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Stylus (Rio de Janeiro)
versión impresa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.39 Rio de Janeiro jul./dic. 2019
DIREÇÃO DO TRATAMENTO
O fora do corpo: impasses entre a holófrase e a letra
The out-body: impasses between holophrase and letter
El fuera del cuerpo: impasses entre la holofrase y la letra
Le hors-corps : impasses entre l'holophrase et la lettre
Juliana Sperandio Faria
RESUMO
As divergências entre fenômenos psicossomáticos e sintoma são esclarecidas na clínica a partir do conceito de holófrase, apresentado por Lacan durante o Seminário 11. Contudo, a holófrase já anunciava a ruptura com o simbólico, ao ser apresentada como significante real na condição de um S1 que não entra na cadeia. Isso nos permite dizer que a holófrase está fora do corpo simbólico. O problema se estabelece, sobretudo, na década de 1970, quando Lacan define o sintoma como letra, marcando Um que estaria fora do corpo. Seria a holófrase uma letra? A qual corpo se referia Lacan ao fazer essa constatação? Os avanços na teoria lacaniana ligados aos conceitos de corpo, de sintoma e de inconsciente implicam a necessidade de um estudo sobre os corpos e o que acomete o fenômeno psicossomático e o sintoma.
Palavras-chave: Letra; Holófrase; Sintoma; Corpo; Inconsciente.
ABSTRACT
The differences between the psychosomatic phenomenon and the symptom are clarified in the psychoanalysis clinic by the holophrase concept, as Lacan presented during his 11th Seminar. However, the holophrase was already an announcement of a symbolic rupture, given that it appears as a real signifier, or as an S1 out of the chain. This is the reason why we can call a holophrase an out-body referring to the "symbolic body". The real problem was established in the decade of 1970, when Lacan defines the symptom as a letter, a mark of the One, which is out-body. Thus, the question is: holophrase, is that a letter? What kind of "body" was Lacan talking about? The development in the Lacanian theory related to the concepts of the body, the unconscious and the symptom imply a study about what the effects in the body between those two are.
Keywords: Letter; Holophrase; Symptom; Body; Unconscious.
RESUMEN
Las diferencias entre el síntoma y el fenómeno psicosomático están en la clínica a través del concepto de holofrase, presentado por Lacan en su Seminario 11. Sin embargo, lo que la holofrase ya anunciaba era una ruptura con el simbólico dado que ella aparece como un significante real en la condición de un S1 que no puede formar parte de la cadena. Éso es lo que nos permite llamar la holofrase un fuera del cuerpo simbólico. El gran problema se instaura en la década de 1970 cuando Lacan define el síntoma como una letra, lo que señala Uno fuera del cuerpo. La pregunta es si la holofrase es una letra y a qué cuerpo Lacan hacía referencia cuando hablaba de Uno fuera del cuerpo. Los avances en la teoría lacaniana relacionados a los conceptos de cuerpo, síntoma y de inconsciente suponen la necesidad de hacer un estudio sobre los cuerpos que afectan los fenómenos y el síntoma.
Palabras clave: Letra; Holofrase; Síntoma; Cuerpo; Inconsciente.
RÉSUMÉ
Les divergences entre les phénomènes psychosomatiques et le symptôme sont éclairées dans la clinique à partir du concept d'holophrase, présenté par Lacan au cours de son Séminaire XI. Toutefois, l'holophrase annonçait déjà la rupture d'avec le symbolique dans la mesure où elle est présentée comme signifiant réel dans la condition d'un S1 qui n'entre pas dans la chaîne. Cela nous permet de dire que l'holophrase est hors-corps symbolique. Le problème s'instaure surtout dans les années 1970, lorsque Lacan définit le symptôme comme lettre, ce qui marque Un hors-corps. Serait-ce l'holophrase une lettre ? À quel corps Lacan se référait-il lorsqu'il l'a constaté ? Les avancées dans la théorie lacanienne liées aux concepts de corps, de symptôme et d'inconscient impliquent la nécessité de faire une étude sur les corps et ce qui affecte le phénomène psychosomatique et le symptôme.
Mots-clés : Lettre ; Holophrase ; Symptôme ; Corps ; Inconscient.
