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Jornal de Psicanálise
versión impresa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo jun. 2017
RESENHAS
Breve introdução a algumas ideias de Bion
Luís Fernando de Nóbrega
Membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, São Paulo. luisfnobrega@terra.com.br
Autor: Isaias Kirschbaum
Editora: Blucher, São Paulo, 2017
Resenhado por: Luís Fernando de Nóbrega, São Paulo
O que podemos observar nesse livro é a oportunidade do primeiro contato com a obra de Bion, por meio de um profissional que tem essas ideias já encarnadas, fazendo parte de sua própria pessoa. Também podemos perceber que Isaias, com muitos anos de prática, tem certas opiniões formadas, não como dogmas ou verdades estabelecidas, mas que funcionam muito mais como enquadres e balizamentos daquilo que ele considera seu campo de trabalho, o desconhecido.
O livro acompanha suas aulas, ministradas para profissionais jovens ou não, e dá-nos a oportunidade de sermos apresentados a várias ideias e concepções que o autor tem da obra de Bion. Para os novatos, é uma introdução ao pensamento de Bion, para os outros, uma oportunidade de reflexão.
Para nós, psicanalistas, que temos a necessidade de nos submeter ao próprio processo, fica evidente que aquilo que descobrimos de nós mesmos vai se tornando nosso instrumento de trabalho: principalmente nossa própria pessoa. Numa análise deve surgir a própria vida real.
Apresenta-nos o que tem sido chamado de "alfabetização": a transformação de elementos beta em alfa e a introdução dos colegas estudantes na terminologia e conceitos de Bion.
No capítulo "A in-digestão mental", Isaias utiliza o modelo médico de como o alimento pode entrar na corrente sanguínea, como o estômago, duodeno e pâncreas precisam fazer seu trabalho neste processo, comparando-o com o processo psicanalítico, e, com seu humor peculiar, nos dá a péssima notícia de que não sabemos qual é a enzima que em psicanálise permite a "digestão", ou seja, a elaboração dos processos mentais.
Apresenta-nos a função alfa, um nome para algo que não sabemos o que é, mas que trabalharia sobre os aspectos sensoriais e emocionais da experiência, fazendo uma espécie de "digestão" dela. Os elementos, antes de esses processamentos ocorrerem, são chamados de elementos beta. Acontecendo a "digestão-elaboração", a pessoa poderá também armazenar e "esquecer" provisoriamente o que viveu, podendo recordar quando necessário.
No capítulo "Ler é preciso, entender não é preciso" é enfatizado que uma coisa é falar, discutir, conversar a respeito de psicanálise, outra é submeter-se à experiência, seja deitado no divã, ou sentado atrás do cliente. Enfaticamente, Isaias nos diz: leiam, mas não fiquem querendo entender, apenas leiam. O que vai interessar no encontro dos alunos e Isaias são as associações, ideias, pensamentos e dúvidas que podem surgir. É destacado que o que importa para Bion é a clínica. Sugestão de Isaias: leiam os pacientes, deixem os livros de lado. Para encerrar esse capítulo, a diferença operada por Bion: o elemento beta é consciente, a função alfa transforma o elemento beta em alfa, que é inconsciente. O contrário de Freud, que considerava fazer o que é inconsciente ser consciente.
Em "É estranho? Observe, observe e observe", sinaliza que se você notar no paciente uma palavra, um modo de respirar, um soluço, uma contração facial, enfim, algo estranho, isso é importante. O paciente está sinalizando algo que precisa ser investigado. Surge uma situação clínica em que uma paciente conta que foi abusada pelo pai quando pequena. Isaias sugere a questão: o que o analista está fazendo para que a cliente se lembre desse assunto? Está comunicando que está se sentindo abusada. Pode-se considerar que falar da intimidade de alguém é um abuso e se poderia abrir uma possibilidade para se conversar sobre isso, dessa fantasia de que o terapeuta é um sádico, produzindo sofrimento na paciente. A descoberta da fantasia por Freud, nos diz Isaias, é o marco do início da psicanálise. O que precisa ser investigado são as fantasias, não os fatos.
Se a "misteriosa função alfa" (outro capítulo do livro) não opera, as coisas ficam no concreto, podendo aparecer o acting out, sintomas psicossomáticos, ou identificações projetivas maciças. O mental está fora da pessoa. Por exemplo, poderíamos deduzir de nossas observações que o paciente está com ciúmes de outra pessoa. Assim, acompanhamos no livro os diversos conceitos que Bion traz, e o próximo é o de preconcepção: o bebê tem uma preconcepção do peito, ou seja, uma expectativa de algo que inicialmente o bebê não sabe o que é. Encontrando o peito, o bebê realiza aquilo que era expectativa. Temos aqui o conceito de Realização: o encontro com o objeto que satisfaz.
Quando a mãe fala ao bebê "a mamãe vai dar o peito", repetidas vezes, o bebê forma uma Concepção, ou um Conceito de peito. Se não encontra, ele se frustra, e pode tolerar ou não essa frustração. Se tolerar, criam-se pensamentos. Se não tolerar, formam-se elementos beta, que precisará expulsar. Se a mãe puder "sonhar" a necessidade do bebê, usar sua capacidade de rêverie, ela cria um continente para poder conter, por exemplo, a angústia, o choro, o que propicia à função alfa desenvolver-se, podendo processar os elementos beta. Temos segundo Isaias os termos "função", "fator", "preconcepção" e "realização", com os quais podemos ler todos os trabalhos de Bion.
