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Revista da SPAGESP
versión impresa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.23 no.2 Ribeirão Preto jul,/dic. 2022
https://doi.org/https://doi.org/10.32467/issn.2175-3628v23n2a9
https://doi.org/10.32467/issn.2175-3628v23n2a9
ARTIGOS
Impressões de pais e educadores sobre a exposição do bebê às telas: um relato de experiência
Caregivers' impressions about baby's screen exposure: an experience report
Impresiones de los cuidadores cerca de la exposición del bebé a pantallas: un relato de experiencia
Débora Becker1; Tagma Marina Schneider Donelli2
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo-RS, Brasil
RESUMO
Os bebês, hoje, vêm sendo expostos às telas já durante o primeiro ano de vida. Essa exposição é possibilitada pelos adultos, que por diferentes razões, disponibilizam para as crianças seus próprios smartphones ou outros dispositivos. E o que será que pais e profissionais da educação infantil pensam sobre a exposição do bebê às telas? Para explorar a percepção dos cuidadores de bebês com até 3 anos sobre como as novas tecnologias permeiam as rotinas familiar e escolar e afetam o desenvolvimento infantil, assim como propiciar um espaço de escuta, psicoeducação e reflexão, uma intervenção clínica foi proposta. Foram realizados encontros com cuidadores de bebês em uma escola de educação infantil na região metropolitana de Porto Alegre, RS, Brasil. Os encontros transcorreram na modalidade roda de conversa e possibilitaram importantes reflexões sobre um tema que reverbera na saúde mental das crianças e nas interações com seus cuidadores.
Palavras-chave: Intervenção; Mídias digitais; Desenvolvimento infantil; Parentalidade; Educação infantil.
ABSTRACT
It is already known that babies are often exposed to screens during their first year of life. This exposure is mediated by adults, who hand their smartphones or other devices to children for several reasons. What do parents and school caregivers think about a baby's screen exposure? To explore the perceptions of caregivers of babies up to 3 years old about how new technologies pervade family and school routines, affecting children's development, and to provide an opportunity for listening, psychoeducation and reflections, a clinical intervention was proposed. The intervention took place in a kindergarten school located in the metropolitan region of Porto Alegre, RS - Brazil, during three group sessions, using a conversation wheel. The group intervention enabled caregivers to discuss an important theme, which affects the baby's development and relationships.
Keywords: Intervention; Digital media; Child development; Parenting; Child education.
RESUMEN
La exposición de los bebés a pantallas generalmente ocurre durante el primer año de vida del bebé y es facilitada por los adultos. Teniendo en cuenta lo anterior, ¿qué piensan padres, madres y profesores? Para responder a esa cuestión una intervención clínica buscó explorar lo que piensan padres, madres y profesores de niños hasta 3 años acerca de las nuevas tecnologías en la rutina doméstica y escolar, como también proponer un espacio de escucha, psicoeducación y reflexión. La práctica ocurrió en una escuela infantil en la región metropolitana de Porto Alegre, RS, Brasil, usando la modalidad de conversaciones grupales. La intervención permitió a los padres y profesores reflexionar un tema que repercute en la salud mental de los niños y en las relaciones entre los bebés y sus cuidadores.
Palabras clave: Medias; Desarrollo infantil; Parentalidad; Educación infantil.
Atualmente, todas as esferas da vida contemporânea têm sofrido modificações oriundas do uso das tecnologias digitais móveis, como smartphones, tablets e notebooks, que possibilitam que seus usuários se conectem com o mundo em tempo real, a partir do acesso ilimitado à internet (Konok et al., 2016). Com a presença destas novas mídias nas residências de mais de três quartos da população brasileira (IBGE, 2019), como também pelo uso de novas tecnologias nas escolas (Cordeiro & Bonilla, 2015), as crianças, desde muito cedo, aprendem a navegar no ciberespaço e a utilizar tudo o que as telas interativas oferecem.
Apesar dos benefícios que o avanço tecnológico e a mobilidade digital têm gerado, nota-se, por outro lado, preocupações diante do uso de telas no contexto das interações interpessoais que acontecem no mundo real, incluindo as interações cuidador-bebê (Kildare & Middlemiss, 2017; McDaniel & Radesky, 2018). O envolvimento do cuidador com as telas pode substituir o contato face a face e ocasionar rupturas nas interações cuidador-bebê, que desempenham um importante papel no desenvolvimento infantil (Lauricella & Wartella, 2015; McDaniel & Radesky, 2018; Wolfers et al., 2020).
