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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dic. 2018

 

INTERFACE COM A CULTURA

 

A recriação da mãe winnicottiana: o gesto espontâneo ameaçado1

 

The recreating of the winnicottian mother: the threatened spontaneous gesture

 

La recreación de la madre winnicottiana: el gesto espontáneo amenazado

 

La réinvention de la mère winnicottienne: le geste spontané menacé

 

 

Silvia Lobo

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo. sl.silvialobo@gmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho traz uma inquietação quanto ao destino dos bebês. Winnicott assinala que, para a mãe sair-se bem em sua tarefa, basta-lhe ser uma mulher comum. Não precisa ser inteligente, não necessita ser culta, nem assessorada, e menos ainda ser atrapalhada por teorias ou prescrições. A devoção materna basta para permitir a seus bebês que sigam espontâneos e capazes de uma expressividade própria. Hoje, contudo, essa mãe sobre a qual aprendemos a pensar na constituição do humano, que com sua existência e seus cuidados detém a função especial de apresentar o mundo externo ao bebê, tornando possível a ilusão, está em vias de desaparecimento. Deu-se uma ruptura nesse edifício sólido, coerentemente construído e experienciado, da antiga e preciosa unidade de mães-bebês-ambiente, que, ameaçada, corre risco de extinção. Assim, como pensar a experiência de maternagem constituinte do gesto espontâneo nas condições de busca e consolidação dos novos espaços ocupados pela mulher nas sociedades modernas? Como prescindir dela? Como receber os bebês que estão chegando? Donde recriar a mãe pensada por Winnicott?

Palavras-chave: modernidade, maternagem ameaçada, novos cuidadores.


ABSTRACT

This work brings a concern about the destiny of babies. Winnicott points out that for a mother to do well in her task, she simply needs to be an ordinary woman. She does not have to be intelligent; she does not need to be educated, advised or let alone be muddled by theories or prescriptions. The maternal devotion is enough to allow their babies to remain spontaneous and able to develop their own expressiveness.
Today, however, this mother who we have learned to think about in the constitution of what is human, whose existence and care have detained the special function of presenting the external world to the baby, making illusion possible, is in the process of disappearing. There has been a rupture in this solid and coherently constructed building that lived on the old and accurate unit of mothers-babies-environment, which is endangered, threatened of extinction.
Thus, how can we think of the experience of motherhood constituted in the spontaneous gesture in the conditions of a search for consolidation of new spaces occupied by women in modern societies? How to do without it? How to welcome the babies who are coming? Where can we recreate the mother conceived by Winnicott?

Keywords: modernity, threatened motherhood, new caregivers


RESUMEN

El presente trabajo presenta una inquietud al respecto del destino de los bebés. Winnicott señala que, para que a la madre le salga bien su función, es suficiente con que ella sea una mujer común. No es necesario que sea inteligente, no precisa ser culta ni asesorada y menos todavía tener que ser molestada por teorías y prescripciones. La dedicación materna es lo bastante para permitir que el bebé siga siendo espontáneo y capaz de tener una expresividad propia.
Sin embargo, hoy en día, esa madre sobre la que aprendemos a pensar en la constitución de lo humano, que con su existencia y sus cuidados ejerce la función especial de presentarle el mundo externo a su bebé, haciendo posible así la ilusión, esta madre está en vías de desaparición. Se ha dado una ruptura en el edificio sólido, coherentemente construido y vivenciado de la antigua y preciosa unidad madre-bebé-ambiente, que al estar amenazada corre el peligro de extinguirse. De esta manera, ¿cómo podemos pensar el ejercicio de la experiencia de maternaje que es constitutiva del gesto espontáneo en las condiciones de búsqueda y consolidación de nuevos espacios ocupados por la mujer en las sociedades modernas? ¿Se puede prescindir de ellas? ¿Cómo recibir a los bebés que están llegando? ¿Desde dónde se puede recrear a la madre que ha sido pensada por Winnicott?

