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Natureza humana

versión impresa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.10 n.1 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Arquivo e Mal de Arquivo: uma leitura de Derrida sobre Freud

 

Arquive and the Evil of Arquive: a reading by Derrida of Freud

 

 

Joel Birman

Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A finalidade deste ensaio é a de definir as concepções de arquivo e de mal de arquivo no discurso teórico de Derrida, no qual realiza uma interpretação da versão clássica do arquivo presente no discurso da história. Para isso, Derrida empreende a leitura crítica de “Moisés e o monoteísmo” de Freud e do “Moisés de Freud: Judaísmo terminável e interminável” de Yerushalmi.

Palavras-chaves: Arquivo, Mal de arquivo, Espectro.


ABSTRACT

The aim of this paper is to define the conceptions of archive and archive’s evil by Derrida, in which he accomplishes one interpretation of the critical version of archive by the history speech. For that he inquires into the works “Moses and Monoteism” by Freud and “Freud’s Moses. Judaisme terminable and interminable” by Yerushalmi.

Keywords: Archive, Archive’s, Spectre.


 

 

A problemática

A intenção primordial deste ensaio é a de realizar uma leitura das concepções de arquivo e de mal de arquivo, que foram desenvolvidas por Derrida num longo ensaio intitulado justamente “Mal de arquivo”. Este tem, de maneira sugestiva, como subtítulo, o enunciado “uma impressão freudiana” (Derrida, 1995). Digo sugestiva, porque o dito subtítulo já evidencia, de imediato, a importância da psicanálise, e particularmente do discurso freudiano, na economia teórica desse ensaio de Derrida.

Assim, a intenção teórica de Derrida foi a de colocar em questão o conceito de arquivo, que é fundamental, como se sabe, no campo teórico da história, com base no que foi enunciado na psicanálise com os conceitos de inconsciente (Freud, 1900a e Freud 1915e) e de pulsão de morte (Freud, 1920g). Se esses conceitos já tinham sido objeto da leitura acurada daquele em obras anteriores, a saber, “Freud e a cena da escrita” (Derrida, 1967b) e “O cartão postal” (Derrida, 1980), o que Derrida empreendeu no ensaio em questão foi a retomada de seu percurso precedente para realizar a leitura do texto de Freud intitulado “O homem Moisés e a religião monoteísta” (Freud, 1939a).

Para isso, a oposição entre os conceitos de verdade material e verdade histórica, enunciados por Freud nessa obra tardia, foi o fio de pru-mo discursivo para que Derrida realizasse a leitura crítica dos textos de Yerushalmi, historiador israelense radicado nos Estados Unidos. Este publicou pelo menos duas grandes obras de referência sobre o judaísmo, a saber, Zakhor. História Judaica e Memória Judaica (Yerushalmi, 1982) e O Moisés de Freud. Judaísmo terminável e interminável (Yerushalmi, 1991). Foi nesse confronto crítico estabelecido com Yerushalmi, tecido em torno da dupla oposição conceitual verdade material/verdade histórica e arquivo/mal de arquivo, que a desconstrução do conceito de arquivo foi empreendida por Derrida, pela qual se enunciou uma concepção original, qual seja, a de mal de arquivo.

O texto de Derrida foi publicado inicialmente na França em 1995 e foi traduzido para o português em 2001 (Derrida, 2001). O ensaio em pauta se baseou numa conferência realizada em Londres, em junho de 1994, no colóquio internacional intitulado “Memory: The question of archives”, que foi organizado pela Société Internationale d’Histoire de la Psychiatrie e de La Psychanalyse, pelo Freud Museum e pelo Courland Institute of Art (Derrida, 1995, p. 10).

Entretanto, entre a conferência e a sua publicação como ensaio, Derrida modificou o seu título de maneira significativa. Com efeito, se o título inicial da conferência era “O conceito de arquivo. Uma impressão freudiana” (Derrida, 1995, p. 10), ele foi transformado posteriormente para “Mal de arquivo”, mantendo, contudo, o mesmo subtítulo. A mudança realizada no título evidencia, assim, a proposição fundamental que Derrida pretendeu enunciar sobre a problemática em pauta, qual seja, a crítica sistemática da concepção de arquivo pelo enunciado da idéia de mal
de arquivo.

Ao lado disso, desapareceu também a palavra conceito nessa modificação, indicando, portanto, que a leitura crítica do arquivo implicava igualmente uma crítica da leitura do conceito enquanto tal. Como se verá posteriormente, a desconstrução, como método e teoria, se desdobra numa crítica do conceito propriamente dito.

 

Arquivos sobre o mal

Para empreender a leitura crítica do conceito de arquivo em Derrida é preciso, antes de mais nada, inscrever essa leitura no contexto histórico em que esta necessariamente se inscreve. Isto porque o exercício teórico da desconstrução, como prática filosófica, se inscreve, efetivamente, no campo da história, no qual os conceitos foram tanto construídos quanto desconstruídos (Derrida, 1967a). Vale dizer, a desconstrução não é um voluntarismo filosófico, mas uma reflexão empreendida pela filosofia com base no que se realiza e se produz efetivamente no campo da história.

