Isso se move porque isso não cessa de transformar, enquanto continua sendo reenviado ao mesmo. (Green, 2004)
Transmissão e formação psicanalítica têm sido uma preocupação constante da comunidade analítica, não poupando nenhum de seus grupos ou instituições. Discussões, querelas, divisões se geram em torno e a partir da formação. O que estaria no cerne dessa inquietação e desse mal-estar? Talvez o próprio sentido da palavra “formação” e o ideal que ela encerra. O debate em torno da formação é gerado porque tem como pressuposto que seus três ou quatro eixos práticos (análise, supervisão, seminários e convívio institucional) deveriam obedecer ou se abrir para algo essencial do trabalho analítico: a escuta? A escuta, porém, nos ensina que as descrições tanto romantizadas da formação - bildungsroman, percurso, trajetória, caminho (de ouro ou de cobre) -, ou técnicas e estratégicas - aprendizagem, training - passam longe, senão na contramão, daquilo que se revela e se configura por meio da escuta. Já se dizia, e com muitas provas em mãos, que o desejo de formação carrega consigo a resistência à análise. Mas prefiro voltar a me deter no nome, na palavra. Talvez a palavra travessia, com suas conotações de apropriações múltiplas, imprevisíveis e indeterminadas, é a mais adequada para descrever a série de acontecimentos nesse processo.
Em 1923, Freud afirma que a deformação onírica é a única descoberta original dele, tendo encontrado, no entanto, posteriormente, um precursor nos livros do célebre engenheiro, filosofo e escritor, Josef Popper-Lynkeus (Freud, 1923/2011a). A deformação possibilita um tripé: o conteúdo manifesto, o conteúdo latente e o desejo inconsciente. O primeiro resulta de uma espécie de formação de compromisso entre percepções e vivências da vida da vigília, de um lado, com os últimos dois, de outro - obra de deslocamento, condensação, figurabilidade e disfarce - que os tornam irreconhecíveis no conteúdo manifesto. Neste despontam, também, os símbolos, precipitados da história da espécie humana, enquanto moldes e signos, frutos do plano de trabalho da deformação, outrora engendrados (a partir do assassinato do pai primevo), para constituir o projeto arquitetônico do mundo psíquico e da vida humana.
O trabalho de deformação engloba, portanto, a fábrica da vida psíquica, de sua plasticidade tópica, dinâmica e econômica, ou seja, de seu potencial de transformação. A descrição detalhada desse trabalho culmina no livro inaugural de 1900, que se detém, principalmente, no plano tópico, dos atos psíquicos tais como se revelam no regime das percepções, representações e seus afetos, e seus desdobramentos na esfera intersubjetiva e na cultura. Entretanto, é a investigação de suas raízes pulsionais e seus interjogos junto às instâncias do aparelho psíquico e seu entorno - elaboração que se estende ao longo de 25 anos - que permitirá esclarecer as implicações do trabalho da deformação na construção da vida psíquica, do sofrimento psíquico, de suas configurações clínicas assim como fornece uma inteligibilidade ao trabalho analítico, seu enquadre e sua técnica, e o seu preparo, isto é, a formação psicanalítica. Vou tentar desenhar, concisa e sumariamente, a fonte da deformação com base na dimensão econômica e sua incidência sobre as outras, dinâmica e tópica, da vida psíquica.
