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Liberabit
versión impresa ISSN 1729-4827versión On-line ISSN 2233-7666
Liberabit v.15 n.1 Lima jun. 2009
ARTÍCULOS
Procesos identitarios entre gitanos: desde la exclusión hasta una cultura de libertad
Identity processes among the gypsy people: from exclusion to a culture of freedom
Processos identitários entre ciganos: da exclusão a uma cultura de liberdade
Lídio de Souza, Mariana Bonomo*, André Mota do Livramento, Julia Alves Brasil, Fabiana Davel Canal
Universidade Federal do Espírito Santo - Brasil
Rede de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social
RESUMEN
Este estudio tuvo por objetivo saber como hombres y mujeres gitanas construyen su identidad étnica a través de las relaciones establecidas entre esta comunidad y grupos no-gitanos. Para ello, participaron de la investigación 07 hombres y 10 mujeres gitanas. Se realizaron entrevistas individuales con un guión semi-estructurado y se hizo el análisis de los datos por medio del software ALCESTE y del análisis del contenido. Los resultados demostraron que la cultura gitana posee aspectos singulares, con dos pilares aparentemente fundamentales para su estructuración - relaciones parentales y relaciones de género. Al dinamizar esas dimensiones, encontramos otras características importantes, como creencias religiosas, respeto por los ancianos, fidelidad en los acuerdos realizados y control de la virginidad femenina hasta el matrimonio.
Palabras clave: Gitanos, Identidad social, Grupo social.
ABSTRACT
This study aimed to know how gypsy men and women produce their ethnic identity through the relationship they establish between their community and the non-gypsy world. For that, 07 gypsy men and 10 gypsy women participated in this research. Individual interviews have been carried out with semistructured script and the data analysis was done using the software ALCESTE and the Content Analysis. The results have demonstrated that the gypsy culture has singular aspects, with two apparently fundamental pillars for their structuring - parental relationship and gender subjects. Applying dynamics to those dimensions, we find other important themes in the organization of this ethnic group, like religious beliefs, respect to the elderly, fidelity to the agreements and control of the female virginity until marriage.
Keywords: Gypsy, Social identity, Social group.
RESUMO
Este estudo objetivou conhecer como homens e mulheres ciganos constroem sua identidade étnica através das relações estabelecidas entre essa comunidade e grupos não-ciganos. Participaram da pesquisa 07 homens e 10 mulheres ciganas. Foram realizadas entrevistas individuais com roteiro semiestruturado e procedeu-se a análise dos dados através do software ALCESTE e da Análise de Conteúdo. Os resultados demonstraram que a cultura cigana possui aspectos singulares, com dois pilares aparentemente fundamentais para sua estruturação - relações parentais e relações de gênero. Dinamizando essas dimensões, encontramos outras características importantes, como crenças religiosas, respeito aos mais velhos, fidelidade aos acordos firmados e controle da virgindade feminina até o casamento.
Palavras-chave: Ciganos, Identidade social, Grupo social.
INTRODUÇÃO
A cultura cigana é marcada pela exclusão, intolerância, injustiças e preconceitos que a castigam há séculos. Oriundos da Índia, a dispersão dos ciganos pelo mundo foi iniciada há mil anos, quando rumaram para a Europa e o Oriente Médio. Escravos na Romênia no período da Idade Média durante 400 anos, perseguidos pelos nazistas, tendo por volta de 500 mil de seus filhos assassinados nos campos de concentração, eternos estrangeiros, povo sem pátria, ladrões de galinhas e criancinhas, os ciganos seriam os “novos judeus” (Fonseca, 1996).
De uma exclusão itinerante desde a Índia, a diáspora cigana pelo mundo configurou-se em sucessivos êxodos que a caracterizaram como uma cultura caracteristicamente nômade (Alexandre, 2003; Teixeira, 2000). Os ciganos também tiveram uma história mística e romantizada, decorrente principalmente das práticas relacionadas à quiromancia, que contribuiu para atenuar a dura trajetória vivida pelos grupos nos mais diversos países (Ferrari, 2006; Fonseca, 1996; Vaz, 2005). Atualmente formam uma população que conta com aproximadamente doze milhões e meio de habitantesemtodo o mundo (Coutinho, 2002).
A discriminação contra os ciganos atravessou séculos e ainda se faz presente nos dias atuais. Os estereótipos de ladrões, vagabundos, a atribuição de características negativas, sentimentos de hostilidade e o medo são responsáveis por perseguições constantes registradas nos mais diferentes países. Ainda no ano de 2008, acompanhamos a destruição de seis acampamentos ciganos na cidade de Nápoles (sul da Itália), incendiados por civis, homens e mulheres italianos, enquanto as autoridades políticas providenciavam o despejo de 2500 ciganos, forçando uma retirada em massa chamada de “o êxodo pelo medo” (Giornale La Republica - Itália). Também na Romênia podem ser identificadas as marcas da xenofobia, com freqüentes registros de extermínio das comunidades ciganas, fruto de uma história de opressão datada de 400 anos de escravidão vividos pelos ciganos neste país (Fonseca, 1996).Aexclusão da população cigana das instituições escolares, as dificuldades do acesso à assistência à saúde, entre outras restrições aos direitos civis, também confirmam a marginalização à qual foram e continuam sendo lançados.
