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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versión On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.5 n.1 Rio de Janeiro jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Sujeitos monetários da modernidade

 

Monetary subjects os modernity

 

 

Marcos Rodrigues Alves Barreira*

Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da UERJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo tem como objetivo apontar o nexo existente entre subjetividade e forma social na perspectiva inaugurada pela leitura de Marx acerca do processo de modernizaçãO Capitalista. Tal leitura é centrada no conceito de “fetichismo da mercadoria”. Nesse contexto, buscamos analisar as temáticas do sujeito e do consumo nos marcos da crítica marxiana da produçãO Capitalista, isto é, da “crítica da economia política”, elencando alguns elementos da relação entre o consumismo moderno e a noção de “forma social total”.

Palavras-chave: Modernidade, Sujeito, Mercadoria, Consumo.


ABSTRACT

The main objectiv of this study is to point the existing nexus between subjectivity and social form, in the perspective started by Marx’s process of capitalistic modernization. Such study is centered on the concept of “merchandizing fetichism”. In this context, we analise the subject and the consumption based on the capitalist production’s critics, that is, the “critics of economic policy”, some eklements of the relationship between modern consumption and the notion of “total social form”.

Keywords: Modernity, Subject, Commodity, Consumption.


 

 

“Não o sabem, mas o fazem”.
Karl Marx, O Capital.

 

Partimos de uma constatação normalmente acolhida sem dificuldades: os indivíduos, historicamente, somente atuaram de forma mais independente da autoridade e da tradição pré-modernas na medida em que se revestiam do “uniforme” da assim chamada subjetividade moderna. O que em geral as leituras a respeito dessa problemática silenciam é que essa mesma subjetividade só existe enquanto tal a partir do momento em que se comporta como portadora funcional de um movimento fetichista de valorização (e dominação) sem sujeito ditado por relações de troca no mercado. A partir desta leitura, verificamos que o moderno processo socializador coincide com uma inserção integral dos indivíduos na lógica da mercadoria e do valor, fazendo-os atuar como “sujeitos do valor”, mônadas ganhadoras de dinheiro, cujo conteúdo real das respectivas atividades (bem como de suas identidades) reflete os critérios empresariais e a individualização comercial de toda a vida. Como lembrou Max Horkheimer em seu Eclipse da Razão: são mônadas sociais isoladas pelo abismo do auto-interesse (2000, p. 141), com a subjetividade produzida em função da universalização da concorrência entre indivíduos isolados. A mediação preponderante em tal contexto ocorre, deste modo, pelo meio do dinheiro e da troca - ou seja, pelo consumo de coisas produzidas sob a forma de mercadorias. Também por esse motivo, a tão propalada crítica do consumismo moderno não é apenas indissociável, mas constitui-se como parte integrante da crítica da sociedade produtora de mercadorias em seu conjunto e da forma moderna do sujeito a ela correspondente.

Numa passagem célebre de sua obra, Marx afirmou que O Capitalismo - sempre compreendido como um modo de produção específico - não cria apenas mercadorias para os consumidores, mas igualmente, “produz” os consumidores para suas mercadorias. Essa intuição inicial de Marx seria confirmada por suas pesquisas, apontando para uma concepção de sociedade na qual o sujeito, longe de se comportar como o “todo poderoso”, criador consciente de todas as relações e forças produtivas sociais, era por elas dominado e “enfeitiçado”. É nesse sentido que Marx nos fala das “sutilezas metafísicas” e das “artimanhas teológicas” da mercadoria (O Capital, Cap. I “A Mercadoria”), descrevendo as relações entre “trabalhadores privados” como elas aparecem (e como, de fato, elas são): relações reificadas (coisificadas) entre as pessoas e relações sociais entre as coisas. Desta forma, estabeleceu-se um vínculo indissolúvel entre a relação produção-consumo de mercadorias e a problemática do sujeito na modernidade, posto que é o movimento autônomo da economia como esfera separada que deve atuar como sujeito do processo de modernização.

Marx elabora em O Capital (Cap. IV “Transformação do dinheiro em capital”) a fórmula geral do capital (D –M – D’), apontando para o processo de “valorização do valor”. Afirma Marx que, na circulação M – D – M, a lógica da circulação simples das mercadorias, o dinheiro transformado em mercadoria exerce sua função social na condição de valor de uso. Ao contrário, na formula geral do capital, o objetivo final não está mais localizado no valor de uso, na utilidade concreta dos produtos (mercadorias) trocados pelo dinheiro, pois seu motivo indutor e sua finalidade são o próprio valor de troca. A circulaçãO Capitalista se apresenta, de início, como um movimento sem conteúdo, puramente irracional. O mecanismo tautológico só ganha sentido (ainda que permaneça um sentido, por assim dizer, “exterior” à sociedade), à medida que se apreende o movimento do processo de valorização: quando o valor adiantado originalmente não apenas se mantém, mas altera a sua grandeza de valor. É o processo de valorização que acrescenta mais-valor ao valor original. A tautologia social do valor se resolve a partir da lógica interna à própria valorização. Assim, podemos ler em O Capital: “O valor de uso nunca deve ser tratado como meta imediata do capitalismo. Tampouco o lucro isolado, mas apenas o incessante movimento do ganho” (MARX, 1985, p. 129). E Marx acrescenta:

