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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo ene./jun. 2022

 

HIPERCONECTIVIDADE E EXAUSTÃO

 

O superego arcaico, as redes sociais e sua relação com o Burnout na era do cansaço: revisitando Melanie Klein

 

The archaic superego, social networks and their relationship with Burnout in the age of tiredness

 

El superego arcaico, las redes sociales y su relación con el Burnout en la era del cansancio

 

Le surmoi archaïque, les réseaux sociaux et leur rapport au Burnout à l'âge de la fatigue

 

 

Alexandre Patricio de Almeida

Psicanalista, mestre e doutorando pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. Pesquisador bolsista CNPQ. Professor universitário. Autor de diversos livros e artigos científicos. Criador do podcast Psicanálise de boteco e da conta @alexandrepatricio no Instagram. São Paulo / alexandrepatriciodealmeida@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Tendo em vista as novas formas de subjetivação derivadas da cultura neoliberal, este artigo aborda uma possível relação entre o uso das redes sociais pelos psicanalistas - posta em prática sobretudo após (e durante) a incidência da pandemia - e a ocorrência de burnout como um estado de sofrimento psíquico que denuncia as mazelas de um ego pressionado fortemente pelas demandas de intensa produção presentes no espaço virtual. Nesse sentido, a fim de justificar as nossas hipóteses, utiliza-se o conceito de superego arcaico definido por Melanie Klein em seus primeiros trabalhos, articulando-o às considerações de Byung-Chul Han acerca da sociedade do cansaço.

Palavras-chave: Melanie Klein, burnout, superego arcaico, neoliberalismo


ABSTRACT

In view of the new forms of subjectivation derived from the neoliberal culture, this article addresses a possible relationship between the use of social networks by psychoanalysts - put into practice mainly after (and during) the incidence of the pandemic - and the occurrence of burnout as a state of psychological suffering that denounces the ills of an ego strongly pressured by the demands of intense production present in the virtual space. In this sense, in order to justify our hypotheses, we use the concept of archaic superego defined by Melanie Klein in her early works, articulating it with Byung-Chul Han's considerations about the society of fatigue.

Keywords: Melanie Klein, burnout, archaic superego, neoliberalism


RESUMEN

Teniendo en cuenta las nuevas formas de subjetivación derivadas de la cultura neoliberal, este artículo aborda una posible relación entre el uso de las redes sociales por parte de los psicoanalistas - puesto en práctica principalmente después (y durante) la incidencia de la pandemia - y la ocurrencia del burnout como estado de sufrimiento psicológico que denuncia los males de un yo fuertemente presionado por las demandas de producción intensa presentes en el espacio virtual. En este sentido, para justificar nuestras hipótesis, utilizamos el concepto de superego arcaico definido por Melanie Klein en sus primeros trabajos, articulándolo con las consideraciones de Byung-Chul Han sobre la sociedad del cansancio.

Palabras clave: Melanie Klein, burnout, superego arcaico, neoliberalismo


RÉSUMÉ

En tenant compte des nouvelles formes de subjectivation dérivées de la culture néo-libérale, cet article aborde une relation possible entre l'utilisation des réseaux sociaux par les psychanalystes - mise en pratique principalement après (et pendant) l'incidence de la pandémie - et l'apparition du burnout comme état de souffrance psychologique qui dénonce les maux d'un ego fortement pressé par les exigences de la production intense présente dans l'espace virtuel. Dans ce sens, afin de justifier nos hypothèses, nous utilisons le concept de surmoi archaïque défini par Melanie Klein dans ses premiers travaux, en l'articulant avec les considérations de Byung-Chul Han sur la société de la fatigue.

Mots-clés: Melanie Klein, burnout, surmoi archaïque, néolibéralisme


 

 

Pane no sistema
Alguém me desconfigurou
Aonde estão meus olhos de robô?
Eu não sabia, eu não tinha percebido
Eu sempre achei que era vivo

Parafuso e fluido em lugar de articulação
Até achava que aqui batia um coração
Nada é orgânico, é tudo programado
E eu achando que tinha me libertado

(Trecho da canção Admirável chip novo, de Pitty, 2003)

Já no início dos anos 2000, a cantora Pitty nos alertava para uma realidade a qual estávamos adentrando perigosa e silenciosamente; "eu não sabia, eu não tinha percebido, eu sempre achei que era vivo". Ora, o que isso quer dizer?

Em nossa atual sociedade neoliberal, dominada pela lógica da produção e pela dinâmica da concorrência, o sujeito é facilmente iludido, muitas vezes sem se dar conta disso, ao ser apresentado a um amplo cardápio que supostamente lhe assegure infinitas possibilidades de ser e estar no mundo.