No Brasil a questão não é menos grave, considerando a invisibilidade social vivida pelos gitanos quanto aos seus direitos, o que é alimentado pela ausência de políticas pró-ciganas por parte do Governo Brasileiro. Na Europa, os anos de 2005 a 2015 foram escolhidos para se promover políticas a favor da comunidade cigana, sendo este período conhecido como “La Década para la Inclusión de los Gitanos“ (Dossier, 2005), o que pode ser também entendido como o cumprimento pelos países membros, das exigências estabelecidas pela União Européia. Os países deverão trabalhar as questões étnicas internamente, buscando soluções para os conflitos entre os cidadãos reconhecidamente nacionais e grupos originários de outras nações ou etnias.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE - BRASIL 500 ANOS), os ciganos teriam chegado ao Brasil por volta de 1574, vindos de Portugal junto com imigrantes e pessoas banidas da Europa.OGoverno Brasileiro ainda não tem dados oficiais acerca das comunidades ciganas existentes em seu território, mas se estima que mais de meio milhão de ciganos estejam vivendo no Brasil, muitos deles sem registro de nascimento. No entanto, o descaso do Governo Brasileiro com esta população é evidenciado pelos séculos de esquecimento, visto que a questão cigana só começou a ser discutida oficialmente em 2002, através do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que tem como primeira iniciativa o reconhecimento de sua especificidade cultural. A proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais dos ciganos, o apoio à realização de estudos e pesquisas sobre a história, cultura e tradições da comunidade cigana, o estímulo aos municípios nos quais estejam presentes assentamentos ciganos com vista ao estabelecimento de áreas de acampamento dotadas de infra-estrutura e a sensibilização dos próprios ciganos para a necessidade de realização do registro de nascimento dos filhos, assim como o apoio a medidas destinadas a garantir o direito ao registro de nascimento gratuito para as crianças ciganas, foram alguns encaminhamentos, fruto das discussões doPNDH(Brasil, 2002).
É fato que as intervenções através das políticas públicas voltadas para as comunidades ciganas brasileiras são ainda muito tímidas. Contudo, vencer o preconceito generalizado e já amalgamado nas práticas sociais dirigidas ao povo cigano consiste em uma tarefa de longo prazo, que demanda, além de políticas governamentais, o interesse da comunidade científica.
Etnia e identidade social: construindo a ciganidade em território calon
A perspectiva de análise sustentada na Teoria das Identidades Sociais mostra-se como um interessante caminho para a compreensão das dinâmicas identitárias implicadas no contexto do grupo cigano. Entende-se, neste estudo, a identidade social “como aquela parcela do autoconceito dum indivíduo que deriva do seu conhecimento da sua pertença a umgrupo (ou grupos) social, juntamente com o seu significado emocional e de valor associado àquela pertença” (Tajfel, 1983, p. 290). Dessa forma, possuímos tantas identidades quantos sejam os grupos sociais aos quais julgamos pertencer. É importante compreender que o entendimento de grupo, de acordo com esta perspectiva teórica, é a de grupo psicológico. Assim, não basta que os indivíduos compartilhem de espaços comuns e de relações face-a-face, o grupo é entendido como “uma entidade cognitiva com grande significado para o indivíduo num determinado momento” (Tajfel, 1983, p. 289).Opertencimento a umgrupo psicológico refere-se à pertença emocional, cognitiva e valorativa, que reflete a imagem que o indivíduo tem de si, tendendo sempre à busca de uma imagem socialmente positiva.
A constituição da identidade social é fruto de um processo relacional e cultural. Relacional na medida em que se refere à interação entre pessoas, a partir da definição de um “nós” e de um“outro”, de quem nos distinguimos ou a quem nos opomos. É cultural porque está relacionada ao universo social de inserção do sujeito, no qual há sentimentos e valores a respeito dos seus membros, códigos de comunicação e práticas de simbolismo identitário (Dubar, 1991). A dimensão cultural ainda se relaciona a processos de categorização social que, segundo Tajfel (1983, p. 291), “é o processo através do qual “se reúnem os objectos ou acontecimentos sociais em grupos, que são equivalentes no que diz respeito às acções, intenções e sistemas de crenças do indivíduo”(sp). A categorização social permite ao indivíduo orientar-se e definir o seu lugar na sociedade. Dinamizando o processo de categorização social, temos a comparação social que permite evidenciar o conflito entre o endogrupo (o “nós”) e o exogrupo (o “outro”), sendo este processo fundamental para a construção da identidade, pois é através deste confronto que o campo de identificação é traçado (Hogg & Abrams, 1999).
Nesta perspectiva, pertencer ao grupo étnico cigano exige de seus membros, como aponta Mendes (2000), lealdade ao grupo e aos valores estruturadores da organização social, sendo preciso também que o indivíduo assimile e incorpore aspectos que facilitem o seu contato com o “outro”. E este contato com o “outro” é contínuo, seja pela interação com vizinhos ou a partir das viagens que os ciganos realizam e que em alguns grupos são constantes.