A circulação simples de mercadorias – a venda para a compra – serve de meio para um objetivo final que está fora da circulação, a apropriação de valores de uso, a satisfação de necessidades. A circulação do dinheiro como capital é, pelo contrário, uma finalidade em si mesma, pois a valorização do valor só existe dentro desse movimento sempre renovado. Por isso o movimento do capital é insaciável (1985, p. 129).

Esse processo de modernização insaciável impulsionado pela lógica capitalista não significa apenas uma etapa da evolução tecnológica capitaneada pelas sociedades ocidentais, e, ainda menos, um simples “modo de produção”, caracterizado pelo regime de exploração e degradação do trabalho assalariado. Ao contrário, a categoria modo de produção deve, ao menos nO Capitalismo, ser pensada como uma espécie de “forma social total”, isto é, como uma totalidade concreta que abarca o conjunto da reprodução social. Evidentemente, tal conceito difere da fórmula do materialismo vulgar, que enxerga o “modo de produção” como uma forma de organização da “base econômica” da sociedade. Em Marx, ao revés, a “produção”, longe de designar uma categoria “econômica”, significa uma ruptura radical com a crença numa “natureza humana invariável”, típica do materialismo iluminista, e com a “marcha do espírito” da filosofia de Hegel. O materialismo de Marx apela para a produção, não no sentido da determinação dessa esfera sobre a consciência, mas no sentido da interação concreta entre sociedade e natureza, que se verifica precisamente no processo de produção da vida material. Considerada dessa forma reducionista, como simples forma de organização técnica e material da produção mercantil, a sociedade de mercado erigida na modernidade não é apreendida em alguns dos seus momentos cruciais (sobretudo o seu “economicismo”, que colonizou a vida social): o principal desses momentos que desvendam o particular e distintivo da reproduçãO Capitalista é a autonomização fetichista das relações econômicas face ao conjunto da vida social:

O Capitalismo é um sistema em que os bens e serviços, inclusive as necessidades mais básicas da vida, são produzidos para fins de troca lucrativa; em que até a capacidade humana de trabalho é uma mercadoria à venda no mercado; e em que, como todos os agentes econômicos dependem do mercado, os requisitos da competição e da maximização do lucro são as regras fundamentais da vida. Por causa dessas regras, ele é um sistema singularmente voltado para o desenvolvimento das forças produtivas e o aumento da produtividade do trabalho através de recursos técnicos. (WOOD, 2001, p. 12).

O fato de a produção social submeter-se à finalidade do lucro empresarial redunda, por sua vez, no caráter tautológico e destrutivo do conjunto do sistema: “Na verdade, a produção de bens e serviços está subordinada à produção do capital e do lucrO Capitalista. O objetivo básico do sistema capitalista, em outras palavras, é a produção e a auto-expansão do capital” (WOOD, 2001, p. 12). Outro autor, Immanuel Wallerstein, nos dá uma imagem clara da racionalidade econômica moderna, quando afirma que:

Longe de ser um sistema natural, O Capitalismo histórico é um sistema patentemente absurdo. Acumula-se capital para que se possa acumular mais capital. Os capitalistas são como ratos brancos em uma roda de gaiola, correndo cada vez mais rápido para poder correr cada vez mais rápido. Nesse processo, algumas pessoas vivem bem, mas outras vivem miseravelmente. (...) Quanto mais refleti sobre esse sistema, mais absurdo ele me pareceu. (WALLERSTEIN, 1995, p. 41).

Uma preocupação idêntica fez com que Guy Debord, o principal teórico situacionista afirmasse em um de seus filmes:

Nossa era acumula poder e se imagina racional. Mas ninguém reconhece este poder como seu próprio. Em parte alguma houve qualquer introdução à maturidade. A única coisa que acontece é que às vezes esta longa inquietude evolui para um sono rotineiro. Porque ninguém cessa de ser mantido sob tutela. A questão não é reconhecer que algumas pessoas vivem mais ou menos pobremente que outras, mas que todos nós vivemos de modos que estão fora de nosso controle. (extraído do filme “Crítica da separação", de 1961).