Os cuidadores de bebês, quando entretidos com as telas, tendem a apresentar prejuízos nos componentes da disponibilidade emocional parental, a exemplo da sensibilidade (Becker, 2020; Wolfers et al., 2020), o que repercute negativamente na qualidade da interação da díade, e consequentemente, no desenvolvimento psíquico da criança. Ainda, os adultos conectados com seus dispositivos tendem a apresentar lapsos atencionais, os quais podem colocar o bebê em situações perigosas (Golen & Ventura, 2015).
Além disso, as crianças também se configuram como usuárias destes dispositivos. Conforme Kabali et al. (2015), as crianças têm sido introduzidas às diferentes mídias durante o primeiro ano de vida. As telas são disponibilizadas à criança pelos adultos com a intenção de acalmá-la, entretê-la e estimulá-la, como ainda para que os adultos possam se ausentar, por alguns instantes, das demandas exaustivas da parentalidade (Becker & Donelli, no prelo).
A exposição precoce do bebê às telas tem se tornado alvo de preocupações das Sociedades de Pediatria do mundo e tema de estudos e reflexões, especialmente no que concerne à primeira infância e ao potencial de desenvolvimento desta etapa do ciclo vital e suas repercussões ao longo de toda a vida, uma vez que efeitos deletérios têm sido reportados em pesquisas conduzidas ao longo dos últimos anos, como impactos no sono e na alimentação, no processo de aquisição de linguagem, na capacidade simbólica e nas interações interpessoais diversas (Coyne et al., 2017).
Mesmo com o avanço das pesquisas sobre a temática e a existência de algumas evidências científicas acerca do que vem sendo observado em crianças diante da digitalização que está acontecendo nos lares e também nas escolas, ainda há um vasto campo a ser desbravado, assim como há a necessidade de intervir e oferecer suporte para famílias e escolas, no sentido de fornecer informações baseadas em evidências, como ainda espaços de acolhimento para dúvidas e desafios que acometem os cuidadores de bebês, ratificando-se a importância de programas de intervenção que atendam essas necessidades. Sendo assim, o relato de experiência que será apresentado é fruto de uma intervenção clínica, que buscou oferecer um espaço para que pais, mães e educadoras da educação infantil pudessem compartilhar, através de uma roda de conversa, as percepções e os desafios de educar as crianças imersas neste ambiente atravessado pela digitalização, assim como propiciar um espaço de escuta, psicoeducação e reflexão para estes cuidadores.
DESCRIÇÃO DA INTERVENÇÃO
A presente intervenção foi desenvolvida para a atividade acadêmica de prática clínica, que é oferecida pelo programa de pós-graduação em Psicologia e que tem por objetivo aproximar o aluno da sua temática de estudo, como ainda promover práticas de promoção e prevenção de saúde na comunidade. A intervenção clínica teve como objetivo propiciar um espaço de escuta, psicoeducação e reflexão, e explorar a percepção dos cuidadores de bebês com até 3 anos de idade sobre como as novas tecnologias permeiam as rotinas familiar e escolar e afetam o desenvolvimento infantil.
A atividade teve aprovação prévia do colegiado do programa, e posteriormente a anuência da escola e consentimento dos participantes, uma vez que a mesma atendeu aos critérios éticos exigidos para a realização de pesquisas com seres humanos, atentando para as Resoluções 466 e 510 do Conselho Nacional de Saúde. Entretanto, a intervenção clínica aqui relatada não foi encaminhada ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), o que se justifica pelo item VII do artigo I da resolução 510/2016 (CEP/CONEP), onde consta que as pesquisas que buscam um aprofundamento de situações que emergem da prática profissional e que não identificam os sujeitos participantes não necessitam de registro no sistema CEP/CONEP. As identidades foram preservadas, assim como o local da realização da prática.
Quatro escolas de educação infantil foram contatadas e apenas uma demonstrou interesse em participar da intervenção proposta. Assim, a intervenção clínica foi realizada em outubro de 2018 em uma escola municipal de educação infantil, localizada no centro de um município que compreende a região metropolitana de Porto Alegre, RS. A escola conta com 150 alunos, quatro auxiliares de serviços gerais, nove educadores, 23 monitores, diretora e vice-diretora. As crianças que frequentam a escola possuem idade mínima de um ano e idade máxima de seis anos, as quais são divididas em turmas de acordo com a faixa etária.
O primeiro contato com a escola foi realizado via telefone, o qual visou esclarecer os objetivos da prática clínica e verificar interesse e disponibilidade da escola. Posteriormente, foi realizada reunião junto a diretora e vice-diretora, e em razão do interesse e da disponibilidade da escola, foi confirmada a realização da intervenção na instituição. Ademais, nesta ocasião, foram agendados os encontros. Foram convidados a participar da intervenção os pais dos alunos das turmas que englobam crianças com idades entre um e três anos, assim como os educadores e monitores da escola que atendem as respectivas turmas. Os convites foram feitos pela direção da escola. As educadoras foram comunicadas acerca da intervenção em reunião pedagógica e as mães e os pais foram convidados a partir de bilhetes enviados junto aos filhos, com uma semana de antecedência de cada encontro.
