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Natureza humana
versión impresa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.23 no.2 São Paulo jul./dic. 2021
APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO
Fábio Furlanete; Marcos Alexandre Nalli; Renan Pavini; Tiaraju Dal Pozzo Pez
No curso ministrado nos anos de 1983/84, "A coragem da verdade", Foucault afirma que o pensamento filosófico, desde a antiguidade, propôs-se a "nunca colocar a questão da alétheia sem reavivar, ao mesmo tempo, a propósito dessa própria verdade, a questão da politeía e do éthos" (Foucault, 2011, p. 60). Parece-nos que mais do que se referir ao pensamento em geral, ele está expondo uma exigência de sua própria experiência filosófica, na qual são articuladas, de maneira irredutível umas às outras - pois de naturezas diferentes -, as dimensões do saber, do poder e da ética.
Tal experimentação é, certamente, inusitada aos cânones filosóficos, tanto por suas temáticas como, por exemplo, a loucura, a sexualidade, a governamentalidade e a biopolítica, não são usualmente tratadas pelos filósofos, quanto por sua escrita feita a partir do canteiro da história - assim Foucault chamava -, cujo valor crítico, por isso, constituiu-se ao priorizar as rupturas, as cisões, as heterotopias e avesso aos grandes sistemas de pensamento. Isto é, trata-se de uma experiência de pensamento que busca fazer aparecerem, nos espaços de dissensões, "essas questões cotidianas, marginais, mantidas um pouco silenciosas" (Foucault, 2012, p. 543) que a filosofia tem negligenciado para multiplicar as possibilidades e a variabilidade de significados e de práticas.
O pensamento foucaultiano, então, não forma uma unidade sistemática, mas se oferece como uma caixa de ferramentas, na qual tomamos aquelas que mais nos ajudam a enfrentar os nossos problemas. Uma dessas ferramentas, talvez a mais popular, não só nas ciências humanas, como em outras áreas do conhecimento e, visto a atual situação pandêmica, também presente no cotidiano das pessoas, é o neologismo biopolítica. Embora não tenha sido o filósofo francês quem inventou o termo, foi graças a ele, no curso de 1975-1976, "Em defesa da sociedade", e no primeiro volume da "História da sexualidade: a vontade de saber", que o neologismo é abordado e começa a ganhar força como outra modalidade de relação de poder diferente da disciplinar bastante trabalhada nos seus textos anteriores, principalmente em "Vigiar e Punir".
Foucault compreende a biopolítica como uma tecnologia de poder, cujo alvo não é mais o corpo individual, mas a população, ou seja, trata-se de uma modalidade de poder que busca gerir os fenômenos populacionais, por exemplo: a natalidade, a morbidade, as incapacidades biológicas e os indicadores econômicos para mensurá-los, prevê-los e planejar ações necessárias para otimizar os efeitos sobre o conjunto dos seres vivos. É nesse sentido que, "Em defesa da sociedade", ele utiliza o termo "sociedade de normalização, em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulamentação" (Foucault, 1999, p. 302), tendo a vida em todos os seus níveis como objeto de controle.
Nos cursos de 1977-1978, "Segurança, território, população" e de 1978-1979, "Nascimento da biopolítica", ocorrem alguns deslocamentos na obra foucaultiana, nos quais a noção de biopolítica é atrelada aos dispositivos de segurança e, por isso, problematizada através de outro tipo de exercício de poder, que Foucault chamou de governamentalidade. Com este novo neologismo, enquanto grade de inteligibilidade, a biopolítica é entendida como "modos de ação mais ou menos refletidos e calculados, porém todos destinados a agir sobre as possibilidades de ação dos outros indivíduos" (Dreyfus; Rabinow, 2010, p. 288). Isto é, trata-se de práticas de governo das ações humanas, que definem uma lógica da organização e maximização dos movimentos populacionais a fim de diminuir os riscos potenciais. É importante frisar que o conceito de governamentalidade significou também uma espécie de encruzilhada, a qual, de um lado por meio da interrogação da noção de biopolítica, implicava em tecnologias de governo dos outros e, de outro lado, uma superfície de contato com o domínio da ética, das técnicas de governo de si mesmo.
Partido desses pressupostos, vários pensadores tem se empenhado em agregar e contribuir para essa reflexão. Entre eles, destacam-se Giorgio Agamben, em seu Homo Sacer, Roberto Esposito, com sua noção de paradigma imunitário, Achille Mbembe, com seu conceito de necropolítica, Judith Butler, com o conceito de vida precária, entre outros. Todavia, não basta simplesmente fazer uma exegese da maneira como a biopolítica aparece ou é definhada por cada um desses autores, é preciso empregá-la, utilizá-la - como propõe Foucault a respeito de seu pensamento - como uma ferramenta para, pelo menos parcialmente ou potencialmente, lançar luz sobre nosso presente.
Consequentemente, todas essas torções, convergências e divergências, adensamentos e aberturas, separações e misturas no conceito de biopolítica tornaram possíveis uma variabilidade de trabalhos, que promovem investigações originais como chaves de leitura e análise para uma gama de questões atuais. Sob essa perspectiva, o presente dossiê é resultado do "II Encontro Nacional e I Encontro Internacional de Biopolítica: Os desafios da atualidade" realizado pelo grupo de pesquisa "(des)Leitura: Filosofia, Ciência e Arte", existente desde 2004 na Universidade Estadual de Londrina (UEL - PR). O grupo (des)Leitura já vem atuando, há um bom tempo, em participações de eventos nacionais e internacionais, bem como em publicações. Sobre estas, vale ressaltar, além de artigos especializados, os livros Foucault em múltiplas perspectivas (Londrina: EDUEL, 2013), Michel Foucault: desdobramentos (Belo Horizonte: Autêntica, 2016) e Ensaios de biopolítica: entre caminhos e desvios (Santo André, EdUFABC, no prelo). Além dos integrantes do grupo, de diversas áreas do conhecimento (filosofia, psicologia, direito, música), participam deste dossiê tanto pesquisadores nacionais como internacionais, que trazem novas problematizações e enriquecem os debates em torno da biopolítica.
Desejamos uma boa leitura!
Foucault, M. (1997). Em Defesa da Sociedade: curso no collège de France (1975 - 1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999. [ Links ]
Foucault, M. (2009). A coragem da verdade. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2011. [ Links ]
Foucault, M. (2001). Dits et écrits II. Paris: Quarto Gallimard. [ Links ]
Dreyfus, H; Rabinow, P. (1982). Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Trad. Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. [ Links ]