Com Lacan, aprendemos que o gozo fálico é um gozo fora do corpo (hors-corps), mas o fenômeno psicossomático (FPS) também é um fenômeno que não se inscreve no corpo simbólico, e, sim, na carne, como uma invasão do Outro no imaginário do corpo. Se concebemos que o gozo fálico, gozo do sintoma, do qual a psicanálise se ocupa, não corresponde ao gozo do fenômeno psicossomático, temos aí um impasse estabelecido pela similitude de uma situação "fora do corpo". Isso nos levou ao questionamento sobre qual corpo falamos em cada uma dessas situações "fora do corpo" - FPS e sintoma - e, consequentemente, sobre qual gozo acomete cada um.
Se um corpo é feito para gozar, como seria possível estabelecer um gozo fora do corpo? E, se o sintoma é uma história contada através de um corpo, como Freud nos mostrou a partir das cenas histéricas, esse sintoma não deveria gozar de um corpo? Com o intuito de responder a essa problemática do "fora do corpo", escrevemos este artigo salientando três objetivos específicos. No primeiro momento, provocamos uma reflexão sobre o que seria o corpo para a psicanálise lacaniana, passando pelos três registros, simbólico, imaginário e real. No segundo tempo, visamos a trazer as mudanças das concepções do sintoma na teoria psicanalítica. E, por fim, na terceira etapa, almejamos abordar as mudanças no conceito fundamental da psicanálise, o próprio inconsciente, trazendo para a discussão a complexidade do inconsciente real e sua unidade da letra na relação com os diferentes gozos.
O conceito de corpo em Lacan sofreu modificações ao longo de seu ensino, passando pelo estádio do espelho no âmbito do imaginário, pela substância gozante no real e pelo corpo simbólico do Outro. O estádio do espelho (Lacan, 1949) marcou uma primeira noção de corpo. Aqui, o corpo é um outro que surge através de uma identificação; a identificação à imagem do semelhante que marca, sobretudo, as dimensões imaginárias do corpo. Se o eu e o outro se confundem nessa relação especular, eu projeto coisas no outro a partir de traços meus. Entretanto, ao trabalhar a "agressividade em psicanálise", Lacan (1948) mostra que esse outro é tanto ideal quanto rival.
As imagens, para Lacan, têm uma relação com a pulsão. O corpo fragmentado antes da Gestalt antecipatória é o real pulsional com seus objetos despedaçados, e, a partir do estádio do espelho, Lacan faz uma leitura da libido narcísica formada por essa identidade alienante, de modo que as pulsões autoeróticas tendem à alienação, que permite a construção de seu eu ideal, imagem do outro, i(a). O narcisismo primário é o eu ideal, suporte do Ideal do Outro I(A) (Quinet, 2012). O estádio do espelho não se dá, portanto, sem o Outro da linguagem.
Se, para Freud, o corpo a que temos acesso na psicanálise é um corpo pulsional, sendo a pulsão algo entre o somático e o psíquico, Lacan (1975c-1976), sessão de 18 de novembro de 1975, inédito) dirá que a pulsão "é o eco no corpo pelo fato de que há um dizer", enfatizando sempre a ligação com a linguagem. Destarte, a linguagem é o psíquico, na medida em que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem" (Lacan, 1964/1985b, p. 27). Falar de pulsão implica, portanto, falar de palavra, e é isso que Lacan (1960) demonstra no grafo do desejo pelo matema ($<>D).
A pulsão é o que permite a ligação com o Outro dos significantes, visto que o único acesso possível a ela é por meio dos representantes, ou significantes da demanda do sujeito, pois acessamos o real pelo simbólico. Ligada aos significantes, as pulsões são "civilizadas", e, no intervalo da cadeia significante, entre os significantes da demanda, encontramos o desejo não fixado. Cabe aqui um parêntese para ressaltar que se, ao falar de pulsão, Lacan introduz sua dimensão de linguagem, não podemos, entretanto, cair no equívoco de igualar pulsão e demanda, porque a pulsão não demanda nada, ela age em busca de sua satisfação. Aí está um primeiro ponto para pensar a diferença entre sintoma e fenômeno psicossomático no que diz respeito ao corpo pulsional.
Se o sintoma revela um desejo recalcado, lembramos que o desejo está ligado ao dizer, e não ao que é dito, e as pulsões revelam um dizer. Mas o fenômeno psicossomático aponta para outro tipo de pulsão, a pulsão de morte, em que as pulsões estão "descivilizadas" e mudas, não apresentando a mensagem cifrada do sintoma no corpo histérico.