A identidade do grupo étnico cigano é marcada por valores que são basilares em sua estrutura social e as relações de parentesco são fundamentais no ordenamento dessas relações. Mendes (2000) nos diz que “a pertença a um grupo parental é o fundamento de uma pessoa como membro de direito dentro da comunidade”. A autora ainda aponta outras características da cultura cigana que estruturam as relações estabelecidas entre os seus membros, como o respeito aos mais velhos, a importância atribuída à virgindade da mulher, o cumprimento dos acordos estabelecidos entre as famílias, aspectos fortemente relacionados à instituição familiar. Com igual importância, o gênero também estrutura as relações sociais e guia os homens e as mulheres de acordo com as tarefas que cada um realiza. Ao homem cigano, cabe o provimento material da família, enquanto a mulher cigana restringe as suas atividades aos serviços domésticos e aos cuidados com as crianças.
Como pudemos acompanhar, o desconhecimento relacionado ao universo simbólico dos grupos ciganos está umbilicalmente ligado a uma “identidade negativa” amplamente difundida no imaginário social (Alexandre, 2003; Fonseca, 1996; Silva & Silva, 2000). Discriminação, medo, rejeição e horror os mantiveram sempre apartados das relações sociais positivas com a sociedade não-cigana, apesar da apropriação de sua imagem mística pelos gadjés (não-ciganos). Seu povo, no entanto, permanece como eterno estrangeiro, apesar dos cinco séculos de vivência no território brasileiro. A verdade é que sabemos ainda muito pouco sobre como realmente vivem essas mulheres e esses homens que, além de ciganos, são também cidadãos brasileiros.
Cultura cigana: um universo a ser conhecido
A revisão da literatura evidenciou que pouco se tem estudado acerca da população cigana e suas formas de organização. No campo da psicologia a situação não é diferente. Neste sentido, realizar um estudo que procure contemplar a questão cigana, sobretudo no campo das identidades sociais, mostra-se relevante tanto pela contribuição científica como pela disponibilização de subsídios à construção de políticas públicas mais coerentes com a realidade vivida por esta população. É interessante ressaltar que, muitas vezes, a visão estereotipada sobre esta população pode mediar práticas de exclusão no campo das políticas públicas, seja por reforçar a representação negativa associada aos ciganos ou mesmo pelo total “esquecimento” de sua existência. Sobre essa questão, Souza (2004) nos alerta para o perigo da construção das categorias negativas e sua interferência nas políticas públicas, pois ao “[...] considerar que eu e meu grupo não somos afetados, nem somos responsáveis pelo problema, não há compromisso com a solução, e os grupos marginais internos e os estrangeiros são novamente penalizados” (p. 65-66).
A recente preocupação do Governo Brasileiro com a elaboração de políticas de identidade dirigidas às comunidades ciganas existentes em seu território denuncia a falta de conhecimento científico acerca dessa etnia, convidando a comunidade acadêmica a desenvolver pesquisas que orientem as políticas públicas voltadas a esta população.
Nesse sentido, o presente estudo - de caráter descritivo - propõe como objetivo geral conhecer como homens e mulheres, ciganos e ciganas constroem sua identidade étnica a partir das relações endo e exogrupais estabelecidas pela comunidade calon. De forma mais específica, objetivamos identificar, descrever e analisar as significações do que é ser cigano para homens e mulheres adultos de uma comunidade calon; conhecer a dinâmica grupal interna à comunidade cigana, além de investigar as concepções dos participantes acerca das relações entre os universos culturais cigano e não-cigano.
Espera-se que os resultados da pesquisa possam gerar subsídios para a reflexão sobre as políticas públicas produzidas para os homens e mulheres ciganos e também provoquem maior interesse da comunidade científica na investigação dessa categoria social ainda tão pouco conhecida.
ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS
Tendo em vista o objetivo de investigação dos processos identitários na dinâmica da comunidade calon, participaram da pesquisa 07 homens ciganos e 10 mulheres ciganas, pertencentes à etnia calon de uma comunidade cigana brasileira. No grupo de mulheres, 04 são chamadas “moradeiras” (oriundas do povo que mora em casas) ou Gadjin (do romanês “mulher não cigana”), que correspondem às mulheres que se casaram com homens ciganos e assimilaram as características da cultura cigana, reconhecendo-se como ciganas. A coleta dos dados foi realizada na própria comunidade, individualmente, segundo a disponibilidade de cadaumdos participantes.
Assim como outros grupos ciganos do Estado, essa comunidade apresenta a característica de se situar às margens do asfalto, nos arredores da cidade. O grupo investigado já se encontra em processo de fixação territorial e as viagens ciganas são agora vividas não por um processo de exclusão pelos grupos não ciganos, mas como uma escolha da própria comunidade, em função de seus interesses culturais.
Foram realizadas entrevistas individuais com roteiro semi-estruturado, contendo questões sobre o cotidiano das pessoas do grupo, conjunto de normas para homens e mulheres, relação entre ciganos e não ciganos e sobre o que seria a ciganidade ou ser cigano. Todas as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas para processamento do corpus de dados coletado.