A questão suscitada por autores como Debord ou Wallerstein nos remete à problemática marxiana do fetichismo da mercadoria. Partindo da constatação de que a riqueza das sociedades, em que domina o modo de produçãO Capitalista, se apresenta como uma “imensa coleção de mercadorias” e que a mercadoria se afigura como a “forma elementar” dessa sociedade (MARX, 1985, p. 45), o autor d’O Capital descreve o processo através do qual se dá o “movimento das coisas”, sob cujo controle se encontram os homens, ao invés de controlá-lo. Assim, Marx pôde constatar que, tal como o homem religioso é dominado pelo produto de sua própria cabeça, a sociedade capitalista é dominada pelo produto de sua própria atividade criadora. O fetichismo descrito por Marx, conseqüentemente, não pode ser reduzido a uma psicologia do consumo ou interpretado como simples ilusão da consciência ideologicamente “invertida” pelas perfídias do capital. Esse equívoco elementar já foi assinalado por diversos teóricos, entre eles Isaak I. Rubin, em ensaio sobre a teoria marxista do valor. Afirma Rubin que muitos, inclusive (ou principalmente) os marxistas, pretenderam eliminar “o engano da mente”, distinguindo entre a essência e a aparência das relações sociais e eliminar o “véu ideológico” que transforma as relações humanas em relações entre coisas. Para Rubin, Marx vai muito além, demonstrando que no modo capitalista de produzir, o resultado da atividade humana assume inevitavelmente a forma de coisa (RUBIN, 1987, p. 17). As coisas não somente ocultam relações entre pessoas, mas também as organizam. O conceito de fetichismo alude ao fato de que, sob o mercado capitalista, em lugar de controlar sua produção material, os homens são controlados por ela, atribuindo-lhe um caráter independente e “fantasmagórico”. Isto é, o fato de que os sujeitos são governados por seus próprios produtos, que, assim como na religião, se fizeram independentes pela dinâmica das relações sociais capitalistas por eles mesmos engendrada (JAPPE, 1999). Também para o crítico alemão Robert Kurz, o fetichismo denota, não uma ingênua inversão ideológica, mas um “... estado social em que a sociedade não tem consciência de si mesma, não penetra nem organiza diretamente na prática sua própria forma de socialização, mas sim tem que ‘representá-la simbolicamente em um objeto externo” (1996, p. 235). Existe, deste modo, uma objetividade do processo social, ainda que seja uma “objetividade inconsciente” (ORLIEB, 2000), atuando realmente de forma autônoma e, por isso, independente da volição dos agentes sociais envolvidos.

É nesse contexto que a questão do fetichismo proposta por Marx se desdobra em várias dimensões, dentre as quais a tematização do capital atuando como sujeito do processo histórico de modernização. O conceito de fetichismo da mercadoria deve dar conta de dois momentos simultâneos da modernidade: em primeiro lugar, trata-se de abarcar o processo geral de inconsciência social no qual os indivíduos se encontram submetidos sob a forma social total do valor e da mercadoria. Todos os processos sociais por eles desencadeados, assumem, de maneira inevitável, um caráter autônomo e indiferente à sua vontade ou às suas necessidades concretas. O outro aspecto a ser considerado na leitura marxiana diz respeito ao processo pelo qual a sociedade capitalista produziu o sujeito tal como nós o pensamos desde o início da modernidade. Isto porque o longo evolver do modo capitalista de produção deve ser enxergado não apenas como o “despertar” de uma lógica econômica (lógica esta totalmente nova e qualitativamente distinta de qualquer outra “racionalidade econômica” pré-moderna) autônoma coercitiva, mas igualmente como um longo processo de disciplinamento social, capaz de adequar os indivíduos, convertidos em “material humano” da produção, aos imperativos cegos do mercado compulsivo. Trata-se, portanto, de um processo de interiorização das normas de comportamentO Capitalistas até a constituição dos indivíduos “autoregulativos” (KURZ, 1997) da economia de mercado ou das mônadas econômicas “livres de toda coação – isto é, do conjunto das relações-fetiche pré-modernas -, menos da que os obriga a ganhar dinheiro” (ORLIEB, 2000). Não por acaso, Marx enxergou nesse “material humano”, arrancado com violência dos campos e vilarejos pré-modernos, uma simples coisa-mercadoria (força de trabalho) posta a serviço da grande indústria.