Palabras clave: modernidad, maternaje amenazado, novos cuidadores


RÉSUMÉ

Cet article part d'une certaine inquiétation quant à l'avenir des bébés. Pour que la mère mène à bien sa tâche, souligne Winnicott, il ne lui suffit que d'être une "femme ordinaire". Elle n'a pas besoin d'être intelligente, d'avoir reçu une bonne éducation, d'être conseillée et encore moins d'être encombrée par des théories ou des prescriptions. Sa seule dévotion permettrait à son bébé d'être un sujet spontané et capable de manifester sa propre expressivité.
Aujourd'hui toutefois cette mère - laquelle nous disons être à la base de la constitution de l'humain et qui, avec son existence et ses soins, a pour fonction spéciale de présenter le monde extérieur au bébé, lui permettant de rêver - est en voie de disparition. Il y a eu une rupture dans cette "construction solide", et érigée de manière cohérente, de l'ancienne et précieuse unité mère-bébé-environnement; elle est menacée à présent, voire en danger d'extinction.
Comment peut-on alors penser l'expérience de la maternité [maternagem], qui constitue ce geste spontané, dans des conditions de recherche et d'occupation de nouveaux espaces par les femmes dans les sociétés modernes? Comment s'en passer? Comment "accueillir" les bébés qui arrivent? Comment réinventer la mère pensée par Winnicott?

Mots-clés: modernité, maternité menacée, nouveaux soignants


 

 

sonho
Deixa penetrar a
raiz no centro de tua
alma
Aspira a seiva da
fonte infinita de teu
inconsciente e
Conserva teu verdor.
(Winnicott, 1982, p. 9)

Este trabalho traz uma inquietação quanto ao destino dos bebês, e em razão dela se autoriza um apelo. Parte da observação de um largo grupo de pessoas, mas não as generaliza.

Winnicott assinala que, para a mãe sair-se bem em sua tarefa, basta-lhe ser uma mulher comum. Não precisa ser inteligente, não necessita ser assessorada e menos ainda ser atrapalhada por teorias ou prescrições. A devoção materna basta para permitir a seus bebês que sigam espontâneos e capazes de uma expressividade própria.

A mãe dos inícios não precisa ser culta e nela não se busca romantismo, mas capacidade de identificação; dela se espera que saiba cuidar de seu bebê simplesmente por fazer uso dos recursos de mulher: sua biologia, sua sensibilidade feminina, seu amor e sua adaptação ao ambiente em que está incluída.

Essas características tornam a mãe consciente das necessidades do bebê, a ponto de fazê-la entregar algo mais ou menos no lugar certo e na hora certa. Experiência que, se repetida diversas vezes, oferece ao bebê a constância suficiente para criar a ilusão necessária, nos inícios, de estar se fazendo em um mundo bom, mesmo que nem sempre justo, nem sempre comum, nem sempre adaptado.

Ainda que assim seja, a adaptação à necessidade nunca é completa, por mais dotadas que sejam as mulheres comuns, por vocação natural, pelos recursos sensíveis que a própria gravidez deflagra, e passa a ser dos bebês, muitas vezes, a missão de fazer a "conta de chegar", pelo uso da capacidade intelectual que desde cedo conseguem usar. Bebês ajudam suas mães a irem se fazendo suficientes.

De fato, a clínica psicanalítica e os anos de vida permitem conhecer pessoas, já crescidas e a crescer, nascidas de mulheres não tão boas e não necessariamente inteligentes que, na condição de mães comuns, despreocupadas no exercício da maternidade, apresentam-se capazes de oferecer a seus bebês condições afetuosas para estimulá-los a se apresentar com contribuições pessoais, por vezes, únicas.

Contudo, a clínica psicanalítica e os anos de vida também permitem conhecer pessoas, já crescidas e a crescer, muito prejudicadas emocionalmente, nascidas de boas mulheres, por vezes evidentemente inteligentes, que não foram suficientes para se identificarem com os filhos e estarem atentas e disponíveis às suas necessidades, sobretudo, quando bebês. Mulheres que não puderam assumir as funções defensivas e depressivas para que os pequenos recém-chegados seguissem confiantes e singulares em seu caminho de desenvolvimento.

Isso faz pensar que, curiosamente, há boas mães que não são boas mulheres e há boas mulheres que não são boas mães. O território da maternidade abriga o mistério da subjetividade daquelas que se tornam mães. Vivência secreta inusitada que lhes revela a maternagem que abrigam, até então insuspeitada, e que, por vezes, revela-se somente quando seus bebês chegam ao mundo. Território desconhecido que traz revelações, até mesmo assombros, sobre as mulheres-mães que as precederam e a mãe que estão podendo ser.

