Agradeço o convite que me foi feito primeiro pela Suzana Muszkat, agradeço também ao Tiago e à Dora3 e já vou agradecer também por estar aqui com o Thiago Amparo, alguém que admiro muito; e à Vânia e ao Paim.
Farei uma fala com base no que o Thiago traria sobre o que é racismo estrutural e como que se estrutura essa ideia de normalidade, o que isso beneficia a nós, brancos, e nos põe em uma posição de benefício pela sociedade. Vi que há muitos judeus aqui, sou judia, e gosto de usar o exemplo para diferenciar racismo estrutural, como disse o Thiago, e preconceito. O antissemitismo é algo que difere daquilo que é o hegemônico na sociedade, a sociedade é cristã; em dezembro acontece o Natal, e eu tenho que falar para o meu filho: “não, a gente não comemora Natal, é Hanukkah”. Isso faz com que as pessoas que não têm acesso à saúde, educação, saneamento básico e sejam exterminadas no Brasil hoje em dia, são os judeus? Não. Mas sofrem preconceito, certo? Tem gente que acha que os judeus são donos do mundo. Sofrer preconceito é muito diferente de estar sob a égide do racismo estrutural. A Alemanha nazista tinha antissemitismo? Tinha, antes de ser nazista. O Estado-nação se organizava por meio do antissemitismo? Sim, essas pessoas perderam direitos, foram para campos de concentração, viraram pó… O Estado-nação Brasil organiza-se pelo racismo, ele estruturou a nação e continua se organizando através disso, significa dizer que nós não estamos apenas no âmbito daquilo que produz diferença, e uma diferença que gera desigualdade completamente nas relações e acesso a todos.
Então, o que é o racismo estrutural? Significa dizer que se tudo acontecer em sua normalidade, foi o que Thiago acabou de nos dizer, o resultado será racista. Ou seja, se cada um de vocês resolverem que não são racistas não adianta absolutamente nada para mudar a estrutura deste país; é o que a Angela Davis diz: “numa sociedade onde há racismo estrutural não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”.
James Baldwin tinha uma fala que acho muito importante: o problema não são aqueles 5% que levantam a camiseta do White Power, são aqueles que não têm intenção de ser racistas, mas se beneficiam e continuam se apropriando de todos os benefícios de estar numa estrutura racista, sem falar ou fazer absolutamente nada.
Se pensarmos que esta sociedade tem 70 anos e que provavelmente as pessoas se pronunciaram mais aqui dentro, quando fizeram um curso de psicanálise particular ou pensaram em fazer uma universidade de psicanálise, do que com as 100 mortes de crianças negras assassinadas no ano passado, podemos pensar que a construção também é estruturante de uma subjetividade que, no mínimo, é desumana. Quando se desumaniza o outro é impossível não desumanizar a si mesmo. Não conseguimos olhar para um alemão nazista da Segunda Guerra e dizer “nossa, que pessoa humana”, certo?
A condição de branco na sociedade brasileira é o seguinte: todos nós, brancos, nos beneficiamos da estrutura racista. E estudar branquitude significa tentar compreender como fazemos com: - Olha, eu trouxe essa imagem, essa imagem do que é “normal”.4 Esse é o tj. Ou seja, o tj produziu um concurso, para o qual não estava escrito only white people. Não. Na entrada da SBPSP de São Paulo está escrito only white people? Não. Como fazemos para que só pessoas brancas estejam ocupando lugares de poder sem que isso seja visto como um Apartheid? E é um Apartheid! Como que se naturaliza que em 56% da população a gente tenha essa cena como tj sem pôr only white people, e isso seja ok? Como se faz que pessoas brancas fiquem entre brancos apenas numa sociedade com 56 pessoas negras e que isso não seja posto como uma questão? A gente vai lá, almoça, janta, faz o curso, aprende alguma coisa, num Apartheid, num lugar onde provavelmente os técnicos, as pessoas que limpam a associação também são negras… e isso fica sendo visto como um lugar de normalidade.
Então, a pergunta a se fazer é: como brancos chegam ao topo da hierarquia social sem que isso seja visto por eles mesmos, ou por nós mesmos, como privilégio de raça? Se eu perguntar para vocês aqui, quem quiser responder, por que não há negros na Sociedade? Ou por que são muito poucos, um número ínfimo? O que vocês responderiam? Provavelmente, se vocês estão no âmbito progressista da nossa sociedade, responderiam: “não há negros aqui porque existe racismo estrutural”. Estou falando dos progressistas, porque, se esta não for a resposta, a outra é a resposta racista: “é porque eles são piores”. Então, só há uma resposta para explicar por que não há negros aqui: porque existe racismo; se não for essa a resposta, é porque se acredita na superioridade branca. Então, respondemos: não há porque existe racismo. Agora, se perguntamos para as pessoas, por exemplo, em meu Departamento de Psicologia, composto de cinquenta professores brancos: “O que você fez para chegar aqui?”. A resposta é: “Estudei muito, trabalhei muito, meu pai trabalhou…”, mérito. Como podemos, ao mesmo tempo, reconhecer que as pessoas negras não estão porque há racismo e nós estamos onde estamos porque temos mérito, estudamos, batalhamos, trabalhamos? Há algo que não fecha.