Paradoxalmente, na ideologia liberal, o mercado não representa coação, mas liberdade. Segundo Ortlieb, “Os sujeitos do intercâmbio mercantil, livres e iguais em tal sentido abstrato, imaginam a si mesmos como indivíduos autônomos, que ganham o sustento honradamente com seu trabalho” (2000). Uma tal ideologia não é apenas falsa porque o discurso liberal, nos termos da própria economia de mercado, se contenta em celebrar a liberdade da incomensurável massa populacional que não pode exercê-la. Ele é ilusório também no que concerne ao próprio conceito de liberdade (mesmo quando aplicado exclusivamente aos capitalistas que supostamente atuam de maneira livre nesse mesmo mercado). O que historicamente se encobriu com todo palavrório acerca da liberdade e das opções no mercado é, na realidade, o processo brutal de coerção e assimilação dos indivíduos às engrenagens da modernização. Recentemente, a historiadora canadense Ellen M. Wood descreveu esse mecanismo sistêmico de sujeição às “forças impessoais do mercado”, apontando para o caráter universalizante do processo:

...a característica distintiva dominante no mercado capitalista não é a oportunidade nem a escolha, mas, ao contrário, a compulsão. Isso se observa em dois sentidos: primeiro, a vida material e a reprodução social nO Capitalismo são universalmente mediadas pelo mercado, de forma que, de um modo ou de outro, todos os indivíduos têm que entrar nas relações de mercado para obter acesso aos meios de subsistência; em segundo, os ditames do mercado capitalista – seus imperativos de competição, acumulação, maximização dos lucros e crescente produtividade do trabalho – regem não apenas todas as transações econômicas, mas as relações sociais em geral. Como as relações entre os seres humanos são mediadas pelo processo da troca de mercadorias, as relações sociais entre pessoas assemelham-se a relações entre coisas – o ‘fetichismo da mercadoria’- , na célebre expressão de Marx. (2001, p. 16).

O caráter autoregulativo da atividade social dos indivíduos se expressa na sujeição destes aos mecanismos sistêmicos da produção desenfreada de mercadorias. Se inicialmente as formas de sujeição se deram a partir da coação externa, num processo de constituição coercitivo da sociedade do trabalho, o caráter autoregulativo do indivíduo moderno pressupõe, ao longo do tempo, uma adaptação quase automática a esse poder, que se apresenta como “exterior”. Indivíduos autoregulativos são aqueles que passaram por um processo de internalização das coerções capitalistas. Correspondem, nesse sentido, à moderna forma do sujeito, introduzida pelo conjunto de coerções, desde a imposição do regime de assalariamento moderno, nos primórdios da revolução industrial, ao moderno sistema de consumo do capitalismo avançado. Para dar conta desse fato, é necessário retomar a dissolução da sinonímia indivíduo-subjetividade, iniciada por teóricos de diferentes tradições (Foucault, por exemplo) e, ao mesmo tempo, conceber o caráter geral do processo de afirmação da modernidade como um mecanismo sistêmico e sem sujeito de valorizaçãO Capitalista. Tal concepção deve, desde o início, se diferenciar do antigo projeto estruturalista, simples consciência afirmativa e a-histórica do movimento estrutural do valor. De fato, se partirmos do empirismo observável das relações capitalistas, é praticamente impossível continuar a afirmar, à maneira iluminista, a onipotência do sujeito que “faz a história”. Não se pode mais calar a respeito do caráter “sem sujeito” que, na modernidade produtora de mercadorias, fez com que “a máquina expelisse o maquinista” (HORKHEIMER, 2000, p. 131). De alguma forma, isso já foi apontado repetidas vezes na teoria social contemporânea, desde os conceitos políticos e sociológicos de “burocratização”, passando pelas noções de “estrutura”, “sistema” e “processo”, até chegar ao “inconsciente” freudiano, sem, no entanto, evidenciar o nexo entre essas dinâmicas sem sujeito e o caráter fetichista da sociedade da mercadoria.

Desde o período áureo da modernizaçãO Capitalista, que corresponde ao desencadeamento da Primeira Revolução Industrial, assistiu-se a um sangrento processo de dissolução das antigas comunidades “tradicionais”, e à imposição coativa de um novo sistema, pautado pela mediação irrestrita do mercado em todas as esferas sociais (na realidade, a própria cisão da vida sócias em “esferas” ou “âmbitos” sociais é um desdobramento lógico da dinâmica da valorização). Por isso, além de O Capitalismo converter os expropriados das antigas sociedades pré-modernas e agrárias em material humano maleável e indiferente para a grande indústria, transformou esses “homens sem qualidades” em particularidades abstratas, em unidades ou mônadas econômicas mediadas pela mercadoria universal, o dinheiro; enfim, tornou-os sujeitos monetários da lógica da concorrência.