Assim, essa leitura de Derrida do conceito de arquivo se inscreve inteiramente na contemporaneidade, num contexto histórico que é marcado pelas múltiplas desconstruções dos arquivos sobre o mal. Com efeito, os múltiplos debates sobre o holocausto judaico e os horrores promovidos pelo nazismo, passando pela ampla naturalização do genocídio na segunda metade do século XX e pela criação do Tribunal Penal Internacional, até a constituição da categoria do crime contra a humanidade, foram colocados como questões políticas e éticas no plano internacional. É ainda nesse contexto histórico que foi enunciado como discurso político a existência de Estados fora-da-lei, com os desdobramentos militares que isso teve na política intervencionista norte-americana, empreendida por Bush, assim como se constituiu a problemática do testemunho, nos diferentes registros da história, da literatura, da arte e da filosofia. Ao lado disso, o estatuto da pena de morte foi bastante criticado, em decorrência mesmo do seu incremento nos últimos anos e de sua disseminação no plano internacional, inclusive em países inscritos na tradição do cristianismo. Finalmente, a quebra da categoria política da soberania, em decorrência da perda de poder do Estado-nação e do seu correlato, isto é, a mundialização, trouxe ao primeiro plano do discurso político a ênfase colocada no cosmopolitismo e a crítica do antigo ideário político e ideológico do nacionalismo.

Portanto, o ensaio sobre o “Mal de arquivo” deve ser inscrito nesse conjunto mais abrangente, fora do qual se perde e se silencia o seu alcance estratégico. Da mesma forma, a leitura das problemáticas ética e política marcaram incisivamente o percurso teórico de Derrida nos anos que antecederam a sua morte, delineando uma descontinuidade efetiva na sua obra. Essa ruptura se realizou no contexto histórico que foi acima esboçado. Com efeito, os seus trabalhos sobre o perdão (Derrida, 1993 e 1994), a promessa (Derrida, 1993 e 1994), a crueldade (Derrida, 2000), a hospitalidade (Derrida, 1997c), os Estados fora-da-lei (Derrida, 2003) e o cosmopolitismo (Derrida, 1997a e 1997b) procuraram interpretar aquelas mudanças e os impasses políticos então em curso.

Assim, o ensaio sobre o “Mal de arquivo” aqui se inscreve, de fato e de direito, onde os conceitos de história, de verdade e de poder foram então conjugados com o de arquivo, sendo todos esses declinados na mesma direção crítica. A ousadia teórica de Derrida se formula justamente na colocação em questão que realizou do suporte, que não apenas registra os nossos enunciados, mas também os ordena hierarquicamente nas suas várias séries discursivas, isto é, o arquivo.

A problemática de arquivo não é uma questão qualquer e por assim dizer acidental, mas, a questão fundamental que perpassa aquelas diferentes problemáticas, na medida em que a tradição se constitui sobre e com o arquivo, pelos arquivamentos promovidos pelo poder e pelo arconte (Derrida, 1995, pp. 12-13). Assim, a tradição enquanto tal não é exterior a isso. Portanto, empreender a leitura crítica do arquivo e propor a sua desconstrução, que já se realiza efetivamente no campo da história contemporânea pela abertura dos múltiplos arquivos sobre o mal, implica não apenas uma interpretação do passado da tradição ocidental, mas principalmente na sua possível abertura para o futuro. É preciso destacar com ênfase, enfim, que o projeto filosófico da desconstrução implica o questionamento crucial do conceito de arquivo, repito.

Estaria justamente aí a ousadia maior que se enuncia nesse percurso teórico de Derrida.

 

Versão clássica

Digo ousadia por diferentes razões. Antes de mais nada, porque, ao colocar em questão a concepção consolidada de arquivo como sendo algo estático e fixo na sua consistência ontológica (Derrida, 1995, pp. 11-12), isto é, o próprio conceito de arquivo enquanto tal, Derrida pretende efetivamente questionar o que repetidamente enuncia ao longo de seu ensaio, qual seja, a versão clássica (Derrida, 1995, pp. 11-12) do trabalho intelectual presente nos discursos da historiografia e da história. Assim, nessa versão, o arquivo seria um conjunto de documentos estabelecidos como positividades, na sua materialidade, e que seria ainda, na sua pretensa objetividade, o reflexo do que ocorreu de fato na experiência histórica. Portanto, como verdade de fato de uma dada tradição, o arquivo, na sua versão clássica, seria o monumento dessa tradição.

Nada seria mais enganoso, até mesmo ilusório e ingênuo, do que acreditar que o arquivo seria constituído por uma massa documental fixa e congelada, tendo no registro do passado a sua única referência temporal, sem que os registros do presente e do futuro estejam efetivamente operantes no processo de arquivamento. Esse engano e essa ilusão querem fazer crer que o arquivo seja constituído por documentos patentes, isto é, tudo aquilo que de fato ocorreu de importante no passado estaria efetivamente arquivado sem rasuras e sem lacunas, ou seja, sem que estivesse em pauta qualquer esquecimento (Derrida, 1995, pp. 24-26 e pp. 49-54).

