Introdução
A perlaboração (Durcharbeitung) foi introduzida no pensamento freudiano em 1914 pelo artigo técnico “Recordar, repetir, elaborar”, como forma de conter as dificuldades do sujeito ao superar os entraves postos pela resistência (Freud, 1914/2010d). O trabalho envolvido na perlaboração possibilita ao sujeito compreender e admitir em si mesmo uma intervenção, interpretação ou construção, ao superar as resistências que desperta.
No texto de 1914, Freud trata das resistências pré-conscientes à recordação de representações recalcadas, sua superação acontece pelo retorno do recalcado com base nas associações sobre as próprias formações pré-conscientes. Em virtude de novas dificuldades clínicas enfrentadas, Freud (1920/2010a; 1923/2013a) notou que alguns conteúdos inconscientes não tiveram uma representação anterior para depois serem alvo do recalque, o que implica o reconhecimento de que esses conteúdos não tiveram uma simbolização e representação prévias.
Em 1923, Freud introduziu a tópica estrutural do aparelho psíquico, edificando as bases metapsicológicas necessárias para posteriormente diferenciar a resistência em três categorias em “Inibição, sintoma e angústia” (Freud, 1926/2014a). Seriam elas: resistências do eu (resistência do recalcado), do id (compulsão à repetição) e do supereu (reação terapêutica negativa).
Focaremos nossa discussão na perlaboração do supereu, na medida em que ela põe a formação do analista em destaque, sobretudo sua análise pessoal,3 visto que esta diminui o risco de seus ideais não analisados embaralharem a escuta.
Inicialmente, faremos uma breve apresentação da constituição do supereu na metapsicologia freudiana. Na sequência, para elucidar como o sujeito encontra satisfação no sofrimento, veremos como Freud recorreu ao masoquismo para reconsiderar a supremacia do princípio de prazer. A necessidade de punição, forma de expressão da resistência do supereu, traz obstáculos ao tratamento que deixariam o analista no limite do analisável, pois envolve entender como os primeiros investimentos objetais do sujeito aconteceram.
Por fim, apontaremos os elementos e recursos envolvidos na perlaboração do supereu. Destacaremos que é parte de seu trabalho situar as ameaças de excesso e de sugestão; para tanto, contextualizar o uso da contratransferência possibilita que a dimensão intersubjetiva da situação clínica diminua os riscos da alienação do sujeito nos e pelos ideais não analisados do analista.
Da reação terapêutica negativa ao supereu
Em “Recordar, repetir e elaborar” encontramos a primeira vez que Freud (1914/2010d) citou a reação terapêutica negativa em seu pensamento: ela foi introduzida para se referir ao agravamento dos sintomas, durante uma análise, provocado pela aproximação do retorno do recalcado. Posteriormente, também apareceu como referência às dificuldades encontradas durante o atendimento do Homem dos lobos. Foi, contudo, em 1923, em “O eu e o id”, que foi trabalhada com maior especificidade, o que forneceu as bases para o reconhecimento de que a existência da resistência do supereu ocorre em virtude das dificuldades impostas pela reação terapêutica negativa. Como forma de entender o que estava em jogo na expressão desta, o sentimento inconsciente de culpa surgiu nas reflexões freudianas, e
a nova constatação, que nos obriga, apesar da melhor compreensão crítica, a falar de um sentimento de culpa inconsciente desconcerta-nos bem mais e nos oferece novos enigmas, sobretudo quando gradualmente notamos que um tal sentimento de culpa inconsciente tem papel decisivo, em termos econômicos, num grande número de neuroses, e ergue os maiores obstáculos na direção da cura. (Freud, 1923/2013a, pp. 33-34)
O supereu seria a instância da personalidade responsável pela expressão desse sentimento. Antes de chegarmos à perlaboração da resistência do supereu e das relações que o supereu estabelece com as outras instâncias psíquicas, o eu e o id, é importante retomarmos brevemente como acontece sua formação.