Por que sujeitos monetários? Porque a mercadoria, independente de sua aparência natural, apresenta-se, na sua função especificamente moderna (capitalista), como nexo que estrutura o conjunto das relações sociais. Enquanto forma social, a mercadoria é uma estrutura que está sob e sobre todos os elementos dessa sociedade. A forma social moderna, dominada pelo processo de produção de mercadorias, é, portanto, responsável pela concessão das “formas cognitivas”, por meio das quais os indivíduos empíricos se relacionam com todo o processo social. Se se considera a mercadoria como a unidade básica do mundo, como o elemento de coesão responsável pela própria socialização dos indivíduos, deve-se levar em conta que a estruturação do imaginário social, assim como a estruturação da subjetividade individual, baliza-se, em última análise, por essa mesma forma social. Assim, partindo da crítica da economia política marxiana e da leitura crítica da relação entre subjetividade e modernidade realizada por Lukács (em particular o jovem Lukács de História e consciência de Classe), Alfred Sohn-Rethel, um “companheiro de viagens” da Escola de Frankfurt, formulou a tese da identidade secreta entre o sujeito burguês (transcendental) kantiano e a forma-mercadoria, apontando que a forma da própria consciência é devedora da forma mercadoria, assim como a forma sujeito que envolve os indivíduos é plasmada pela forma que assumem os produtos do trabalho dos homens em condições de mercado. Ademais, a anulação do conteúdo social de cada individualidade empírica promovida pela forma-mercadoria é a anulação de toda qualidade sensível pressuposta nas condições da troca mercantil generalizada. O sujeito mediado pela relação de troca e pelo conjunto de “leis coativas” (Marx) dos mecanismos do mercado é, conseqüentemente, o sujeito sujeitado de quem nos fala Adorno, a própria “coisificação dos homens consumada objetivamente nas relações sociais” (1995, p. 186). A este sujeito, marcado pela impessoalidade das relações sociais, pela mediação universal do mercado e do dinheiro e pela impotência estrutural, é, contraditoriamente, concedida a ilusão da escolha e da liberdade: “O homem singular vivente (...) tal como é forçado a atuar e para o que também foi cunhado em si – é, enquanto encarnação do ‘homo oeconomicus’, antes o sujeito transcendental que o indivíduo vivente, pelo qual, contudo, deve se fazer passar imediatamente” (ADORNO, 1995, p. 186). No fundo, o idealismo transcendental (forjado no modelo da troca) guarda o seu momento de verdade, como representação ideal da reificação consumada na realidade. O sujeito, afinal, se apresenta como “um ator consciente que não tem consciência de sua própria forma” (KURZ, 1993b).

Em que sentido a determinação social da forma e a mediação do mercado são totais? Na medida em que a mercadoria começa a atuar como forma elementar da sociedade moderna. Este é um contexto social qualitativamente distinto das sociedades, nas quais o mercado funciona apenas de forma marginal ou complementar. E somente nesse novo contexto é que tal mediação assume o caráter estrutural (e estruturante) das relações sociais como um todo. O sistema produtor de mercadorias erigido na modernidade não é apenas quantitativamente distinto das antigas sociedades com mercado, no sentido de representar apenas uma “expansão” dos mercados até então periféricos, pois sua origem, como sociedade de mercado (Polanyi, 1980), remonta à cisão e autonomização da “economia”, em relação ao conjunto da vida social. A mercadoria pré-moderna, em meio à economia natural, extinguia-se no seu valor de uso, na troca entre produtores concretos, não existindo nenhuma esfera ou âmbito econômico diferenciado do todo social. Nelas inexiste uma “esfera econômica” ou mesmo o moderno “trabalho”, no sentido moderno de dispêndio abstrato de energia humana, pois toda práxis vital, todo o metabolismo dos indivíduos com a natureza, constituí ainda uma “totalidade imediata do processo reprodutivo” (Kurz, 1991). Nesse sentido, não há qualquer esfera particular (“economia”, “política”, “religião”, “arte”, etc) antes do advento da moderna sociedade de mercado, e sim uma identidade imediata do conjunto do processo vital.

