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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo ene./jun. 2022

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

Nota introdutória

 

 

Eduardo ZaidanI; Luiz Moreno Guimarães ReinoII

IMembro filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutorando pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). São Paulo / zaidaneduardo@yahoo.com.br
IIMembro filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). São Paulo / luizmorenog@gmail.com

 

 

Das Cinco psicanálises, a primeira é um caso clínico que não precisamos hesitar em chamar de malsucedido. Apesar de ter se iniciado, em outubro de 1900, com a empolgação de Freud - "O tempo era animado e trouxe um novo caso de uma garota de dezoito anos que se abriu suavemente com a coleção existente de gazuas" (Masson, 1985, p. 427) -, no último dia daquele mesmo ano, Dora traz a notícia: "O senhor sabe, doutor, que hoje vim pela última vez?" (Freud, 1905[1901]/2016, p. 298). Foram apenas 11 semanas de análise. E seria no mínimo estranho que, se o objetivo fosse divulgar a ciência recém-criada, a escolha se desse por um caso que teve uma duração tão curta e sem a resolução dos sintomas.

Deu-se, porém, que no mês seguinte, Freud interrompeu a escrita do livro A psicopatologia da vida cotidiana e se dedicou à composição do caso: "Ontem [24 de janeiro de 1901] terminei Sonhos e histeria [título inicial do manuscrito] ... é de fato uma continuação do livro do sonho [A interpretação dos sonhos]"; e segue: "É a coisa mais sutil que já escrevi até agora e será ainda mais desconcertante [abschreckender] que de costume" (Masson, 1985, p. 433). O escrito foi publicado apenas em 1905, com uma releitura do material; essa postergação foi por iniciativa do autor, que escreve em março de 1902: "retirei da publicação meu último trabalho" (Masson, 1985, p. 456). E, somente em 1923, numa ocasião de reunião dos cinco principais casos clínicos, Freud irá adicionar novos acréscimos, sob a forma de notas de rodapé.

O texto que traduzimos se insere nesse contexto de releitura do caso Dora - e possui, portanto, um valor histórico e clínico. Ele relata um segundo encontro de Dora com um psicanalista, Felix Deutsch, que ocorreu em 1922, no qual a paciente anuncia ter sido tratada pelo Dr. Freud, e tendo ela mesma lido o próprio caso clínico. Sendo que Deutsch fez com que esse encontro chegasse ao conhecimento de Freud.

Como as datas são importantes para a compreensão deste artigo, fizemos uma breve cronologia:

out.-dez. de 1900 - Análise de Dora.
jan. de 1901 - Freud escreve o manuscrito Sonhos e histeria.
1905 - Reescrita e publicação do livro
Análise fragmentária de uma histeria [O caso Dora].
1922 - Dora tem dois encontros com Felix Deutsch
1923 - Freud inclui notas de rodapé no caso, mencionando o encontro de Dora com Deutsch.
1957 - Deutsch escreve e publica o artigo
"Uma nota de rodapé para Análise fragmentária de uma histeria de Freud", depois de tomar conhecimento de que Dora tinha falecido.

Boa parte do que se escreveu sobre o caso Dora não adota uma postura muito benevolente com o pai da psicanálise. Os comentadores insistem que teria sido negligenciado o trauma vivido por Dora; que ela era uma adolescente; que Freud não reconheceu a transferência e a contratransferência, nem a homossexualidade de Dora - esses últimos elementos (a transferência e a homossexualidade de Dora) de fato são admitidos por Freud no posfácio. Alguns, como Peter Gay, até chegaram a afirmar que: "O que é espantoso na história clínica de Dora não é que Freud tenha adiado sua publicação por quatro anos, mas que a tenha publicado" (Gay, 1988/2006, p. 255). Tais comentários parecem ignorar que o propósito de Freud foi, justamente, salientar sua dificuldade, ressaltando que algo lhe escapou nesse tratamento e que o fez pensar posteriormente em seu fracasso.