A constituição do supereu ocorreria com base em uma gradação do eu, tendo como pré-requisito o declínio do complexo de Édipo.4 Resumidamente, a interdição dos desejos infantis aconteceria pela instância parental. Nesse processo, o investimento libidinal das figuras de cuidado seria substituído por uma identificação com estas, e com isso a interdição seria interiorizada. É essa situação que instaura o caráter recriminador do supereu. Nesse sentido, o supereu compõe-se como formação residual das escolhas objetais do id, porém, uma formação reativa aparece, uma vez que existem custos para suplantar o complexo de Édipo. Desse modo, sua relação
com o eu não se esgota na advertência: “Assim (como o pai) você deve ser”; ela compreende também a proibição: “Assim (como o pai) você não pode ser, isto é, não pode fazer tudo o que ele faz; há coisas que continuam reservadas a ele”. E essa dupla face do ideal do eu5 deriva do fato de ele haver se empenhado na repressão do complexo de Édipo, de até mesmo dever sua existência a essa grande reviravolta. (Freud, 1923/2013a, pp. 42-43)
Observamos que o supereu incide duplamente no eu, impondo-lhe uma exigência ideal a ser atingida em conjunto com as interdições, estando aí o tom moral que submete o eu. A formação do supereu encontraria apoio em identificações mais antigas, primárias, com as figuras de cuidado, reforçadas agora pela renúncia aos desejos edipianos ao lado da introjeção de aspectos culturais.
Ao herdar os conflitos do eu advindos dos investimentos objetais do id, o supereu passa a ser o lugar de expressão das pulsões e dos alvos libidinais do id. Vale dizer que o id não faria nenhuma vinculação com um objeto externo sem a mediação do eu, pois é da alçada deste representar o mundo externo. Nesse intricado de relações entre as instâncias psíquicas, o supereu guardaria uma lei e proibiria a sua transgressão, “Enquanto o eu é essencialmente representante do mundo exterior, da realidade, o supereu o confronta como advogado do mundo interior, do id” (Freud, 1923/2013a, p. 45).
A tensão entre as demandas do supereu e as sempre falhas respostas do eu causa o sentimento de culpa, e a supremacia do primeiro se daria, pois o supereu seria constituído antes de o eu estar integralmente formado.
Por isso, o supereu é um “monumento que recorda a anterior fraqueza e dependência do eu, e que mantém predomínio sobre o eu maduro. Assim como a criança era compelida a obedecer aos pais, o eu submete-se ao imperativo categórico do seu supereu” (Freud, 1923/2013a, p. 60). Nos mecanismos identificatórios, haveria uma sublimação e dessexualização da pulsão, sendo estas as formações reativas que permitiriam o atravessamento do complexo de Édipo. Nesse processo, haveria uma disjunção pulsional, ocasionando a separação entre os componentes eróticos e destrutivos, e os últimos comporiam a severidade assumida pelo supereu. Curiosamente, o trabalho feito pelo eu nas identificações produz, como efeito colateral, o tom hipermoral do supereu, que assola e ameaça constantemente o eu. Esse seria o motivo pelo qual Freud (1923/2013a) defendeu a ideia de que a relação de dependência do eu com o supereu é a mais enigmática a ser pensada.
Falta ainda elucidarmos o papel do id aqui, uma vez que foi em virtude de seus investimentos objetais que o supereu teve condições de surgir. Ao conter os traços objetais do id, o supereu teria uma distância muito maior da alçada consciente do que o eu.
A culpa inconsciente seria o produto da conexão entre as três instâncias psíquicas, e haveria uma diferença em sua expressão a depender do quadro de sofrimento psíquico. Foi para se referir a sujeitos que sentem muita culpa durante o desenrolar de uma análise que Freud citou a reação terapêutica negativa:
Não só nos convencemos de que tais pessoas não toleram elogio e reconhecimento, mas de que reagem aos progressos da terapia de maneira inversa. Toda solução parcial, que deveria trazer - e traz em outros - uma melhora ou sUSPensão temporária dos sintomas, nelas provoca um momentâneo exacerbar do sofrimento, elas ficam piores durante o tratamento, em vez de melhorar. Mostram a chamada reação terapêutica negativa. (Freud, 1923/2013a, p. 61)
Como explicar, todavia, a maneira que o supereu desenvolve uma crítica, já que o sentimento de culpa é a percepção no e do eu de uma crítica dura e rigorosa a ele? Freud (1923/2013a, p. 66) nos adverte de que “o componente destrutivo instalou-se no supereu e voltou-se contra o eu” (Freud, 1923/2013a, p. 66).