Nessa suposição clássica, portanto, não existiriam arquivos virtuais (Derrida, 1995, pp. 102-107). Dessa maneira, colocar em questão a concepção clássica de arquivo seria interpelar a oposição teórica, estabelecida pela metafísica aristotélica, entre potência e ato (Derrida, 1995, pp. 102-107). Numa outra concepção de arquivo, que criticaria a sua versão clássica, o arquivo teria uma potência efetiva na sua virtualidade e tal potência seria efetivamente um ato (Derrida, 1995, pp. 102-107).

Em seguida, a ousadia teórica de Derrida estaria em afirmar que o arquivo seria necessariamente lacunar e sintomático, isto é, descontínuo e perpassado pelo esquecimento em decorrência de sua própria virtualidade. Além disso, o arquivo seria perpassado e trabalhado insistentemente pelo mal de arquivo. Este, com efeito, não apenas apagaria o arquivo constituído na sua positividade patente, mas seria, ainda e fundamentalmente, a condição de possibilidade para que o processo de arquivamento pudesse continuar posteriormente e ser então reiterado ao infinito. Seria a dimensão constituinte do arquivo que assim se destacaria pelo enunciado do mal de arquivo. Portanto, a constituição do arquivo implicaria necessariamente o apagamento e o esquecimento de seus traços, condição necessária para sua própria renovação (Derrida, 1995, pp. 23-31).

Tudo isso se desdobra numa leitura outra sobre o tempo, que seria operante no processo de arquivamento. Esse tempo se realizaria assim sempre no presente, numa temporalidade que se ordena em três direções concomitantes, quais sejam, o presente passado, o presente atual e o presente futuro. A temporalidade presente no arquivo, nessa tripla direção, configuraria a dimensão da finitude, que lhe marcaria necessariamente. Em contrapartida, seria ainda essa mesma finitude que, como condição de possibilidade, delinearia a infinitude do processo de repetição do ato arquivante, na medida em que o arquivo enquanto tal implicaria fundamentalmente a perspectiva do futuro e a sua insistente abertura para o vir-a-ser (Derrida, 1995, pp. 83-102).

Vale dizer, essa leitura crítica do arquivo, na sua versão clássica, pressupõe a totalidade do percurso teórico anterior de Derrida, centrado que foi na desconstrução do filosofema da presença, como se verá em seguida, de maneira esquemática.

 

Diferença e vontade de verdade

Assim, a construção teórica empreendida por Derrida implica a consideração da existência de um princípio de disseminação (Derrida, 1972a, pp. 329-445), que se inscreve no campo do arquivo e do processo de arquivamento. O que aquele pretende dizer com o enunciado de tal princípio? Nada mais nada menos que o signo lingüístico, na sua materialidade efetiva, estaria internamente dividido e divisível, marcado que seria pela fragmentação e destinado a uma condição sempre fragmentável. Isso porque aquele seria permeado pelo processo infinito do diferir e da produção da diferença (Derrida 1967a, pp. 42-108; Derrida 1967c, “Sorce et signification” e Derrida 1967b, pp. 293-340).

Nessa perspectiva, o um e o uno, isto é, o unitário, implica sempre o outro (Derrida, 1972a, pp. 349-380), nos deslizamentos e deslocamentos infinitos operantes no campo dos signos, de maneira que a operação crítica sobre o dito filosofema da presença se impõe aqui necessariamente na leitura do arquivo que nos é proposta. A crítica deste filosofema se enunciara desde o início do percurso teórico de Derrida, na sua introdução de A origem da geometria de Husserl (Derrida, 1962), mas que tomou corpo teórico apenas numa obra posterior, intitulada A voz e o fenômeno (Derrida, 1967d). Esse projeto teórico se desdobrou imediatamente na elaboração de dois livros, a saber, Da gramatologia (Derrida, 1967a) e A escrita e a diferença (Derrida, 1967c), que delinearam a direção teórica da pesquisa de Derrida.

Assim, nesse projeto de desconstrução, restaurar da dimensão da escrita seria então fundamental, implicando a crítica da prevalência atribuída aos registros da voz e da fala na metafísica ocidental, desde Platão (Derrida, 1972b) e Aristóteles (Derrida, 1967a). A escrita foi aqui concebida numa dimensão não-fonética, constituída que seria por traços que a configurariam na sua materialidade. O dito processo de desconstrução começou efetivamente a se realizar no interior da própria tradição da metafísica ocidental, com o privilégio progressivo assumido pelo texto no lugar do livro, que teria assumido desde Nietzsche a sua viragem histórica no campo da filologia e do discurso filosófico (Derrida, 1967a).

Portanto, se na crítica que Derrida empreendeu, para a desconstrução sistemática da leitura clássica do arquivo, o que estaria em questão seriam os discursos da história e da historiografia, assim como as demais ciências afins nas suas positividades, como a filologia, o que aquele visaria efetivamente seria algo muito mais abrangente e radical do que isso. O que estaria em pauta, com efeito, seria o próprio estatuto de conceito. No que concerne a isso, é preciso evocar e destacar com ênfase que, em múltiplas passagens do seu ensaio sobre o arquivo (Derrida, 1995, p. 17), Derrida afirma repetidamente que, se não dispomos ainda de um conceito consistente e seguro do que é o arquivo, seria também o estatuto do conceito que ficaria, assim, em questão. Derrida desliza de maneira insistente, enfim, do questionamento do conceito de arquivo para a interpelação, ainda mais radical, do estatuto do conceito em geral.

