O tema proposto neste número do Jornal de Psicanálise me remeteu a reflexões acerca do caso clínico de um garoto adotado atendido em psicanálise. Espero que esta possa ser uma possível colaboração, uma vez que vicissitudes relacionadas à formação/deformação ocorreram tanto relacionadas a dinâmica a que ele esteve imerso em seu entorno, como com relação à função analítica. Refiro-me a projeções massivas por parte dos pais, e da mãe em especial. Tal configuração relacional detectada nas entrevistas tornou necessária a realização de um trabalho com os pais, que aconteceu em paralelo ao atendimento do garoto. A realização desse trabalho mais abrangente é muitas vezes condição necessária para que o caso tenha um encaminhamento favorável e a prática da psicanálise com crianças e adolescentes possa ter uma efetividade.
Sobre a adoção
A adoção permite a pais que não possam ter filhos o acesso a essa experiência e a crianças que não puderam ser criadas por seus pais o acesso à possibilidade de ser nomeadas, criadas, frequentemente amadas e finalmente encontrem um lugar no mundo. A adoção é uma dessas soluções que atendem a múltiplos problemas, necessidades e desejos, portanto, algo positivo. Apesar disso, demanda trabalho por parte dos profissionais envolvidos, pais adotantes e da criança adotada. A elaboração dos lutos que acompanham as razões para que uma adoção ocorra é tarefa complexa e imprescindível.
No processo de gerar ou adotar uma criança está implícita a filiação simbólica, que teve início na elaboração edípica dos pais e tem seguimento através da convivência com o bebê real. Gampel (2014) afirma que “um filho requer uma inscrição simbólica, é desejado por alguém e está inscrito em uma história”. Cada criança tem uma pré-história no desejo dos pais, o desejo de viver do bebê está em relação com o desejo dos pais por uma criança, que tem matizes conscientes e inconscientes. O processo que acompanha o “tornar-se mãe e pai” é complexo e intricado: existem fantasias com relação à concepção, gestação, nascimento e naturalmente, infertilidade e adoção. Essas fantasias influenciam, e tanto mais quanto mais inconscientes e estranhas à concepção que os pais têm de todo o processo de filiação. Em 1919 em “O inquietante”, Freud (1919/2011) mostra que algo inquietante, estranho e estrangeiro, pode ter raízes no que foi vivido como familiar, mas que por seu conteúdo ameaçador ao funcionamento do ego foi objeto de recalque. O que foi vivido, e não suficientemente elaborado, pode aflorar de complexos infantis, moldar crenças e expectativas parentais e ser vivido como vindo do bebê.
É fundamental para essa criança encontrar um acolhimento, e podemos pensar que esse é o seguimento de um útero que cumpriu sua função de trazer a criança à vida, mas não a de uma continuidade de cuidados (Winnicott, 1945/1990) que propiciam a organização de seu corpo-mente. Isso lhe dará a experiência de ser alojada no bojo de uma relação, habitar seu corpo e ter uma mente, ou seja, usufruir de um espaço e um tempo para a constituição de um mundo simbólico e com sentido. Começa-se a criar um continente (Bion, 1962/1991), uma pele psíquica (Bick, 1967/1991), o processo de mantelamento (Meltzer; Brenner; Hoxter; Weddell; & Wittenberg, 1975/2008) organiza o corpo e propicia a constituição da mente.
A criança nascida ou adotada em uma família encontra um entorno que a receberá e em cujo bojo se constituirá como ser. Houzel afirma
que a família é ao mesmo tempo o lugar de inscrição da criança numa genealogia e filiação, inscrição necessária à constituição de sua identidade e de seu processo de humanização, e o lugar do confronto de três diferenças fundadoras com que todo psiquismo humano deve deparar e resolver: a diferença de si e do outro (alteridade), a diferença entre os sexos e a diferença de gerações. (2004, p. 50)
Esse processo de criação ainda possibilita o assentamento daquele ser em um contexto cultural e social. Estão imbricadas nesse amalgama fantasias e possibilidades mentais e emocionais dos pais, bem como suas circunstâncias de vidas. Toda essa conjunção terá uma influência na constituição da criança recebida e será parte do que chamamos infantil4 (Guignard, 1997).