Da vesícula protoplasmática à função analítica
O ponto de partida de Freud é a matriz biológica, somática, tendo como modelo simplificado a vesícula protoplasmática enquanto unidade que se circunscreve do ambiente, com uma proteção própria do mundo externo, e por uma membrana de mediação seletiva com ele, mas cuja existência é mantida por uma fonte própria de energia. Esta se expressa por exigências vitais, forças e impulsos somáticos que são dirigidos ao mundo externo, demandando ações específicas para a providência de suas necessidades. Traduzindo esse modelo para o organismo humano, este se defronta com dois grupos de forças, uma do exterior, potente e esmagadora, e a outra, oriunda do interior, das necessidades vitais, de intensidades menores das do exterior, entretanto, não menos incisivas, ameaçadoras para o ser dos inícios. As forças e estímulos do exterior estão prestes a romper os envelopes do organismo e destruí-lo ou, de modo mais atenuado, causar dores, ao passo que os oriundos do interior, além da dor, o deixam em pane e desamparo. É o aparelho muscular que permite, em certa medida, segundo a lei newtoniana, a defleção das forças, a fuga e a descarga delas, que o atingem do exterior, cessando seus efeitos. Quanto às forças vindas do interior, estas não são passíveis de anulação, a não ser pelas ações específicas que satisfazem as necessidades do momento do organismo. A proteção e a viabilidade da vida se posicionam, então, nas mãos de um outro, de uma ajuda alheia, de um próximo, o adulto. Ele desempenha uma função de um para-excitação, um para-choque, defletindo e afastando, de um lado, os excessos dos estímulos que se abatem de fora sobre o sujeito, ao mesmo tempo que deixa à disposição deste uma outra função, mais especializada, de peneira, de um crivo, fracionando e selecionando os comprimentos de ondas desses estímulos, para torná-los, eventualmente, passíveis de assimilação e integração - convertendo-os em trabalho - pelo aparelho psíquico em formação.
Aqui devemos acrescentar um elemento essencial que nos transportará para outra dimensão, a mais decisiva para esse modelo: a partir de 1924 (Freud, 1924/2011b), Freud precisa admitir um estado e uma configuração pulsional preexistente e que diz respeito ao arranjo das forças dentro do que está em vias de se tornar um aparelho psíquico. Já em 1895, em “Projeto para uma psicologia científica” (1895/1995), ele designa duas tendências dinâmicas para as forças motrizes, uma que tende à descarga dos impulsos, e a outra, no sentido contrário, de fuga, de retração dos estímulos internos e externos. Uma centrífuga e outra centrípeta. Em 1924, ele supõe um arranjo de ligação, de junção, entre essas duas tendências, a segunda contendo a primeira, mas não inteiramente, de modo que uma parte fica disjuntada, solta, gerando uma espécie de um estado de amorfia, de nirvana, de um gozo de quietude. Essa reserva de criatividade cuja origem pode ser remontada à época da glaciação, da hibernação, é tributária de um estado de transição flutuante entre consciência, pré-consciência e inconsciência, gerada na área intermediária entre o isso e o eu nascente (Freud, 1938/2018). Ou seja, é um estado de passividade acordada, propícia à fertilização do meio. Tal pressuposição se torna de difícil compreensão já que nos desloca de uma dimensão dinâmica e econômica para outra, tópica, aparentemente incomensurável. Segundo o desenvolvimento feito até a introdução dessa faceta, as exigências vitais, de ordem centrifuga, irromperiam desde dentro do organismo “para cima”, causando dor e atingindo os aportes dos órgãos sensórios e musculares levando, portanto, ao espernear, à alucinação. A alucinação é o meio pelo qual as incitações e pulsações corporais se realizam. O que denominamos de desamparo, uma catástrofe alucinatória, se juntada, também, aos estímulos que se abatem sobre o bebê desde fora, do mundo exterior, e que têm um efeito semelhante já que atingem os órgãos dos sentidos e musculares.