Essa ilusão impõe uma falsa impressão de liberdade e onipotência e, ao mesmo tempo, camufla o vazio existencial que é inerente à nossa essência - embora tal vazio seja frequentemente negado por meio de defesas maníacas produzidas pelo nosso psiquismo, diga-se de passagem (Klein, 1935/1996a). "Eu sempre achei que era vivo" é uma expressão que representa, portanto, a alienação do sujeito sobre si, pois ao pensar que se vive verdadeiramente, o que ocorre é justamente o contrário: a predominância de uma vida meramente delegada às demandas do Outro. Demandas essas que invadem sem dó nem piedade as camadas mais íntimas de uma parte sagrada do self. Nesse aspecto, é impossível não nos lembrarmos de Winnicott e de seu belíssimo texto "Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos". O autor nos diz:

Sugiro que normalmente há um núcleo da personalidade que corresponde ao eu verdadeiro da personalidade split; sugiro que esse núcleo nunca se comunica com o mundo dos objetos percebidos, e que a pessoa percebe que não deve nunca se comunicar com, ou ser influenciado pela realidade externa. ... Estupro, ser devorado por canibais, isso são bagatelas comparados com a violação do núcleo do self ... Podemos compreender a raiva que as pessoas têm da psicanálise que penetrou um longo trecho da personalidade humana, e que provê uma ameaça ao ser humano em sua necessidade de ser secretamente isolado. (Winnicott, 1963/1988, p. 170, grifos do autor)

Partindo desse pressuposto, é plausível imaginarmos que "no centro de cada pessoa há um elemento não comunicável, e isto é sagrado e merece muito ser preservado" (Winnicott, 1963/1988, p. 170). Por outro lado, em outro extremo, na tentativa de resguardar o nosso núcleo mais reservado, podemos agir de modo individualista, esforçando-nos ao máximo para cumprir as exigências que vêm de fora, pois, ao passo que fazemos parte do meio e somos reconhecidos por isso, muito provavelmente possamos resgatar a sensação de existir.

A pandemia ocasionada pelo vírus covid-19 foi um grande divisor de águas no que tange à ascensão dessa conduta egocêntrica. "Cada um por si e ninguém por todos" é um lema que facilmente sintetizaria a nossa postura social dos últimos tempos. À guisa de exemplo, poderíamos citar aqueles indivíduos que se recusam, a todo custo, a tomar as vacinas, ou a estupidez daquelas pessoas que simplesmente se negam a usar as máscaras de proteção em espaços públicos e, quando contrariadas, partem para a agressão física e outros atos característicos de uma suposta rebeldia infantil - Lacan que nos acuda com o seu conceito de nome do pai!1 Seria cômico, se não fosse o retrato da mais pura realidade.

Em sua canção, Pitty escreve: "Nada é orgânico, é tudo programado/ E eu achando que tinha me libertado". Seria essa a grande utopia melancólica que acorrenta o indivíduo contemporâneo? Na tentativa incessante de ser livre, o sujeito se vê ainda mais preso nas armadilhas das doutrinas neoliberais? Vivemos sob uma constante espécie de areia movediça; quanto mais nos mexemos, mais nos afundamos? Talvez esse seja um bom ponto de partida para adentrarmos as nossas provocações. Entretanto, é indispensável pensar que:

A competição empresarial não é um jogo de críquete, mas um processo de relação fundado na ausência de solidariedade (vista como entrave para o funcionamento da capacidade seletiva do progresso), no cinismo da competição que não é competição alguma (pois baseada na flexibilização contínua de normas, nos usos de toda forma de suborno, corrupção e cartel), na exploração colonial dos desfavorecidos, na destruição ambiental e no objetivo monopolista final. (Safatle, 2020, p. 32, grifos do autor)

Logo, a falsa impressão de liberdade consiste em pensar que ser dono de si e gerenciar a própria vida representa uma grande vantagem em meio ao cenário opressivo do neoliberalismo. Essa fantasia nada mais é do que um gatilho causador de intensos adoecimentos psíquicos, pois, na tentativa de dominar as próprias referências de produtividade, reconhecimento e prestígio, ativamos, sem intenção e sem consciência, um superego cruel que acaba nos consumindo de dentro para fora, gerando uma angústia inominável e nos colocando numa posição paralisante, uma vez que o sujeito deixa-se explorar voluntariamente, acreditando que esteja se realizando profissional e pessoalmente. Além disso, o neoliberalismo gera insegurança justamente porque, ao individualizar o homem, tornando-o um empresário isolado de si, cria o acirramento da competição e a perda da solidariedade - o que causa medo e paranoia (Rea, 2021).

Todos esses aspectos podem ser constatados por meio das queixas que emergem em nossos consultórios e, não obstante, também se manifestam com certa frequência em uma significativa parcela de profissionais da saúde mental. Nos últimos anos, assistimos a uma crescente evolução do número de psicanalistas, psicólogos e psiquiatras que estão trabalhando ativamente com o uso de recursos e mídias digitais. Postagens no Instagram, vídeos no YouTube e episódios de podcast são alguns dos meios mais utilizados por esses especialistas.

No entanto, ao passo que nos inserimos nas tecnologias do novo século, somos consumidos por elas, já que esse trabalho exige muita dedicação, tempo, conhecimentos específicos, ética e, sobretudo, cuidados. Qualquer frase mal escrita pode ser a causa de um "cancelamento". Sem contar que todo o nosso trabalho passa a ser medido e avaliado por algoritmos e escalas quantitativas - likes, views, seguidores, compartilhamentos, métricas etc. Igualmente, quando menos esperamos, somos devorados por um sistema que gera as mais diversas e dolorosas formas de sofrimento.