Poderíamos dizer que a psicanálise só existe por uma mudança de olhar de Freud sobre o corpo histérico, pois os conceitos psicanalíticos nascem quando o corpo deixa de ser o corpo biológico e passa a ser questionado como um lugar de enunciação do inconsciente, revelando as histórias. É assim que o corpo revela um saber não sabido, mas atuado.
O que temos aí é um corpo simbólico, referente à segunda definição de corpo na teoria lacaniana, que, na verdade, trata-se do corpo que vem primeiro. Dito de outro modo, antes da formação do estádio do espelho, o sujeito está alienado ao Outro da linguagem. Assim, o sintoma descoberto por Freud marca um corpo que adoece pelos ditos do Outro e se faz palco para apresentar seus dizeres. Pois, se "falamos com o nosso corpo", é porque falamos através da língua que afetou esse corpo, dos ditos primordiais da demanda do Outro; é através dessa língua que colocamos peso em algumas palavras. Esse corpo não é propriamente o corpo imaginário, narcísico, mas ele não é sem relação com o Ideal do Outro, que implica o eu ideal como instância imaginária. Isso fica evidente na medida em que o sujeito se volta para aquele que encarna o Outro para ele, diante do espelho, esperando uma confirmação de sua imagem. Assim, podemos afirmar que o inconsciente afeta a imagem do corpo e seus objetos.
Em Freud, o sintoma é uma formação de compromisso entre o eu e o isso, de modo que isso implicaria a dimensão imaginária do corpo (eu). Embora as noções do isso (reservatório de pulsões) e do desejo inconsciente façam alusão a uma parcela de real no sintoma, ele corresponderá ao gozo do sentido para Lacan (Soler, 2009/2012), pois ele é atravessado pelo deciframento da cena que se transmite pelo corpo. É nesse aspecto que o corpo conta uma história e que podemos decifrá-la em uma análise.
Em outras palavras, a interpretação de Lacan do sintoma freudiano como formação de compromisso sustenta a ideia de que, por meio da análise, chegamos ao entendimento do sintoma e podemos, enfim, decifrá-lo completamente, para que ele desapareça, atribuindo um sentido ao próprio desejo inconsciente do sujeito. Temos aí o inconsciente ligado ao simbólico e imaginário, correspondente à primeira interpretação do sintoma freudiano por Lacan, a metáfora do sintoma, que ainda não permite situar o real do vivente. Trata-se do que se inscreve na dimensão do sentido, naturalmente provocada pela metáfora, uma vez que a metáfora produz um mais de sentido. Para Lacan, as operações ligadas ao inconsciente-fantasia traduzem um lugar onde o pensamento do homem é débil, preso aos sentidos atribuídos por seu imaginário (Soler, 2009/2012). Destarte, é exatamente por dar-se conta de um real sintomático que não havia sido levado em consideração na leitura lacaniana da obra de Freud, nem nas operações clínicas descritas por Freud para "resolver" o problema do sintoma, que Lacan reinventa a noção de sintoma como letra e do inconsciente como real. Mas retornaremos a esses conceitos com mais calma.
Com Lacan, aprendemos que o corpo-imagem indica a forma de o sujeito relacionar-se com os outros (a-a'), e isso seria sustentado pelo inconsciente, pois o ideal do eu é uma imagem formada pelos significantes do Outro. Se o inconsciente é um Outro que passa a habitar o sujeito, aprendemos que aquilo que o sujeito tem de mais individual - seu inconsciente - é formado por um Outro, e sua imagem é o outro.
O corpo não é algo natural, e por isso padecemos de uma relação "não inata" com esse corpo unheimilich. No Seminário 11, Lacan (1964/1985b) fala sobre o "lust-ich", que seria a imagem do espelho, salientando "lust" como o lado belo do objeto. O "lust-ich", então, tem conotação biunívoca, mostrando algo do nível do objeto e algo do nível do sujeito satisfazendo-se como "lust". Mas há também o "unlust", que Lacan chamará de "não-eu", que se constitui no interior do círculo do eu primitivo como o objeto que o "ich" (eu) nunca consegue evacuar; esse seria o objeto em sua função de mal de objeto ligado à alienação. A alienação, como primeira relação dialética do sujeito com o Outro, introduz um mal primitivo, que se tornará a função do mal objeto (Lacan, 1964/1985b).