Procedeu-se a análise dos dados através do software ALCESTE (Analyse Lexicale par Contexte d'um Ensemble de Segments de Texte) - (Reinert, 1990). Este software organiza o banco de dados coletados (as entrevistas) a partir de duas unidades básicas de análise - a Unidade de Contexto Inicial (UCI), sendo que cada entrevista corresponde a uma UCI e a Unidade de Contexto Elementar (UCE), que são fragmentos do corpus selecionados pelo programa. O ALCESTE realiza uma Classificação Hierárquica Descendente gerando um dendrograma, uma disposição dos resultados através do posicionamento de classes em forma de uma árvore. Esta estruturação dos dados permite a visualização da análise estatística realizada da seguinte forma: apresentação das palavras representativas de cada classe, a força de ligação entre as classes, a porcentagem de cada classe no corpus analisado e a quantidade de UCEs pertencente a cada categoria (Bonomo, Trindade, Souza&Coutinho, 2008).
Neste artigo serão apresentados os resultados organizados pelo software Alceste na Classificação Hierárquica Descendente. Para o tratamento dos dados, foram organizados dois corpora: um corpus com as entrevistas feitas com os homens e outro com as entrevistas realizadas com as mulheres. Estes foram submetidos ao software ALCESTE sendo criados dois dendrogamas, um para cada grupo analisado. Foi utilizado ainda, como recurso complementar, a Análise de Conteúdo Temática, como proposta por Bardin (2002). Esta análise permite identificar as unidades de significado mais gerais, relacionadas a temas considerados nucleares ou de grande relevância para o discurso construído sobreumdeterminado objeto.
Da exclusão à cultura de liberdade
Os resultados serão apresentados a partir dos dendrogamas gerados, um referente ao grupo dos homens ciganos e o outro relativo ao grupo das mulheres ciganas. Das 07 entrevistas referentes ao corpus dos homens ciganos, o software analisou 77% do conteúdo, selecionando 230 UCEs. Das 10 entrevistas realizadas com as mulheres ciganas, o aproveitamento do corpus foi de 71%, com seleção de 207 UCEs. Avaliando os dois corpora analisados, pode-se considerar que houveumbom aproveitamento estatístico dos bancos processados pelo programa ALCESTE. Nos dendrogramas que serão apresentados, cada classe é composta por 10 palavras que foram selecionadas, em ordem decrescente, a partir do valor do qui-quadrado de cada palavra.
Grupo dos homens ciganos
O software permitiu uma análise do material a partir de dois eixos. No primeiro eixo temos duas classes que compõem o discurso endogrupal. No segundo eixo, apenas uma classe aparece e esta diz respeito ao contato do grupo cigano com o “outro”, que pode ser tanto um grupo cigano quanto um grupo não-cigano. Segue abaixo a figura que apresenta esta configuração.
No primeiro eixo observa-se uma ligação entre as classes 1 e 3 (R = 0,33). A classe 1 refere-se ao discurso dos homens ciganos falando de algumas das tradições ciganas, as festas e o estilo da moradia. As festas, para os ciganos, são uma forma de destacar socialmente aspectos do grupo que são positivos. Dessa maneira, conseguem transmitir a imagem de que os ciganos são festivos e alegres, assegurando uma auto-imagem positiva do grupo, assim como Tajfel (1983) sugere ao afirmar que os grupos e os indivíduos esforçam-se para assegurar uma auto-imagem satisfatória.
A crença dos ciganos também aparece nessa classe, ligada aos festejos do dia dos santos dos quais são devotos. Essa crença revela um sincretismo existente na cultura cigana, que assimila, por exemplo, traços do catolicismo, do protestantismo e do candomblé. Mendes (2000) informa que o pertencimento ao grupo étnico cigano implica assimilação e incorporação de elementos que facilitem o contato com o “outro”; assim, o sincretismo religioso é uma forma de proporcionar um contato mais harmônico do grupo cigano com os demais grupos ao seu redor, os grupos não-ciganos.
“Casamento, batizado, festa de algum santo... às vez, quando é casamento, mata vaca, contrata uns cantô pra cantar, dança forró, dança à vontade”; “Casamento cigano eu acho muito diferente desse pessoal morador, porque nós faz festa quinze dias antes, vai tomando cerveja direto, quinze dias, trinta dias”; “Cosme e São Damião, Aparecida e Bom Jesus da Lapa, Santa Luzia, um monte, nós tem muita devoção com eles” (Classe 1).
A forma de moradia - viver em barracas -, é enfatizada pelos ciganos como um estilo de vida mais livre, mais tranqüilo, ao contrário das pessoas que moram em casas e apartamentos, pois, para eles, esses lugares tiram a liberdade dos moradores. A falta de privacidade, referente ao fácil acesso de todos ao interior da barraca, que para os não ciganos poderia ser negativa, é vista como uma forma de liberdade, o acesso ao “ar puro” e um maior contato entre os moradores. Há dessa forma uma percepção dos atributos do grupo de modo que as suas características não sejam vistas de forma negativa (Tajfel, 1983). Ainda é fundamental observar que a barraca permite uma vida itinerante de mais fácil contato, ao contrário de casas e apartamentos. Algumas UCEs, representativas dessa classe, expressam a importância do morar nas barracas.
“Pra falar a verdade, se fosse pra eu morar numa casa ou morar numa barraca, eu prefiro a barraca”; “Eu mesmo um dia dormi numa casa, é um calorão danado e aqui não, corre muita ventilação, aqui eu comprei mesmo pra não deixar construir casa, eu montei a barraca aqui”; “Mora diferente, mais sossegado” (Classe 1).