Mulheres que quando mães se apercebem não serem as mesmas para aqueles que delas nasceram e, por vezes, a suficiência materna esperada não se faz possível para um dos filhos ou para todos eles. Por vezes, não conseguem ser mães no interesse e no cuidado, não entendem o que lhes é pedido, por mais que a biologia as configure, por mais que o meio as apoie, por mais que filhas e filhos as ajudem, por mais que se aflijam por isso. Algumas se constrangem diante dessa impossibilidade, outras não. Não abortam os bebês, mas o gesto. E quando não o matam, tornam-no ameaçado.

Martha Freud ilustra essa saga ao rememorar a mãe que fora para Anna. [Em suas palavras, conta que] diferentemente das outras, essa última gravidez fora-lhe bastante difícil, e, assim que a criança nasceu, afastou-se dela. Sabia que não era certo e o confessa com dificuldade. Sabia que uma boa mãe jamais agiria assim, mas estava acima de suas forças.

Não aguentava mais e nada sentia por aquela pequenina, a não ser repulsa. Anna não teve ama de leite, já nem se lembra do porquê. Ficou sob a guarda de uma nova governanta, que deve ter sentido como aquela criança era estranha à própria mãe.

Martha descobriu com surpresa como Sigmund podia ser um pai atento e carinhoso; desde o começo, Anna recebeu dele um tratamento especial, e Martha, como mãe, considerou que talvez ele desejasse, desse modo, reparar o mal que ela fazia à filha repelindo-a. (Rosen, 2008, p. 46)

A falta dessa pessoa vital exige, daqueles que dela dependem, estratégias de salvamento estabelecidas precocemente na vida, sem recursos perceptivos para engendrá-las com acerto.

O sentimento de abandono provém não só de crianças sem adultos zelosos que cuidem delas, mas também de adultos incapazes de protegê-las da voracidade e da insaciedade que as habita.

Assim são gestados os sintomas de desamparo e de ansiedade, assim são acionados os alarmes de perigo de um entorno não confiável para viver, assim é montado o cenário da falsa existência, do eu que se apresenta com sabedoria na forma de precocidade, autonomia, sagacidade, mas que guarda em seu íntimo o terror da orfandade existencial.

Crianças ansiosas, porque alertas, permanentemente em vigília, cujo gesto se expressa na ausência de espontaneidade, no desassossego paranoide, e delas a criatividade escapa.

Sem poder contar com as funções do ambiente, o bebê-criança emprega seu intelecto para transformar-se na mãe, tornando a mãe que sente inexistente desnecessária.

Desse modo, constituir-se em uma unidade com a mãe-ambiente é uma conquista; sentir que inventa o mundo de que necessita e o encontra é uma vitória, espécie de magia, que a ilusão possibilita. Muitos a realizam, com mais ou menos percalços, outros não.

Winnicott (1990) enfatiza que unidade dos inícios faz-se em processo, com a ajuda de um meio ambiente adaptativo, e exige tempo. Não chega pronta, mas é fruto do trabalho de encontro dos bebês com o entorno que os recebe e onde o segredo da porta de entrada está nas mãos e no coração da mãe que os acolhe. A mágica do gesto espontâneo talvez seja menos espontânea do que temos vindo a pensar, tanto do ponto de vista psíquico como do social.

Ao longo dos tempos e das culturas, configurou-se de diferentes maneiras a ideia de mãe e do que era esperado da mulher, atribuindo-lhe afetos e funções distintas em cada momento, a serviço do humano e das necessidades sociais.

A história contemporânea nos permitiu pensar a caracterização da mãe suficientemente boa em um momento da vida social em que a guerra findara, os soldados eram reintegrados ao trabalho produtivo e as mulheres, que os substituíram no tempo da batalha, retornaram a casa.

Para alguns líderes da emancipação feminina, esse foi um período de retrocesso do que fora obtido pelas mulheres dentro da sociedade civil no período da guerra, chamando de conservadores aqueles que, em suas reflexões, fortaleceram esse retorno. Winnicott e a defesa da importância do cuidado contínuo na relação mãe-bebê, como condição de saúde mental, foi envolvido nesse julgamento.

