singularidade nesse entendimento. O caso Flora traz novas e perturbadoras observações que se apresentam em seu discurso: "é muito estranho o que acontece comigo ... é como se meu corpo tivesse vontade própria" (p. 126). E assim é introduzida a dimensão do unheimliche, como um elucidativo elemento para ampliar a compreensão do fenômeno pseudoepiléptico - a experiência do estranho expressa no próprio corpo.

A epilepsia já havia sido mencionada por Freud em alguns momentos como um fenômeno que causa estranheza a seu observador. Mas Berta põe em relevo o abalo que o fenômeno evoca no próprio paciente, que tem seu corpo tomado por manifestações incontroláveis e inexplicáveis, para além da vontade de seu comandante.

Flora, sua paciente, traz associações com experiências demoníacas, evocando o horror e o fascínio daquilo que se liga ao sobrenatural. Essas experiências a levam a buscar ajuda em centros espíritas, onde encontra algumas certezas confortadoras que o saber médico não poderia lhe oferecer. Entretanto a analista observa como o não saber dos médicos a sua volta perigosamente permite saídas explicativas ainda mais dissociadas de si mesmo, como as demoníacas. O fio condutor da condição de estranheza abriu portas para a possibilidade de ampliação na compreensão do sintoma de Flora, nos levando a um terreno de representações ligadas ao narcisismo primário e "formações oriundas das épocas primordiais já superadas da vida psíquica" (p. 129). As curiosas alusões a "possessões demoníacas", presentes na fala "algo dá em mim", desvelam o caminho ligado a problemáticas na esfera sexual. E a autora discorre sobre o entendimento freudiano a respeito do fenômeno unheimliche como um material recalcado que retorna, mas não é de todo algo alheio - um velho conhecido, afastado da consciência pelo recalcamento. Assim, as ideias sobre o estranho vetorizam o trabalho analítico, procurando "aproximar o paciente do que lhe é familiar" (p. 131).

Nos últimos capítulos, Berta tece considerações sobre a pertinência de uma patologia ligada a problemáticas sexuais nos dias de hoje, quando a antiga "repressão sexual" teria caído em desuso. E afirma que a sexualidade à qual se refere, e que está na raiz do sintoma histérico, é a sexualidade infantil, incestuosa e recalcada à qual o sintoma histérico encontra-se atrelado: "é no Complexo de Édipo que encontramos a fonte dos desejos proibidos que participam do conflito histérico e que o sujeito colocará em jogo..." (p. 158).

Há ainda um diálogo importante com Bollas, Green e Laplanche ao questionar o que parece uma tendência presente entre autores contemporâneos, em que problemáticas pré-edípicas se sobrepõem à constelação edípica. Traz a irônica questão de Green quando indaga se a sexualidade ainda tem a ver com a psicanálise e desenvolve um ponto de vista segundo o qual esses movimentos de dessexualização das teorias psicanalíticas trazem dificuldades ao reconhecimento da histeria nos quadros clínicos contemporâneos.

Finalizando, a autora leva em consideração a existência de novas formas de padecimento humano ou até mesmo de novas patologias derivadas das mudanças sociopolítico-culturais. Mas acredita que isso não deva ocupar o lugar dos quadros já conhecidos: "mudar o figurino não quer dizer mudar o mais íntimo da trama psíquica" (p. 31). No caso da histeria, sua experiência clínica evidencia que este é um quadro não somente ainda presente, mas que acima de tudo merece ser escutado psicanaliticamente. E, dessa forma, busca recuperar o estatuto de dignidade a esses tipos de sofrimento psíquico, repatriando-os de volta ao campo psicanalítico, sua "terra de origem" (p. 33).

 

 

Recebido em: 22/5/2014
Aceito em: 12/8/2014

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