A realidade, lentamente, vai se misturando com esse cenário virtual e, de modo imperceptível, perdemos a total noção de tempo e espaço. Abruptamente, somos pegos de surpresa respondendo às dúvidas (e solicitações) de seguidores, alunos ou futuros pacientes, que estabelecem contato conosco pelas redes, frequentemente, fora do nosso "horário comercial" - aquele que era usado como referência antes da confusão cronológica causada pela pandemia.

Todos esses fatores podem, direta ou indiretamente, compor as tramas de uma teia que pode configurar um quadro de burnout - estado de adoecimento psíquico causado pela exaustão extrema, fruto de situações de trabalho. Aliás, esse é apenas um dos inúmeros preços que pagamos ao permitir que o lazer se fusione com o trabalho, privando-nos do ócio criativo e da capacidade de brincar.

Pretendo desenvolver essas ideias brevemente apresentadas ao longo do meu texto, levando em consideração o fato de que esse tema também me atravessa em primeira pessoa, pois venho desenvolvendo, desde 2020, um projeto de democratização e compartilhamento da psicanálise com um grande público nas redes sociais e em plataformas de streaming.

Com o intuito de propor uma articulação teórica que fundamente a nossa discussão, valho-me da noção de superego arcaico desenvolvida por Melanie Klein nos anos iniciais de sua obra (1920-32). A autora diverge de Freud e enfatiza que desde os primórdios da vida existe uma instância psíquica geradora de terror e sofrimento, determinante de grandes angústias.

Penso, com efeito, que tal premissa kleiniana poderia ser atrelada ao cenário de competividade e reconhecimento predominante na cultura neoliberal, lançando luz sobre os mecanismos intrapsíquicos que atravessam a necessidade de estar sempre atualizado e conectado - atributos ligados à filosofia do desempenho, típicos da sociedade do cansaço e geradores de um esgotamento excessivo (Han, 2017). "Esses estados psíquicos são característicos de um mundo que se tornou pobre em negatividade e que é dominado por um excesso de positividade" (Han, 2017, p. 70, grifos do autor), compondo um dos grandes conflitos que paralisam o sujeito neoliberal, pois "o excesso de elevação do desempenho [exigido, sobretudo, na era digital] leva a um infarto da alma" (Han, 2017, p. 70, grifos do autor).

 

O uso das redes sociais e sua relação com o sofrimento neoliberal

O excesso de positividade se manifesta também como excesso de estímulos, informações e impulsos. Modifica radicalmente a estrutura e economia da atenção. Com isso se fragmenta e destrói a atenção. Também a crescente sobrecarga de trabalho torna necessária uma técnica específica relacionada ao tempo e à atenção ... A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um retrocesso. (Han, 2017, p. 30, grifos do autor)

Ter um elevado número de seguidores, sair na grande mídia, ocupar o topo dos assuntos mais falados do momento são alguns aspectos que, atualmente, configuram a suposição do almejado sucesso. Independentemente da sua formação, do seu esforço, da sua dedicação, o urgente na era neoliberal será sempre quantitativo. A busca se torna implacável, desgastante. Alguns, mais indignados, perguntam-se: "Posto tanto e não recebo likes, por quê?". Outros, também inconformados, questionam-se: "Leio e escrevo bons textos, mas por qual razão não tenho visibilidade?". Se fôssemos definir com uma palavra o atual momento, sem dúvida a nossa grande vedete seria visibilidade. Todos a desejam, e muitos estão dispostos a pagar o seu alto custo. Quando não a conseguem, desabam em profunda melancolia. Desanimam e, por conseguinte, desistem.

Recentemente, um colega psicanalista compartilhou comigo que havia criado uma conta profissional no Instagram, produzindo, segundo ele, uma série de conteúdos interessantes, com belos artigos reflexivos e passagens de alguns dos textos clássicos psicanalíticos. No entanto, ao deslizar o dedo pelo feed, ele ficava cada vez mais revoltado, pois alguns profissionais que só postavam futilidades ou se rendiam às famosas (e controversas) dancinhas do novo aplicativo TikTok acumulavam mais seguidores do que ele. Essa indignação, por sua vez, virava um mecanismo gerador de muita ansiedade e desesperança, pois, de acordo com a sua perspectiva, os números não eram justos à qualidade do material divulgado nas mídias digitais por esses indivíduos que vinham se destacando apenas por meio de suas habilidades de caráter duvidoso.

Esse breve recorte da vida cotidiana representa apenas uma parte bem pequena da imensidão do problema que estamos abordando. Na medida em que nos comparamos com os outros e vivemos para produzir conteúdos para as redes sociais, aumentamos consideravelmente as nossas obrigações que, é preciso convir, são inúmeras e demasiadamente complexas. Muitos de nós, além da prática clínica, também atuamos na docência; mantemos grupos de estudos e supervisão; ministramos seminários clínicos etc. Somam-se a isso as incontáveis horas de estudos e o tempo destinado aos registros escritos dos casos que atendemos - principalmente quando há a intenção de publicação e pesquisa ou a participação em congressos e colóquios.

É preciso lembrar ainda que todas essas atividades precisam ser conciliadas à frequência contínua de nossa própria análise pessoal.