Ebony and ivory:5 a vinda de Michael
Durante muitas sessões iniciais jogávamos Otelo, jogo trazido por ele no qual o tabuleiro era coberto por peças brancas de um lado e pretas do outro, cada jogador escolhia uma cor, o objetivo era expandir o número de peças até que uma cor preenchesse completamente o tabuleiro. Isso ocorria quando as peças de uma cor circundavam uma da outra cor, e esta se “transformava” de branca em preta, ou vice-versa.
Numa sessão me ocorreu a canção Ebony and ivory,6 trazendo à minha mente uma percepção importante através desse flash onírico. Como branco e preto conviviam? A alteridade era aceita? Naquelas partidas estavam em questão tanto a convivência quanto a sobrevivência: como conviver intimamente mantendo e respeitando as diferenças? As diferenças podem ser admitidas, ou devem ser eliminadas? Essas sessões silenciosas eram envolvidas em afeto contido e intensa necessidade de vencer, e naquele contexto vencer era sobreviver.
Sua história: seus pais foram residir no exterior, e, ao decidirem ter filhos, a gravidez não acontece. Após 11 tentativas de fiv, a mãe tem grave infecção no útero e deve removê-lo, bem como ovários e trompas. Encerra-se uma série de tentativas malsucedidas de ter um filho natural. Quando voltam ao Brasil para a histerectomia, decidem se candidatar à adoção. Além do processo oficial no qual ambos estavam envolvidos, a mãe faz secretamente um contato extraoficial. Retornam, um mês depois são surpreendidos pela notícia da chegada do bebê.
A decisão de adotar era recente, e talvez a mesma configuração mental que ocasionou procedimentos sucessivos para engravidar tenha motivado também a adoção quando não estavam absolutamente preparados. Toda uma situação traumática e dolorosa relativa à perda da possibilidade de ter um filho natural e a integridade física da mãe ainda estava em vias de ser elaborada. Tampouco dispunham de tempo para receber o bebê, uma vez que já haviam usufruídos das férias. Acredito que isso gerou uma situação precária, na qual o bebê não tinha um objeto com uma mente disponível, pois a mãe vivia um período de empolgação maníaca e em meio a lutos não elaborados.
Apesar da discordância quanto a adotar naquelas condições, a adoção extraoficial aconteceu. Enfrentaram dificuldades e turbulência, os cuidados se alternavam entre os pais e babás que se sucederam. Michael cresceu como uma criança de raça indefinida, que à mãe lembrava um mouro, filho adotivo de pais brasileiros residindo no exterior e criado por babás hispânicas.
Após 13 meses, recebem a notícia de um bebê a ser adotado através do processo oficial, e encaminham-se novamente ao Brasil.
Michael era pequeno, magro e de olhos inquietos. No início da escolaridade, aos 5 anos, apresentou grande agitação e dificuldade de concentração e foi diagnosticado com “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade”, passou a ser atendido em psicoterapia cognitivo-comportamental e medicado com Ritalina. Sua baixa estatura e magreza, a postura contida e silenciosa eram possíveis resultados da ingestão dessa medicação durante anos.
Sua origem, vivida com opacidade, não era admitida ou não se conversava sobre ela na família. Sua mãe considerava sua pele azeitonada como a de seu próprio irmão. O pai não comentou sobre as origens ou raça de Michael, mas entendi que a vinda dele acirrou um conflito no casal. O pai diz ter mais afinidades e semelhança com a filha.
Aos 10 anos, os pais se separam, o pai volta ao Brasil. A mãe se deprime e no início do ano escolar brasileiro, deixa seu emprego e retornam a São Paulo. Ela entra em psicoterapia, questiona-se sobre sua vida e percebe a necessidade de atendimento psicanalítico para o filho.
O trabalho psicanalítico com os pais
Concordo com Di Loreto (1997) em que adoção não é precondição para psicopatologia, mas uma condição a que todos os filhos, naturais ou adotivos, precisam passar: precisamos adotar nossos filhos e acolhê-los tais como são. Adotar, como afirma Gampel (2014), é o que temos de fazer para viver em casal, família, nas nossas instituições. Ao adotar, fazemos de alguém algo que faz parte de nossa vida. Mas isso não pode se dar com base na negação da história, raça, ou circunstâncias intrínsecas que acompanham cada processo de adoção: a criança tem um repertório que também a constitui.