Os objetos benéficos e favoráveis do "lust" têm a ver com a relação fundamentalmente narcísica com o sujeito e a regressão do amor, ou seja, aquilo que reconheço, identifico e amo narcisicamente, o meu eu ideal; mas o "unlust" é um corpo estranho, que tem a ver com a negação do que me pertence, o "não-eu" ligado à homeostase da pulsão de morte. Enquanto o ideal do eu é um significante primeiro que vem funcionar no "lust" como campo da identificação primária, levanto aqui o questionamento sobre o "unlust", esse estranho corpo que me habita e que não reconheço, comparando com o estranho corpo do qual se apodera a doença psicossomática. Podemos ressaltar, no que diz respeito ao corpo imaginário, que o fenômeno psicossomático não passou por esse ciframento da linguagem para "vestir" o objeto de seu corpo ideal, pois nele nada implica o desejo.
De fato, o que leva a pensar no corpo do fenômeno psicossomático como "unlust" são as falas dos sujeitos na clínica que se dizem acometidos por uma invasão de um corpo estranho, sem nenhuma implicação desejante. Parece ser literalmente um "objeto mal" que habita o sujeito e que seu corpo luta para eliminar, o que seria, não por acaso, a própria definição de doença autoimune, que é o que acomete a maioria desses fenômenos. Há no FPS a particularidade de um objeto que não foi investido libidinalmente (Lacan, 1954-1955/1985a).
Se acreditamos em Freud, quando ele diz que o inconsciente é sexual, devemos considerar, portanto, que estamos diante de um ponto fora do inconsciente estruturado como linguagem, onde o sujeito do desejo não pode aparecer. Com Lacan, dizemos que estamos diante de uma holófrase, um S1 imaginarizado, onde o sujeito se desconhece e se depara com o horror intraduzível. O que para Freud se traduziria em uma manifestação de pulsão de morte desfusionada, em Lacan traduziríamos como real.
No Seminário 11, Lacan (1964/1985b) emprega o termo "holófrase" como um significante Um (S1), fora da cadeia, ao passo que o sintoma é aqui concebido como metáfora. A metáfora, por definição, implica uma substituição de S1 por um S2, ou melhor, implica a existência de um segundo significante que faça o primeiro entrar na cadeia. Sendo o inconsciente estruturado por cadeias, por linguagem, essa estrutura implica "alguns dois", na medida em que é preciso mais de um significante para provocar articulações (Soler, 1994).
O que fica evidente aqui, nessa primeira formulação, é que o sintoma, por ser uma metáfora do inconsciente-linguagem, está inserido no Outro como corpo simbólico, ao passo que o fenômeno psicossomático permanece rejeitado desse corpo simbólico. O que leva a analisar a holófrase como a causa de um ponto inoperante no que seria o inconsciente neurótico. E isso aproxima esse fenômeno da forma operacional da psicose.
Ele mascara a estrutura por ser um significante real, ponto de uma foraclusão não estrutural. Isso foi o que levou psicanalistas como Pierre Marty a falarem de um automatismo mental com a apresentação desses fenômenos na clínica. Esse fenômeno não pode ser trabalhado no nível simbólico por não evocar o S2. Fora da possibilidade de linguagem, resta o silêncio da submissão do corpo ao gozo do Outro.
A presença desse Outro gozador que faz do sujeito objeto provoca um encontro com o real, o olhar do gozo mortífero. E é no encontro com o real que a angústia assume o valor máximo para o sujeito; quando o campo da representação desaparece, o sujeito é confrontado com sua falta-a-ser, o fora do mundo das representações.
O objeto com o qual o sujeito se relaciona traz marcas do Outro da demanda, e isso pode ser no nível das histórias familiares, edipianas, simbólicas, como pode ser no nível de traços que circunscreveram os primeiros encontros com o gozo, aquele que é sempre traumático, contando histórias do corpo, acontecimentos de corpo, algo que foi visto, ouvido ou sentido (Soler, 2009/2012). Mas é importante salientar que existem dois traumas para a psicanálise: um trauma que faz parte da estrutura e implica a fantasia e o sintoma, ligado às respostas que cada sujeito dá a partir da contingência de seus encontros, e, por outro lado, há as invasões de real que excluem o sujeito, pois se mostram impossíveis de ser simbolizadas. A impossibilidade de simbolização exclui o sujeito, na medida em que ele é o que um significante representa para outro significante.