Tais exemplos, apesar de bastante gerais, demonstram quanto o nosso exercício é árduo e, quando levado a sério, exige uma dedicação exclusiva. Porém, no instante em que nos propormos a produzir conteúdos digitais, somos invadidos por uma exigência constante de produtividade, na tentativa ilusória de atender à voracidade dos algoritmos que, supostamente, portam a chave do reconhecimento. Diante disso, parece que introjetamos uma espécie de ordem que não cessa de mandar; quanto mais fazemos, mais é necessário fazer para alcançar o topo.

Esse funcionamento automático e multitarefa representa um verdadeiro retrocesso, conforme escreve Han em seu livro Sociedade do cansaço (2017). Ele compara esse modelo humano de ser e estar no mundo com o comportamento dos animais em estado selvagem. Explico melhor: o filósofo coreano afirma que um animal ocupado no exercício de mastigação de sua comida tem de ocupar-se, ao mesmo tempo, com outras atividades. "Deve cuidar para que, ao comer, ele próprio não acabe comido" (Han, 2017, p. 32). Simultaneamente, esse mesmo animal precisa vigiar sua prole e manter o olho em seu(sua) parceiro(a). Na vida selvagem, portanto, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso, não é capaz de um aprofundamento contemplativo (Han, 2017).

De modo análogo, assistimos a esse mesmo movimento no campo das redes sociais: indivíduos que querem dar conta de tudo, mas, na verdade, não se aprofundam em nada. Autorizam-se a falar de arte, literatura, psicologia, medicina, história, biologia etc., quando efetivamente sabem muito pouco (ou quase nada) acerca de qualquer uma dessas áreas.

Não precisamos ir tão longe para elucidar o que queremos dizer, pois a própria psicanálise vem sendo fortemente atingida por sujeitos que se dizem psicanalistas e, paralelamente, atuam como terapeutas holísticos, junguianos, pertencem ao time da constelação familiar, praticam hipnose, receitam florais ou desenham mandalas - lembrando que nada disso faz parte da ética2 clínica (e teórica) da psicanálise, embora todas essas terapias possam ter a sua eficácia terapêutica (e este não é o espaço para uma discussão desse calibre).

 

O superego arcaico e sua relação com o burnout dos analistas

Se há pouco falamos de uma suposta ordem que não cessa e parece estar introjetada no âmago de nosso ser, é inevitável não associarmos a essa premissa as teses de Melanie Klein que versam sobre o superego arcaico.

Klein desafiou a teoria clássica freudiana e, por meio da análise de crianças muito pequenas, percebeu que, desde precocemente, elas sofriam por conta de ameaças intrapsíquicas provocadas pelas imagos parentais internalizadas:

A análise de crianças pequenas revela que a estrutura do superego é montada a partir de identificações que datam de períodos e estratos muito diferentes da vida mental ... Podemos ver nelas [nas identificações], também, uma explicação para o rigor do superego, que se manifesta de forma muito clara na análise dessas crianças. Não parece claro que uma criança de quatro anos, por exemplo, deveria criar em sua mente uma imagem irreal e fantástica de pais que devoram, cortam e mordem. No entanto, é fácil explicar por que numa criança com cerca de um ano a ansiedade criada pelo início do conflito edipiano toma a forma do medo de ser devorada e destruída. A própria criança deseja destruir o objeto libidinal mordendo-o, devorando-o e cortando-o em pedaços. Isso dá origem à ansiedade, pois o despertar das tendências edipianas é seguido pela introjeção do objeto, do qual agora se espera a punição. A criança passa a temer um castigo que corresponda à ofensa: o superego se torna algo que morde, devora e corta. (Klein, 1928/1996c, p. 237, grifos do autor)

Para ela, a origem do superego é muito anterior à sugerida por Freud, não constituindo, portanto, um produto do complexo de Édipo, mas uma figura terrível e persecutória que atormenta os primórdios da vida psíquica infantil, oriunda de diversas projeções e introjeções que, por sua vez, são fortemente impulsionadas pela presença do instinto de morte que, para Klein, sempre terá uma característica destrutiva, e não o sentido de um suposto retorno ao inorgânico, como ocorre no arcabouço freudiano (Freud, 1920/2020).

Embora Klein aceitasse a descrição que Freud realizara a respeito do superego, ela não concordava com a sua origem somente no quarto ou quinto ano de vida; suas provas claras dos sentimentos arcaicos de culpa apresentavam o surgimento do superego, no máximo, até o segundo ano de vida (Hinshelwood, 1992). Além disso, pelo fato de ser formado, predominantemente, por objetos parciais cindidos pela atuação de uma força intensa exercida pelo instinto de morte, o superego kleiniano é muito mais intransigente que o freudiano. A justificativa desse princípio está no fato de que o superego, para Klein, está relacionado às fases pré-genitais do sadismo como descritas por Abraham (1924/1988) - sádico-oral, sádico-anal e sádico-uretral.

Ao longo do desenvolvimento de suas hipóteses, Klein definiu que o superego arcaico é formado por diversas figuras internalizadas baseadas tanto na mãe quanto no pai (ou em quem exerce tais funções). Essas imagos (figuras internalizadas dos pais) significam, para a criança, uma série de relações internas passíveis de ser representadas como o resultado de fantasias sádico-orais, que consistem, basicamente, em sugar, devorar e morder o objeto; o mesmo acontece com os impulsos sádico-anais, ou seja, expulsar e introduzir as fezes no interior do objeto. A autora descreveu esses fenômenos ao analisar detalhadamente o brincar de crianças pequenas.