O desenvolvimento da parentalidade7 (Lebovici, 1993) demanda todo um trabalho psíquico de ressignificação do bebê fantasmático e simbólico diante da experiência com o bebê real. Esse trabalho implica a criação de uma narrativa, para que tal acontecimento possa ser acolhido, simbolizado e tramado no psiquismo, e a história daquela criança possa ser construída com base no que é sentido e vivido como verdadeiro e genuíno para todos.
Lisondo (2015) fala do processo de avaliação psicanalítica com crianças e o conceitua como mudança catastrófica. Ela retoma o sentido da palavra “catástrofe” no teatro grego, que tinha o significado de mudança de estrofe, afirma que, em sistemas fechados nos quais mudanças não são bem-vindas, deparamos com imobilidade, dificuldade de pensar e aceitar o novo. A mudança de cena não conduz necessariamente ao desastre, mas só gera crescimento quando há possibilidade de ampliação do campo de percepção e pensamento, o que só acontece quando todos aceitam a possibilidade de mudar.
Acredito que o trabalho iniciado através da avaliação psicanalítica permitiu pôr em palavras e criar uma narrativa para questões vividas pelos pais, de forma que sua urgência e desejo por um filho e construção de uma família tenham podido ser enunciados e elaborados. Foi importante acolher e conversar sobre a impulsividade que trouxe consequências permanentes ao corpo da mãe e à vida da família, o luto pelo filho natural jamais nascido, e, sobretudo, sobre o bebê que não era visto com suas características próprias e cuja presença pedia trabalho psíquico para perceber, acolher e nomear a situação real vivida por eles.
Foram encontros reveladores de pensamentos nunca conscientemente pensados e prenhes de emoção. A mãe, voluntariamente, mostra a foto da filha, e menciono a semelhança com o pai. Ela concorda e diz que algumas vezes se preocupou com a cor da pele de Michael, mais clara quando bebê, mas nunca branca. Não conseguia acolher tal pensamento, sentia apenas receio.
Vem uma lembrança: uma noite assistiam a televisão, Michael com cerca de 1 ano e meio, ainda usava fraldas e a chamou. No quarto, deu com aqueles grandes olhos em meio à escuridão. Ele estava todo lambuzado de cocô, seu berço, só os olhos de fora… Sem que o marido percebesse, colocou-o na banheira e limpou tudo. Ficou constrangida e escondeu do marido aquele “deslize”, como se Michael pudesse decepcioná-lo. Não pensou, apenas agiu. Conversamos sobre seu temor de Michael ser rejeitado, a cor de sua pele era percebida, mas não admitiam ou conversavam sobre a diferença racial. Relata outra lembrança: “às vezes ele se cobria de talco. Será que sofreu com isso?! Será que ainda sofre?”
O ambiente predominante era de turbulência, o que dificultava o estabelecimento de condições propícias para o acolhimento e transformações de emoções e o desenvolvimento emocional, tanto das crianças quanto do casal. Defesas maníacas impediam o contato com sentimentos depressivos e percepção de perdas. Frequentemente exteriorizavam-se no julgamento do marido as apreensões do casal, de forma que esconder dele o que se passava tinha o sentido de ocultar qualquer conflito que também pudesse aflorar. O processo que teve início com a separação possibilitou a busca de trabalho analítico, e o campo transferencial passou a ser continente de insatisfações, receios, conflitos. O repertório da família se ampliou para incluir pensamentos que nunca puderam ser ativamente pensados.
A mãe pôde se perguntar sobre seus receios em relação a ele, seria aceito tal como era? Seria capaz de inserir-se como alguém que pertencia à família? Estaria à altura das demandas acadêmicas e sociais do seu meio?
Essas percepções desencadearam um trabalho psíquico no campo com a possibilidade da retomada de projeções. À analista coube a reflexão sobre a necessidade não só do cuidadoso exame dos derivados contratransferenciais que emergiram nas sessões iniciais diante do clima de ódio, mas também a necessidade de um trabalho com o entorno da criança de forma a favorecer a mobilidade e o desenvolvimento.