O corpo entra na linguagem sofrendo os efeitos dos ditos dos que representam o Outro para o sujeito, de modo que a incorporação deixa marcas da incidência do significante no corpo. A falta implica o desejo, e o corpo torna-se o deserto de gozo e constitui a cama do Outro (Lacan, 1968). Estamos, finalmente, diante da função fálica como significante de gozo. E voltamos, então, à pergunta inicial do artigo: como o gozo fálico, gozo do sintoma, insere-se fora do corpo?
A diferença entre sintoma e fenômeno psicossomático até aqui apresentada a partir de um primeiro momento da teoria lacaniana parece simples: o sintoma é uma metáfora composta de um S1 que vem a ser substituído por um S2, e o fenômeno psicossomático é um defeito no nível da metáfora estagnada do S1. Contudo, esse sintoma freudiano, apesar de permanecer no corpo simbólico, não equivale ao sintoma ao qual Lacan se refere ao tratar do gozo fálico. A despeito disso, Lacan cria um complicador na diferença entre sintoma e holófrase que pode ser exemplificado na Conferência de Genebra sobre o sintoma (Lacan, 1975b), na qual ele separa os gozos. Em 1975, o sintoma aparece como Um de gozo, fora do inconsciente, destituído da ideia do par de significantes (Soler, 1994). O sintoma passa a ser letra fixa, e isso nos leva a questionar mais uma vez as diferenças entre esses dois terrenos.
O primeiro ponto é que esse gozo fálico do sintoma, tal como foi definido por La-can, não corresponde ao sintoma freudiano decifrado nas histórias. Freud nos apresentou sintomas decifráveis, localizados entre o simbólico e o imaginário. Trata-se de uma formação do inconsciente dentre as outras - chiste, ato falho e sonhos. Se dermos um pulo na teoria psicanalítica, temos a definição lacaniana do sintoma como real, que aparece em 1974, durante o seminário RSI (Lacan, 1974-1975a), e isso implica que o sintoma é, no mínimo, uma formação de compromisso diferente das outras. O ponto principal da questão apontada pelo "fora do corpo" se dá pelo fato de que o sintoma também foi redefinido na teoria psicanalítica.
Os gozos que fazem interseção com o simbólico são marcados pela libido, e é isso que Freud chamava de pulsão de vida, por estar ligada a uma representação. Em Lacan, esse sintoma freudiano seria gozo de sentido, mas não seria excluído do gozo fálico por ser marcado pelas palavras. O gozo fálico é, para Lacan, o gozo parasita de tudo o que está articulado no simbólico.
Para trabalhar a questão do "fora do corpo", a primeira leitura que podemos fazer dessa afirmação de Lacan é que o gozo fálico (Jj) está fora do registro imaginário no nó borromeano, indicando sua ligação entre real e simbólico. Esse outro sintoma é uma forma de fazer signo de alguma coisa que não vai bem no Real. É o sintoma como efeito do simbólico no Real. Isso não quer dizer que o corpo imaginário não sofra incidências desse gozo pela interseção com o simbólico.
O sintoma é Um de gozo, fora do inconsciente. Ora, se ele é fora do inconsciente, não é somente fora do corpo imaginário, como também deve estar fora do corpo simbólico. Aqui, o FPS e o sintoma parecem iguais, na medida em que são "Um de gozo" e que permanecem fora do inconsciente, o que implicaria "alguns Uns" (Lacan, 1970). Essa questão exigiria especificar as atualizações teóricas sobre o inconsciente que fazem com que o sintoma seja, de certo modo, dentro e fora do corpo do Outro.
O inconsciente tem vários nomes; não obstante, Lacan (s.d.) retoma o inconsciente de Freud em seu texto "Joyce, o sintoma", para anunciar que o falasser é um termo que deveria vir em seu lugar. Isso significa que o falasser é um inconsciente estruturado tanto na linguagem quanto no corpo de gozo. O sujeito é um corpo que goza, e não é somente suposto por um par de significantes, ou seja, as leis da linguagem tornaram-se insuficientes para tratar de todos os fenômenos que Lacan pôde remarcar em sua clínica.