PARTICIPANTES
Participaram da intervenção 12 mães e pais de crianças com idades entre um ano e dois anos e meio, e dez educadoras/monitoras. Mães e pais tinham idade média de 36 anos, sendo que a grande maioria tinha mais de um filho. As crianças frequentavam a escola em tempo integral (manhã e tarde), realizando todas as principais refeições no local. As educadoras e monitoras tinham idade média de 38 anos e metade possuía ensino superior completo.
ATIVIDADES DESENVOLVIDAS
Na presente atividade de prática clínica foi definido que uma intervenção seria proposta em uma escola de educação infantil da região, priorizando encontros com mães, pais e educadores de bebês com idades entre seis meses e três anos, sendo o foco a discussão em grupo, a partir de uma roda de conversa, que se configura como um efetivo método de intervenção. A roda de conversa possibilita um clima permissivo na discussão, importante para levantar opiniões e trazer elementos do contexto grupal (Flick, 2007), além de ser utilizada para compreender quais significados um grupo de pessoas dá à determinados fenômenos (Moura & Lima, 2014). Ademais, ela apresenta potencial terapêutico, uma vez que os grupos proporcionam um espaço de escuta e de acolhimento, onde também é permitido aos participantes estabelecerem relações com os demais membros (Ávila et al., 2016).
A intervenção foi estruturada em seis encontros presenciais (três encontros com os pais e três encontros com as educadoras/monitoras). Cada encontro teve tempo estimado de 60 minutos, sendo a modalidade de grupo aberto. Além disso, temas distintos foram apresentados em cada encontro, a fim de orientar o foco da discussão, assim como foi feito uso de imagens e breves vídeos, utilizados como disparadores da discussão e reflexão. Por exemplo, vídeos de bebês interagindo com telas foram apresentados, como também imagens de adultos e crianças, em diferentes situações, fazendo uso das tecnologias digitais. Os encontros foram agendados previamente com a escola e ocorreram em três momentos distintos, onde foram sugeridas temáticas para reflexão (Figura 1).
Optou-se por separar professores e pais em dois grupos, sendo que o grupo dos professores considerou as questões ligadas à educação infantil e seus desafios na era digital, enquanto o grupo dos pais voltou sua atenção para o papel parental frente ao uso destas tecnologias no contexto familiar. O grupo das professoras iniciou às 18 horas. Na sequência, às 19 horas, teve início o grupo de pais.
Antes do início de cada encontro ficou combinado com os pais e educadoras que o momento da roda de conversa seria um espaço de acolhimento, um momento para sentirem-se à vontade para expressarem emoções, dúvidas, conflitos. Foi salientado que o que seria discutido no grupo era de caráter sigiloso, e que eventualmente, as discussões que emergissem no grupo poderiam ser utilizadas pela psicóloga para inspirar trabalhos futuros e reportadas na forma de relato de experiência profissional, deixando claro que se respeitaria o anonimato dos participantes. Após cada encontro notas foram realizadas pela psicóloga clínica, a fim de registrar as impressões geradas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O QUE AS EDUCADORAS TÊM A DIZER?
Dos educadores que foram convidados pela direção da escola para participarem dos encontros, apenas nove demonstraram interesse, todas mulheres.
No primeiro encontro o tema abordado foi "Tecnologias no contexto escolar", onde foi esmiuçado a tecnologia no contexto escolar e a introdução da criança no universo digital neste ambiente. As educadoras trouxeram que a escola não faz uso de dispositivos móveis, inclusive que não é permitido o uso de smartphones em sala de aula. Entretanto fazem uso da televisão, a qual foi apontada como uma auxiliar durante os cuidados com os bebês, uma vez que, segundo elas, é a forma mais fácil de darem conta de todas as crianças, principalmente nos momentos de troca de fraldas e alimentação. Os bebês assistem desenho e filmes enquanto aguardam sua vez de serem atendidos. Estes momentos configuram-se como momentos de cuidado, e espera-se que nestas situações as pessoas responsáveis pela criança estejam emocionalmente conectadas a ela. Entretanto, o uso da televisão pode prejudicar essa interação, conforme apontado em estudos que exploraram o fenômeno da tecnointerferência (McDaniel & Radesky, 2018), além de manter a criança em uma posição passiva. Ainda, evidencia-se, a partir dos relatos das educadoras, que a criança, muitas vezes, não é notada como um ser em desenvolvimento, o qual necessita, além de um cuidador capaz de atender suas necessidades básicas, um cuidador afetivo, que exerça adequadamente os cuidados maternos (Tronick, 2007).