Michael pôde começar a ter um outro olhar, o que, entre outras coisas, propiciou a mudança do atendimento psiquiátrico que entendia suas dificuldades como provindas de deficiências cerebrais para uma abordagem psiquiátrica psicodinâmica, com a retirada da Ritalina.
Primeiro tempo do trabalho com Michael
Michael vivenciava o constrangimento dos pais quanto à sua origem e dúvidas quanto a suas capacidades em meio ao clima turbulento e confuso criado a partir das negações, que trazia uma nuvem de incompreensão na qual todos estavam imersos. Penso que isso gerou para Michael a criação de um objeto surdo-mudo8 (Lopez Corvo, 2006), que não podia ser alcançado através da interação verbal. Havia também a expressão de violência, que penso estar relacionada ao não acolhimento do nível pulsional que demandava transformação. Inicialmente experimentamos um clima de constrição e ódio, que mais tarde foi expresso pela violência.
No início Michael estava bastante tenso e atento, interpretando os barulhos de aviões e helicópteros como objetos ameaçadores, os prédios em volta eram descritos como blindados. Estávamos diante de intensa ansiedade persecutória, e ele estava imerso nessas vivências, pouco permeável a interpretação. Este estado se alternava com outro em que desenhava e ficava silencioso e distante. Seus desenhos eram complexos e representavam sistemas, cidades ou estádios de futebol. Eu me interessava pelos detalhes, procurava manter uma atitude atenta e presente, numa tentativa de me aproximar.
Um tempo depois Michael começou a trazer um clima de ódio e rivalidade latentes. Nas partidas do jogo Otelo, Michael mostrou que ebony e ivory não conviviam, mas alternavam-se. Inacessível às palavras que reconhecessem e dessem sentido ao que vivia, Michael encenava no jogo ali comigo o drama dessa realidade paradoxal. Nesse estado mental não se pode conversar sobre a necessidade de vencer ou a tensão da urgência de sobreviver. Por isso o conceito de objeto surdo-mudo (Lopez Corvo, 2006) fez sentido, não havia palavras, e, mesmo quando eu falava, ele não parecia ouvir. Tudo o que eu conseguia era sobreviver psiquicamente.
Acredito que o constrangimento quanto a suas origens e capacidades teve consequências para Michel no que diz respeito ao desenvolvimento da capacidade de apreender a realidade e a imagem que tinha de si. Ele teve prejuízos no desenvolvimento da capacidade de apreender a realidade, imerso que estava em um ambiente que não favorecia essas discriminações. Com frequência oscilava entre percepções e fabulações, e isso resultava na criação de uma realidade própria que expressava seus anseios por ser bem-vindo, bem-visto e valorizado.
Acredito que a imagem que tinha de si ligava-se à experiência de ambiguidade da mãe em relação a ele, e que ele vivia em relação a si mesmo. O espelho do olhar materno trazia repulsa e desvalorização e tinha como corolário superproteção e leniência, que estavam presentes nas dificuldades da mãe em estabelecer e manter limites. Ela sentia profunda culpa por essa dimensão de sua ligação com ele e procurava compensá-lo de uma maneira que só contribuía para a perpetuação dessa situação.
Na edição 14 do Psychoanalysis Today,Mondrzak (2021) conceitua o preconceito como fenômeno complexo e universal, presente desde os inícios da vida psíquica. A criança começa a conhecer o mundo dividindo-o entre o conhecido e o desconhecido. O que é do âmbito materno é vivido como seguro, familiar e desejável, e o que é não-mãe e, portanto, diferente é vivido como ameaçador, estranho e odioso. Nosso desenvolvimento nos oferece possibilidades de revisitar esses conceitos e alargar nossa experiência do que é familiar e seguro, ao mesmo tempo em que conseguimos assimilar um pouco mais do que é desconhecido. Há que se percorrer um caminho até que seja possível aprender a aceitar e apreciar o que é não familiar. Esse caminho está ligado à possibilidade de perceber o outro como separado e diferente, mas com valor. Esse é o caminho civilizatório que sempre precisamos buscar, porque o diferente é frequentemente suporte de ameaças, perigos, julgamentos e valorizações morais, que remontam ao que há de mais primitivo em nós mesmos.