A classe 3 diz respeito à “Lei Cigana”, o que homens ciganos e mulheres ciganas podem ou não fazer. Verifica-se que o gênero é uma questão fundamental na organização da estrutura social da cultura cigana. O homem cigano tem a função de trabalhar para garantir o sustento da sua família, o trabalho em geral restringe-se ao comércio - compra e venda de carros, cavalos, ouro e empréstimo de dinheiro a juros. A mulher tem a função de realizar os serviços domésticos e cuidar das crianças (Ventura, 2004). Na comunidade cigana visitada as mulheres não realizam a leitura de mão, uma prática mística atribuída à cultura cigana. Há uma hierarquização de gênero, na qual o homem detém o poder sobre a mulher. Os homens têm maior liberdade, podem procurar mulheres fora da comunidade, podem ir a festas sozinhos, podem namorar mulheres nãociganas antes e depois do casamento. A mulher cigana não pode trabalhar para além da sua barraca, não pode sair sozinha para festas e, como eles próprios enfatizam, não pode trair o homem. A mulher cigana aparece dessa forma, como uma parceira submissa ao seu marido e desprovida de autoridade frente a ele (Ventura, 2004). No grupo cigano a desonra do homem pela mulher é tida como uma grande desgraça que deverá ser reparada com a morte da mulher infiel. A família de origem da mulher cigana é então responsabilizada, cabendo a ela honrar a sua linhagem com a morte da cigana. De acordo com os homens, esta é uma regra clara que compõe a chamada Lei Cigana, lei considerada fundamental para o grupo e conhecida por todos.
“A lei cigana tem bastante regras, tem muita coisa que mulher não pode fazer, bastante coisa”; “A liberdade do homem é um privilégio que o homem sempre tem, a mulher cigana não pode ter esse privilégio”; “A lei cigana é que a mulher não pode trair, ela não pode ficar saindo pra festa, não pode andar bebendo direto”; “Tem muito cigano que acontece de matar, tem uns que tem essa coragem e tem uns que não, porque o cigano é o seguinte, isso é a regra dela, ela sabe qual é a regra da tradição cigana” (Classe 3).
No outro eixo temos a classe 2, que expressa o conteúdo relacionado ás ocasiões em que há contato com outros grupos, ciganos ou não. Nesta categoria estão agregados os conteúdos que remetem à época em que os ciganos realizavam as viagens com suas tropas de burro, fato este que não acontece mais na comunidade visitada. Os ciganos que vivenciaram aquele momento falam das situações pelas quais passavam, como a procura por locais para montar os acampamentos e a busca por alimentos. A prática de roubar galinha é descrita como um fato que faz parte do passado e podemos associar essa questão à falta de acesso aos alimentos, devido às constantes viagens e às dificuldades financeiras que os ciganos daquela época vivenciavam. As viagens também possibilitavam o contato com outros grupos ciganos, de forma que os líderes ciganos fossem conhecidos em diversos lugares do país. Verifica-se uma preocupação em transmitir uma imagem positiva do endogrupo (Tajfel, 1983), que vai além do contato com aqueles da mesma cultura. Há dessa forma uma preocupação com o “outro”, cigano ou não, especialmente por serem tempos difíceis e que demandavam solidariedade entre os grupos.
“Viajava estrada a fora e o que acontecia, todo mundo montado em suas tropas, seu animal”; “Ajeitava certinho, já tinha as trempe dessas de ferro, pegava a trempe e colocava no chão, botava a panela, ajeitava e fazia o almoço pra gente”; “Roubava galinha, mas antigamente, eu não cheguei nessa época, nem eu e nem ninguém aqui”; “Vai vim um grupo que é de outra cidade”; “Às vezes, a comunidade precisa de alguma coisa, pode procurar a gente que a gente ajuda”; “Eu sou conhecido no Brasil, cigano que não me conhece aqui dentro, de nomemeconhece” (Classe 2).
É fundamental compreender que o nomadismo nos grupos ciganos reflete um processo constante de exclusão social, não sendo uma prática natural e sim uma forma de enfrentar a discriminação. A história dos ciganos é marcada, desde a sua dispersão pelo mundo a partir do século XI, por perseguições e preconceitos (Vaz, 2005). No entanto, essa prática é percebida de outra maneira pelos ciganos, que a significam como uma forma de liberdade, mesmo diante das dificuldades que eram vivenciadas. Têm-se, assim, valores associados a essa prática que possibilitam uma ressignificação dos fatos vivenciados (Tajfel, 1983): a exclusão sofrida é transformadaemuma cultura de liberdade.
A partir da análise dos dados coletados com os homens ciganos observa-se que o discurso mais forte é o que valoriza as normas, as características e as relações endogrupais. A cultura cigana foi e é alvo de constantes injustiças e preconceitos, sendo afetada constantemente por uma representação negativa, aliada a sentimentos de hostilidade e repulsa por parte da população não cigana. A força do discurso endogrupal pode ser entendida como uma estratégia para reafirmar o que os ciganos têm de positivo, com o intuito de evidenciar para o grupo não cigano as características de sua etnia que se contrapõem às representações clássicas dessa população como portadora de uma cultura inferior e perigosa. Afinal, no imaginário social sobre os ciganos não é raro encontrar histórias e crendices carregadas de elementos negativos, fortalecidos por alguns fatos ruins ocorridos nas regiões que eles habitam.