No entanto, com a colocação em questão do estatuto do conceito em geral, o que se interpela efetivamente é o próprio estatuto da verdade. Vale dizer que o que Derrida pretende aqui interpelar, na radicalidade de sua crítica, é o próprio estatuto do discurso filosófico, na medida em que a problemática da verdade se inscreve efetivamente no campo desse discurso.

Derrida retoma assim, à sua maneira e com seus instrumentos teóricos, a interpelação da tradição metafísica do Ocidente na sua pretensa vontade de verdade. Esta, com efeito, teria marcado a metafísica desde os seus primórdios na tradição grega, de acordo com a leitura inaugural de Nietzsche sobre isso. Outros filósofos, contemporâneos de Derrida na França, retomaram também as sendas entreabertas pela crítica de Nietzsche à tradição metafísica do Ocidente e à vontade de verdade especificamente, como Foucault.

A totalidade do percurso teórico deste foi a sistemática colocação em questão, com efeito, dessa vontade de verdade, que se realizou sobre certas problemáticas cruciais da tradição ocidental desde o Renascimento até a modernidade. Portanto, pela interpelação dos estatutos da razão (Foucault, 1961/1972) e do erotismo (Foucault, 1976, 1984a e 1984b), passando pelos estatutos da morte (Foucault, 1963), da linguagem (Foucault, 1966), da verdade (Foucault, 1966) e da punição (Foucault, 1974), o que estava sempre em pauta era o questionamento dessa vontade de verdade.

Assim, numa trama linguageira centrada sempre no diferir e na produção contínua da diferença, a fixidez e a estabilidade ontológica do conceito estariam também em causa nessa formulação de Derrida. A instabilidade insistentemente diferencial do signo, no seu permanente diferir e em sua fragmentação, se desdobraria inequivocamente numa abertura do horizonte do discurso para o futuro e para o vir-a-ser. Seria justamente isso que Derrida compreendia como o que definiria a especificidade da experiência da história, isto é, como permanente vir-a-ser, desde a sua crítica inicial ao discurso do estruturalismo de Lévi-Strauss, nos anos 60 (Derrida, 1972c, pp. 39-42).

De qualquer forma, nessa abertura insistente da linguagem para a temporalidade do futuro e para o vir-a-ser, a dimensão metafórica do discurso, na sua dimensão poética, se sobreporia às dimensões do conceito e de verdade, desestabilizando a pretensa fixidez ontológica destes (Derrida, 1995, pp. 22-39). Portanto, seria o registro da ficção o que se perfila aqui efetivamente, na trama da discursividade, permeando esta com a dimensão do espectral (Derrida, 1995, pp. 81-128).

Foi nesse contexto teórico específico que a oposição teórica estabelecida no discurso freudiano, enunciada que foi em “Construções em análise” (Freud, 1937d) e “O homem Moisés e a religião monoteísta” (Freud, 1939a), entre verdade material e verdade histórica, se inscreve no centro desse ensaio de Derrida sobre o estatuto de arquivo. Foi para dizer algo efetivamente sobre o estatuto teórico da verdade histórica no discurso freudiano, na sua diferença específica com o de verdade material, que o ensaio de Derrida se construiu e se realizou nesse percurso, de múltiplas maneiras, mas nunca de maneira direta e frontal. A leitura minuciosa do comentário de Yerushalmi a respeito do ensaio de Freud sobre Moisés (Yerushalmi, 1991) ocupa a maior parte do texto de Derrida e é certamente a cena teórica principal de seu ensaio.

 

Princípios ontológico e nomológico

Assim, para circunscrever devidamente esse conjunto de proposições e de enunciados, Derrida parte de uma formulação inicial pela qual delineia a problemática do arquivo. Eu digo aqui que aquele propriamente delineia a problemática e não o conceito de arquivo, pois pretende destacar algumas exigências mínimas para esboçar o que seria um arquivo, tal como foi este estabelecido na tradição ocidental.

Antes de mais nada, a palavra arquivo remete para a palavra grega arkhé (Derrida, 1995, p. 11), familiar no vocabulário filosófico. Essa palavra condensa um duplo significado, quais sejam, o de começo e o de comando (Derrida, 1995, p. 11). A dificuldade teórica maior estaria em definir onde e quando começa o arquivo, por um lado, e quem comanda o arquivo, pelo outro (Derrida, 1995, p. 11).

Se o começo remete à dimensão ontológica do arquivo, que se constituiria de enunciados de ordem física e histórica, o comando alude à dimensão da lei, que regularia aquele necessariamente. Com isso, a dimensão nomológica seria constitutiva do arquivo, na medida em que a autoridade, seja através dos deuses seja através dos homens e da ordem social, delineia a ordem que estabeleceria efetivamente o arquivo de maneira imperativa (Derrida, 1995, p. 11). Dessa forma, o arquivo enquanto tal seria constituído pela articulação de três registros, pelo menos,
quais sejam, o cognitivo (princípio ontológico), o ético e o político
(princípio nomológico).