Como funciona a supremacia branca brasileira? Ela tem que funcionar com duas ideologias muito fortes: uma, temos oportunidades iguais, o que foi chamado de “democracia racial”, cunhada ali na década de 1930 por alguns intelectuais e que fica maior na obra de Gilberto Freyre como a ideia de que temos oportunidades iguais. Esse é um Brasil em que há oportunidades iguais. Se as oportunidades são iguais e só os brancos estão no topo da hierarquia social, logo qual é a conclusão que se chega se você pensar na lógica? É porque são melhores. O que é pensar que brancos são melhores, senão uma supremacia branca, senão a ideia de superioridade branca? Então, o que produzem os estudos críticos de branquitude que passam a ser feitos no período seguinte, em função dos quais todos os estudiosos vão dizer que essa é uma identidade ou uma produção de identidade com base no colonialismo, na exploração, que supõe uma ideia de superioridade branca, superioridade civilizatória, superioridade moral, superioridade intelectual, os componentes que formam a ideia de raça.
O que é a ideia de raça? É dizer que porque uma pessoa pertence a essa raça ela vai ter tal fenótipo que nos informa sobre uma continuidade moral, intelectual e estética. Ou seja, se acreditamos que os humanos todos não têm raça, seria impossível dizer que os brancos são mais civilizados. Mas nós dizemos “no Sul as pessoas são mais civilizadas”, elas são brancas. O que estamos dizendo? Que, por pertencer a um grupo, essa pessoa terá uma continuidade moral, intelectual e estética.
Quando eu fazia doutorado, fui até a Sociedade Brasileira de Psicologia, porque minha orientadora no pós-doc, na época, me convidou para pensar sobre a Virgínia Bicudo. Para isso estive na Sociedade Brasileira perguntando às pessoas que fizeram análise com Virgínia Bicudo quem era ela. Quando saí, eu não consegui… eu disse à minha supervisora da época: “É impossível escrever sobre a Virgínia Bicudo, a única coisa que me ocorre nesse momento é refletir sobre como a branquitude operacionaliza-se em olhar uma mulher negra”.
Em determinado momento me foi dito que Virgínia Bicudo se embranqueceu porque estava de chapéu e xale. Ou seja, todos os psicanalistas na época usavam chapéu e xale, o que ela teria de usar na cabeça? Uma ideia de que ela ficou civilizada, então se embranqueceu. Eu não poderia dizer nada sobre a Virgínia Bicudo, mas dá para dizer sobre a ideia de que a branquitude é esse lugar de conforto em que se olha o outro com uma lente que não se usa para olhar a si mesmo, que é a da raça. Ou seja, é o outro que tem raça, é o outro que tem etnia.
Isso chega a ser tão chocante, que outro dia - vou trazer uma imagem que para mim é muito chocante. Vocês estão vendo essa imagem? É muito chocante, fico até constrangida de ler essa imagem. Estava no Instagram de um colega que se formou comigo em São Paulo. Ele fez Medicina, e eu Psicologia, e ele fazia a propaganda de uma rinosseptoplastia étnica. Ou seja, rinosseptoplastia para nariz negroide. Então, eu fui lá escrevi: “fulano de tal, isso é racismo!”. Ele respondeu: “Não, é o termo técnico”.
Se vocês estiverem com sono aqui me ouvindo agora, vocês podem ver esse termo técnico. Chama-se ethnic nose. Ethnic nose é um tipo de nariz, para o qual existe uma forma de rinosseptoplastia étnica que faz com que esse nariz possa tornar-se fino e branco.
A branquitude também é esse lugar que se apossa de quem tem etnia. De acordo com ela quem tem raça é o outro, porque no branco está a ideia de humanidade, acompanhada da ideia de norma, de padrão. Se eu perguntar a vocês quem nessa imagem está vestindo roupa étnica, provavelmente vocês vão me dizer que é esse rapaz negro.