Nas ideias apresentadas em “O eu e o id” (1923/2013a), fica claro que o eu é a sede da angústia, a resposta que dá, ao ser ameaçado, seria a produção da angústia da consciência moral diante das demandas do supereu. Tal aspecto moral é o que entra na composição do sentimento de culpa, permitindo ao sujeito encontrar satisfação no sofrimento psíquico e não permitindo a ele a renúncia ao adoecimento psíquico, já que o sofrimento é imposto como um castigo. A conjuntura torna-se ainda mais espinhosa tendo em vista que “este sentimento de culpa permanece mudo para o doente, não lhe diz que é culpado; ele não se sente culpado, mas doente … manifesta-se apenas como uma resistência à cura difícil de ser reduzida” (Freud, 1923/2013a, p. 62).
Vimos que, para Freud (1923/2013a), a reação terapêutica negativa é a maneira de expressar a inconsciência no sentimento de culpa. Ela carrega uma dimensão paradoxal: em um primeiro plano, aparenta ser benéfica para o adoecimento psíquico, contudo põe o sujeito em um curto-circuito. A questão de como o sujeito encontra satisfação no sofrimento não foi abordada em “O eu e o id” (1923/2013a), sendo necessária uma reflexão nesse ponto, já que a sua descoberta é diametralmente oposta à hipotética supremacia do princípio de prazer.
Como explicar a satisfação no sofrimento?
A resposta freudiana está em “O problema econômico do masoquismo”. Nesse texto, ele faz um pareamento entre a reação terapêutica negativa e o masoquismo moral. Constatar inclinações masoquistas no sujeito implicaria reconsiderar a primazia do princípio de prazer, especialmente o âmbito econômico: “Se a dor e o desprazer podem já não ser advertências, mas objetivos em si mesmos, o princípio de prazer é paralisado, o guardião de nossa vida psíquica é como que narcotizado” (Freud, 1924/2013b, p. 185).
Para sair dessa encruzilhada, Freud (1924/2013b) teceu como seriam as relações desse princípio com as pulsões de vida e de morte. Para tanto, resgatou a noção de que o psiquismo buscaria manter em um nível constante a quantidade de excitação que o invade, operação relacionada ao princípio de estabilidade. Foi nesse contexto que citou o princípio do Nirvana, de Barbara Low, para mencionar a predisposição de a pulsão de morte realizar um retorno ao inanimado, liquidando os aumentos de tensão. Com base nessas ideias, o prazer seria sentido em virtude de um rebaixamento de intensidades.
Variações na quantidade de estímulos se relacionariam com sentimentos de tensão, todavia haveria tanto distensões quanto tensões prazerosas. Logo, segundo Freud (1924/2013b), existiria uma dimensão qualitativa da experiência psíquica que não seria contida somente por descrições metapsicológicas - a forma na qual o prazer é experienciado tem muitos matizes. Ele conclui que o princípio do Nirvana estaria na alçada da pulsão de morte, sofreria uma modificação, convertendo-se em princípio de prazer, a pulsão de vida regularia os processos vitais e a força da libido adviria daí. Não é a todo momento que satisfações pulsionais são alcançadas, por isso adiamentos da descarga acontecem, originando os conflitos. Ao lidar com uma parcela de tensão temporária, o desprazer é sentido, e “o que concluímos dessa discussão é que não se pode recusar a denominação de guardião da vida para o princípio do prazer” (Freud, 1924/2013b, p. 187).
Observar a presença das dimensões quantitativas e qualitativas no circuito pulsional fornece as bases para observarmos que é muito pouca a frequência em que satisfações são atingidas sem conflitos, e a consequência direta disso é que o princípio de prazer não teria primazia no psiquismo. Com apoio nessas reflexões, a especulação sobre o masoquismo fica menos etérea, o masoquista vivencia a satisfação no sofrimento, ademais, busca mantê-la custe o que custar.
No texto “O problema econômico do masoquismo” (1924/2013b), Freud distinguiu três tipos de masoquismo: erógeno, feminino e moral. O erógeno caracterizaria toda a perversão masoquista, é biologicamente constitutivo e não seria possível observá-lo clinicamente. Na perspectiva freudiana, a libido tem o intuito de desviar uma parcela da pulsão de morte para o mundo externo, propiciando sua utilização para alguma função sexual, configurando o sadismo ao apoderar-se, ao exercer controle sobre o objeto. A cota da pulsão de morte não orientada para o exterior “permanece no interior, como seu resíduo, o masoquismo propriamente erógeno, que, por um lado, tornou-se componente da libido, e, por outro lado, ainda tem o próprio ser como objeto” (Freud, 1924/2013b, p. 192), seria o masoquismo primário.6 O masoquismo feminino se relacionaria ao prazer em desempenhar um papel passivo, “ser castrado, ser possuído ou dar à luz” (Freud, 1924/2013b, p. 189), estaria em cena o sujeito buscar ser posto na posição de uma criança pequena, demonstrar comportamentos reprováveis e ser punido como consequência. Fator comum ao masoquismo erógeno e o feminino seria que aquele(a) que é amado e/ou desejado seja quem castiga, impondo o sofrimento ao sujeito.