Grupo das mulheres ciganas
O dendrograma relativo aos dados coletados com as mulheres ciganas foi também dividido em dois eixos. No primeiro, temos as classes 1 e 3, fortemente ligadas (R = 0,73), que tratam da misoginia. O outro eixo é estruturado a partir de três classes que dizem respeito à mulher no grupo cigano. Neste eixo, as classes 4 e 5 estão fortemente ligadas (R = 0,5) e a classe 2 liga-se às classes 4 e 5 com menos força (R = 0,27). A figura 2, apresentada abaixo, refere-se ao dendrograma das mulheres ciganas.
A honra masculina na cultura cigana é considerada fundamental e o homem pode ser desonrado tanto por sua esposa, caso ela o traia, quanto pelas filhas, caso percam a virgindade antes do casamento ou se surgirem boatos a respeito de sua integridade moral. Mendes (2000) enfatiza que a virgindade feminina é uma questão muito importante em uma sociedade patrilinear que atribui grande valor à instituição familiar. Essa situação faz com que as mulheres ciganas despertem medo nos homens, visto que têm o poder de controlar a honra masculina, fato que explica algumas das práticas adotadas nessa cultura.
Na classe 1 o discurso das mulheres ciganas refere-se à prática de dar as meninas calins logo após o parto. As mulheres dizem que os homens ciganos sentem medo de criá-las devido à ameaça que estas meninas representam para eles e suas famílias. As calins provocam nos homens o pior dos medos que um cigano pode sentir: o medo da desonra, que gera uma verdadeira misoginia, ou seja, o medo ou a aversão a tudo o que é ligado ao feminino (Delumeau, 1989; Dottin-Orsini, 1996). As ciganas devem ser criadas, então, com bastante atenção e esse papel recai sobre a mãe. As meninas ciganas não podem brincar com meninos, aproximadamente a partir dos 8 anos de idade, e também não podem namorar antes de casar, para que a virgindade seja assegurada. Mendes (2000) aponta que para os ciganos, a castidade da mulher é o que garante seu valor e o que a torna uma mulher de respeito, pois sendo virgem, a cerimônia do casamento cigano será festejada em toda sua plenitude. Ao provar a sua virgindade a mulher cigana garante a honra de sua família e, consequentemente, de toda a etnia cigana.
“É muito difícil criar uma menina mulher aqui, é muito mais difícil. E o homem pode sair, pode brincar, pode xingar, que não vai ter problema nenhum”; “O cigano pode sair e namorar e a cigana não pode”; “Os meninos homem, quer dizer, não traz muito problema pra família, a mulher cigana a gente cria, tem que ser dentro da barraca, não pode ta falseando a família”; “As meninas mulher vai criar problema pra família, a gente já previne e dá” (Classe 1).
Fortemente ligada à classe 1, a classe 3 refere-se à morte da mulher cigana, física ou simbólica quando, por alguma razão, desonra seu esposo ou a sua família. Caso ocorra traição, ao homem e à família da cigana é dado o direito de matar a mulher, visto que só com a sua morte o marido reabilita sua honra e a família recupera o seu prestígio na sociedade cigana. No entanto, em alguns casos, essa morte é simbólica, ou seja, há um esquecimento da mulher que desrespeitou a regra e ela é expulsa do grupo. A partir da expulsão da cigana que não cumpriu a lei, ela é apagada da memória do grupo, não tendo mais o seu nome pronunciado entre os membros da comunidade, como se jamais tivesse vivido entre os homens e mulheres daquele território cigano.
“Ela não entra mais no bando, tira ela do bando. A que errar sai do bando. O homem não tem nada a ver com isso. O homem já trai as mulher, não tem problema. Os ciganos homem trai as mulher e não suja o nome da família não. Agora, já a mulher suja” (Classe 1).
Esse esquecimento e expulsão são as formas utilizadas para que a estrutura do grupo não seja afetada, afinal, as relações de gênero e a constituição familiar são basilares na cultura cigana (Mendes, 2000). A estrutura patrilinear da cultura cigana também determina que a mulher acompanhe o seu esposo. No entanto, a mulher cigana nunca perde o vínculo com a sua família de origem que, quando necessário, a acolherá ou tomará providências em virtude de algum acontecimento, como em casos de traição da mulher. As UCEs destacadas a seguir explicitam melhor esta questão.
“O meu pai não quis matar ela e deixou mais os morador, ela não entra mais no bando”; “Mulher de cigano não pode trair os marido, se trair eles mata”; “No meio de cigano, quando suja eles manda embora também”; “Se eu casar esse menino aí, ele tem que ficar mais eu; se eu casar uma menina mulher minha, ela tem que ir embora pro povo do marido dela” (Classe 3).
No segundo eixo (a mulher no grupo cigano), a classe 2 diz respeito à entrada de uma “moradeira” na comunidade cigana, ou seja, refere-se ao momento em que uma mulher não-cigana casa com um cigano e passa a partilhar os elementos da cultura, assimilando-os para orientar sua vida, inclusive no uso língua cigana, o romani, e no modo de se vestir. Nestes casos pode-se dizer que há mobilidade social, visto que há o abandono de um grupo psicológico e o reconhecimento de outro grupo como o seu (Tajfel, 1980). No novo grupo, características são reelaboradas psicologicamente visando transformar características negativas em positivas. São possíveis duas situações: a primeira é a reavaliação das dimensões negativas que já existem e a segunda é a criação de novas dimensões (Tajfel, 1982). O discurso das moradeiras expressa a segurança de viver numa comunidade cigana e algumas admitem que a vida que levam atualmente é importante para sua realização pessoal. A rígida hierarquização de gênero é reelaborada sob uma lógica que a torna positiva.