Vale dizer, o arquivo seria um conjunto de documentos que remeteriam a diversos acontecimentos que ocorreram numa dada ordem social. Porém, tais documentos recobriram os tratamentos prévios de decantação e de classificação, que implicariam o agenciamento realizado pelo poder propriamente dito. Seria este, na sua autoridade e pela força que dispõe, que indicaria um lugar e um domicílio (Derrida, 1995, pp. 12-13) para o arquivo, nos quais algo da ordem do segredo seria cultuado e preservado. Com isso, o conjunto de documentos seria objeto de uma consignação (Derrida, 1995, p. 14), que classificaria e ordenaria os signos e os enunciados que estariam ali presentes. O que implicaria, portanto, a ação de um agente específico, que seria, ao mesmo tempo, um guardião e um intérprete (Derrida, 1995, pp. 12-13) do arquivo, isto é, um arconte, que exerceria a sua autoridade no espaço da arkheîon (Derrida, 1995, pp. 39-41). Enfim, arkhé, arkheîon e arconte são palavras-chave para a leitura da constituição do arquivo.

Na leitura clássica do arquivo, nos sentidos tanto filosófico quanto histórico do termo, que pretenderam definir uma ciência do arquivo, este teria não apenas um começo absoluto e um momento inaugural para a sua constituição, mas estaria também centrado no tempo do passado. Portanto, o arquivo teria uma origem e se configuraria como experiência de rememoração, que seria definida e materialmente realizada pela configuração de uma historiografia de uma dada tradição (Derrida, 1995, “Exergue”).

Contudo, para Derrida, o arquivo não seria algo que se restringe ao registro da memória, isto é, não seria apenas mneme que implicaria somente na anamnese, mas seria também da ordem da hypomnese. (Derrida, 1995, pp. 25-27) Com efeito, o que o arquivo pode conter não está totalmente presente como memória pela sua documentação patente. Se fosse esse o caso, bastaria que o sujeito pudesse realizar a sua rememoração. Vale dizer, o arquivo não se restringiria à sua verdade material, mas implicaria também a sua verdade histórica, como diria Freud (1939a). Esta, portanto, não se encontra apenas no registro patente dos enunciados, isto é, como documento, mas também no registro latente. Vale dizer, o arquivo não se restringe ao enunciado constatativo, mas se desdobra também nos registros do performativo e da enunciação (Derrida, 1995, p. 11), como diria a filosofia analítica da linguagem, de que Derrida lança mão fartamente nesse ensaio e na sua obra.

O que implica formular, portanto, que é o princípio nomológico do comando que delineia os diversos discursos patentes, os quais constituem o arquivo nos seus enunciados ontológicos, numa temporalidade centrada agora no presente atual, mas que se articularia necessariamente com o presente futuro e com o presente passado. Seria, assim, o intérprete, como arconte, quem constituiria o arquivo no registro ontológico. Com isso, este perderia a sua fixidez e suposta estabilidade documental, isto é, a sua pretensa dimensão de fato e de verdade material, para se transformar pela consignação, realizada pelo intérprete, em verdade histórica. Para isso, contudo, o intérprete deveria relançar permanentemente o que insistentemente se repete no arquivo (Derrida, 1995, “Avant-propos”).

Assim, o intérprete, como arquivista que é, fundamentalmente, não deve apenas acolher a repetição que insiste no arquivo, mas também relançá-la em direção ao futuro. Essa leitura, que é constitutiva do próprio arquivo, portanto, é o que direciona este para o vir-a-ser que perpassa também o arquivo enquanto tal. Seria o arquivista/intérprete, enfim, quem constituiria, por tais operações de leitura, a consignação do arquivo em pauta.

 

Pulsão de morte, silêncio e esquecimento

Seria em decorrência desses pressupostos críticos, acima delineados, para a constituição de arquivo, que o discurso freudiano colocou em questão a concepção clássica sobre esse arquivo e colaborou decisivamente para a sua desconstrução. O que não implica dizer, bem entendido, que aquele discurso não tenha também ficado preso em alguns dos pressupostos teóricos da leitura clássica. Isso porque não retirou, com a radicalidade necessária, todas as conseqüências dos pressupostos teoricamente originais que forjara sobre o arquivo (Derrida, 1995, pp. 29-32).

Derrida retoma no ensaio em questão, numa outra direção e registros teóricos, o que já esboçara na sua leitura inaugural do discurso freudiano, em “Freud e a cena da escrita”. Se Freud avançara teoricamente na desconstrução do filosofema da presença pela proposição de que o psiquismo seria uma máquina de escrever, por um lado, não deixou, por outro, de ficar ainda preso em alguns outros pressupostos desse filosofema, que marcaram a tradição metafísica ocidental (Derrida, 1967b, pp. 293-295). O que se pode destacar efetivamente no discurso freudiano, de qualquer maneira, é a proposição axial de que, se o inconsciente é uma escrita (Derrida, 1967b, pp. 306-318), esta se constituiria então como um arquivo (Derrida, 1995, pp. 45-54), de fato e de direito.