Digno de nota seria o masoquismo moral, uma vez que atenuaria a relevância, a intensidade e a amplitude da sexualidade,
O que importa é o sofrimento mesmo; se ele é infligido por uma pessoa amada ou outra qualquer, não faz diferença; pode ser causado também por poderes ou circunstâncias impessoais … tudo convida a deixar de lado a libido e limitar-se a supor que o instinto de destruição foi novamente voltado para dentro e se enfurece com a própria pessoa. (Freud, 1924/2013b, p. 194)
O masoquismo moral manifesta-se pela reação terapêutica negativa, “o sofrimento que acompanha a neurose é justamente o fator que a torna valiosa para a tendência masoquista” (Freud, 1924/2013b, p. 195) - a característica hipermoral do supereu comporia o cenário que mantém alguns sujeitos adoecidos psiquicamente. Nestes casos, não há no sujeito consciência do sentimento de culpa, e as tentativas do analista de apontá-la são inócuas.
Faria mais sentido usar a denominação “necessidade de punição” para nomear a forma pela qual a reação terapêutica negativa se expressava, na medida em que a culpa mostra a necessidade de estar em sofrimento,
Creio que em certa medida atenderemos à sua objeção se rejeitarmos a expressão “sentimento de culpa inconsciente” - psicologicamente incorreta, de todo modo - e utilizarmos “necessidade de punição”, que cobre de maneira igualmente precisa o estado de coisas observado. (Freud, 1924/2013b, p. 195)
Freud buscou afirmar o quanto a necessidade de punição poderia aniquilar o sujeito e sublinhou a natureza irredutível da pulsão de morte.
Qual seria a diferença entre masoquismo moral e hipermoralidade inconsciente? O primeiro seria o masoquismo do próprio eu, que busca ser castigado. O responsável pode ser o supereu, como também uma instituição, uma pessoa qualquer, ou o próprio analista; o essencial é a representação do poder parental ser demonstrada em toda a sua autoridade. A segunda guarda relação com o sadismo presente no supereu a que o eu busca, a todo momento, se adequar, e temos a culpa da tensão entre eles. Na expressão do masoquismo moral, não há conflito entre eu e supereu, não existindo uma consciência da culpa expressa, logo o “sadismo do supereu e o masoquismo do eu se complementam um ao outro e se juntam para produzir as mesmas consequências” (Freud, 1924/2013b, p. 201), a saber, a punição.
É custoso mapear a sexualidade presente no masoquismo moral, o motivo seria a enorme possibilidade da presença de representantes do poder parental se fazer atuante em sua expressão. Importante sublinhar que o componente erótico está presente e envolve
o desejo de ser surrado pelo pai, tão frequente nas fantasias, [e] é muito próximo àquele outro, de ter uma relação sexual passiva (feminina) com ele, e constitui apenas uma deformação regressiva deste … com o masoquismo moral, a moralidade é novamente sexualizada, o complexo de Édipo é revitalizado. (Freud, 1924/2013b, p. 200)
Ao ser expresso, o masoquismo moral sexualizaria a moralidade, e, para ser castigado pelos representantes parentais, o sujeito dispõe de uma infinidade de possibilidades: agir contra seus próprios interesses, sabotar perspectivas futuras, colocar-se em situações inadequadas e/ou perigosas e, no máximo, retirar sua própria vida. Freud observou uma amostra, no masoquismo moral, de quão complexo é o cruzamento das pulsões de vida e de morte. Dessa tem-se a cota da destrutividade que não teve possibilidade de ser orientada para o ambiente externo e devido a isso retorna por meio do sadismo do supereu, daquela vimos que é no exacerbamento do masoquismo que o erotismo se presentifica no eu, adicionando-se ao sadismo do supereu, e, consequentemente, “a autodestruição do indivíduo não pode ocorrer sem satisfação libidinal” (Freud, 1924/2013b, p. 202).