O moderno sistema produtor de mercadorias, ao contrário das sociedades agrárias pré-modernas, funciona como esfera separada, maquinal e independente da “comunidade” ou da vontade dos indivíduos. É um mercado capitalista porque se tornou compulsório (WOOD, 2001). Nessa máquina de utilização do trabalho para produzir mercadorias, o sujeito não é outra coisa senão um “suporte” funcional dentro de um movimento tautológico, cujo motivo cardeal é a lógica sem sujeito da valorização. Como indicamos, a existência de uma processualidade sem sujeito deve-se à dinâmica do capital, ele próprio alçado à condição de sujeito dos processos sociais: O Capital é uma relação social que transforma todo o conteúdo concreto da produção, que se apresenta como mercadoria, numa forma abstrata de riqueza, a forma-dinheiro. Assim compreendido, O Capital se torna uma relação, cuja finalidade última é a sua própria valorização (através do dinheiro que multiplica a si mesmo como valor em movimento, ou seja, aquilo que Marx denominou “valorização do valor”), o que só se torna possível quando o mercado supera as formas anteriores, marginais, sazonais ou complementares, para se tornar uma esfera de mediação total e autoregulativa. A sociedade capitalista tem como fundamento a transformação dos indivíduos concretos em “força de trabalho” abstrata e indiferente, cuja finalidade é a produção do valor. Portanto, O Capital-dinheiro pode converter-se, através da utilização maciça da força de trabalho, em valor adicional (a famigerada mais-valia), retornar ao estágio inicial de forma ampliada e impulsionar um novo ciclo de reprodução. Foi esse o processo descrito por Marx, no qual a coisificação das pessoas, tornadas mercadorias, redunda num processo tautológico de valorização do valor por intermédio do “trabalho abstrato”. Já o caráter abstrato de todas essas relações se apresenta de forma mais acabada, não apenas no “trabalho” moderno ou no “valor” econômico destacado de qualquer conteúdo sensível, mas também nas definições modernas de sujeito, nas quais impera a absoluta igualdade e a abstração de qualquer particularidade, através do conceito universal (e moderno) do “sujeito de direito”. O sujeito de direito é, igualmente, o sujeito monetário ou sujeito da troca de mercadorias, e, portanto, o “sujeito de interesse”, pautado pela racionalidade econômica do mercado. Sua universalidade abstrata – que equivale à abstração típica da racionalidade ocidental moderna – revelou-se como um mero reflexo da abstração real (Sohn-Rehtel) objetiva do dinheiro.

No próprio pensamento burguês e iluminista o estado de inconsciência do sujeito está colocado de forma implícita (e afirmativa), como na tematização de uma “mão invisível” do mercado, que age sobre os sujeitos independente ou até mesmo contra sua vontade. Só assim, os vícios privados podem converter-se em “benefícios públicos” como na teoria moral de Adan Smith, desenvolvida paralelamente à sua teoria econômica. O fato de que o sujeito contém em si uma aporia insolúvel é sentido também pela filosofia iluminista (também de maneira celebratória, todavia inconsciente). Por um lado, é o sujeito da “livre vontade”, separado e dominado um mundo externo de objetos. A problemática kantiana da “coisa em si” retrata de forma afirmativa essa contradição, enquanto para Hegel existe uma vontade que se mantém como “o outro” auto-suficiente, num movimento de externalização em direção aos objetos, que representa o processo sem sujeito e sem vontade da valorização. No entanto, nada expressa melhor este momento de objetivação do que a ética kantiana e sua idéia de uma “lei enquanto tal”, isto é, um imperativo categórico independente da vontade dos indivíduos e segundo a qual eles devem agir, abstraindo-se qualquer conteúdo concreto do contexto social. Tanto do ponto de vista gnosiológico, quanto na ética, o paradoxo do sujeito moderno é colocado de maneira radical pelo pensamento iluminista. Essa forma de vontade livre é ela própria objetiva, sem um momento de liberdade de escolha, que, afinal, só pode aparecer (como na celebre definição hegeliana), como “consciência da necessidade”. As alternativas do sujeito estão dadas a priori dentro do processo de valorização. O paradoxo do capitalismo consiste precisamente em, a despeito de ter afirmado o sujeito como um dado ontológico e a priori, impor um sistema dessubjetivizado (fetichista, diria Marx), de produção e reprodução social, isto é, um sistema posto em movimento por seus “portadores” funcionais, mas tornado progressivamente independente deles.

As intensas transformações na estrutura produtiva, desencadeadas com a assim chamada Segunda Revolução Industrial, não alteraram em nada o desenvolvimento desses mecanismos estruturais de sujeição. Antes, podemos dizer que eles intensificaram a dependência estrutural dos sujeitos aos processos (sem sujeito) da produção e circulação em larga escala das mercadorias. Na seqüência do desenvolvimento industrial, deu-se o processo de automatização da produção, da produção em série, da racionalização da estrutura produtiva, de expansão dos meios de comunicação e transporte e, finalmente, o advento da sociedade de consumo de massas. Nos países desenvolvidos, ou seja, no centro da economia mundial, tais transformações, para muito além das simples inovações tecnológicas dos processos de produção, alteraram substancialmente o modo de vida do conjunto da sociedade e, particularmente, o da “classe trabalhadora”. Foi assim que, nas primeiras décadas do século XX, a revolução fordista alçou a massa amorfa dos antigos produtores à condição de consumidores modernos. Assim, diante da “liberdade de escolha” do consumo, reforçou-se ainda mais a ilusão na autonomia do sujeito.