Nesse sentido, o superego kleiniano passa a ser visto como um imenso conjunto de objetos internos, cada um deles dotado de funções específicas de fantasia; e a psicanálise inspirada em Melanie Klein, na prática, torna-se cada vez mais uma análise desses conteúdos intrapsíquicos. Portanto, de forma resumida e bastante didática, podemos assimilar que:

Ao passo que o superego de Freud conteria os valores e ideias que a criança adquire a partir de seus pais e sua herança, o superego arcaico de Klein parece ser seu antecessor mais primitivo. Onde o superego de Freud, o qual ele considerava inicialmente ser o ideal de ego (Freud, 1913, 1914), reage com culpa, o de Klein reage inicialmente com ansiedade persecutória enquanto a criança está na posição esquizoparanoide e só reage com culpa depois que a criança atinge a posição depressiva. Ela propôs que o superego arcaico se desenvolve a partir da projeção, pela criança, de vários aspectos de sua personalidade (ódio, amor, voracidade, inveja, carência, sadismo e assim por diante) sobre o objeto, junto com onipotência, onisciência e intencionalidade ou vontade. Quando a imagem assim composta é internalizada e a criança identifica-se com ela, ela se torna um superego arcaico pernicioso incontrolável. (Grotstein, 2017, pp. 401-402, grifos do autor)

É, no mínimo, curioso que ao se referir ao sujeito multitarefa, o filósofo Byung-Chul Han recorra à analogia da vida selvagem. Menciono isso porque Klein sempre foi reconhecida por sua escrita visceral e, por vezes, animalesca. Trata-se de uma psicanálise que ousou debruçar-se sobre as entranhas da vida psíquica, desvendando terrenos que ainda permaneciam intocados, na tentativa de colocar em palavras o sofrimento que ela percebia com clareza em seus pequenos pacientes.

Ao revisitarmos as ideias expostas anteriormente, podemos, de modo simultâneo, ir traçando uma linha de raciocínio que tende a aproximar o funcionamento opressivo que ocorre nos campos das demandas digitais e da cultura neoliberal, com a noção de superego arcaico advinda do pensamento kleiniano.

Para Klein, existe desde os primórdios da vida uma instância psíquica que atormenta, devora, ameaça e persegue o sujeito, em razão dos efeitos produzidos pelas ressonâncias imponderadas do instinto de morte. Esse superego severo poderá ser a causa de um grave estado de sofrimento, configurando as mais diversas formas de subjetivação e adoecimento. Por outro lado, no domínio da cultura neoliberal, observamos quanto a busca da visibilidade consome o sujeito de dentro para fora, colocando-o em um estado de combustão emocional (de queima e esgotamento) - o burnout.

Marion Minerbo (2019, pp. 119-120), em suas pesquisas sobre o superego cruel, destaca que essa instância psíquica ataca e desorganiza o ego em três figuras da psicopatologia:

1. no funcionamento melancólico, cujo embate entre o superego e o ego se dá no plano intrapsíquico;

2. no funcionamento paranoico, no qual o sujeito se identifica com o superego e coloca o outro no lugar do ego, tratando-o com a mesma crueldade;

3. no funcionamento masoquista, em que o indivíduo convoca o outro, por identificação projetiva, a identificar-se com o superego cruel e, por conseguinte, a massacrá-lo.

Com efeito, as três formas de subjetivação podem estar presentes na relação que os profissionais de saúde mental3 estabelecem com as redes sociais, produzindo os sintomas que configuram o burnout. Explico melhor cada um deles, articulando-os com o tema em questão.

No funcionamento melancólico, em que a sombra do objeto perdido caiu sobre o ego e o seu enclave com o superego se manifesta de maneira intrapsíquica, o indivíduo se sentirá um grande fracassado, um ser desprezível e indigno de amor. Esses sentimentos podem levar o sujeito a postar cada vez mais nas redes, numa busca interminável de validação e reconhecimento. De modo análogo, é como se houvesse a presença de uma chama voraz que não cessa de queimar, provocando o esgotamento emocional.

O funcionamento paranoico está presente no excesso de competitividade que se manifesta por meio do uso exagerado das redes sociais: "Se eu não fizer uma live hoje, perderei os meus seguidores para os concorrentes? Caso eu não poste determinado conteúdo, as pessoas deixarão de me seguir? Tenho certeza de que os rivais irão roubar o meu público e copiar as minhas postagens!". Aqui, o outro sempre será uma ameaça e nunca merecerá compaixão.

O funcionamento masoquista, por sua vez, pode ser notado em estratégias - inconscientes, sempre é bom lembrar - de autossabotagem. Em outras palavras, ocorre nos indivíduos que postam conteúdos polêmicos já esperando a retaliação e o cancelamento; ou na interação com os comentários de haters5 que acaba gerando ainda mais mal-estar e ansiedade.

Todos esses aspectos validam a força que possui o superego arcaico e tirânico sobre o funcionamento psíquico das pessoas e seus estados de adoecimento, especialmente naquelas que trabalham com a internet e dela dependem em tempo integral. Inúmeros profissionais de nossa área colocam-se em condições de exaustão e extrema vulnerabilidade justamente por estarem fusionados ao objeto externo, do qual, por sua vez, são extremamente dependentes - ainda que por questões financeiras, pois encontram no universo das mídias digitais uma forma de "ganhar a vida".