Segundo Freud (1924/2013b), haveria uma complementaridade entre o masoquismo do eu e o sadismo do supereu na expressão da reação terapêutica negativa. Seria imprescindível descobrir quais seriam as condições envolvidas na produção dessa reação, as quais, de acordo com ele, ocorreriam pelo desejo de punição de um representante parental.
As ideias freudianas que vimos até aqui nos dão elementos para abordarmos a maneira na qual a resistência do supereu se expressa como reação contrária aos efeitos buscados por uma análise, havendo o risco de a situação analítica mobilizar e intensificar resistências que impossibilitariam a proposição de intervenções e também reproduzir a experiência traumática.
Tendo esse cenário em perspectiva, muitas vezes, pode acontecer que “O fato decisivo é que os mecanismos de defesa contra os perigos do passado retornam, na terapia, como resistências à cura. Disso resulta que a própria cura é tratada como um novo perigo pelo eu” (Freud, 1937/2018a, pp. 305-306). As intervenções correm o risco de se tornar inoperantes, e o eu do sujeito ficaria fragilizado, exibindo uma resistência contrária ao desvelar das resistências. Estamos diante da resistência do supereu.
A pulsão de morte, melhor dizendo, seu caráter irredutível, seria o fator responsável por, majoritariamente em casos mais graves, promover a “viscosidade da libido” (Freud, 1937/2018a, p. 309), enrijecendo a maneira, fixa e imutável, pelas quais as moções pulsionais são satisfeitas, não permitindo satisfações intermediárias ou substitutas. O eu, já restrito em seu campo de elaboração, não consegue encontrar uma resposta saudável, ficando imobilizado em um mesmo circuito libidinal. A ideia aqui é que seria extremamente custoso realizar o desinvestimento de certos objetos e seus modos de funcionamento correlatos transferindo esse investimento para outros. Essa rigidez revela a nuance presente na necessidade de o sujeito estar em sofrimento. Nas formulações freudianas, diante de situações nas quais há o predomínio da necessidade de punição, os limites do analisável seriam encontrados.
Durante seu pensamento após 1920, Freud sempre destacou a tendência à inércia presente no aparelho psíquico, sinal da irredutibilidade da pulsão de morte. Apontamos aqui o fato de que a questão de qual seria a técnica correlata à reação terapêutica negativa ficou aberta na obra freudiana, chegando a ser citada em alguns textos,7 mas não foi formalizada nenhuma orientação técnica do que fazer diante dela.
De nossa parte, afirmamos que é verossímil Freud ter reconhecido os perigos de o trauma ser revivido na situação analítica, havendo a supremacia da reação terapêutica negativa, que, caso seja onipresente, anula a continuidade de uma análise. Interpretar a resistência seria ineficaz, e vale lembrar que a reação terapêutica negativa solapa a supremacia do princípio de prazer.
Para nós, analistas, a questão seria como lidarmos com isso em nossa prática clínica sem cair nas armadilhas postas pela reação terapêutica negativa, justamente porque ela tende a inviabilizar o estabelecimento e a operacionalidade de uma situação analítica. É a nossa formação e suas nuances que nos fornecem as condições para abarcarmos em um tratamento os paradoxos e os labirintos criados pela reação terapêutica negativa.
A perlaboração do supereu e os ideais (de)formados do analista
Mesmo que de modo breve e sumário, encontramos em uma nota de rodapé em “O eu e o id” (1923/2013a) algumas ideias técnicas iniciais de como se posicionar diante da necessidade de punição, chamada ainda de “sentimento inconsciente de culpa” e é com ela que vamos seguir.
A principal dificuldade clínica do analista com o sentimento inconsciente de culpa acontece diante da total ineficácia de expor diretamente o conflito ao sujeito. Mas nem tudo está perdido, existe “uma oportunidade especial de influenciá-lo quando este sentimento ics é emprestado, ou seja, é produto da identificação com uma outra pessoa, que uma vez foi objeto de um investimento erótico” (Freud, 1923/2013a, p. 62). Temos aqui, após todo nosso percurso, a chave para nossa reflexão.