Essa mutação social, propiciada pelo advento da sociedade de consumo, introduziu, de um lado, o tempo livre, como esfera separada do tempo de trabalho (mas a ele “acorrentada” como seu avesso indissociável). De outro lado, transformou os trabalhadores em verdadeiros apêndices da maquinaria de produção. À anulação das qualidades, particularidades e da autonomia relativa face ao conjunto das atividades sociais, O Capitalismo desenvolvido do século XX somou, portanto, novas formas de subjetivação sujeitada. Assim, ele pôde colonizar todo o tempo de vida dos indivíduos, dentro e fora do trabalho, impondo seu domínio e fazendo com que os trabalhadores (seu ritmo, seu espaço, sua mobilidade e seus hábitos cotidianos) fossem submetidos de uma só vez aos princípios abstratos da troca e da valorização. O Capitalismo rompeu a esfera imediata da produção e invadiu todos os domínios da cultura, submetendo-os ao seu poder ditatorial. De tal modo, deu-se um crescente processo de “economização” da vida em todos os seus aspectos, das mais abrangentes modalidades de intercâmbio social à intimidade dos indivíduos. Kurz nos oferece um panorama geral do trabalho dos “moinhos diabólicos” da modernização, em seu esforço para subjugar o conjunto das atividades sociais, e impor a sua própria forma abstrata à vida social. Ele demonstra como as categorias capitalistas invadiram o cotidiano e o pensamento e como é através delas que refletimos a respeito da sociedade:

É bastante fácil denominar as categorias capitalistas básicas, mas é bastante difícil submetê-las a uma crítica fundamental. O conceito abstrato de "trabalho", o "valor" econômico, a representação social dos produtos como "mercadorias", a forma geral do dinheiro, a intervenção através de "mercados", a reunião desses mercados em "economias nacionais" com determinadas unidades monetárias (moedas), os "mercados de trabalho" como requisito para uma vasta economia de mercadorias, moedas e mercado, o Estado enquanto "Estado abstrato", a forma do "direito" abstrato geral (codificação jurídica) de todas as relações pessoais e sociais e como forma da subjetividade social, a forma estatal pura e totalmente desenvolvida da "democracia", o disfarce irracional e culturalmente simbólico da coerência nacional-econômico-estatal como "nação" – todas essas categorias elementares de socializaçãO Capitalista moderna, por um lado desenvolvidas através de processos históricos cegos, foram, por outro lado, impostas aos seres humanos pelos respectivos protagonistas e detentores do poder em um processo de catequização, habituação e interiorização ao longo de vários séculos, resultando daí o fato de essas categorias, muito cedo, terem aparecido como constantes antropológicas praticamente insuperáveis, zombando de toda e qualquer crítica (KURZ, 2001b).

Esta longa citação sintetiza as categorias fetichistas que compõem o autêntico “discurso da modernidade”, isto é, da sociedade capitalista, “produtora de mercadorias” ou “de mercado”. Tais categorias demonstram não apenas a consolidação dessa formação social abstrata, objetivada e universalizante a partir do mercado que se tornou “total”, mas também a dificuldade de pensá-la de forma crítica nos marcos da própria modernização. O homem moderno da economia de mercado se relaciona com as instituições reais e imaginárias da sociedade de forma inconscientemente pressuposta, já que a “máscara de caráter” da forma social burguesa (ou seja, o uniforme moderno da subjetividade) se encontra fundido com o rosto dos indivíduos a ponto de instaurar a ilusão da identidade entre individualidade concreta e subjetividade abstrata (KURZ, 2002). Nesse contexto de ceguidade, qualquer discussão que abarque o processo socializador toma as categorias abstratas e fetichistas produzidas pelO Capitalismo moderno como formas naturais e trans-históricas da existência humana como tal. Além disso, a problematização de uma sociedade do consumo nO Capitalismo avançado reforça ainda mais a crença iluminista na capacidade de autodeterminação dos sujeitos, desde que não se ponha em questão a forma social objetivada que lhes subjaz. Aqui, também entra em cena novamente a ênfase iluminista na escolha e na liberdade, enfim, no moderno sujeito burguês, tomado como um dado ontológico positivo que “faz” a história segundo a sua livre vontade. Para além da fábrica do século XIX, os mecanismos atrelados à “industrial cultural” (ADORNO) e seu “maquinário de sucesso”, o tempo livre compensatório e alienado e o modo de vida fordista em geral, exaltou as liberdades de escolha, a afirmação da individualidade abstrata, de forma a tornar ainda mais difícil a identificação dos processos sistêmicos de subordinação da sociedade ao mercado. A naturalização das formas de vida produzidas pela socialização abstrata capitalista faz com que elas sequer sejam pensadas como tais, mas, ao contrário, sejam tomadas como constantes antropológicas inerentes à “condição humana”.