“Engraçado que eu sinto mais segura aqui morando numa barraca do que se eu tivesse morando numa casa. Gostei de aprender foi a língua”; “Eu gosto de viver aqui, eu sempre quis isso pra mim”; “É claro que pra mim teve algumas mudanças, eu vestia bermuda curta, vestia calça, eu vestia outros tipos de roupa que eu não posso vestir mais”; “No início foi assim, difícil, porque eu era moradora, como eles falam aqui, gadjin, e eu tinha todos os meus costumes que era diferente, morava numa casa” (Classe 2).
O modo de vida cigano, vivenciado cotidianamente na comunidade, é apresentado na classe 4. A assimilação de características da cultura é descrita como fruto de um aprendizado contínuo, em virtude do contato endogrupal. Verifica-se que o discurso das entrevistadas enfatiza uma aproximação entre o cigano e o não cigano, informando que o seu cotidiano é semelhante, o que nos remete ao estudo realizado por Vaz (2005). Em alguns momentos da pesquisa, o autor verificou que os ciganos definiamse como semelhantes aos moradores não ciganos da região. No entanto, algumas diferenciações foram identificadas com relação ao trabalho, ao uso da língua cigana e à percepção do futuro.
Magano e Silva (2000) discutem que os ciganos não concebem o trabalho como na sociedade não cigana, que é voltada para a produção e consumo de bens, segundo um arranjo cotidiano compromissado com a circulação de capital; os ciganos, pelo contrário, procuram um estilo de vida mais livre e independente que lhes possibilite ser donos do seu destino, conforme sua cultura os orienta e ensina a viver. Esta é uma questão interessante a ser tratada, já que a imprevisibilidade é inerente a uma vida itinerante, nômade. A arrumação da barraca é diferenciada, sendo já preparada para a possibilidade de ter que viajar. Na cultura cigana vive-se o presente de forma intensa, o futuro é percebido como “o hoje” e o grupo se esforça para esquecer o passado. Esta parece ser a estratégia escolhida para obscurecer um passado cheio de dificuldades, perseguições e discriminações, enfim, uma forma de não se falar de ocorrências negativas que afetem a percepção do grupo como um grupo alegre, livre, festivo e solidário. Dessa forma, a cultura cigana caracteriza-se por ser uma cultura hedonista (Vaz, 2005), que sempre busca um prazer momentâneo, vivendo cada dia, sem um planejamento para o futuro.
A dimensão mística da cultura cigana, com a prática da leitura de mãos, é também citada nessa categoria, no entanto, ela não é descrita como uma prática existente na comunidade e sim como uma característica da cultura cigana.
“É normal, o dia-a-dia de cigano, é como outro qualquer, de qualquer pessoa, porém um pouco diferente porque o homem brasileiro tem, digamos que ele tem funções e o cigano não tem”; “Esse garoto tem essa idade, então como ele vê os outros vivendo ele vai vivendo, uma coisa que ele aprende é a língua cigana”; “O futuro é isso, o futuro aqui a gente vive a cada dia”; “É igual vocês mesmo, só muda o nome que é cigano, mas é igual brasileiro mesmo”; “A leitura de mãos eu não aprendi” (Classe 4).
A história do grupo é explicitada na classe 5 a partir das viagens ciganas. Algumas entrevistadas lembram com saudosismo do tempo em que o seu grupo era nômade; outras afirmam que eraumtempo difícil e cansativo.No entanto, há um consenso ao relatarem que a vida atualmente é mais tranqüila e com menos dificuldades. As viagens possibilitavam um contato constante com grupos não ciganos e estes contatos são descritos como amistosos em alguns momentos, quando os ciganos eram bem recebidos, e comoumcontato conflituoso, quando a recepção não era tão boa.
“Ficava um dia, dois e ia viajando de novo. Era bom, eu gostava”; “Uns era bem recebidos, outros não”; “É da gente receber bem pra ser recebido bem”; “Chegava, tinha que procurar água, viajava de animal, tinha que procurar água, às vez, nem encontrava”; “Chegava ali morto de fome, era ruim aquela vida, não tinha sossego de parar num canto, não era muito boa não”; “A gente mora no terreno da gente mesmo, é uma coisa boa, mas pra eles não é, eles era mais feliz quando viajava de burro” (Classe 5).
Um aspecto fundamental relacionado ao nomadismo cigano é a procura por mulheres não ciganas durante as viagens. O contato com diversos grupos possibilita aos homens ciganos o contato com mulheres que poderiam vir a ser suas esposas. Como se constatou que o abandono das meninas calins é uma prática deste grupo, o desequilíbrio numérico existente entre mulheres e homens ciganos faz com que eles procurem mulheres fora do seu grupo e o nomadismo favorecia os contatos e os casamentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos dados coletados permitiu-nos identificar dois importantes elementos, que parecem ser fundamentais na estruturação das relações estabelecidas na cultura cigana - a rígida hierarquia de gênero e a relação parental.