Mas o que acontece quando, justamente nas primeiras identificações entre a mãe e o bebê, ocorre uma fissura em que “sou como minha mãe e ao mesmo tempo sou abjeto a ela”?
Penso que Michael experimentou uma espécie de rejeição/preconceito contra si próprio, uma vez que suas vivências iniciais - e mesmo posteriores - tenham sido por demais contraditórias e paradoxais em relação ao que é ser igual ou diferente, seguro/familiar, ameaçador/perigoso ou valorizado/ desvalorizado. Talvez ele tenha tido que fazer deformações na concepção que tinha de si para se assemelhar àqueles de sua família, ainda que isto tenha implicado deformações na sua capacidade de percepção e apreensão da realidade. Penso que essas transformações/deformações surgiram como uma demanda inicial nas primeiras entrevistas: “como tornar essa criança mais parecida conosco e mais adaptada à vida familiar?”. Possivelmente eu tenha vivido no campo com Michael a violência dessas demandas encenadas no jogo Otelo: quem transforma/deforma quem?
Segundo tempo: a retirada da Ritalina
A retirada da Ritalina trouxe um afrouxamento da constrição e uma progressiva movimentação em Michael, a rivalidade e a constrição se diluíram em meio à movimentação. Era uma progressão das partidas de Otelo, em que expressava o que vivia corporalmente, e pudemos iniciar uma conversa sobre o plano das emoções. Conversa com muita ação e quase nenhuma reflexão de início, que quando ocorria era expressa na intensidade dos jogos de futebol e através de músicas que me vinham à mente. Mas era a conversa que precisávamos ter: a de acolher e trazer para o bojo da relação o que havia ficado de fora. Aos poucos as músicas lembradas foram sucedidas por músicas e clipes que ele passou a trazer, que eu fazia ou que fizemos juntos. Havia que se usar de criatividade, temperando as palavras com ritmos e melodias.
Uma vinheta do segundo ano de análise, segunda sessão de três semanais
Está 15 minutos adiantado, escuto barulhos na sala de espera e vejo que está bravo, aproxima o boneco Transformer do meu rosto e faz um barulho forte.
A - Vejo que veio com o boneco T e que está bravo! Será que acha que eu atrasei o seu horário? Eu demorei, né?! Mas você chegou 15 minutos antes…
M - Vamos jogar queimada!
Joga a bola na mesa, onde está desenhado um menino que chamei de Michaelzinho. Ele grita:
M - Aí, se ferra!
A - Mas … vai ser queimada ou tiro ao alvo? Vejo que você está com raiva…
Ele parece ameaçador, mas diz que não está com raiva e não vai me acertar, vai jogar fraco. Observo uma outra expressão.
A - Vamos conversar? Posso te ajudar a falar do que vive, sem ter só que descarregar (ele continua jogando a bola com força contra a mesa). Você vem da escola e tem que se mexer, pôr para fora, mas a gente nem consegue saber o quê … hoje achei que ficou bravo comigo, que demorei para te atender, vamos, por palavras, transformar! M - Preciso ir ao banheiro!
Sai e eu o sigo com o olhar. Fico desanimada, percebo que ele precisa descarregar, penso que é preciso jogar. Preparo a sala.
A - Acho que você tem razão, para transformar uma coisa em outra, temos que ter essa coisa a ser transformada. No seu caso, a atividade!
M - Quero jogar vôlei, vamos colocar o colchão como rede!
A - Pois é, tem inglês, português, japonês, e tem também atividavez, essa língua que você fala tão bem! Nós estamos aqui para transformá-la para o português.
Vamos jogando, a regra é cambiante. Inicialmente (1) quem não rebate perde o ponto, então (2) pode bater duas vezes antes de rebater e não perde o ponto, por fim (3) agora é fazer a bola correr, os pontos já não interessam. Vou jogando e falando com ele, na situação (1) digo “você quer vencer, bater a bola e mostrar que consegue, que seu jogo é bem melhor”. Na situação (2) digo “já não importa a regra, o negócio é conseguir mandar a bola”. E (3) digo “a coisa já mudou, não tem mais regra, é fazer a bola passar e se mexer com muita vontade, é pôr para fora” … ele joga e lá pelas tantas se joga em cima de colchão, exausto!