Assim, a concepção de que o aparelho psíquico seria permeado por marcas e traços, disseminados em diferentes espaços psíquicos - inconsciente, pré-consciente e consciência, na primeira tópica (Freud, 1900a); isso, eu e super-eu, na segunda tópica (Freud, 1923b) −, agenciados por diversas operações, tais como posterioridade, recalque e repressão, colocaria radicalmente em questão a dita leitura clássica do arquivo (Derrida, 1967b, pp. 306-328).

Dessa maneira, o arquivo não se constituiria apenas de traços patentes e ostensivos, mas também pelas múltiplas leituras possibilitadas pela condição de posterioridade do intérprete e pela ação das operações do recalque e da repressão, que transformariam o que é patente em latente e virtual. Os traços, enfim, apareceriam assim de maneira indireta, sob as diversas configurações assumidas pelas formações do inconsciente, a saber, o sintoma, o lapso, o ato falho e o chiste.

Além disso, o aparelho psíquico assim esboçado seria ainda permeado por fantasmas, que impregnariam os interstícios dos traços psíquicos. Com isso, estes perderiam qualquer veleidade de objetividade e de consistência ontológica, pois os traços seriam atravessados pela espectralidade (Derrida, 1995, pp. 80-128). Da mesma maneira que os traços, esta espectralidade se inscreve no arquivo, não podendo ser, então, eliminada e colocada entre parênteses na sua leitura. Vale dizer, o arquivo seria uma construção efetivamente espectral, não existindo, então, arquivo sem espectralidade, numa ilusão de pura objetividade, nos registros do fato e do documento.

É preciso considerar ainda que o discurso freudiano, com a hipótese da pulsão de morte, enunciou que existiria algo no psiquismo que apagaria as marcas e os traços deste (Derrida, 1995, pp. 23-29). Como potência de produção do silêncio (Freud, 1920g, capítulos VI e VII), a pulsão de morte, enunciada que foi por Freud como pulsão de destruição, apagaria as marcas e os traços arquivados. Derrida positiva deste modo a pulsão de morte como mal de arquivo, pois seria aquela que possibilitaria tanto o esquecimento quanto a renovação do arquivo pelas novas consignações que seriam, portanto, a condição de possibilidade de acrescentar novos arquivamentos (Derrida, 1995, pp. 23-29). Enfim, a pulsão de morte seria denominada por Derrida como arquiviolítica, apagando então os traços inscritos e possibilitando que novas inscrições pudessem ser realizadas
no arquivo.

Assim, nessa formulação radical de Freud, a crítica à leitura clássica do arquivo - que já estava em realização anteriormente na concepção do psiquismo fundado no inconsciente e no enunciado de diferentes lugares psíquicos, regulados pelas operações da posterioridade, do recalque e da repressão - teria atingido o seu apogeu teórico. Com isso, o arquivo seria necessariamente marcado na sua materialidade discursiva pelo mal de arquivo, pelo apagamento e esquecimento promovido pela pulsão de morte. Enfim, o mal de arquivo seria necessariamente o outro lado do arquivo, frente e verso de uma mesma superfície de inscrições, onde se realizariam as trocas e as circulações discursivas.

 

Arquivo versus arqueologia

Não obstante tudo isso, o discurso freudiano não teria se descolado inteiramente dos pressupostos da leitura clássica do arquivo, não radicalizando inteiramente o enunciado proposto de que o arquivo seria da ordem da metáfora e da ficção, isto é, seria permeado por fantasmas e pela espectralidade, que permeariam as suas marcas e traços no processo infinito e insistente de produção do diferir e da diferença.

Por que não? Pela insistência sempre presente, no discurso freudiano, de encontrar algo da ordem do real como constitutivo da ordenação dos traços e marcas escriturárias, como se devesse existir ainda algo da ordem da origem na construção do psiquismo como arquivo (Derrida, 1995, pp. 149-154). Vale dizer, o discurso freudiano insistia ainda na pesquisa infinita de uma pretensa verdade material, no qual esta estaria subjacente à verdade histórica. Com efeito, apesar de Freud ter ultrapassado a teoria do trauma e da sedução (Freud 1896c) pela formulação da teoria do fantasma (Freud, 1900a, capítulos II e VII), desde 1896, quando teria dito a Fliess que “não acreditava mais na sua neurótica” (Freud, 1887-1902/1973, p. 190), o discurso freudiano continuou a insistir de maneira oscilante na busca da origem e do estabelecimento de um real que pudesse ser o fulcro ordenador das marcas e dos traços psíquicos (Freud, 1918b).

Foi nessa direção crítica que a parte final do ensaio de Derrida se centrou, voltando-se para a leitura realizada por Freud do romance Gradiva, de Jensen (Freud 1907a). Não obstante Freud destacar que era efetivamente o desejo de saber o que orientava de maneira decisiva o pretenso discurso científico do arqueólogo Norbert Hanold, a busca sôfrega de uma impressão originária obcecara ainda Freud nessa sua leitura (Derrida, 1995, pp. 131-143). A cientificidade irrefutável do discurso psicanalítico se fundaria, em última instância, enfim, numa suposta verdade material e num real irrefutável.