A crítica não o intimidou, e ao escrever, insistiu:

Cabe ao pai tornar-se o agente protetor que libera a mãe para que esta se dedique ao bebê. Assim ela... é poupada da necessidade de voltar-se para fora para lidar com o mundo que a cerca. E deste modo... pertence à mãe a estabilidade da casa e ao pai pertence a vivacidade das ruas. (Winnicott citado por Outeiral, 1997, pp. 209-210)

A polêmica criada, porém, não se sustentou diante do fato de que, para as mulheres, ter vivido a experiência de suficiência fora de casa durante o tempo da guerra lhes possibilitou uma mudança irreversível em sua subjetividade e em sua atuação na vida; permitiu que socialmente se abrisse a possibilidade de mulheres se verem com o potencial de criatividade, força e coragem que delas emergiu naquela oportunidade; perceberem-se maiores do que se sabiam, mais ricas em recursos do que se imaginavam e, sobretudo, necessárias. Orgulhosamente.

Esse reconhecimento, como um renascer, afetou tanto as mulheres que se mantiveram no campo do trabalho quanto as que voltaram para casa. Muitas destas, ao se dedicarem ao cuidado do lar, foram investidas e se investiram de poder e valor.

Por essa perspectiva, Winnicott validou sua contribuição, pois com suas ideias ofereceu às mulheres de então um reino e um reinado que se estendeu por décadas.

Tornou-as, junto a seus bebês e dentro de um ambiente, responsáveis pela ilusão, pela constituição do self verdadeiro, do gesto espontâneo; aquelas que recebem o ser que chega ao mundo, o fortalecem de esperança e o humanizam; mulheres que gestam autonomia nos que iniciaram seu caminho em estado de profunda dependência.

Por mais de um século, esse triunvirato funcionou, e mulheres exerceram a missão de mães com respeito e enobrecimento, umas mais, outras menos; os bebês nasceram e as tiveram por bem perto; contudo, os dias de hoje nos impõem um desafio.

Deu-se uma ruptura nesse edifício sólido, coerentemente construído e experienciado, da antiga e preciosa unidade de mães-bebês-ambiente, que, ameaçada, corre risco de extinção. A mãe sobre a qual aprendemos a pensar na constituição do humano, que com sua existência e seus cuidados detém a função especial de apresentar o mundo externo ao bebê, tornando possível a ilusão, está em vias de desaparecimento.

O capitalismo moderno tem sequestrado as mulheres de dentro da casa, e a demanda pelo trabalho feminino cresce em ritmo irrefreável, fazendo parte de um movimento global de valorização e reconhecimento que se impõe à desqualificação e ao preconceito que incidiram sobre as mulheres em recente passado.

As famílias têm tido as mães alternadamente adaptativas e não adaptativas, preocupadas ora com os filhos, ora com as coisas do mundo, que lhes cobra responsabilidade, dedicação e tempo; a relação contínua de filhos com uma pessoa que deles goste de modo comum está sendo substituída por mulheres fragmentadas, multiplicadas em várias, de tal modo que bebês e crianças experimentam uma complexidade, em vez da simplicidade no cuidado físico e no contato emocional; a casa torna-se lugar de passagem, de baixa permanência, e a administração e o cuidado dos que lá estão passam a ser feitos por pessoas, mais ou menos profissionais.

O período dedicado à maternagem é encurtado, bebês são introduzidos cada vez mais cedo nas instituições e nelas adquirem o aprendizado para a convivência social; as crianças, à medida que crescem, têm seus dias comprometidos com mais e mais atividades, cujo sentir é substituído pelo agir que, em tese, deve prepará-las para um futuro competitivo e de sucesso, tendo na brincadeira, por companhia, instrumentos eletrônicos, e, não poucas vezes, mais nada nem ninguém ao lado.

A solidão das crianças é um fato dramático da modernidade, traz com ela o sentimento de futilidade, um presente sem futuro, um futuro sem sentido por existir.

Assim, como pensar a experiência de maternagem constituinte do gesto espontâneo nas condições de busca e consolidação dos novos espaços ocupados pela mulher nas sociedades modernas? Como prescindir dela? Como receber os bebês que estão chegando? Donde recriar a mãe pensada por Winnicott?