M - Daqui a pouco vou desenhar torcidas de futebol no “tapete mágico” (o colchão no chão).
A - Tapete mágico?! Lembro a música “A whole new world” - chegamos ao Aladim?!
M - Aladim (ele pronuncia em inglês).
A - Você me lembra mesmo muito o Aladim, olhos grandes, cabelo castanho e encaracolado…
Enquanto desenha, penso na melodia e na história, o menino pobre que tem acesso a outra realidade, penso na Jasmine, no macaco. Digo isso a ele. Ele me conta o nome do macaco: Bo. Penso ainda no tapete mágico que é o desenho como forma de simbolizar e elaborar…
M - Boa! As canetinhas preta e vermelha estão falhando…
A - É verdade, você desenhou bastante com elas! Tantas torcidas têm essas cores… registrou muita emoção e empolgação! Esperança também! As pessoas no estádio torcendo para o seu time ganhar, para fazer um bom papel, ser vencedor, campeão… M - Sim!
Ele começa a lembrar os nomes dos times, das torcidas, locais com outros times que usam outras cores, o Grêmio, times que usam azul… (possibilidades mais depressivas?) Outros lugares, outras pessoas, por alguns ele passou, por outros só imagina… de onde será que veio? Qual terá sido seu caminho? Estamos chegando à hora, aviso e o convido para ajudar a guardar, ele não quer. Vou guardando e digo que ele não quer ter esse trabalho de guardar, será que ficou desanimado com algo? Nossa despedida?
Inicialmente no jogo observo a necessidade de manter um estado de excitação e descarga como uma forma de evitar a depressão. É isso o que percebo com sua saída para o banheiro, o estado de excitação encobre a depressão: se parar, o que será dele?
Temos melhores condições com a possibilidade de narrar o seu estado emocional no jogo e com o desenho no “tapete mágico”. Essa situação favorece o sonhar e a temática do “Aladim-mouro-pobre-que-acha-a-princesarica” começa a surgir. A música do filme traz o clima de magia do encontro com um objeto esperado e um novo mundo que se descortina com a possibilidade de encontros. Na conversa sobre o desenho percebo que as cores/ afetos podem ser mais brandas, conversamos sobre o que não está mais presente. As canetinhas preta e vermelha ficaram gastas de tanto ser usadas para expressar emoções fortes, mas ainda temos o barulhento e ameaçador boneco T (Transformer). Ao que ele corresponde? Estaríamos nos aproximando de outros aspectos de Michael?
O clima turbulento de sessões de jogos disputados e intensos alterna-se com outras tendo um jogo mais cooperativo e um clima propício à conversa. Ao falar da turbulência, surge o personagem do menino que já pode falar de tristeza e tem consciência do que o deixa triste. Lembro-me do período em que só havia ódio e nenhuma palavra era aceita, a menos que fosse cantada, agora há alguém com quem falar.
O tema da separação foi tratado através do relato da separação dos pais do seu melhor amigo. Conversamos sobre culpa, dor e confusão, dor sentida concretamente por ele quando “caía e se machucava” nos finais de muitas sessões. Era uma oportunidade de experimentar viver comigo a dor de se separar, reconhecer o sofrimento e o desamparo que vivia. Depois de muitos desses finais de sessão ele passou a se recuperar mais rapidamente e a me ajudar a pôr a sala em ordem.
Conversamos sobre perdas: os pais juntos, a antiga escola, os amigos, a casa, a cidade, a cultura. Ele precisou se adaptar ao país que só conhecia como visitante. Esse assunto surgiu com base no repertório dos acidentes na aviação, as turbulências, a queda e o desaparecimento de aviões, a procura por destroços e sobreviventes, a profunda desilusão e dor. A contundência do conteúdo dessas conversas deixou a nítida impressão de que, por trás dessas perdas, havia outras, estas mais difíceis de serem expressas: a perda da continuidade que a ruptura provocada pela separação da mãe biológica ocasionou. Ritmos e sons mudaram radicalmente, outros idiomas, outras temperaturas, outros ritmos, uma ruptura total. Possivelmente a ruptura provocada pela separação dos pais e o retorno ao Brasil tenha ressignificado aquela dos inícios de sua vida.