Na ocasião, no sentido de informar as educadoras sobre o que já se sabe sobre a exposição precoce de bebês a telas, foi feita uma breve apresentação de alguns estudos que falam do uso de tecnologias por bebês, como também foram divulgadas as recomendações da Sociedade Brasileira de Pediatria - SBP (SBP, 2019). As educadoras demonstraram surpresa frente aos dados e às recomendações, pois desconheciam tais informações, a exemplo de que crianças menores de dois anos não deveriam ser expostas às telas, e que quando fossem, houvesse a mediação de um adulto.
Mostraram-se interessadas e com questionamentos frente a este cenário. Inclusive, neste momento, questionaram-se sobre a necessidade de fazerem uso da televisão no berçário e colocaram esta situação para ser repensada pela direção. Algumas demonstraram uma certa resistência, comentando que seria difícil "dar conta" da turma agitada sem o apoio dos desenhos animados, salientando a necessidade de orientação e suporte para estas educadoras.
Elas apontaram que o uso de tecnologias no contexto escolar é importante, principalmente por possibilitar trabalhar a coordenação motora e a motricidade fina, além do aprendizado de cores e letras. A literatura tem sugerido potencialidade do uso de telas no letramento digital, compreendido como um conhecimento funcional das diferentes mídias digitais, incluindo ainda escrita, leitura e outras formas de comunicação através destes meios digitais (Harrison & McTavish, 2018). Além disso, as educadoras reforçaram que as tecnologias se configuram como auxiliares na execução dos demais cuidados do bebê, como já apontado anteriormente.
Em alguns momentos a conversa mudou de foco, emergindo uma catarse de insatisfações das educadoras em relação aos pais. Diversas queixas com relação aos pais dos bebês surgiram, como a pouca valorização da escola e o ato de delegarem funções parentais a ela. Do ponto de vista das educadoras, essa função deveria ser dos pais. Para Gutfreind (2010), a parentalidade não se refere apenas a família, já que engloba outras instituições e redes de apoio, a exemplo da escola.
Ademais, conforme Stern (1997), a escola se configura como uma matriz de apoio aos pais da criança, e desta forma desempenha um papel muito importante no desenvolvimento infantil, assumindo assim uma extensão da família. Logo, quando se fala em cuidados maternos, estende-se esta função aos responsáveis em garantir a saúde física e emocional da criança, o que engloba também os cuidadores de bebês, que trabalham em escolas de educação infantil. Entretanto, é preciso validar a queixa destas educadoras e buscar entender como ocorre a comunicação família-escola.
As educadoras também denotaram sobrecarga de trabalho e esgotamento, além de despreparo e insegurança para executarem a tarefa de cuidadoras de bebês. Consideram esse o papel exclusivo dos pais, mesmo que a grande maioria das crianças passe a maior parte do dia na escola. Evidencia-se, a partir da fala das educadoras, uma certa omissão de responsabilidade da escola, além de uma visão de cuidador mecanicista, mero observador de crianças. Gutfreind (2010) aponta que o papel da escola é ser continente, no sentido de acolher, acompanhar e amparar a família, além de que os educadores, ou no caso, os cuidadores de bebê, devem estar sintonizados e presentes afetivamente na vida escolar da criança.
Winnicott (1965/2011), por sua vez, já dizia que as escolas de educação infantil, a partir do exercício dos cuidados suficientemente bons, estariam colaborando com o desenvolvimento emocional dos pequenos, uma vez que a escola se configura, em termos de cuidados, como uma extensão do lar e da família. Porém, essas educadoras também precisam de suporte e de orientações adequadas para poderem oferecer um cuidado mais afetivo, que corresponda as necessidades emocionais do bebê. Assim, percebe-se uma certa dificuldade da instituição em compreender a importância do seu papel, que vai muito além de manter um bebê em segurança e com suas necessidades básicas supridas.
No segundo encontro foi abordado o tema "A criança nativa digital", onde foi proposta a reflexão de como as educadoras percebem as crianças hoje, quais os desafios de educá-las e como essas crianças se relacionam com seus pares. Salientando que o termo "crianças nativas digitais" e suas derivações foi abordado no início do encontro. Ele foi primeiramente reportado para fazer referência à geração de crianças nascidas posterior ao advento da internet. Entretanto, hoje, com o avanço tecnológico, outras nomenclaturas são utilizadas para fazer menção às crianças que, antes mesmo de aprenderem a caminhar, descobrem como funciona uma tela sensível ao toque.