Pelo uso das redes sociais, certamente pudemos ampliar a divulgação de nossos trabalhos. Lançamento de livros, publicação de artigos, compartilhamento de eventos e até mesmo o processo artesanal que envolve a prática de transmissão da psicanálise estão em jogo nos conteúdos lançados de maneira frenética e desordenada nesse espaço virtual. Em paralelo a isso, caso não cuidemos da dosagem desse uso, é bem provável que nos tornemos cada vez mais vulneráveis, fiquemos demasiadamente expostos e sejamos, literalmente, sugados por um sistema que porta como ideal a expressão "o objeto do marketing é você".

Posto isso, produto e humano se misturam no império neoliberal, e o ponto crucial, aqui, é a falta de identidade com o sentimento de não estar vivendo, quando se é anulado por uma obrigação insana inerente ao ser que consiste na máxima: "posto, logo existo" - caso eu receba likes, obviamente.

Esses dias, ironicamente, percorrendo o feed do meu Instagram, deparei-me com uma tirinha que trazia um sujeito com um semblante de cansaço, sentado à beira da cama, ao lado de um balão de pensamento que dizia: "Levante! Você precisa postar conteúdos!". As pessoas que vivem e obtém a sua renda diretamente desse campo costumam sentir-se intimidadas pela imposição de sempre precisar gerar conteúdo. Quando isso não ocorre, a sensação de estar perdendo, de ser passado para trás, é muito penosa - vejam as ressonâncias superegoicas aqui. Soma-se a isso o agravante do fator numérico, ou seja, quantos seguidores possui o meu atual concorrente e qual o segredo dele para conquistar a tão almejada visibilidade - marcas do funcionamento paranoico.

É quase como se tivéssemos, em nosso interior, uma espécie de assombração que ordena, dita e impõe cruelmente as regras de um jogo difícil de ganhar - se é que existe um ganho nisso tudo. Como vimos, na mesma proporção, atua o superego kleiniano; sempre atroz, impiedoso e opressor. No instante em que se perde por conta de sua ambição, o sujeito da cultura neoliberal também acaba por perder o sentido da própria vida.

A palavra estrangeira que define tal sofrimento é burnout6 ou "queimar fora", em tradução literal, embora também possamos pensar em um burn in ou queimar dentro. Acredito, porém, que seja razoável cogitar uma combinação dos dois fatores; por conta de imposições externas, intensificamos a ação das imagos internas que interditam a nossa existência, lançando-nos às mazelas do adoecimento. Não temos paz, nem sossego, há sempre algo a fazer, uma atualização a cumprir, um status a ver.

Pobre silêncio! Aqui jaz esquecido, na era dos views e dos likes. Clarice, sempre brilhante, alertou:

Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio. Mesmo o sofrimento pior, o da amizade perdida, é apenas fuga. Pois se no começo o silêncio parece aguardar uma resposta - como ardemos por ser chamados a responder - cedo descobre que de ti nada exige, talvez apenas o teu silêncio. (Lispector, 2016, p. 513, grifos do autor)

Silenciar. Separar-se do estado fusional que se dá entre os aspectos tecnológicos e humanos talvez possa ser um bom começo para desfazermos os emaranhados que desmantelam o nosso ser em meio à lógica neoliberal de produtividade. Tal conquista também não escapou às observações de Melanie Klein. Vejamos, a seguir, o que a autora nos ensina a respeito disso.

 

O superego arcaico e a conquista da alteridade na sociedade neoliberal

O cansaço de esgotamento não é um cansaço da potência positiva. Ele nos incapacita de fazer qualquer coisa. O cansaço que inspira é um cansaço da potência negativa, a saber, do não-para. Também o Sabah, que originalmente significa parar, é um dia do não-para, um dia que está livre de todo para-isso, para falar com Heidegger, de toda e qualquer cura. Trata-se de um tempo intermédio. Depois de terminar sua criação, Deus chamou ao sétimo dia de sagrado. Sagrado, portanto, não é o dia do para-isso, mas o dia do não-para, um dia no qual seria possível o uso do inútil. É o dia do cansaço. O tempo intermediário é um tempo sem trabalho, um tempo lúdico, que se distingue também do tempo heideggeriano, que no essencial é um tempo de cura e de trabalho. (Han, 2017, pp. 76-77, grifos do autor)

Neste ponto do nosso trabalho cabe outra explicação ao leitor, tendo em vista que Melanie Klein não compreendia a vida anímica pelo viés da existência de fases psicossexuais lineares - como nos propôs Freud, consagrando os conceitos de fase oral, anal, fálica e genital. A autora, seguindo pela direção oposta, desenvolveu a concepção de um psiquismo dinâmico que oscila entre posições e, portanto, está em constante movimento.