Como afirmamos acima, o adulto, o próximo, enquanto para-excitação, não apenas protege o bebê, afastando os excessos dos estímulos vindo do mundo, além de servir de crivo, peneirando os comprimentos de ondas passíveis ao uso do recém-nascido. Ele, também, para as excitações de dentro, e não só pela ação específica de satisfazer as urgências vitais. A satisfação destas é imprescindível, porém, insuficiente. As excitações do corpo ameaçam pôr um fim ao gozo de quietude do estado nirvânico, que significa uma disjunção das tendências pulsionais, em que a vertente retrativa, da pulsão de morte, ganharia força, deixando a outra vertente, a excitatória, solta, prestes a desembocar num excesso de vida mortífero, de uma hipertrofia na alucinação e na atuação pela via dos órgãos de sentido e da motricidade. Entretanto, é a amorfia do estado nirvânico que se dispõe na área intermediária entre os corpos, do adulto e da criança, à linguagem, embutida na ternura do adulto, para a criação das trocas, fundada na escuta, na nomeação daquilo que afeta o bebê. Parar as excitações significa, nesse contexto, permitir, por meio da nomeação (na voz, na fala e nos gestos corporais) - pela linguagem -, a ligação das pontas soltas da disjunção pulsional, disponíveis nessa área amorfa do estado de nirvana, transformando-as, junto aos aportes sensoriais e motrizes, em imagens de movimento, notícias de si (Freud, 1895/1995), como apropriações vivenciais, precursores, no bebê, das referências autoeróticas. A linguagem propicia a ligação que transforma o nirvana em prazer, em princípio do aparelho psíquico nascente, como desvio das exigências vitais. O adulto, convocado, desde o início, pelo desamparo do bebê, concede ao recém-nascido, pela compaixão, por essa “fonte originária de todos os motivos morais” (Freud, 1895/1995, p. 32), um lugar no mundo, entre os seres humanos, mas é o trabalho da ternura, que propicia o tempo, uma verdadeira morada na linguagem, com os outros. O trabalho no adulto junto ao recém-chegado se faz pela via regressiva; o desamparo o “faz compreender” (Freud, 1895/2007, p. 626), remetendo-o ao seu próprio desamparo de outrora, dispondo os meios de ajuda que lhe foram dados então, o acolhimento. Entretanto, é a ternura, com sua reserva sexual recalcada no adulto, que seduz e convida o bebê, contendo, ao mesmo tempo, a agressividade das incitações somáticas, para a construção de seu tempo, de seu patrimônio autoerótico. Aqui, também, é a via regressiva no adulto, para esse terreno do brincar entre os corpos de outrora, de sua infância, que o habilita para essa função. A análise é uma reabertura dessas vias do trabalho do adulto, mas antes de adentrá-la e sua vinculação com a formação, vale precisar o trabalho da deformação implicado nessa construção do psíquico.
Se as pulsões revelam suas tendências opostas, centrífugas e centrípetas, a partir do acordar do estado de nirvana, de amorfia, este, por sua vez, tende ao gozo de quietude, de indiferenciação com o meio, de entorpecimento e narcotização e servirá, posteriormente, ao delineamento da ambivalência afetiva, da bissexualidade e do masoquismo primário, com seus largos e variáveis escopos de expressão (Freud, 1924/2011b). Entretanto, é a tendência de retraimento dos estímulos, a pulsão de morte, enquanto função secundária (Freud, 1895/1995), agindo sobre a tendência excitatória, de descarga, que determina os destinos da pulsão (recalcamento, formação reativa, inibição dos fins, a volta sobre si, inversão no contrário, dessexualização, identificação, sublimação etc.). Freud denomina esses destinos como defesas ante a pulsão sexual (Freud, 1915/2010c). Esses destinos são efeitos do trabalho do objeto, da linguagem, que se serve do retraimento da pulsão de morte para o próprio nascimento da pulsão sexual como consequência do desvio das exigências vitais, das pulsões de autoconservação. Mas não só! A inscrição da experiência em traços mnêmicos, da rede afetiva, das representações e das referências autoeróticas, são igualmente, como mostramos acima, consequências do trabalho da linguagem que se serve do par de oposto das tendências pulsionais para a confecção do aparelho psíquico. Este é definido como aparelho de memória, isto é, enquanto “efetividade contínua de uma vivência” (Freud, 1895/1995, p. 14), aquela com a linguagem, mediada pelo corpo do adulto e sua sexualidade infantil. Que significa a plasticidade e emolduração constante, o trabalho de deformação. O que leva Freud a acrescentar que esse aparelho de memória é, também, do tempo, da reaprendizagem (Freud, 1895/1995), em função da deformação. O enquadre, então, não seria outro senão o da linguagem que se desdobra na área intermediária entre os corpos e seus duplos efeitos de espelho de Lacan (fascínio, medo e submissão) à Winnicott (que reconhece, outorga e valida o sujeito em seus movimentos).