Segundo as educadoras, as crianças são mais difíceis de lidar na atualidade: não toleram esperar sua vez, são imediatistas e comportam-se de maneira similar aos adultos que, de acordo com elas, vivem estressados. Desta forma, as tecnologias tendem a facilitar o trabalho com essas crianças consideradas "difíceis" (Radesky et al., 2014). Quanto às limitações do uso das tecnologias no contexto escolar, as educadoras apontaram que estes recursos exploram pouco a criatividade, considerando que tudo é pronto, não necessitando de investimento da capacidade simbólica da criança, o que poderia reverberar negativamente no desenvolvimento da criança.
Algumas imagens e vídeos que mostravam crianças pequenas interagindo com tablets e smartphones, e crianças em idade escolar falando sobre as tecnologias, foram apresentados no sentido de provocar questionamentos e reflexões. As educadoras mencionaram que as escolas não estão preparadas para esta e para as próximas gerações, em razão das crianças apresentarem baixa tolerância a frustração e de uma geração de pais com pouca participação ativa da vida escolar.
Pensando em promover a aproximação dos pais da escola, e com o objetivo de estimular a criatividade, a interação pais-filhos e o brincar livre, a escola lançou um projeto de resgate das brincadeiras de roda e outros jogos de rua e cantigas, conforme reportado pelo grupo. Consideram importante incentivar as crianças a brincar na rua, a correr, a aprender brincadeiras que promovam a socialização, porque muitas delas, conforme relatos, já vivem muito conectadas quando estão em casa.
Mencionaram que as crianças, hoje, são muitas vezes agressivas, tanto com educadores, como com seus pares, que se irritam facialmente e mostram-se egoístas. Entretanto, as crianças reportadas são bebês, não adultos. Nota-se que há um tratamento inadequado às crianças por parte de algumas educadoras, evidenciado nas suas falas. Elas se referem aos bebês como impacientes, que não sabem aguardar a sua vez, fazendo emergir a ideia que se tinha das crianças na idade média, onde a criança era vista e tratada como um mini adulto (Ariès, 1981). Tal e qual os adultos, as crianças possuem necessidades a serem supridas e sentimentos e comportamentos que precisam ser acolhidos por seus cuidadores.
Reconhecer o bebê enquanto um sujeito pensante e em desenvolvimento é extremamente importante no que se refere a um desenvolvimento socioemocional bem-sucedido (Slade, 2005; Winnicott, 1984/2007). Diante desse aspecto é importante destacar que ao priorizar uma intervenção que foca na atividade reflexiva, contribui-se também com a própria função reflexiva dos cuidadores, que seria a capacidade de compreender que a criança, enquanto um sujeito em desenvolvimento e com suas singularidades, tem sentimentos, desejos e comportamentos que são diferentes dos adultos, e que precisam ser espelhados e compreendidos por um cuidador sensível (Slade, 2005).
Por outro lado, as educadoras também reportaram que consideram as crianças, hoje, mais inteligentes, e associam isso com o acesso cada vez mais cedo às novas tecnologias digitais (Coyne et al., 2017). Contudo destacou-se que não basta oferecer os dispositivos à criança, pois para que a tecnologia possa aprimorar determinadas habilidades cognitivas e até mesmo emocionais, é necessário atentar para aspectos, como controle do tempo de uso, conteúdo de qualidade e adequado à faixa etária da criança e principalmente a mediação de um adulto.
No terceiro e último encontro compareceram sete educadoras. Neste instante foi aberto um espaço para questionamentos e para acolher dúvidas e possíveis conflitos. Neste encontro, outra vez, o foco da discussão se voltou para os pais. As educadoras relataram que muitos pais reclamam quando as crianças voltam para casa com as roupas sujas, já que muitas vezes brincam na rua e se sujam. Segundo Lopes e Bernardino (2011), na contemporaneidade, os movimentos do corpo são normalmente associados com a hiperatividade, assim como o contato com a água e a terra são erroneamente classificados como "sujeira" por alguns cuidadores.
As educadoras também verbalizaram que os pais não têm mais tempo para estarem com os filhos. Logo, os dispositivos móveis, na perspectiva delas, acaba sendo um recurso para relaxarem da rotina estressante e cansativa, justificativa parental que tem sido reportada na literatura (Becker & Donelli, no prelo; Radesky et al., 2016), e que foi compartilhada com o grupo com a finalidade de buscar compreender o que os pais e cuidadores podem vir a sentir, em determinados momentos, buscando assim entender determinadas condutas parentais.