A ideia presente nessa pequena nota de 1923 é que a necessidade de punição pode ser vista como o vestígio de um investimento objetal abandonado, que pode ser desvendado com base nos caminhos que a relação transferencial toma em uma análise, ou seja, podemos dizer que o analista pode e necessita compreender como o sujeito o põe no lugar de um investimento objetal de seu passado.
Freud (1923/2013a) fez uma ponderação que precisamos considerar. Questões relacionadas com a reação terapêutica negativa teriam maior relevo em casos neuróticos mais graves, porém, seria um aspecto a ser considerado em qualquer análise, “talvez seja precisamente esse fator, o comportamento do ideal do eu, que determine a gravidade de uma doença” (Freud, 1923/2013a, p. 63), ou seja, a necessidade de punição e sua amplitude se associam com a severidade de um adoecimento psíquico, bem como se apresentam como uma resistência (do supereu) ao progresso de qualquer análise.
Desde “O eu e o id” (1923/2013a), o deslocamento libidinal do objeto para o eu se dá com base em uma disjunção pulsional: uma parcela de pulsão de morte não sublimada intensifica a ação opressora do supereu. Como resultado, o sujeito fica ainda mais submetido aos representantes no eu de suas figuras de cuidado.
Quando o analista está transferencialmente posto em equivalência com essas figuras com as quais o sujeito está identificado, especialmente com o traço superegoico dessas figuras, temos diante de nós os riscos de o analista identificar-se também, ocupando para o sujeito o lugar de um ideal de eu, acompanhados das possibilidades de sugestão e de sedução mortíferas para uma análise, circunstância considerada por Freud. Podemos, assim, afirmar que diante da presença da resistência do supereu enfrentamos alguns limites, técnicos e éticos, em nosso trabalho:
e a isto se relaciona a tentação de desempenhar, ante o paciente, o papel de profeta, salvador de almas, redentor. Como as regras da análise se opõem resolutamente a essa utilização da personalidade médica, há que honestamente conceder que temos aí um novo limite à ação da psicanálise, que, afinal, deve proporcionar ao eu do paciente a liberdade de decidir de uma ou outra maneira, e não tornar impossíveis as reações patológicas. (Freud, 1923/2013a, p. 63)
A ameaça ao narcisismo do analista é correlata à necessidade de punição, podendo criar uma “identificação de empréstimo” (Roussillon, 2016) como defesa do analista em relação à insegurança sentida diante dos abalos de sua capacidade. Temos assim configuradas as oportunidades de aprisionamento das transferências do sujeito, pelos excessos, sugestões e seduções do analista. Defendemos aqui a proposta de que, como pré-requisito para integrar em si, tomar como seu, o que é desvelado e produzido em análise, é fundamental ter (re)conhecimento de como, quem e qual foi o contexto em que a apropriação subjetiva do sujeito se deu, evidentemente, sem a eterna presença do analista.
De acordo com Roussillon (2016), trabalhar com a resistência do supereu envolve o analista na busca de como a sombra dos investimentos objetais parentais apresenta-se e presentifica-se no eu do sujeito, compondo o cenário de formação do supereu, que é “construído não segundo o modelo dos pais; mas do supereu dos pais; preenche-se com o mesmo conteúdo, torna-se veículo da tradição, de todos os constantes valores que se propagam de geração a geração” (Freud, 1933/2010b, p. 205). As silhuetas dos investimentos objetais parentais se transfiguram e se presentificam no supereu da criança.
Confrontar-se com reações terapêuticas negativas em nós mesmos é muito custoso, abala nossas crenças em nossa capacidade profissional e pode levar a excessos. Se o analista não ficar atento a seu próprio narcisismo, identificações superegoicas com o sujeito podem ocorrer, inviabilizando uma análise. A própria situação analítica carrega uma dimensão ideal, de como deveria ocorrer, do que o analista deveria fazer, de todos os esforços que realizou para estar ali, compondo assim todo um cenário que, somado aos objetos parentais que o analista carrega em si, podem cobrir, nublar, uma análise.
Conjuntura que não passou despercebida por Ferenczi (1928/2011) ao enunciar a análise do analista como segunda regra fundamental da psicanálise e retomada por Roussillon (2016, p. 372): “Mascarar para si mesmo esse dado é correr o risco de enquistar um ponto de contratransferência e exacerbar a submissão ou a revolta do analisando diante de um supereu-ideal do eu alienante”.