Mulheres e bebês, cada um a seu modo, lutam por existir, e sobre eles pairam ameaças distintas de aprisionamento e morte, reais e poderosas. Há presente em ambos o medo de aniquilação; por parte das mulheres, a memória irremovível do caminho identitário tantas e tantas vezes interceptado; por parte dos pequenos, o terror permanente de ter interrompido seu trajeto de desenvolvimento.

Não se trata de cerceá-los, fazer propostas sedutoras de renúncias, contenções, adiamentos em nome de premiações reais ou imaginárias, ambos anseiam por algo sagrado: a existência no mundo com autonomia, desejos próprios e a expressão de necessidades vitais.

Mães e os que delas nasceram, cada qual a seu modo, têm a gerir a gratificação das conquistas e a dor da separação, pois com tristeza, na busca da própria existência, distanciam-se em seus caminhos. Os sintomas de nosso tempo denunciam buracos de um momento histórico em transição que avança em direção a algo que desconhecemos.

Poderíamos argumentar que foi dessas dores humanas que a psicanálise nasceu e se constituiu desde sempre, e seria verdade, mas talvez pudéssemos considerar que hoje, mais que nas últimas décadas, a euforia diante das novas liberdades vem junto com o desassossego diante da opressão social que aparece na exigência de exposição dos segredos, dos sonhos mais acalentados, do avesso vir à tona.

Presenciamos a intimidade sendo compelida a se apresentar, sem cautela, sem acolhimento, até mesmo envergonhada, numa espécie de ingresso em um ambiente onde quase tudo pode e que estimula o que não se completa. Uma sociedade paradoxal cujos indivíduos padecem de solidão, apesar das interações permanentes, mantidas na superficialidade dos encontros efêmeros; sociedade que se organiza em guetos e fragmentada e que tenta dar abrigo à diversidade, ao mesmo tempo que estimula a dicotomia e esgarça a ambivalência.

Não estamos no pior dos mundos, mas também estamos longe do melhor; mundo que muito dificulta a constituição do ser, a confiança no viver, a esperança no devir, donde a ideia do gesto espontâneo ameaçado.

Winnicott pensou na mãe suficientemente boa orientada por sua biologia, seus recursos pessoais, sua sensibilidade inata e adaptada a um ambiente. Naquele momento essa pessoa só poderia ser Mulher. Nos tempos atuais, é hora de abrir possibilidades de intervenção na ameaça anunciada em benefício de mães e bebês e conceber os gestos criativos, podendo ser gestados por novos protagonistas.

Isso nos obriga a refletir e perguntar, como já fizemos no passado: o que significa ser mãe? Quem é a mãe? O que a designa como mãe em sua missão de cuidado aos que chegam? Quem mais pode, hoje, ocupar o lugar da suficiência constitutiva do humano? Quem mais reúne condições devotadas de ser a mãe suficiente? Em qual rosto o bebê verá a si?

Jan Abram assinala que pata Winnicott

o sentido de preocupação exige um ambiente suficientemente bom e a existência de outra pessoa com quem o bebê possa contar e é fundamental que, independentemente de quem seja, esta pessoa proponha-se a estar emocionalmente envolvida e disponível (2000, p. 37)

O autor nos surpreende ao completar, em outro texto: "Um seio ou um pênis interno bom garantem ao indivíduo sentir-se confiante quanto ao presente e ao futuro" (Winnicott, 1958, p. 31).

Winnicott pouco falou do Pai em seus trabalhos e, quando o fez, assinalou que ele poderia ser ou não uma mãe substituta. Mesmo assim, com frequência, posicionou-o em um lugar influente, mas sem protagonismo, ora associado à mãe em parceria, ora na função de terceiro, ora contido na mente da mãe, ora mais adiante na integração do bebê.

O Pai, assim descrito há cerca de meio século, mudou e hoje ocupa lugar de destaque na criação dos pequenos. Os homens, ao terem sido desalojados da antiga função de provedores e protetores, esvaziados do sentimento de orgulho da paternidade devido à alteração da importância do masculino na nova organização das famílias, passam a ter cada vez mais presença na vida dos filhos, abertos ao desabrochar de recursos de sensibilidade, afeto, capacidade de identificação e zelo, até então pouco explorados.