Entretanto, parece evidente que a sociedade do trabalho abstrato, convertida em sociedade do consumo em massa, anula ainda mais a independência e a consciência dos sujeitos, mesmo que fomente cada vez mais a ilusão de sua autonomia e de suas possibilidades ilimitadas. Tal processo foi descrito por Adorno e Horkheimer em seu ensaio sobre a indústria cultural, no qual se demonstra como a resistência dos sujeitos ao sempre idêntico do mercado é rompida através de falsa individualização. Por outro lado, isso não significa que o processo de circulação universal e a própria disseminação em massa sejam negativos em si, mas aponta para o problema da determinação básica da forma social na qual eles se inserem; por isso, podemos afirmar que “A indústria cultural não é passível de crítica (...) por ser cultura de massa, mas por se consumir na forma alienada da sociedade desenvolvida. A sua estética não é a estética do homem, e sim a das mercadorias (KURZ, 2000). Convertidos em consumidores, os sujeitos monetários sujeitados aO Capital contemplam a estética das mercadorias em seu movimento autônomo. Foi pensando nisso que Guy Debord formulou seu conceito de “sociedade do espetáculo”, em que figuram, simultaneamente, a passividade, a separação consumada das esferas sociais e a homogeneização da subjetividade pela troca generalizada.

Resta apontar o nexo entre a temática geral do fetichismo da economia moderna e o problema específico do consumo, pois o fetichismo da mercadoria – e a sua atividade correspondente, qual seja, o trabalho moderno - determinam a priori o caráter insensível da atividade social e de todas as práticas de consumo humano:

O fetiche do consumo corresponde ao fetiche do trabalho, sendo seu lado oposto; portanto, a sua crítica não pode consistir na atitude contrária de renunciar ao consumo, tal como a prega a crítica esquerdista e romântica do consumo desde fins dos anos 60. A exigência ridícula de deixar de usar batedeiras, televisores, e geladeiras, como reação à vaidade da vida fordista, não reconhece absolutamente o caráter do problema do fetiche: isto já revela a circunstancia de que se responsabilizam diretamente as coisas, assim como são, pela miséria social. O consumo torna-se necrofagia porque o fetichismo se oculta na forma social, isto é, porque lhe corresponde uma produção baseada no ‘trabalho morto. (KURZ, 1996, p. 144).

O limite da crítica do consumo está no fato de, freqüentemente, se restringir o problema ao excesso da produção de mercadorias ou à “ausência de liberdade” na escolha, como se fosse possível superar a forma social objetivada apenas com uma orientação subjetiva diferente. Outro problema limitador é o da substituição de uma crítica categorial das relações de produção pela crítica superficial dos mecanismos de distribuição desiguais sob O Capitalismo (Moishe Postone demonstrou em seu livro Tempo, trabalho e dominação social que, diante da ausência da problematização do valor e do fetichismo, a crítica tradicional empreendida ao modo de produçãO Capitalista era na realidade uma crítica ao “modo de distribuição” do sistema do capital). Diante da completa ausência da temática do fetichismo e do valor, a crítica só pode transformar-se numa reivindicação de maior igualdade, numa recusa romântica e retrógrada do consumo, ou numa teoria da manipulação dos consumidores pelos mass media. Ao contrário, a crítica histórica adequada do mercado tornado capitalista deve colocar a questão da produção alienada no centro de sua investigação.

Se o fetichismo do consumo corresponde ao fetichismo geral que impera na sociedade da mercadoria; se a própria constituição do consumo é permeada pela produção mercantil – senão determinada por ela -, a crítica do consumismo moderno deve passar, em primeiro lugar, pela crítica das formas de produção e reprodução da vida material na sociedade. O sujeio capitalista do consumo é, por definição, o sujeito monetário da modernidade. Só o mercado anônimo e compulsório pode transformar os indivíduos concretos em seres atomizados que só se relacionam através das coisas num mercado impessoal. Assim sendo, toda crítica categorial do consumismo moderno deve passar pela crítica do modo de produção no qual o consumo se realiza. Por maior que seja a importância da “ideologia do consumo” nO Capitalismo desenvolvido, não há uma independência desse fenômeno em relação ao conjunto do sistema produtor de mercadorias. O problema do consumo não se restringe a uma espécie de esfera subjetiva apartada do conjunto das relações sociais, do mesmo modo que a sua crítica – a do consumo – é parte de uma crítica mais abrangente, da forma pela qual os homens se relacionam com o produto de suas atividades criativas, na forma social total dominada pelo mercado.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
E-mail: krisis@hotmail.com

Recebido em: 28/04/2004
Aceito para publicação em: 07/10/2004

 

 

NOTAS

* Mestrando do Programa de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Bolsista FAPERJ.

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