Dados semelhantes foram encontrados nos estudos realizados por Magano e Silva (2000), Mendes (2000) e Fonseca (1996) acerca da organização endogrupal centralizada na instituição familiar, sob a estratégia dos casamentos endogâmicos, bem como a relação hierárquica estreitamente marcada entre homens e mulheres, sobretudo representado no ritual da prova da virgindade feminina e no rigor quanto à fidelidade da mulher (Mendes, 2000). Contudo, não encontramos na revisão de literatura referência à prática do abandono de meninas calins logo após o parto, prática esta que irá refletir numa busca de mulheres não ciganas durante as viagens e, consequentemente, a entrada de membros do grupo não cigano na comunidade calon.
Embora os diferentes grupos ciganos bebam de uma fonte cultural comum e cultivem um sistema nuclear centrado em um conjunto de crenças, normas e valores que os orientam como membros de uma mesma etnia, é possível identificar especificidades das práticas sociais dos diferentes grupos para estrategicamente se manterem coerentes com este sistema simbólico compartilhado. Podemos pensar que a própria prática de abandono das meninas ciganas é uma forma de garantir e preservar o que é central para o grupo cigano: honrando o homem, toda a etnia é honrada, pois somente ele tem o poder de transmitir aos seus filhos a ciganidade (Fonseca, 1996; Bonomo, Souza &Trindade, 2007).
A Lei Cigana, apreendida a partir do relato dos entrevistados, estabelece o que “pode” e o que “não pode” ser feito por mulheres e homens ciganos e reflete a hierarquia de gênero constituinte da cultura cigana. Desde criança até a fase adulta, o homem pode namorar mulheres não ciganas, ir a festas, trabalhar e se relacionar com várias mulheres, mesmo após o casamento.A mulher cigana, no entanto, é vista como perigosa, capaz de desonrar o homem e a sua família, e, portanto, ela deve ser criada com bastante cuidado e não pode brincar com meninos ciganos a partir de uma determinada idade; não pode namorar antes de casar e, depois de casada, deve subordinar os seus interesses aos de seu marido.
O parentesco também estrutura essa organização social de forma fundamental. É comum que grupos ciganos organizem-se de acordo com a sua linhagem. Dessa forma, os territórios onde as comunidades ciganas se estabelecem são ocupados por famílias que possuem alguma relação parental. É também comum o casamento entre primos, pois ao nascer a menina calin é prometida a algum parente, de modo que fique assegurado um acordo, um meio de garantir que aquela menina não desonre a sua família através do controle familiar.
A organização da cultura cigana é patrilinear, o que significa dizer, assim como analisa Mendes (2000), que os filhos resultantes de um casamento fazem parte da linhagem do pai, assim como ao casarem as mulheres passam também a fazer parte da linhagem do marido, verificando-se uma estreita ligação entre a hierarquia de gênero e a relações de parentesco.
Relacionadas a essas características encontramos as crenças religiosas, o respeito aos mais velhos, a fidelidade aos acordos estabelecidos (que são geralmente entre famílias) e o controle sobre a virgindade feminina, todos convergindo para as questões de gênero e parentesco, que parecem ser, de fato, as características centrais da estrutura social da cultura cigana.
Verifica-se também quão forte e recorrente é o discurso endogrupal cigano. A sua cultura, nitidamente marcada no imaginário social por estereótipos negativos, exige esforço dos ciganos para que uma imagem satisfatória do grupo seja garantida. Conforme nos orienta a teoria da identidade social, é estratégico valorizar e ressaltar aspectos da sua cultura, para que os aspectos negativos sejam desqualificados e seja possível a elaboração de uma representação positiva do próprio grupo.
Acreditamos que compreender a cultura cigana em suas especificidades é fundamental para a desmistificação de crenças e estereótipos negativos a ela atribuídos, bem como para que, em beneficio desse povo, sejam criadas políticas públicas contextualizadas.
A preocupação do governo brasileiro com relação aos ciganos, manifestada apenas recentemente, e a escassez de conhecimento formal sobre a diversidade de grupos que compõem essa cultura denunciam séculos de marginalização dos ciganos em nosso país e a necessidade de serem mais bem conhecidos. Considerando ainda o histórico de exclusão e violência vivido por este povo, ancorado em um imaginário social carregado de preconceito e medo, é importante que as características, as normas, os valores e a dinâmica da etnia cigana sejam retratados pelos próprios ciganos.
Novos estudos seriam importantes, pois a tradição cigana é repleta de acontecimentos e aspectos que não são facilmente acessíveis. Assim, pesquisar mais especificamente aspectos como o processo de socialização dos ciganos, as questões de gênero, as relações matrimoniais, o acesso aos sistemas de ensino e saúde, a distribuição dos ciganos em território brasileiro e a constituição de grupos nômades e sedentários, entre outros, parece ser importante para melhor compreensão dessa cultura, bem como das singularidades dos diferentes grupos ciganos, pois mesmo partilhando aspectos comuns da cultura cigana, os grupos organizam-se de diferentes maneiras.
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Recibido: 10 de Mayo de 2009
Aceptado: 20 de Mayo de 2009
Apoio: CNPq e Petrobrás/UFES