Na posição esquizoparanoide (Klein, 1946/1996e), o bebê é tomado de fúria e ódio pela mãe que o frustra, pois, por mais que essa mãe (ou figura materna) seja uma pessoa zelosa, é preciso lembrar que ninguém nunca estará à disposição do outro em tempo integral; portanto, o infante terá de lidar, desde cedo, com falhas e privações. É bem provável, também, que a mãe levará um tempo para perceber o que o seu bebê necessita. Diante disso, a criança projeta o seu ódio no meio externo, com a intenção de destruí-lo. Em contrapartida, caso a mãe seja fatalmente aniquilada, o bebê ficará desesperado, pois sem ela e seus cuidados ele não tem chance alguma de sobrevivência. Não suportando essa situação de ambiguidade, o ego arcaico e prematuro cria uma divisão/cisão da figura da mãe: uma mãe idealizada, perfeita e muito boa que, apesar de imaginária, é reconhecida como real; e uma mãe má, cruel e negligente que o deixa desolado e lhe coíbe do conforto esperado. Essa figura, porém, ele não reconhece como a mesma mãe boa que lhe oferece cuidados e amor.

Os leitores certamente podem achar estranho e até bizarro Melanie Klein atribuir tais sentimentos e fantasias a um bebê. Porém, quem de nós nunca sentiu raiva a ponto de querer "matar" a mesma pessoa que amamos quando ela nos provoca uma grande decepção? Tal situação de bom e mau separados pode ser facilmente observada nos enredos dos contos de fadas clássicos, por exemplo - a bruxa e a princesa, o herói e o bandido, a fada e a madrasta etc.

Com o decorrer dos meses no desenvolvimento, e com a predominância de experiências boas que a criança pode ter pela presença de uma figura cuidadora e amorosa - caso o infante não seja muito invejoso, pois a inveja, segundo Klein (1957/1996d), é uma potência altamente destrutiva que impede a assimilação dos elementos bons -, ela pode ir se dando conta de que a mesma mãe perfeita por quem nutre um amor legítimo e de quem depende é também a mãe malvada e cruel que a criança tanto ataca com suas fantasias sádicas.

Aqui, o bebê pode ficar aterrorizado com a possibilidade de ter feito muitos estragos, com o seu ódio, nessa mãe que pensava ser só malvada, mas que constata então ser a mesma mãe amada. Ele experimenta muita culpa e remorso, e costuma viver uma experiência de profunda tristeza, ingressando no que Klein denominou de posição depressiva, em contraponto à posição anterior, em que predominava o objeto idealmente bom e maravilhoso, completamente separado e sem relação com o objeto também idealmente mau e persecutório produzido pela cisão da figura materna.

Os primeiros seis meses de vida de um bebê são essenciais para a introjeção, ou seja, para ter dentro dele a figura de uma mãe boa, um objeto bom que fica da experiência vivida na companhia das figuras cuidadoras. Esse início assegura a base de nossa saúde mental e é fundamental para sentirmos confiança em nós mesmos e na nossa capacidade de evitar estragos por nossos desejos violentos que possam se tornar ações toda vez que nos vemos frustrados, "assim como para o desenvolvimento na crença de que eventuais danos que causemos àquilo que nos é precioso possam ser reparados ou que possamos contar com a compaixão deles mesmo quando não há reparo possível" (Castelo Filho, 2020, p. 285).

Com efeito, sentir que contemos esses objetos bons em nosso íntimo e que somos capazes de cuidar deles e preservá-los com gratidão está na origem do respeito e da consideração que podemos ter por nós mesmos, aceitando os nossos limites e permitindo-nos suportar as pausas criativas que caminham na direção contrária da lógica neoliberal.

Alcançar a posição depressiva e ser capaz de elaborá-la não representa, de modo algum, uma conquista permanente, mas uma prova de maturidade que nos possibilita negociar com as exigências de um superego tirânico. Ao passo que nos implicamos como sujeitos, aprendemos a passar por frustrações, renunciando ao controle onipotente, típico do funcionamento esquizoparanoide.

Basicamente, o outro - em sua alteridade - é vivido como uma ameaça e por isso é hostilizado quando ocorre a presença do superego cruel. Cria-se, assim, uma relação de amor e ódio com as mídias digitais que produzirá impulsos maníacos, exigindo um fluxo contínuo de postagens (quando predominam o amor e a idealização); e que, em contrapartida, gerará um afastamento definitivo de todas elas, ao julgá-las como inteiramente prejudiciais e tóxicas (na predominância do ódio e da persecutoriedade).

A meu ver, não se deve, em absoluto, demonizar as redes sociais, mas reaver a possibilidade de desconstrução desse pensamento opressor que consiste em pensar que somos o nosso próprio objeto de venda, quando na verdade não somos. Somos seres humanos e precisamos admitir tal condição ao estarmos diante do outro, estabelecendo limites ao nosso trabalho digital, para que evitemos a renúncia de nosso próprio ego - sobretudo ao nos doarmos tanto àquele estranho (infamiliar) que nos acompanha pelas telas.

Klein, em seu texto brilhante "O desenvolvimento inicial da consciência na criança" (1933/1996b), ainda pertencente à fase inicial de sua obra, diz que quanto mais o sadismo da criança é suavizado, menor a influência de imagos irreais e assustadoras, pois estas são resultado de sus próprias tendências agressivas. Nesse sentido, essas imagos estarão mais próximas dos objetos reais; o superego, que antes era força despótica e ameaçadora,

dando ordens sem sentido e contraditórias que o ego é incapaz de obedecer, começa a exercer um domínio mais suave e persuasivo, fazendo exigências que podem ser cumpridas. De fato, ele agora se transforma na consciência propriamente dita" (Klein, 1933/1996b, p. 289, grifos do autor).