Ao final, as educadoras que participaram dos encontros receberam um cartão com um bombom, como agradecimento. A mensagem foi lida e gerou uma reflexão de encerramento. As educadoras mencionaram que gostariam de ter outros momentos semelhantes, assim como o apoio de um(a) psicólogo(a), uma vez que a escola não conta com este apoio profissional. O relato das participantes reforça a importância de investimentos em intervenções que colaborem para romper com o paradigma mecanicista que ainda predomina em muitas instituições. Além disso, também aponta que a intervenção cumpriu com seu propósito.
O QUE MÃES E PAIS TÊM A DIZER?
No primeiro encontro compareceram nove pais (oito mães e um pai). O tema abordado foi "tecnologias no contexto familiar", quando foram explorados aspectos como potencialidades de uso neste ambiente, limitações e introdução da criança no mundo digital. Mães e pai relataram que usam muito as tecnologias digitais móveis ao longo do dia, especialmente smartphones, mas que quando chegam em casa, preferem mexer menos nas tecnologias, uma vez que a maioria das notificações são ligadas ao trabalho, contrariando o que é exposto na literatura (Steiner-Adair & Barker, 2014). Por outro lado, reportaram que eventualmente "perdem a noção do tempo", normalmente conversando com alguém por aplicativo de troca de mensagens.
Na sequência foi apresentado um vídeo de uma mãe mexendo no telefone enquanto o bebê chora, e foi questionado aos pais o que estaria passando pela mente do bebê naquela situação. Uma das mães comentou que a criança deve se sentir ignorada. O pai que estava presente comentou que já notou que a criança fica incomodada quando ele está no telefone, mostrando-se mais agitada e sensível quando não correspondida. Algumas mães compartilharam a mesma experiência. Foi possível perceber que esses momentos reflexivos possibilitados pela intervenção podem reverberar positivamente nas práticas parentais, o que é ratificado pelas intervenções para pais baseadas na abordagem da mentalização, as quais visam instigar os pais a tornarem-se mais curiosos sobre o que se passa na mente da criança em diferentes situações, no sentido de buscarem compreender suas necessidades e conectarem-se com ela (Donelli et al., 2020).
A maioria dos representantes dos pais das crianças presentes neste encontro eram mães, logo, destacaram que quem faz mais uso destas tecnologias no contexto familiar é o pai da criança, que não estava presente no encontro. Inclusive, uma mãe ressaltou que quando o companheiro soube da temática dos encontros decidiu não participar, porque, segundo ela, ele sabe que usa muito o telefone e isso gera incômodo.
Os pais e mães presentes também comentaram da importância de controlar o tempo que os adultos fazem das tecnologias quando junto aos filhos, o que destaca que as pesquisas compartilhadas com o grupo geraram reflexões importantes. Segundo eles, as crianças imitam seus comportamentos e querem brincar com os dispositivos quando percebem que os pais estão entretidos com as telas, observação que tem sido discutida pela literatura (Lauricella et al., 2015). Conforme os autores, pais que fazem uso de dispositivos móveis no ambiente familiar, além de influenciarem as crianças a utilizarem as mesmas tecnologias e a passarem um maior número de horas em frente às telas, apresentam maior distração e indisponibilidade diante das demandas da criança.
Os pais participantes trouxeram também situações que revelam a dificuldade de estabelecerem limites em casa, e que costumam utilizar "desculpas" para manter a criança longe dos dispositivos. Porém, essa estratégia nem sempre funciona. Logo, impor limites de uso de telas tem sido um grande desafio para estas famílias, sugerindo assim a necessidade de orientações mais efetivas e de programas de intervenção para pais que atendam à estas demandas.
A fim de trazer alguns elementos para a discussão, também foram apresentados aos pais dados de pesquisas recentes que falam da exposição precoce às tecnologias, assim como as orientações da SBP e da AAP. Da mesma forma que gerou espanto nas educadoras, os pais também demonstraram desconhecer tais orientações e se assustaram com o que as pesquisas têm apontado, como prejuízos na regulação do ciclo sono-vigília, problemas de regulação emocional, atrasos na fala, entre outros aspectos do desenvolvimento infantil impactados pelo uso excessivo e/ou mal orientado de telas (Coyne et al., 2017; Vijakkhana et al., 2014).
Este ponto pode ser compreendido a partir de dados de uma pesquisa realizada no interior de Cuba, por Ortiz (2015), que apontou que 60% dos pais entrevistados desconheciam os possíveis efeitos nocivos da exposição precoce às tecnologias, tais como riscos no desenvolvimento cognitivo e socioemocional. Esses dados apontam que essas orientações e demais resultados de pesquisas não atingem populações alvo, como pais, o que destaca a importância de intervenções que incluam a psicoeducação.