Em "Transformação em K x Transformação em O", chegamos ao conceito de Transformação. Para Bion, diz Isaias, transferência é como o paciente transforma em sua mente a relação entre ele e o terapeuta, e expõe os diferentes tipos de transferência que Bion considera. Quando observamos ao paciente que ele está expressando ciúmes, podemos ter uma transformação em conhecimento. O paciente é apresentado a algo dele mesmo que ele não conhecia. Isso é um degrau nesse processo de conhecimento. O outro degrau é "ser". Bion chama isso de Transformação em "O". O desafio em psicanálise não é conhecer a si mesmo, é ser.
Em "Fantasia e realidade", Isaias considera que o mundo mental funciona em dois registros, em dois planos, fantasia e realidade, o tempo todo! Com o cliente fazemos uma hipótese, que é a nossa fantasia, e precisamos testar essa nossa hipótese. Isto pode levar a um aprendizado, que faz com que o cliente sinta que vale voltar para outra sessão. É a busca da verdade, que Bion considera o alimento da mente, a verdade daquela pessoa em particular, que pode ser utilizada para crescer.
Em "Fantasia e elemento onírico", Isaias estuda como processamos as experiências emocionais, por meio da função alfa, seja acordados ou dormindo, para se transformarem em elementos oníricos. O elemento onírico é utilizado para fantasiar. Isaias aponta aqui uma discordância entre Bion e Klein, pois, para esta, a capacidade de fantasiar é inata e, em Bion, é preciso que a função alfa esteja operando, provavelmente logo nas primeiras semanas de vida. A capacidade de fantasiar depende da função alfa, e para o indivíduo desenvolver esta função precisará de uma relação inicial, que é a mãe ou quem possa fazer a função de continência e nomeação das vivências iniciais.
"Formas de apresentação de hostilidade edípica" traz o conceito de peito, que é, em Klein, aquilo que cuida do bebê, alimenta e nomeia o que ele experimenta. O pênis seria a contenção, aquilo que dá consistência ajudando no desenvolvimento. O ódio é provocado pelo sentimento de dependência, depender de quem se ama, de quem me cuida.
Em "Continuidade e diferenças do eixo Freud→Klein→Bion", sua opinião é que Bion continua o trabalho dos precursores, e o expande. Há a necessidade de que os conteúdos mentais sejam contidos e transformados para estarem disponíveis ao pensamento, como alimento para a mente. Na expansão de Bion, o que importa é qual a verdade da pessoa, e tentarmos apresentá-la a ela mesma. Realidade, verdade e amor, em psicanálise, são sinônimos, diz Isaias. O método utilizado é ajudar o paciente a fantasiar. Neste processo faremos desconstruções das teorias do paciente, do que ele acha que sabe, e isso dói. O desenvolvimento naturalmente produz sofrimento, a dor é inerente.
Um assunto que ocupa o autor, já há certo tempo, é a banalização. A pós-modernidade tem-nos trazido cada vez mais a situação de que a vida ficou algo sem importância, sem sentido, sem valor... a quantidade de estímulos é enorme e, para que sejam processados, é necessária a relação, o relacionamento pessoa com pessoa. Aqui entram os nossos encontros na sala de consultório, em que também temos a vida, embora com limitações.
Chegamos a "Memória e experiência não processada", em que é enfatizado o apego ao princípio do prazer, e como este ignora a realidade. O ser humano é muito primitivo, e muitos de seus recursos não se desenvolveram ou talvez nunca possam desenvolver-se. O ódio surge desde os inícios da vida pós-natal, o amor precisa ser desenvolvido gradativamente, podendo atingir a gratidão.
"Expressões e manifestações de transtornos de pensamento" começa com o humor de Isaias, que brinca com o fato de a certeza ser um transtorno de pensamento. Brinca a respeito de uma situação clínica, dizendo que, se o paciente souber como controlar a ansiedade, poderá contar ao analista como fazer...
"Preconcepção e pensamento" apresenta a retomada por Bion do texto de Freud a respeito do impulso de ir para uma ação, diretamente, um acting out ou, ao contrário, permitir o aparecimento de um pensamento, protelando a impulsividade. Bion destaca a diferença entre pensar e pensamento. Pensamento é o que já existe. Pensar é criar um pensamento, que é uma abstração, um símbolo, e define que são os pensamentos que forçam a constituição de um aparelho para pensar. Uma inversão nas ideias clássicas a respeito, que consideram ser o pensar algo pronto para lidar com os pensamentos.
O pensamento vem da ausência, do não encontro com a satisfação e com o objeto que satisfaz. A concepção é prazerosa, surge do encontro com o objeto que satisfaz. Isso deixa em destaque a ideia do aprender com a experiência em Bion, e evidencia como a capacidade de tolerar ou não a frustração é individual.
Isaias passeia ainda pelo "pensamento inconsciente" (com a verdade, embora dolorosa, a pessoa vai poder fazer alguma coisa, com as mentiras não), fala-nos da tela beta (como o paciente usa as pessoas), a possibilidade de sonhar os acontecimentos da sessão, a fragilidade e a vulnerabilidade diante do desconhecido, a cesura... até chegar mais recentemente à detecção, na obra de Bion, de uma instância moral primitiva, moralista, não derivada de experiências e nomeada como "consciência moral primitiva", diferentemente do que Freud já havia apontado e chamado de superego, que é baseado em códigos morais estabelecidos pela cultura vigente e baseado nas experiências reais da pessoa.
Termino com a observação de que podemos acompanhar ao longo do tempo da existência humana que, em tempos antigos e iniciais, o indivíduo era levado e orientado pelos deuses. A partir de Shakespeare, há o conflito interno, entre as forças internas no indivíduo, e, com a psicanálise, especificamente com Bion, a possibilidade de abrir-se para o novo, o desconhecido.
Recebido em: 5/5/2017
Aceito em: 5/5/2017