O que é étnico? O que pode ser étnico? Étnico é uma representação para um grupo social, assim como, por exemplo, um cocar tem uma representação para sociedades indígenas, é usado em rituais de poder, ou em alguns outros momentos, às vezes, em festas. O que é um terno e gravata? É uma roupa com o significado de que a pessoa está arrumada, tem aspecto corporativo, vai para algum lugar, merecendo respeito. E é vista como uma roupa normal, conforme o lugar em que entra a pessoa que os veste. Um salto alto significa feminilidade, na verdade, um fetiche. É algo que em geral machuca a mulher, mas é usado normalmente e não é visto como étnico. Já, se usar aquele alargador na orelha, será visto como étnico.
Então, a branquitude tem como uma de suas funções apresentar e produzir poder, com a ideia de gerar subjetividade, na qual o outro é específico e o branco é a norma, o branco é padrão. O que é a branquitude então? É tornar uma particularidade, modus operandi dos europeus, em universal e padrão em uma relação desigual e hierárquica. Isso significa dizer que isso é visto em todas as formas, como nos jornalistas falando sobre a Ucrânia, na ideia de que há uma humanidade na qual os outros devem se espelhar e que precisa ser alcançada.
Se voltarmos a essa imagem, ela é uma metáfora do que diz: “os outros devem alcançar esse nariz”, mas não são só os outros que devem alcançar esse nariz, não é só isso que acontece na branquitude; eles devem alcançar esse modo civilizatório, esse modo de organizar-se, esse modo de pensar o mundo, esse modo de organizar a família, esse modo de achar o que é racional e o que é humano.
É toda uma concepção de humanidade construída por meio do eurocentrismo. Isso significa dizer que o que se constrói na Europa é ruim? Não, o problema é o seguinte: se eu pergunto para as pessoas onde nasceu a Filosofia, provavelmente elas vão me responder: na Grécia. E o que nasceu na Grécia? A filosofia grega. A filosofia tupi nasceu no Brasil, a filosofia chinesa na China, a filosofia egípcia no Egito. O problema é tornar a filosofia grega a filosofia. O problema é tornar o padrão de beleza da Renascença “a beleza”, num lugar como o Acre em 2022.
A branquitude é esse lugar que as pessoas brancas recebem e no qual são beneficiadas, como disse o Thiago, por uma posse. A branquitude é uma posse. Assim como a gente tem o carro, tem a casa, a gente tem… a brancura da pele… torna-se uma posse em países que têm racismo estrutural, posse que significa também uma forma de entrar e ascender na sociedade de classes. E ela se organiza, eu poderia falar horas como ela se organiza, mas ela se caracteriza em torno da ideia de posse, da ideia de normalidade, da ideia de que é padrão, um lugar de conforto, da ideia de superioridade. E, principalmente, inventando e não parando de inventar o outro, o outro negro, o outro…
Nada que se diz do negro hoje tem a ver com o negro, ou que ele é violento, ou que ele é bom trabalhador, mas tudo tem a ver com as relações de poder. Fala-se muito mais quando ouvimos quais são os estereótipos do negro, de quem são os brancos e que lugares de poder querem alcançar, do que qualquer coisa que possamos saber sobre os negros. Então a branquitude é um lugar de poder em que se inventa o outro para se situar nesse lugar de norma e padrão de humanidade também.
Agora, todos nós, brancos, somos beneficiados por isso. Recebe privilégios materiais simbólicos, e disso nenhum de nós tem culpa, nascemos brancos, alguém tem culpa de nascer branco? Não, assim como não tem culpa de nascer negro. E recebemos esses benefícios.
Vamos pensar que a pessoa nasceu no hospital do Itaim, e nasceu de olhos verdes, começam a dizer: “Que olho verde, que lindo!”. E quando vai para a escola: “Nossa, que príncipe!”. A fralda dessa criança é trocada antes do que a da criança negra, porque a ideia de limpeza funciona mais para essa criança. O cabelo é penteado, porque a professora sabe pentear o cabelo, mas não sabe pentear o da criança negra, nem sabe que se penteia o cabelo da pessoa negra para cima, e não para baixo, porque machuca… existem milhões de benefícios que essa pessoa vai recebendo.
Mas qual é o problema central da branquitude? Não é receber os benefícios, mas distribuí-los apenas entre o próprio grupo. Essa criança cresceu, ela estava numa posição bastante passiva recebendo os benefícios, certo? Ela vira rh de uma empresa e precisa contratar pessoas, ela cria um tanto de critérios nos quais quem é contratado, ou quem é visto como inteligente, ou quem é visto como belo, ou quem é visto como alguém é alguém igual a ela mesma. Então, ela para de receber os benefícios e começa a distribuir apenas entre os mesmos
Agora, se vocês ouvirem isso de que eu estou falando, a pergunta que poderão fazer é: como nós, da SBPSP, distribuímos os benefícios apenas entre nós? Porque, se quisermos pensar em como ser antirracista, precisamos avaliar os critérios que criamos, e que estão cheios de racismo implícito, para a distribuição dos benefícios apenas dentro de nosso próprio grupo. E como isso não será visto como racismo?