Acredito que essa elaboração metapsicológica, realizada por Freud nos 25 anos que seguem o seu livro inaugural, não é de fácil compreensão uma vez que toma partido da articulação entre forças e sentidos, entre pulsões e linguagem. Já em Sobre a concepção das afasias (1891/2014c), Freud aponta o elo entre o centro motor e o centro acústico que intuitivamente nos remete à ligação entre o espernear, a agonia do corpo e o grito do bebê, submetendo, portanto, o corpo à escuta do outro. É o trabalho da linguagem que se efetua pelo corpo do adulto sobre o da criança que propicia a ligação e gera o tempo psíquico, transformando a exigência vital em desejo infantil. Uma intrusão, em função da carência no adulto, converte a ternura em paixão (Ferenczi, 1982), assim como um empobrecimento da ternura, a retirada da atenção por parte do adulto, consequência de seu luto, depressão ou alcoolismo, entre outros, desemboca num abandono. Ambos, intrusão e abandono, denotam uma deficiência da linguagem, comprometendo sua função de ligação. São traumáticos porque afetam todo o trabalho da deformação do vindouro psiquismo. As incitações corporais que almejam uma ligação pela linguagem esbarram na tendência contrária de amortecimento da pulsão de morte, e, ao não encontrarem a ligação, insistem, configuram uma compulsão à repetição. Uma modalidade copiosa, rígida, de compulsão, de demanda incessante, portanto fracassada, de transformação (Lambertucci-Mann, 2018). É onde emperra o trabalho da deformação, da criatividade psíquica.
A análise é uma reabertura do trabalho do adulto sobre a criança, onde a contratransferência nada mais é do que o instrumento de para-excitação, veiculado pela linguagem. Nisso consiste a função do analista enquanto guardião do enquadre (Green, 1984), que seria o desdobramento do enquadre da linguagem nele internalizado (Green, 2012). O trabalho que a escuta encadeia é o do movimento de reaprendizagem pelo trabalho da deformação. Se na origem o engendramento do sujeito se deve à escuta, tal como Freud a concebeu, a análise a retoma, expondo os entraves e as rupturas nas regiões do psiquismo que impedem o trabalho da deformação e podem se prestar, pela reabertura da escuta, a uma certa medida de reforma e de reparo. Tanto na supervisão como nos seminários de estudo de um texto, a escuta retoma, deve retomar, o trabalho da deformação, da liberdade associativa. Uma especial atenção deve se impor ao que concerne às sutis, e nem tanto assim, relações institucionais entre mestres e alunos, e estes entre si, em que se infiltram as imposições de poder, das formas acabadas que as instituições dispõem como ideais do aspirado caminho de ouro da formação analítica. Se o trabalho da linguagem propaga, afetando a estase do arranjo das pulsões, o desvio das pulsões de autoconservação do eu, em direção à deformação, a sua realização, não obstante, é sempre coagida a retornar às metas da preservação do eu, entre elas o eu institucional e seus ideários. A vida como um desvio da morte (Freud, 1920/2010a) é sempre um passeio por um tempo limitado, fadado a ansiar por um repouso, por uma constância. Entretanto, conforme o pensamento de Green acima, esse reenvio ao mesmo, esse retorno, já abarca as transformações realizadas pela deformação, tornando-as aquisições psíquicas. O mesmo não é o idêntico, este último é fruto do traumatismo que desemboca na compulsão à repetição.
Almejar uma formação, no estrito senso de um trajeto e um percurso acabado é retornar ao eu e aos seus ideais massacrantes de identidades fixas e seladas, defendendo-se dos incômodos, oriundos do narcisismo das pequenas diferenças, para descartar outras propostas, contrárias às suas programações, anulando-as, condenando-as ao fora da psicanálise. O eu, amadurecido pelas aquisições identificatórias, se separa do outro por atos de linguagem sobre o corpo, de ligação, matizada no brincar famoso de fort-da (Freud, 1920/2010a), que tem como precursor o jogo de espelho de presença e ausência da mãe diante da dor e do terror de seu eventual desaparecimento definitivo (Freud, 1926/2014b). Neste, afirma Freud, adquire-se as representações dos órgãos internos, fruto de construção, pela linguagem, do trabalho de deformação junto ao objeto. A fragilidade desse complexo trabalho resulta na hipocondria, paranoia e melancolia dos órgãos internos que compõem o eu. O que o precipita no desespero da perda do outro, prestes, então, a se resguardar dessa perda pela massificação, no fascínio fanático pela imagem especular do outro que, segundo Lacan (1949/1999), passa a ser, então, obscena, tutelar e totalitária. Tamanha submissão voluntária tende, no extremo, a se refletir no efeito desse eu-ideal do grupo em torno de um ideário da “verdadeira psicanálise” e sua formação.