Discutir a perlaboração do supereu é uma forma de pensarmos sobre a formação do analista, principalmente no quanto a sua própria análise pode permitir a ele questionar e definir quais são suas balizas técnicas e por que dispõe delas. Por exemplo, como a utilização da contratransferência pode sustentar um viés intersubjetivo em análise que auxilie o analista a acessar conteúdos que não foram conscientes e pré-conscientes anteriormente, favorecendo uma escuta além da linguagem verbal (Roussillon, 2009). Posicionamento importante para lidar com a resistência do supereu, uma vez que leva em conta como os primeiros investimentos objetais do sujeito aconteceram. No ângulo que abordamos aqui, essas observações técnicas são relevantes em qualquer análise, e têm maior importância quando houver a predominância da necessidade de punição em determinado momento de uma análise.
Promover a perlaboração do supereu passa pela ação do analista de interrogar, inquirir e interpelar seu próprio narcisismo, levando a que seu trabalho clínico possibilite ao sujeito uma diferenciação eu e não-Eu, assim como uma capacidade de contenção maior diante das influências destrutivas de seu próprio supereu no eu.
Acreditamos que a perlaboração da resistência do supereu é o caminho para transpor a reação terapêutica negativa ou, ao menos, abrandar seus efeitos maléficos. O analista precisa se questionar, questionar suas teorias, sua abordagem, para assim sustentar a liberdade, enquanto condição imprescindível, para o sujeito ter condições de admitir e integrar em si o que é produzido em análise.
Vemos aqui a centralidade da análise do analista como condição fundante de seu ofício e capital para promover a perlaboração da resistência do supereu, possibilitando um risco menor de os ideais do analista, seus investimentos objetais, suas teorias, criarem ruído em sua escuta, inviabilizando a operatividade de uma análise, com risco de existirem excessos alienantes para o sujeito.
Durante a formação, é fundamental que um analista (re)forme e (de) forme sua relação com seu próprio supereu, e o lugar viável para isso é a sua própria análise. Não há estudo teórico, quantidade de supervisões, grupos de discussão clínica, importantes evidentemente, que suplantem o que significa entrar em contato com o que há de si mesmo para daí desenvolver alguma habilidade técnica.
Uma capacidade de questionamento dessa ordem, e toda a insegurança que acarreta, seria formada e contida, em grande parte, pela análise do analista. Caso não ocorra, o analista pode substituir seus ideais e suas tendências não analisadas no lugar dos representantes parentais do sujeito. O tratamento torna-se um ambiente influenciador e sedutor, viabilizando a reatualização do trauma, a depender da circunstância.
Considerações finais
A perlaboração, trabalho que necessita ser realizado para suplantar as resistências que aparecem durante um tratamento analítico, é um meio pelo qual o sujeito consegue lidar com os afetos aflitivos que surgem por causa da resistência.
Na expressão da reação terapêutica negativa haveria o risco de ocorrer uma identificação por sugestão do sujeito. Para tal, seria importante ter destaque de quem veio e como foram proporcionadas as condições para a apropriação subjetiva dos conteúdos revelados em uma análise. Evitando assim os riscos de o sujeito ser seduzido e/ou submetido aos ideais não analisados do analista. Considerar a possibilidade de existência do par sugestão-sedução na análise é fundamental para abarcar a resistência do supereu, fazendo com que o analista lide com seu próprio narcisismo.
Para promover a perlaboração das resistências do supereu, é fundamental o analista entender como os objetos parentais do sujeito influenciaram a formação do supereu, uma vez que a sombra dos objetos parentais se configura na própria sombra do supereu no eu.
Para o analista perceber o que está em jogo na expressão da reação terapêutica negativa, seria importante ele entender a sombra que acomete a própria situação clínica, pois nela estariam suas teorias, seus ideais, seu modo de trabalhar, que, se não considerados, (de)formados e (re)formados, podem cobrir a análise e alienar o sujeito nos ideais não analisados do analista.
Além de uma dimensão clínica presente em nossa formação, temos uma ética: de que modo apreendo as teorias que estudo, qual o efeito delas em mim, como elas impactam minha escuta, minhas intervenções, em suma, meu trabalho clínico. Dimensões que acompanham a maneira com que me relaciono com o mundo, como recebo os impactos de outras alteridades, de classe, de raça, de gênero, e respondo a elas, não só na clínica, que nada mais é do que um microcosmo da pessoa que sou no mundo.