Vídeos e raps do Eminem9 foram trazidos por ele. Em When I’m gone, uma menina, personagem para suas vivências mais pungentes, narra a dor da separação dos pais, a saudade e a culpa. E qual teria sido a culpa de Michael?
Era nossa tarefa acolher, transformar, sonhar e nomear o que era experimentado no campo transferencial. Para chegar a momentos mais depressivos, foi preciso passar por um estágio no qual a turbulência de Michael pôde se manifestar através de brincadeiras ativas e prenhes de agressividade. Acolher e conter a massa de afetos turbulentos, chutes e golpes de bola e inseri-los no contexto das brincadeiras foi a forma que encontramos para admitir em seu funcionamento psíquico a turbulência que experimentava.
Segunda sessão da semana do segundo ano
Arrumamos a sala para a queimada. Ele me instrui a como fazer a bases, locais onde podemos nos proteger. Temos ainda escudos, faço uma base e ele, outra. Ele move o gaveteiro e faz sua base, eu uso a mesa e a tampa da caixa. O colchão também é usado. Eu saio a seu pedido, e, quando entrar, serei recebida a boladas, uso uma almofada como escudo. Duas bolas são para mim e duas para ele. Inicialmente ele joga muito forte, mas a meu pedido diminui a intensidade. Vamos jogando, ele atira em mim, e eu, nele, nos protegemos com os escudos. Mudamos de lugar, walking shield (escudo portátil), ele diz. Vou para a base dele, e ele fica com a minha, protegido ainda pelo colchão. Brincamos, jogando e pegando novamente as bolas, eu fico numa mesma base, e ele alterna um pouco. Ele joga as bolas com força, mas joga contra o escudo. Eu digo a ele que esta brincadeira é bem forte. Repito algumas vezes, mas noto que não é realmente para acertar, é um brincar de jogar com força. Ele precisa de uma parceira à altura. Estamos perto do final da sessão, e eu sugiro que encerremos. Tento conversar.
A - Mas que brincadeira é essa, hein?! Se não me protegesse ia machucar!
M - Eu brinco assim com meus amigos. É legal…
A - Eu percebi que a graça está em jogar forte. E, se não se proteger, já viu…
M - Mas você se machucou? A - Não.
Enquanto falamos, ele joga basquete. Durante um tempinho fico tentando traduzir o “atividavez”, mas logo percebo que, se ficar em meio às boladas, serei alvejada. Levanto e sugiro que arrumemos a sala, e me ocorre a música do Adoniram Barbosa, que canto para ele:
De tanto levá frexada do teu olhar, meu peito até parece sabe o que? Tauba de tiro ao Álvaro. Não tem mais onde furá.
Ele escuta e começa a batucar: “Salve o tricolor paulista”… Fazemos uma dupla! Estamos na hora, digo isso a ele, mas fico pensando no restante da música: “Teu amor mata mais que tiro de carabina, que veneno estriquinina, que peixeira de baiano! Teu amor mata mais que atropelamento de artomove, mata mais que bala de revorve”. Um novo pensamento me ocorre: Êita amor perigoso!!!
Considerações finais
Como afirma Franch (2005), o mundo pulsional pode ser fonte de profunda perturbação e violência, não só pela intensidade das pulsões, mas por estas não serem suficientemente contidas no bojo da relação objetal. Todo o trabalho da dupla mãe-bebê envolve o acolhimento das necessidades precoces, que podem ou não ser satisfeitas. Quando estas forças, entretanto, não são admitidas por dificuldades ambientais, sua intensidade é sentida como violência, um vulcão interno que está prestes a emergir e é mantido suprimido, naturalmente às custas de grande dispêndio de energia e com enormes prejuízos para o desenvolvimento.