Questionando os projetos de formação
A preocupação de Freud de que charlatões e profanos poderiam se apossar da psicanálise o levou a aceitar a proposta de seus aliados, Ferenczi e outros, de constituir uma associação internacional de sociedades psicanalíticas com um projeto de formação adequado aos ensinos de apropriação da função analítica. Freud e seus aliados colocaram, como requisito imprescindível, a análise pessoal, único acesso ao universo psíquico próprio capaz de propiciar os meios de conduzir análises e poder aprofundar o conhecimento sobre a vida psíquica e suas configurações clínicas, a psicopatologia. Para se curar, se analisar, é preciso de um outro, é preciso ser dois; a rigor, a autoanalise é impossível, e a análise de Freud não foi diferente, as cartas dele com Fliess o atestam. Em outras palavras, é a demanda de análise, a noção de um sofrimento próprio, que se posiciona como ponto de partida para qualquer e eventual busca de formação analítica. O despertar dessa demanda ocorre muitas vezes a partir da leitura de um livro, como A interpretação dos sonhos e, mais frequentemente, a partir das Conferências introdutórias. Freud ficava, muitas vezes, preocupado quando defrontado com pedidos de tradução iniciais de suas obras sociais, pois era claro para ele que estas não poderiam constituir a demanda de análise e o interesse pelo potencial clínico e teórico da psicanálise, e logo sugeria começar com a tradução das Conferências introdutórias. Que a análise é o motivo da busca eventual de formação já constitui um questionamento quanto à sinalização equivocada de nossas instituições de formação, de que são elas que devem e podem provê-la. Questionar a busca da formação com base nos insights dos pretendentes sobre sua análise constitui, geralmente, o fio condutor das entrevistas com os candidatos, e não poderia ser de outra forma. Entretanto, oferecer-lhes uma lista de analistas “confiáveis”, da instituição, para uma “boa” análise, fere em grande medida a liberdade de escolha de quem poderia escutá-los para ampliar seu trabalho de deformação. O argumento de que a análise lida com atravessamento das resistências e que, portanto, estipular um enquadre adequado para ela, em termos de analistas reconhecidos pela instituição, frequência e duração que sejam suficientes para poder atingir essa finalidade, nos deixa novamente diante de um impasse e um equívoco maior. Pois, atender essa demanda institucional é capaz de desembocar numa resistência maior ainda, uma vez que a obediência, cumprir a regra, pode confinar o sujeito a um rumo contrário da associação livre e da deformação contínua para uma liberdade necessária de pensar, prestes a inseri-lo dentro de uma fidelidade religiosa. Qualquer vigilância da análise pela instituição é problemática, uma contradição de termos, justamente em função da natureza de deformação que esta implica. O antigo relatório (“report”). que avaliava após um ano de análise a viabilidade, a “saúde” do analisando candidato em poder ingressar na formação é um exemplo de distorção que, felizmente, foi reconhecido como tal e eliminado do programa de formação.