Isso implica dizer que, se a leitura crítica da concepção clássica do arquivo proposta por Derrida, sublinhando-se aqui o destaque conferido ao mal do arquivo, encontra ressonâncias fundamentais no discurso freudiano, não deixa de destacar também a existência de algumas dissonâncias cruciais. Estas se condensam decisivamente em torno da idéia de arqueologia. Com efeito, se a psicanálise pretendia com Freud permanecer ainda no registro da arqueologia, isso se desdobraria inequívoca e necessariamente na busca da origem e da verdade material para as marcas e traços psíquicos, ou seja, na retomada indireta dos pressupostos positivistas presentes nos discursos da história e da historiografia (Derrida, 1995, “Post-scriptum”), que estariam justamente aqui na berlinda.

É bastante conhecido que a identificação da psicanálise com o discurso da arqueologia marcou profundamente o discurso freudiano, de seus primórdios (Freud, 1895d, “Psychothérapie de l’histérie”) até quase o final de seu percurso (Freud 1930a), encontrando-se ainda presente no “Mal-estar na civilização”. O que estaria em pauta nessa insistência? O imperativo de que algo da ordem do real pudesse fundar o psiquismo como arquivo, de modo que esse arquivo se identificasse com a memória e que pudesse ainda ser inteiramente resgatado pela experiência da rememoração. Diante dessa impossibilidade, enunciou, no final de seu percurso, em “Construções em análise” (Freud, 1937d) e “O homem Moisés e a religião monoteísta” (Freud, 1939a), o conceito de verdade histórica em oposição ao de verdade material. Procurava, mediante o novo conceito, enfim, desistir de encontrar qualquer fundamento real para o processo de compulsão à repetição.

Ricoeur, no seu ensaio importante sobre Freud (Ricoeur, 1965), publicado nos anos 60, retomou essa preocupação teórica de Freud, identificando, então, a psicanálise com a arqueologia, enfatizando, assim, a importância tanto da memória quanto da rememoração. Foi a filiação fenomenológica de Ricoeur (Hegel e Husserl) que lhe marcou nessa leitura, justamente pela pregnância assumida nesta pelo filosofema da presença, de maneira a fundar a psicanálise como uma arqueologia do sentido (Ricoeur, 1965).

Portanto, a crítica de Derrida à preocupação com a arqueologia presente no discurso freudiano explicita a impossibilidade de captura da origem e da verdade material, radicalizando, então, a dimensão escriturária e fantasmática do psiquismo. Seria por esse viés, enfim, que o arquivo estaria necessariamente marcado por traços permeados pela espectralidade.

 

Desconstrução e construção do comando

Não obstante todas essas ponderações e críticas, não resta também qualquer dúvida de que o discurso freudiano teria sido aquele que mais colaborou para a desconstrução da leitura clássica do arquivo. Não apenas por tudo o que já disse anteriormente, mas também porque, com a hipótese da morte do pai da horda primitiva e do seu correlato, qual seja, a da constituição de uma sociedade fraternal (Freud, 1912x, capítulo IV) (um esboço do que poderia ser efetivamente uma sociedade democrática), colocou radicalmente em questão o princípio patriarcal do comando de caráter falocêntrico e multiplicou, então, as instâncias efetivas de comando (Derrida, 1995, pp. 147-148). O discurso freudiano questionou, assim, a autoridade do princípio nomológico do arquivo pela promoção da arkhé nomológica da lei (Derrida, 1995, pp. 147-148).

Nessa perspectiva, toda vez que tal princípio se repunha seria para ser imediatamente repudiado e liquidado, logo em seguida, pelo parricídio. Vale dizer, com o enunciado do princípio do pai morto, o que se colocava efetivamente em questão era o dito princípio arcôntico da autoridade (Derrida, 1995, pp. 147-148). Estaria condensada nessa formulação radical, enfim, a colaboração inestimável do discurso freudiano para a desconstrução da leitura clássica do arquivo.

No entanto, o homem Freud não conseguiu efetivamente se desembaraçar do princípio arcôntico da autoridade na sua existência. Tanto na sua vida privada quanto em muitas de suas obras, assim como em diversas de suas teses teóricas e nas suas práticas institucionais, o princípio patriarcal se repunha invariavelmente em seu discurso (Derrida, 1995, p. 148).

No que concerne a isso, é preciso evocar e sublinhar devidamente o que Freud enunciou em “O homem dos ratos” (Freud, 1909d), no qual afirmou, de maneira peremptória, que o princípio do direito patriarcal marcaria um efetivo progresso civilizador da razão. Essa mesma tese, aliás, foi, sem dúvida, repetida por ele, com pequenas variações, em “O homem Moisés e a religião monoteísta” (Freud, 1939a).

 

Promessa e Justiça

Na leitura acurada que nos propõe da obra de Yerushalmi sobre Moisés, Derrida esboça e coloca em prática a maneira pela qual pode ser operante e teoricamente produtiva a sua interpretação do arquivo. Essa leitura ocupa a maior parte de seu ensaio, estando no centro de sua exposição, como já disse acima.