Voltemos, mais uma vez, ao texto de Han (2017) e às provocações que ele faz:

O sujeito de desempenho da modernidade tardia não se submete a nenhum trabalho compulsório ... Do trabalho, espera acima de tudo alcançar prazer. Tampouco se trata de seguir o chamado de um outro. Ao contrário, ele ouve a si mesmo. Deve ser um empreendedor de si mesmo. Assim, ele se desvincula da negatividade das ordens do outro. Mas essa liberdade do outro não só lhe proporciona emancipação e libertação. A dialética misteriosa da liberdade transforma essa liberdade em novas coações. A falta de relação com o outro provoca acima de tudo uma crise de gratificação. A gratificação como reconhecimento pressupõe a instância do outro ou do terceiro. (Han, 2017, p. 83, grifos do autor)

Há pouco vimos a importância da gratificação e do reconhecimento do terceiro para a maturidade da vida psíquica com base na teoria kleiniana. Ora, se de acordo com Han estamos diante de sujeitos que acreditam veementemente serem os empresários de seu próprio sucesso - ligados, sobretudo, às telas de suas mídias digitais, como a (única) possibilidade de se incluir numa conexão humana (de carne e osso), capaz de atenuar os impulsos sádicos que sustentam a competitividade e lançam o indivíduo às mazelas de seu egocentrismo -, temos, então, a figura metafórica de uma gaiola de tortura que representará nada menos do que um cárcere subjetivo do sujeito com ele mesmo. Explico melhor: o seu superego cruel e as exigências de produtividade das redes sociais - terreno em que o view e o like contam mais que as vicissitudes da vida - serão as grades de sua prisão.

Longe de tecer quaisquer conclusões acerca desse tema, que nos lança à dimensão de um debate infinito, pretendo apenas, neste fim, marcar a encruzilhada que há entre o superego arcaico e a opressão externa de uma sociedade neoliberal que almeja - assim como um bebê voraz que protesta violentamente pelo reconhecimento da mãe sem se dar conta do mínimo que lhe é oferecido - a busca incessante do sucesso e da validação existencial. Esses fatores são combinados, inevitavelmente, com boas doses de sadismo/masoquismo competitivo e com a negação da alteridade, ou seja, da posição depressiva e do reconhecimento da gratidão, sobretudo.

Todavia, tais conquistas só serão possíveis caso o próprio profissional que padece dessa condição de esgotamento (burnout) decida buscar ajuda, na tentativa de cicatrizar os estragos provocados por uma entidade psíquica intensa e poderosa, que faz do ego sua verdadeira marionete, impedindo-o da legítima fruição e do reconhecimento (de si e do outro). Afinal, não somos feitos de parafusos e fluidos, mas de um corpo de carne e osso, em que bate um coração - conforme assinala a letra da música de Pitty.

 

Referências

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Recebido em: 14/2/2022
Aceito em: 28/4/2022

 

 

1 Trabalho realizado com financiamento do CNPQ.
2 O conceito de nome do pai será fruto de uma trabalhosa construção epistemológica, começando a tomar forma desde o Seminário 3 (Lacan, 1955-56/1988). Justamente porque esse seminário é um ponto de transição no qual Lacan abandonará a teoria da intersubjetividade em prol da teoria do significante, é possível retirar dali uma belíssima afirmação que condensa tal premissa acerca da função do pai como símbolo: o drama edípico é "uma dramatização essencial pela qual entra na vida um exceder interior do ser humano - o símbolo do pai" (Lacan, 1955-56/1988, p. 245, grifo do autor). O pai é esse exceder interior, esse símbolo que permite irmos além de nós mesmos, conectando-nos com o Outro. De modo bastante condensado: o nome do pai é "o significante que, no Outro como lugar do significante, é o significante do Outro como lugar da lei" (Lacan, 1957-58/1998, p. 590). Ele é aqui tomado como o Outro do Outro, o Outro da Lei, o famoso não pode do universo infantil, a interdição do incesto.
3 Recomendo a leitura do livro Sobre ética e psicanálise, de Maria Rita Kehl (Companhia das Letras, 2002).
4 Estou me referindo a essa categoria de profissionais por tratar-se do assunto central deste trabalho. No entanto, penso que tais sintomas e sofrimentos subjetivos atravessam todo e qualquer profissional que atue diretamente com as redes sociais.
5 Termo atribuído aos indivíduos que usam as mídias digitais apenas para disseminar o ódio e a agressividade, num tom de hostilidade que beira a intolerância.
6 Sobre o termo burnout, em um diálogo com uma querida colega psicanalista, pensamos juntos na ideia de queimar até apagar. O fogo é tanto e exaure tudo de tal forma que o indivíduo morre. Esse é o sentido quando se diz, por exemplo, "a casa de uma pessoa queimou até o fim"; em inglês, usa-se a expressão: "his house burned out". O fogo - tal como o superego severo kleiniano, sufocante pelas imagos parentais terríveis - acaba consigo mesmo devido à falta de oxigênio que o sustente. Ausência de oxigênio, pandemia, neoliberalismo; a lógica é a mesma: tudo por asfixia.

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