Outra questão, ainda quanto à análise do analista, diz respeito ao enquadre - frequência de sessões, duração da análise, o espaço físico, abstinência etc., - tem sido questionado desde o início e continua inquietando a comunidade analítica. Uma frequência alta tem uma razão de ser, e tem demonstrado um grau de eficiência maior do trabalho analítico, mas a questão é se esse reconhecimento deve ser imposto ou se deve obter reconhecimento pelo par analítico na intimidade de seu trabalho. A imposição é, novamente, problemática. Ademais, os parâmetros e os indícios da ocorrência de uma análise só podem ser avaliados por critérios interiores à escuta, e não pelos parâmetros empíricos do enquadre. Vários trabalhos em grupo mostraram que analistas experientes não conseguirem diferenciar, a partir da escuta de sessões relatados por seus pares, se tratava-se de “material” de análise de alta frequência (quatro-cinco sessões semanais) ou de menor frequência (uma-duas sessões semanais). A duração de uma análise estipulada previamente incorre em equívocos maiores ainda e fere gravemente a noção sobre escuta e processo analítico. A contradição, quase que cômica, surge quando um analista de nossa instituição se debruça sobre o processo analítico de um paciente ao longo de anos, ou seja, que é impossível de cronometrar, sabendo, ao mesmo tempo, que ele mesmo foi submetido ao tempo de tantos anos para cumprir o período mínimo requisitado de uma análise em sua instituição. Antes de prosseguir com a questão da análise do analista em formação, vale examinar, rapidamente, outros eixos da formação psicanalítica.
A supervisão, ou a troca sobre o trabalho analítico entre pares experientes e outros menos experientes nos parece essencial, e ela vem se desenrolando desde o início da história de nossa disciplina. A supervisão pertence a uma escuta e é, em certo grau, uma análise, uma análise de supervisão. Ela prossegue com o trabalho da deformação. Ela nos parece um eixo essencial e menos questionável, desde que o trabalho analítico, nela implicado, não seja emperrado e destruído por uma vigilância normativa, que posiciona o trabalho da deformação em apuros. A função do enquadre, enquanto para-excitação, está, como vimos acima, no cerne do tema da supervisão, e ocupa o par supervisor-supervisionado, acompanhando o trabalho da deformação do paciente em questão. Outro eixo da formação diz respeito aos estudos ditos teóricos cuja discussão ocorre em grupos de candidatos. Aqui, também, o estudo não pode ser desencarnado da escuta, do trabalho da deformação em voga, já que a metapsicologia, e a imensa literatura disponível, nos serve como órgão de observação do trabalho analítico. A formação prévia, médica ou psicológica, pela natureza exterior de seus aportes, não pode servir como requisito da formação analítica. Freud cuidou, empreendendo uma longa batalha, para que a formação analítica não seja entregue às mãos dos médicos ou psicólogos. Ele recomendou que o candidato seja munido de fontes culturais mais amplas, da literatura, da arte, da filosofia em certo grau, da história da cultura e suas religiões, da poesia, do conhecimento biológico, sobretudo da evolução, e nos forneceu várias amostras da importância destes para o conhecimento psicanalítico. Outro eixo, fundamental, é a constituição da comunidade psicanalítica em cada uma das instituições de formação. O diálogo não pode prescindir das direções constituídas pela escuta que esbarra frequentemente no mascare dos ideais e na paranoia do eu institucional. Essa batalha, que se configura muitas vezes entre feudos ideológicos de grupos em torno de um só pensamento, desafia o trabalho da deformação, põe em perigo a manutenção da comunidade analítica que deve se constituir em torno da escuta. Nesta, a noção da psicanálise enquanto psicologia social, fundada sobre a cultura, é de maior importância. O trabalho na comunidade, propiciando escuta às camadas mais vulneráveis de nossa população, a igual atenção às produções culturais e da arte, são todos de maior relevância enquanto fontes, restos diurnos e de vida, necessárias para nosso trabalho. E mais, a demonstração laboriosa de Freud quanto aos mal-estares na cultura, a sua destrutividade progressiva, traumática, que põe em risco a permanência da espécie humana, dependem da atenção à saúde psíquica, de seu engendramento via o trabalho da deformação. O que nos alerta para encontrar meios de cuidar da cultura em seu palco social e político. Esses aspectos são de maior importância e relevância para a formação, dado o alcance do conhecimento psicanalítico.