Eu falo muito em empresas. Em certa vez ouvi:
-A forma de contratarmos não tem absolutamente nada a ver com raça. Agora, até mesmo, tiramos o inglês, porque inglês a gente sabe e tal…”.
Aí eu disse:
-Então, que forma de contratação você faz?
-A gente agora vê skills, habilidades interpessoais.
-Tá bom, deixa eu entender que habilidades interpessoais vocês estão vendo.
Estava lá: resiliência, autoconfiança… Eu perguntei:
-Como vocês aferem resiliência, por exemplo?
Ela ficou meio na dúvida, e disse:
-Tenho um exemplo aqui. Lembro que foi a última vez que pensamos sobre isso, é um rapaz, brasileiro, foi morar na Irlanda sozinho e pensamos que ele foi morar sozinho, conseguiu aprender inglês, criou redes e que isso mostrava resiliência.
Perguntei:
-Vocês, por exemplo, aferem resiliência para alguém que sai do Capão Redondo, passa por batidas da polícia umas três vezes até chegar para trabalhar, trabalha o dia inteiro, paga uma universidade que não é a USP, a faap etc., para poder estudar, estuda no ônibus, sustenta a mãe, demora três horas para voltar para a casa todos os dias, isso é considerado como resiliência?
Ela respondeu:
-Nunca pensei nisso!
Autoconfiança, pessoa que é autoconfiante… alguém que sofre racismo absolutamente todos os dias, numa sociedade que tem racismo estrutural, vai ter o mesmo lugar de confiança que aquela criança que escuta desde cedo “que príncipe”, “que lindo”, do qual a fralda foi trocada antes?
A raça, nesse país, é constituinte do sujeito, e é impossível nascer nesse país sem se constituir em sua subjetividade pela raça. É fácil pensarmos isso para os negros, certo? Entendemos que eles passam por humilhações constantes, por batidas policiais, por desconfiança, por uma régua na qual a exigência sobre ele é absolutamente outra do que a dos brancos. Mas e para os brancos? O que faz que saibamos que podemos sair de chinelo na rua sem nenhum problema? Que podemos sair sem documento? O que nos faz pensar que podemos usar barba, cabelo etc., sem que isso seja alvo da polícia nos parar e talvez até sermos assassinados? Isso também constitui o sujeito.
Aprendemos a ser brancos desde pequenininhos no Brasil. Como? Você está andando na rua, passa uma pessoa negra, e a mãe diz: “Atravessa a rua, está vindo um ladrão”, aprendizado constante de um sentimento de superioridade que não para… Quando dizemos que é mais desenvolvido, que é mais inteligente e que o outro é ausente. E isso se compõe também nas ações afirmativas de quando a branquitude se move no antirracismo. O movimento da branquitude no antirracismo também é, muitas vezes, através e pela branquitude, num lugar de superioridade, de que o outro é ausente, de que estamos dando algo que é nosso para eles.
Agora, é preciso pensar que não é algo que é nosso para eles, esse país foi construído inteiramente por mãos negras. Não foi só construído, mas toda a riqueza de quase todas as pessoas brancas deve-se ao trabalho da população negra neste país. Só é possível uma mulher branca sair para trabalhar 40 horas e ganhar um dinheiro neste país com sexismo em que a responsabilidade pelos filhos e trabalho doméstico é da mulher, pelo número de empregadas domésticas que há neste país que dedicam a vida a mulheres brancas - e essas são mulheres negras. Elas acordam, dormem, até mesmo existem casas que têm sininho, têm campainha para chamar essas mulheres. No país que tem mais empregadas domésticas do mundo falar de racismo não é simplesmente falar de quando alguém é chamado de macaco, é pagar os direitos de uma empregada doméstica, que ela não esteja na sua casa sábado e domingo, que ela saia às seis da tarde e que ela seja, como uma sociedade inteira, uma classe média inteira, beneficiada, com os hábitos da burguesia, que só dependem da escravidão negra e daquilo que é a sua continuação? Como as louças das famílias, aquelas cheias de louças, são limpas? Só é possível ter tanta louça e esse modo de vida burguês que temos no sul da América do Sul pelo resquício da escravidão e pela forma de trabalho e desumanização das pessoas negras.
Então o antirracismo não é algo que estamos dando ao outro, mas uma dívida histórica, e é uma dívida muito grande, e como diz a Denise Vieira, é uma dívida impagável, então é tudo para antes de ontem. Se saírem dessa fala hoje, e a SBPSP não fizer um movimento realmente antirracista, essa escuta não servirá para nada.