Michael esteve constrito pela medicação durante muitos anos, e, quando finalmente pôde começar a manifestar o nível interno possivelmente sentido como violência, a agressividade ligada a frustrações ou a própria impotência diante do que sentia se exacerbou. Foi tarefa da dupla ligar essa agressividade, trazê-la para os jogos, nomeando e encontrando um sentido por meio das músicas e das conversas.
Bégoin (1993) fala das partes não nascidas do self, que conteriam grande poder destruidor. A fonte da violência estaria na não admissão dessa área pulsional, que passaria a ser afetada pelo sinal da negatividade e da destrutividade. É como se o sujeito se identificasse com um objeto que não recebe ou contém parte significativa de seus estados emocionais.
Acredito que tal identificação tenha sido necessária para a sobrevivência de Michael, mas, ao internalizar tal objeto que condena ou rejeita seus estados emocionais, ele rejeita a si próprio. Uma aproximação a esse objeto foi feita por meio da concepção de “objeto surdo-mudo” de Lopez Corvo e o objeto do preconceito de Mondrzak. A introjeção e manutenção desse objeto tiveram um efeito devastador, sobretudo por dificultar a continência e transformação desse nível pulsional, que passa a ser vivido com o sinal negativo da destrutividade e horror a si mesmo, uma deformação na qual se perde o contato com parte das fontes de vida.
Quero destacar que só pudemos tratar de temas significativos da sua história, como rupturas, separações, perdas ou pensamentos que tinha sobre si mesmo, porque foi possível fazer esse intenso trabalho no nível da continência emocional. Nossa dupla acolheu alguns dos personagens que emergiram, como o ameaçador boneco T, os animais selvagens, as torcidas inimigas que surgiam nas sessões mais turbulentas. Acredito que não representassem, simbolicamente, mas traziam consigo a violência como um signo ou ícone.10 Eram trazidos para que pudéssemos conhecer aspectos sensoriais impactantes para serem transformados e inseridos no universo simbólico.
Juntos pudemos trazer para o campo analítico parte dessa turbulência e fazê-la tramitar no psiquismo de Michael, que pôde retomar seu desenvolvimento afetivo emocional em bases mais produtivas e de maneira mais integrada, servindo-se das fontes de vida e energia psíquica que deixaram de ser vivenciadas como destrutivas. Acredito que pudemos trabalhar questões ligadas a sua origem e a como era visto por sua família. Dessa maneira, o sentimento de filiação e pertencimento ficou estabelecido, bem como mais bem estabelecidos o sentimento de identidade e as identificações.
Quero destacar, sobretudo, o trabalho com a família, que trouxe à luz questões importantes ligadas a lutos não elaborados e a necessidades imperiosas que tiveram como consequência a vinda de Michael para essa família. Havia questões ligadas à não admissão da alteridade que resultaram num lugar paradoxal para Michael. Ele estava lá, mas não era visto e aceito em sua singularidade e estava à mercê de demandas para que se tornasse mais parecido - transformado - aos outros da família, e àqueles com os quais convivia, tal como a peça preta se transformava ao ser circundada pelas brancas. Essa demanda era imperiosa e se estendia também ao trabalho analítico com Michael, ainda que feita de forma inconsciente. Essa tensão foi vivida no campo transferencial-contratransferencial, e as entrevistas com os pais foram cenário importante para que lembranças fossem expressas e ganhassem um sentido que nos permitisse vislumbrar o drama das forças em questão. Acredito que sem esse trabalho não seria possível alcançar a compreensão do que estava em jogo ou levar adiante o trabalho analítico. Aos poucos a riqueza interna, a singularidade de Michael foi tomando forma e sendo cultivada.
A adolescência veio com as vicissitudes de oposição e transgressão que lhe são características, mas sem maiores turbulências. Michael trouxe seu interesse por trens; visitar estações e aguardar os trens era um passatempo antigo que retornava, ele conhecia os modelos e filmava sua chegada e partida. Pensando sobre o significado desse interesse, formulei a hipótese de que, tendo aprendido a lidar melhor com seus estados emocionais, estando mais integrado e tendo estabelecido um pouco melhor o sentimento de identidade e pertencimento, ele buscava conhecer algo que ia e vinha - os trens - como uma metáfora de sua vida, com transições, movimento e, sobretudo, potência, uma potência agora sua, que impulsiona e leva adiante.