Na linha contrária, Renato Mezan agradece a Freud pela publicação do caso Dora, tendo em vista que não se cessa de se aprender com ele (Mezan, 2014). O que nos leva então para o que podemos aprender com Deutsch nesse artigo histórico.

Não é intrigante que a contratransferência negativa de Freud, visível na sua postura pouco empática com Dora, e que foi severamente criticada por muitos comentadores, tenha se repetido com Deutsch? Seria apenas o discípulo buscando a aprovação do mestre?

As falas do informante de Deutsch, que avaliam Dora como "uma das histéricas mais repulsivas" que tinha conhecido; o marido, torturado pelo seu comportamento quase paranoide, que preferiu morrer a se divorciar; o fato de que ela somente poderia ter escolhido um homem assim como marido; a preocupação do irmão de que Dora jogava um contra os outros - qual a intenção de Deutsch nesse artigo, senão corroborar uma certa percepção de Freud, não de uma Dora vítima de uma sedução ou de um abuso, mas de uma Dora sedutora?

É como se o clima contratransferencial hostil a Dora tivesse sido herdado pelo discípulo de Freud, que, mais de cinquenta anos depois, ainda não a perdoa por ter abandonado o seu mestre. Deutsch perdoa Freud pelo fracasso do tratamento, mas não Dora, a quem atribui esse fracasso.

O conceito de contratransferência é relativamente tardio na obra de Freud, aparecendo pela primeira vez em 1910, enquanto a transferência já constava como conceito desde os Estudos sobre a histeria. Sem dúvida, Freud não foi capaz de dominar [Herr] a transferência a tempo (Freud, 1905[1901]/2016, pp. 314-315), mas, acima de tudo, não dominou a sua contratransferência, muito menos interpretou o que esta revelava a respeito das fantasias de Dora.

Freud queria penetrar os segredos de Dora, abrir com a gazua (essa espécie de chave das chaves) a porta que Dora insistia em manter trancada. Freud estava identificado com o senhor k. [Herr k.], e lhe intrigava que Dora tivesse declinado o cortejo de um bom partido como aquele. Seu comportamento, conclui Freud, era histérico; claro, era Freud quem se sentia rejeitado e rancoroso na situação analítica. Rejeição essa que Dora havia sentido, tanto em relação à senhora k. como em relação ao pai, que haviam a deixado de fora, dando-a primeiro para o senhor k., depois para Freud, para que ela não atrapalhasse o romance. A própria escolha do nome da paciente indicava algo assim: Dora 1 em grego (δῶρα) significa presentes.

Mais interessante do que simplesmente ver Dora como uma adolescente, vítima do assédio dos adultos, é a postura freudiana de implicá-la na cena. O que o artigo de Deutsch nos leva a pensar não é que escapou a Freud a garota traumatizada pela sexualidade dos adultos, mesmo que esse elemento possa estar presente e que possa ter de fato escapado, mas que escapou a Freud algo interno ao próprio aporte freudiano: a sexualidade de Dora tal como vivida na situação transferencial e contratransferencial.

 

Referências

Freud, S. (2016). Análise fragmentária de uma histeria. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 6, pp. 173-320). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905[1901]         [ Links ])

Freud, S. (2021). A psicopatologia da vida cotidiana. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 5). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1901)        [ Links ]

Gay, P. (2006). Freud: a life for our time. W. W. Norton. (Trabalho original publicado em 1988)        [ Links ]

Masson, J. (Ed.) (1985). The complete letters of Sigmund Freud to Wilhelm Fliess (1887-1904) (J. Masson, Trad.). Harvard University Press.         [ Links ]

Mezan, R. (2014). O tronco e os ramos. Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

1 Em A psicopatologia da vida cotidiana, Freud oferece uma outra explicação para a escolha do nome da paciente (Freud, 1901/2021, pp. 326-327).

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