No segundo encontro participaram sete pais (seis mães e um pai) e foi abordado o tema "A criança nativa digital". Os pais mencionaram que as crianças hoje não brincam mais como em outras épocas – na concepção deles elas preferem assistir televisão e jogar no telefone dos pais. Os pais relacionam o desejo das crianças brincarem com dispositivos móveis com o exemplo dado em casa, já mencionado no encontro anterior. Uma família compartilhou que já foi possível notar diferença no comportamento da criança, desde que pararam de utilizar os dispositivos móveis na companhia da criança, e que desde então o bebê pede para brincar e ouvir histórias. Também tiraram os filmes antes de dormir, e segundo o relato dos pais a criança apresentou melhora no sono.
Essas atitudes expressam que a intervenção tem gerado questionamentos e mudanças significativas na rotina familiar e no modo dos pais perceberem sua função parental. Esse relato é positivo e revela que a modalidade de intervenção proposta tem a potencialidade de educar e instigar à reflexão.
Outros pais apontam que as crianças são muito imediatistas e consumistas. Não toleram ouvir nãos e querem ter seus próprios smartphones porque alguns colegas já os possuem. A maioria das mães e pais presentes acreditam que as crianças são muito mais inteligentes na atualidade e que o acesso à tecnologia é necessário para estarem preparadas para o mercado de trabalho, o que têm aparecido em estudos que exploraram a perspectiva parental (Plowman & McPake, 2013). Quando questionados se essa não seria uma preocupação um tanto precoce, todos destacaram que é preciso controlar o tempo de uso e o conteúdo, mas caso os filhos sejam privados do uso destes dispositivos serão ultrapassados pelas outras crianças que possuem acesso à essas tecnologias.
A literatura aponta que pais e mães tendem a associar as novas tecnologias com o desenvolvimento da criança, oferecendo esses dispositivos a ela com a intenção de promover desenvolvimento, sobretudo cognitivo (Radesky et al., 2015), bem como letramento digital. Referente ao primeiro contato da criança com algum dispositivo, a maioria dos pais não recordava exatamente como foi e qual a idade exata da criança quando exposta às telas, mas sabem que foi durante o primeiro ano de vida, o que corrobora com o que a literatura já apresenta (Kabali et al., 2015). Uma das mães lembrava e compartilhou com o grupo a lembrança. Ela contou que quando o filho começou a caminhar fez um vídeo da criança e depois mostrou o vídeo para a criança, e que ela se reconheceu na tela. Esse depoimento foi acolhido pelos demais participantes e muitos pais se identificaram com o relato, destacando um aspecto positivo das telas, que seria o de registrar o desenvolvimento do bebê.
Os pais e mãe ainda acrescentaram que consideram muito inadequado quando os pais ficam com sua atenção voltada às telas dos dispositivos em momentos que estão com os filhos. Diante deste aspecto foram introduzidos conceitos importantes no que se refere à execução dos cuidados maternos e do vínculo pais-crianças, a exemplo da disponibilidade emocional parental e da Função Reflexiva Parental (FRP) (Biringen & Easterbrooks, 2002; Slade, 2005). Falar sobre essas habilidades pode auxiliar os pais a compreenderem a importância da qualidade dos cuidados que oferecem à criança, além de perceberem que a criança é um sujeito pensante e com desejos próprios, e que precisa, portanto, de um cuidador emocionalmente presente.
Neste encontro também foram apresentadas algumas imagens onde apareciam famílias com bebês focadas nos dispositivos móveis. Os pais comentaram que aquelas cenas não eram representativas da realidade das suas famílias, mas acreditavam que representasse uma grande parcela das famílias brasileiras. Esses relatos apontam para um não-reconhecimento destes pais naquelas imagens, contrariando o que foi discutido anteriormente, quando uma mãe mencionou que o companheiro não compareceria na intervenção por medo de julgamento dos demais por seus comportamentos.
Evidencia-se, assim, um sentimento de culpa frente ao uso dos dispositivos, bem como pela disponibilização dos mesmos à criança, o que corrobora com o que foi reportado no estudo de Seo e Lee (2017). Desde o princípio foi frisado que não haveria qualquer julgamento, e que a tecnologia fazia parte da vida das famílias na contemporaneidade, considerando-se essa realidade também como um fenômeno sociocultural. Porém, vez ou outra, foi evidenciada um julgamento moral das atitudes de outras famílias e uma idealização da família perfeita. É relevante que os pais apresentem essa capacidade de compreender as necessidades da criança, mostrando-se conscientes de que um desenvolvimento saudável na primeira infância depende da qualidade dos vínculos estabelecidos com os pais e demais figuras cuidadoras, todavia é notável que buscam afirmar o exercício de uma parentalidade perfeita, o que justifica também a culpa e o não reconhecimento nas imagens projetadas.