Como foi enunciado aqui anteriormente, a definição de sintoma, tal como Freud a concebia, exclui os efeitos do real no corpo do vivente, assim como a noção de inconsciente estruturado como linguagem, que corresponde à leitura lacaniana do inconsciente freudiano, mostra que os representantes ou os significantes são insuficientes, porque não alcançam a dimensão de todo o real ao qual o sujeito foi submetido. O real como substância de gozo e o real de Lalíngua só poderão ser evocados com os avanços de Lacan no que diz respeito ao mistério do corpo falante. O inconsciente como furo, indicado por Freud na expressão "umbigo dos sonhos", é retomado por Lacan (1964-1965, inédito) como um inconsciente pensado pelo viés da Banda de Moebius, em que o furo impenetrável do recalque original estrutura-se a partir da entrada do Real no significante. É por isso que Lacan considera um inconsciente Real, mas ao mesmo tempo estruturado como uma linguagem, visto que a linguagem faz borda e o cerca.
Há uma mudança no conceito de inconsciente, ou um alargamento, para encobrir o mistério de um corpo afetado em seu gozo, o que implica essa nova definição de sintoma. Lacan vai além da linguagem para enfatizar os efeitos da língua, levando em consideração o barulho dos sons de significantes sem sentido que operam antes da linguagem. A maneira como essa língua foi ouvida e falada implicará a moterialidade inconsciente, que dá razão ao sintoma. O que Lacan chama de "moterialismo" é uma junção entre "mot", que significa "palavra", em francês, e materialismo, que vai além da distinção entre significante e significado, trazendo uma nova visão, que implica o real, em que o corpo simbólico, como linguagem, é feito de material sonoro de significantes que precedem o sentido do ouvido.
A linguagem é, então, um aparelho de gozo que mantém simbólico e real, gozo e inconsciente. Há um momento de cruzamento do gozo com o significante, e isso pode ser descrito como a função fálica do gozo, o advento de gozo fora do corpo fálico (Bernard, 2015). O inconsciente-real não determina o sujeito, mas o gozo. Então, como um gozo marca a função fálica e não está no corpo fálico? O sintoma é um evento de corpo singular. O saber inconsciente tem efeito de gozo, e trata-se de saber como a estrutura determina o gozo. Há efeito de gozo, há Um. A experiência produz apenas uns de repetições e um do sintoma no nível do gozo do corpo.
Algo da língua já interfere no corpo desse falante, que, por estar fora da lingua-gem, não é ainda nem sujeito. O sintoma aqui é acontecimento de corpo onde o corpo é afetado pela Lalíngua de maneira particular do encontro acidental entre verbo e gozo. Lalíngua não tem como unidade o significante como o inconsciente-linguagem, mas a letra. Por ser um inconsciente-real, opera antes do sentido da linguagem, porém a letra, sua unidade, é o que dá o próprio suporte ao material da linguagem. Ela estabelece o modo de combinar significantes inconscientes, o modo de conceber a linguagem. O sintoma-letra tem, portanto, efeito sobre os significantes de gozo, é o modo de se gozar do inconsciente. Isso é o que Lacan mostra quando fala do sintoma "advento de corpo singular", mostrando a união de significante e gozo através dos Uns de Lalíngua que fazem o inconsciente, onde o sentido gozado no último termo se chama fantasia (Soler, 2009/2012).
Diante disso, podemos concluir que esse sintoma que cria o Um fálico é fora do corpo porque não provém do corpo simbólico, mas de Lalíngua. O sintoma é o gozo de Um corpo próprio que coordena o ser falante pelo Um fálico de seu gozo. Trata-se da própria forma do sujeito de gozar, sendo o inconsciente aquilo que, falando, goza-se.
Chegamos ao cerne da questão: se esse sintoma é real, na medida em que se situa no nível de determinado gozo, pela letra, como poderíamos distinguir o Um do sintoma do Um holófrase do FPS? A primeira distinção, que me parece essencial, está implicada justamente na letra como Uma forma própria de gozo que se repete e de que o sujeito se apodera para fazer dela seu modo de gozar do inconsciente. O inconsciente é culpado desse gozo de seu corpo e daí estrutura suas próprias articulações. É nesse sentido que o gozo fálico está fora e dentro do corpo, na medida em que, mesmo sendo real, ele é a condição para a estrutura do inconsciente como linguagem.