Winnicott concebeu o pai como parte de um casal, onde um homem e uma mulher geram um bebê em um ambiente adaptativo, mas como sustentar hoje esse triângulo vital diante das novas configurações de família, quando técnicas sofisticadas de inseminação, de clonagens, de doação anônima de sêmen e óvulos inauguram novas possibilidades de fecundação? Como considerar as parcerias transexuais, onde o corpo se transmuta e nas quais o gênero é instituído e vivenciado por necessidades não mais fisiológicas, mas identitárias?

É tempo de pensar no verdadeiro self em bases epistêmicas, termo cunhado por Foucault (1969), que não aquelas em que essa concepção de vida mental foi assentada, e incluir as novas possibilidades que se abriram e prosseguem sendo abertas no campo da manipulação biológica e da engenharia genética, que têm transformado os parâmetros de fertilidade, concepção e sexualidade humana e alterado as referências de passivo, ativo, feminino, masculino, homem, mulher.

Já é tempo de propor novos valores da perspectiva da cultura no que se refere a família, paternidade e maternidade, bom como de considerar seriamente a inclusão, entre os novos cuidadores, dos homens e das pessoas que adotaram outras configurações de gênero, com novas possibilidades de vida em novas constelações familiares. Apropriação que já se inicia, ainda que com discrição e sem uma legitimação clara, franca e formalizada ideologicamente no âmbito social.

É tempo de inventar, dar visibilidade aos desafios reais para encontrar possibilidades presentes, tendo a delicadeza de "não jogar o bebê junto com a água do banho" e legitimar de novo, de novo e de novo a necessidade humana de, em seus inícios, os bebês contarem com a presença dedicada de um adulto devotado, sensível, capaz de identificação e que possa não ser necessariamente aquele de antes, mas que torne possível igualmente aos que chegam ao mundo a experiência vital de ser olhado.

E desse modo, somar às fileiras de um exército composto por mulheres, que prosseguem dedicadas aos pequenos ou conseguem aliar ao trabalho profissional os cuidados da família, novos parceiros, e que juntos possibilitem o viver criativo ao estender o território da suficiente maternagem àqueles capazes de cuidado e devoção aos pequenos, com olhos grudados nos carrinhos que os contêm, nos caminhos por onde pisam, não importando gênero, engajamento sexual ou condições de acasalamento.

Clamor que hoje se apresenta como questão de emergência na preservação das novas gerações e que não se refere mais a propostas engajadas voltadas a setores mais progressistas, pois se trata de um grito de sobrevivência, não mais individual, não mais setorizado, mas comum a toda a sociedade.

Não há pessoas tidas como algozes ou vítimas, há o sistema econômico que impõe sua ordem, há a complexidade da vida social, há a substituição em metástase das referências éticas e afetivas. A roda da história gira com e apesar dos humanos, que dela correm atrás tentando se firmar nos calcanhares.

O resgate da esperança talvez seja hoje o maior desafio a nos mobilizar. Apostemos. O filósofo Karl Marx dizia que "a humanidade só apresenta os problemas que é capaz de resolver" (1867/2003, p. 6 ) e "Winnicott tinha fé na crença inconsciente do indivíduo em encontrar amparo" (Abram, 2000, p. 42).

Por isso o apelo: que nós, pessoas que se importam e se comovem, possamos entrar nessa corrida, ser parte da criação do futuro e fazer diferença, lembrando que o novo é sempre gestado tendo o velho como ponto de partida.

Na epígrafe deste trabalho, um poema de Winnicott sintetiza essa esperança, e me permite dizer: "Sonhemos. Deixemos penetrar a raiz no centro de nossa alma. Aspiremos a seiva da fonte infinita de nosso inconsciente e conservemos nosso verdor".

 

Referências

Abram, J. (2000). A linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter.         [ Links ]

Foucault, M. (1969). A arqueologia do saber. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Marx, K. (2003). Contribuição à critica da economia politica. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1867)        [ Links ]

Outeiral, J. (1997). A concepção do pai na obra de Donald Winnicott. In J. Outeiral (Org.), Donald Winnicott na America Latina. Rio de Janeiro: Revinter.         [ Links ]

Rosen, N. (2008). Madame Freud. Campinas: Versus.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1958). A capacidade de estar só. In D. W. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1982). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Revinter.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 27/9/2018
Aceito em: 15/11/2018

 

 

1 13.º Encontro sobre o Pensamento de Donald Winnicott. Fortaleza, setembro de 2018.

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