No último encontro, destinado para dúvidas e demais esclarecimentos compareceram nove pais. Um casal que não havia participado dos outros encontros trouxe a filha. Em razão disso alguns pontos foram retomados, e discutiu-se novamente o uso de tecnologias no ambiente familiar. Os outros pais, que estavam presentes nos encontros anteriores, no sentido de informar estes novos pais, trouxeram à tona as recomendações da SBP e da AAP, alertando o casal que, em excesso, pode ser prejudicial para o desenvolvimento da criança. Também pontuaram que devem evitar a exposição às telas nas horas que antecedem o sono. Destacaram a importância de passar mais tempo com os filhos brincando e de incluir na rotina da família o hábito de ler livros para as crianças. Esse fato aponta para a efetividade das conversas que emergiram ao longo dos encontros.
Enfim, durante este último encontro os pais agradeceram a oportunidade de participar. Expressaram reconhecer o desconhecimento frente às consequências da exposição precoce dos filhos aos dispositivos, assim como do uso que eles próprios fazem das tecnologias, e mostraram-se interessados em ampliar a discussão acerca da temática, como pediram por mais momentos de discussão com outros pais, destacando a necessidade de terem uma rede de apoio. Apontaram que gostam de poder discutir assuntos como esse com outros pais, e que esse tipo de conversa contribui para repensarem o modo como educam os filhos, como também a possibilidade de repensarem a própria rotina da família. Para finalizar, assim como aconteceu no grupo dos educadores, também foi oferecido aos pais um cartão com um bombom, como forma de agradecimento. A mensagem contida no cartão foi lida e uma reflexão foi realizada, encerrando-se assim a intervenção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intervenção clínica mostrou-se importante no sentido de ampliar a discussão sobre o tema da pesquisa de mestrado da proponente da prática, colaborando para repensar a metodologia do estudo. Além disso, apresentou grande relevância para a comunidade escolar, composta por educadoras e mães e pais de bebês. A intervenção, deste modo, teve uma contribuição terapêutica e educativa, corroborada pelo feedback dos pais e educadores, ao salientarem que os encontros foram importantes para repensarem suas atitudes e modificarem alguns comportamentos, bem como para poderem refletir sobre as reais necessidades da criança. Ademais, provocou inquietações e incentivou a aluna a seguir investindo na sua formação, no sentido de ampliar as possibilidades de trabalhar com grupos de pais e professores, bem como propor uma nova intervenção, alinhada às necessidades que emergiram ao longo dos encontros.
A intervenção apontou para questões que precisam ser discutidas e exploradas em intervenções futuras, como os limites impostos na escola e no ambiente familiar, assim como os papéis hoje desempenhados por pais e educadores frente à um cenário onde a tecnologia se faz onipresente na vida da criança. Deste modo, esta proposta pode servir como um estudo piloto, no sentido de pensar novas possibilidades de intervenções para esta população, priorizando a atividade reflexiva dos participantes, por meio de uma roda de conversa, que se mostrou efetiva.
Do ponto de vista terapêutico e educativo, a intervenção apresentou potencial para gerar mudanças significativas na rotina familiar, a partir das reflexões oportunizadas, e contribuiu para reforçar a importância de levar o conhecimento científico até às escolas e comunidades, por meio da popularização da ciência, que se mostra de extrema importância. Além disso, os dados oriundos desta intervenção oferecem subsídios não apenas para pensar o fenômeno em foco, como também para desenvolver outros trabalhos na escola, onde tanto pais quanto professores demonstram-se fragilizados e desamparados para lidar com a expansão das mídias digitais e com a criança, imersa neste universo digital desde muito cedo.
Enfim, diversas possibilidades se apresentaram junto à esta rica experiência – promotora não apenas de ciência, mas de saúde, ação social e cidadania. A intervenção aqui relatada possibilitou, além de fazer uma breve exploração do tema de pesquisa da aluna e promover saúde na comunidade, vislumbrar novas práticas e ir ao encontro das necessidades que estão, por vezes, distantes dos olhares da academia.
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Endereço para correspondência
Débora Becker
E-mail: debbecker@edu.unisinos.br
Submetido: 14/09/2021
Revisado: 07/03/2022
Aprovado: 15/03/2022
1 Débora Becker é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.
2 Tagma Marina Schneider Donelli é docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.