Lacan (1975b) parece fazer uma distinção entre essas duas marcas de Um de gozo, indicando que, apesar de os dois serem da ordem de um escrito, o fenômeno apresenta um gozo específico e está ancorado no imaginário. O sintoma fora do sentido não está no imaginário, mas faz litoral entre simbólico e real. Colette Soler (1994) ressalta que há uma diferença entre eles estabelecida pelo fato de que o FPS não foi feito para ser lido, diferentemente da escrita do sintoma, o qual se supõe que o analista saiba ler.
Lalíngua, como inconsciente real, apresenta os "significantes reais" que causam efeito no corpo. O inconsciente real, que não se concebe sem a função do escrito e da letra, apresenta novas unidades, diferentes daquelas que Freud nos apresentou pela linguagem e pelo deciframento, e difere igualmente do que Lacan tentou operar através da linguística. Ao trabalhar um inconsciente estruturado como linguagem, concebido especialmente a partir do funcionamento de três metáforas: a metáfora do sintoma, a do sujeito e a paterna, Lacan chegou, no Seminário 11, a um impasse: a holófrase. A holófrase, por definição, é a impossibilidade da metáfora. Nesse sentido, a holófrase seria concebida como um conceito que mostra o limite do inconsciente e a importância da psicanálise como clínica que atua sobre o real do corpo.
A holófrase, concebida como impossibilidade das três metáforas citadas, desvela os três fenômenos que ela provoca, revelados no exemplo dado por Lacan (1964/1985b) no Seminário 11. Isto é, na debilidade como impossibilidade de instauração da metáfora do sujeito, na paranoia como impossibilidade de aparição do Nome-do-Pai e no fenômeno psicossomático como impossibilidade de construção da metáfora do sintoma. A holófrase é o que mostra que o inconsciente estruturado como uma linguagem é insuficiente para dar conta dos fenômenos da clínica psicanalítica.
Lacan chega ao real além do inconsciente a partir dos questionamentos sobre a psicose, graças à impossibilidade de fazer operar o Nome-do-Pai como significante organizador da cadeia. Ele passou, então, a fazer uma abertura em seu estudo sobre o real, indicando que o simbólico não capta o real completamente. A holófrase escapa do simbólico, e o único gozo que escapa do simbólico na imagem do nó borromeano é o gozo Outro, aquele que faz do sujeito objeto.
Concluímos, então, que o que pareceria, em um primeiro momento, colocar sintoma e fenômeno psicossomático em pé de igualdade nos anos 1970 se traduziria na seguinte questão: se a holófrase não é da ordem do simbólico, seria ela uma letra? A letra é a forma como Lacan vai se referir à metáfora do sintoma nos anos 1970, indicando ir além das metáforas e dos efeitos de significante. Mas a letra é igualmente o que permite a "corporização" no simbólico, na medida em que cria um valor material do inconsciente e que é a partir dela que as leis de combinação da linguagem tornam-se possíveis. A letra é sinônimo de organização da estrutura de linguagem, e o significante holofraseado não estrutura nada no âmbito do simbólico.
Podemos pensar que o fenômeno psicossomático seja algo da ordem da escrita, e, por ser da ordem do inconsciente-real, o FPS continua sendo um fenômeno do "inconsciente sem sujeito". Isso posto, a primeira teoria de Lacan sobre os objetos (a), trazendo primeiramente os objetos da demanda, merece ser questionada a partir do que foi enunciado com a aparição do inconsciente real de Lalíngua, pois o que Lalíngua anuncia é que voz e olhar sempre estiveram presentes e que, de alguma forma, marcaram o vivente, seja através do olhar que indica o vazio da representação, seja através dos significantes reais que não entram na cadeia e permanecem como sons holofrásicos sem sentido. É nesse lugar de ex-sistência que encontramos o fenômeno psicossomático, fora de qualquer corpo que implique o simbólico (gozo do sentido/gozo fálico), sendo apenas substância gozante no real do corpo. Esse fenômeno mostra que qualquer vivente, independentemente de sua estrutura, pode, em algum ponto, ser refém do Outro como absoluto.
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Recebido: 12/10/2019
Aprovado: 26/02/2020