Gostaria nesse momento, de considerações finais, voltar para os eixos regulamentares da formação de nossa instituição vinculada à Associação Internacional de Psicanálise (ipa). As críticas, em parte, expostas acima foram, ao longo das décadas, encontrando certas modificações importantes. De um lado, levaram a cisões e abandono dessa associação, e hoje o maior contingente dos psicanalistas pertence a grupos e associações fora da ipa. Uma história que não deixou de afetar os questionamentos da formação dentro da ipa e que levou a transformações que estão ainda em curso. A Associação Psicanalítica de Paris obteve no início dos anos 1970, após a saída de Lacan, a permissão da ipa em prescindir da vigilância formal sobre a análise do analista, curiosamente em oposição aos regulamentos ainda vigentes dentro da ipa. Várias sociedades no mundo, e mesmo no Brasil, vêm destituindo a função de analista didata. Em algumas delas, membros associados obtém o direto de analisar candidatos, mediante um pedido formal; em outros, esse direto é concedido a todos os membros efetivos. Ademais, as análises de analistas em formação se flexibilizaram quanto à frequência, oscilando entre três e cinco sessões semanais. A duração dessas análises também vem se modificando, entre um período mínimo fixo, outros institutos vinculam a vigilância do período da análise do analista até a conclusão da formação oficial, ou até o início de suas supervisões oficiais. Outra variação diz respeito à frequência de análises supervisionadas em que a regra costumeira de alta frequência foi abandonada, pondo em relevo apenas a escuta do analista no desenrolar do tratamento de seu paciente.
A pandemia pelo covid-19 obrigou os analistas, durante mais de dois anos, a atender pacientes remotamente, além de analistas em formação que desconheceram presencialmente, nesse período, os seus analistas, e levou a uma interrogação quanto à existência ou não, ou mais ou menos eficiente, de um verdadeiro processo analítico. A discussão está em curso e deve continuar. A modificação radical das condições de presença corporal em um mesmo espaço põe uma interrogação pungente para o trabalho da análise. O conhecimento já adquirido aponta para a insuficiência dessa modalidade para a realização plena de uma análise, o que vem sendo confirmado pela maior parte das posições professadas. Entretanto, não há dúvida que parte dessa demanda de análise foi atendida e ela deve ser uma opção legítima em situações emergenciais como guerra, estado de sítio de guerra civil, pandemia entre outras. A modalidade online tem sido cada vez mais praticada mesmo antes da pandemia, sobretudo diante das mudanças contemporâneas da economia e cultura globalizada. Não obstante, ela se aplicava à continuidade de análises iniciadas presencialmente.
A análise remota não é de hoje. Ela se iniciou com Freud, com suas cartas a Fliess e, mesmo nas últimas décadas, vários pacientes prosseguiam suas análises via correspondência ou por telefone. A construção do enquadre físico foi consolidada lentamente a partir das intuições de Freud e depois obteve uma inteligibilidade própria dentro do pensamento metapsicológico. Mesmo no início da psicanálise, as condições de vida dos pacientes impunham mudanças sobre o enquadre. A análise dos discípulos de Freud junto a ele, como a de Ferenczi e mesmo a de Max Eitigon, o mentor do eixo principal de nossa formação atual dentro da ipa, não fugia a essas alterações. Quanto a este último, o par analítico, Freud/Eitigon, realizou uma análise cunhada por eles de ambulante, empreendida, durante anos, por passeios a pé pelas ruas da cidade de Viena. O limite dessa análise, reconhecida por ambos, não se devia ao enquadre especial escolhido pelo par, mas pelos impasses do alcance da escuta nessa análise. Freud alegava nas cartas a Eitigon que a fidelidade deste último a outros, sua servidão voluntária, não teve uma alteração significativa em prol de uma liberdade psíquica maior, uma fidelidade maior para com a sua própria alma. Um fracasso essencial de uma análise de quem imprimiu as coordenadas da formação dentro da ipa.
O mundo mudou, é verdade, e devemos nos adaptar cuidadosamente a essas mudanças, sem, no entanto, deixar de se ater ao que é essencial, e deve ser preservado: a escuta e seu trabalho de deformação, que libera o processo de engendramento do sujeito dentro do enquadre da linguagem. Como dizia Pontalis, a psicanálise é como uma tribo nômade que deve, a cada momento e lugar, reerguer os seus fundamentos.