Assim, Yerushalmi, em sua obra O Moisés de Freud. Judaísmo terminável e interminável (Yerushalmi, 1991), se mantém ainda ligado ao modelo clássico do arquivo, principalmente ao contestar a tese central de Freud na sua obra sobre Moisés, qual seja, de que Moisés teria sido assassinado pelo povo judaico na travessia do deserto. Isso porque, segundo Yerushalmi, não existia qualquer documentação sobre esse conhecimento, de maneira que não haveria qualquer fato que pudesse verificar a formulação
de Freud.

Porém, naquilo que Freud nos propôs de mais radical no seu livro sobre Moisés, a morte de Moisés, que foi realizada pelo povo judeu, apareceu apenas posteriormente na história, de maneira oblíqua, sob a forma de sintoma e de repetição. Com efeito, a morte posterior de Cristo foi a repetição da morte de Moisés. Além disso, a morte de Moisés já seria algo da ordem da repetição, qual seja, a repetição da morte do pai da horda primitiva pelos filhos (Freud, 1939a, 3° ensaio; e Derrida 1995, “Avant-Propos”).

Portanto, a marca arquival do assassinato de Moisés se insinua de maneira indireta e sinuosa, como um sintoma e como um mal de arquivo, pois os traços foram apagados no registro patente do documento. No entanto, no registro latente e virtual, os seus traços ainda insistem, sob a dupla forma do retorno do recalcado e da repetição. Vale dizer, se a verdade material do acontecimento não existe, no registro do fato como documento, a verdade histórica daquele se enuncia de maneira eloqüente pelo retorno do recalcado e pela compulsão à repetição (Derrida, 1995, “Avant-Propos”). Estaria aqui, enfim, o grande obstáculo teórico que norteia a leitura de Yerushalmi, na leitura clássica que ainda realiza do arquivo como historiador.

Porém, no capítulo final do seu livro, intitulado “Monólogo com Freud”, Derrida destaca com argúcia o deslocamento realizado por
Yerushalmi da leitura clássica do arquivo e a sua aproximação possível de uma outra leitura deste. Com efeito, Yerushalmi interroga aqui Freud como um espectro e como um fantasma, num fascinante corpo-a-corpo discursivo e progressivamente interpelante e desesperador, mas o fantasma de Freud não responde e não pode efetivamente responder aos apelos daquele, não apenas porque Freud está morto, mas também porque é analista e, como tal, mantém-se silencioso (Derrida, 1995, pp. 82-120).

Derrida considera essa parte da obra de Yerushalmi como a mais importante, caracterizando-a como o umbigo da obra (Derrida, 1995, pp. 82-120), numa alusão direta ao umbigo do sonho, enunciado por Freud em “A interpretação do sonho” (Freud, 1900a). Tudo o que Yerushalmi escrevera anteriormente no livro, isto é, os capítulos eruditos do historiador, seriam assim mera introdução para esse capítulo final, no qual algo de novo se anuncia e se enuncia fora dos cânones da leitura clássica do arquivo.

Com efeito, a leitura de Yerushalmi aqui se abre efetivamente para o horizonte do futuro, para a leitura do arquivo de Moisés como promessa, pela qual o conceito de judeidade pôde se formular em oposição ao de judaísmo, pela radicalidade de sua interpelação fantasmática e espectral de Freud. Portanto, se o judaísmo seria terminável e com isso o anti-semitismo poderia ser efetivamente eliminado da história no tempo futuro, a judeidade como ética da promessa seria interminável (Derrida, 1995, “Avant-propos” e “Thèses”). Yerushalmi promoveria dessa maneira, enfim, a renovação efetiva do arquivo de Moisés e da figura de Moisés na leitura de Freud.

Assim, da mesma forma que o umbigo do sonho é aquele que se abre para o desconhecido e para o silêncio, para as bordas do segredo insondável do sonho que não se torna jamais patente como verdade material, no que tange ao arquivo, a sua origem não seria também jamais capturável como verdade material. Podemos percorrê-lo pelas suas múltiplas repetições e pelos infinitos retornos do recalcado, pelos quais a verdade histórica pode se enunciar de maneira indireta e sinuosa, mas sempre de maneira performativa.

Dessa maneira, é a ética da promessa como dimensão e horizonte do vir-a-ser o que se destaca aqui com eloqüência, fundamento daquilo que poderia ser um projeto de Justiça. Assim, a leitura crítica do arquivo remete para um messianismo sem Messias, isto é, para um processo libertário de Justiça em que não deveria existir qualquer princípio arcôntico de autoridade (Derrida, 1995, “Avant-propos” e “Thèses”). Enfim, Derrida retoma nesse ensaio as mesmas formulações que enunciara em outros de seus livros dos anos 90, quais sejam, “Espectros de Marx” (Derrida, 1993) e “Força da lei” (Derrida, 1994).

Por isso mesmo, o umbigo do argumento do livro de Yerushalmi remeteria à ausência de origem, na qual a verdade material entra efetivamente em estado de colapso e de suspensão, e a verdade histórica poderia se enunciar de maneira fulgurante, pela ética da promessa e o ideário messiânico da Justiça.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: joel.birman@pq.cnpq.br

Enviado em 14/11/2007
Aprovado em 24/6/2008