SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número2EDITORIALGanancias y Pérdidas en Jubilación e Intención Empresarial en Servidores del Poder Judicial del Trabajo índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Compartir


Estudos e Pesquisas em Psicologia

versión On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.2 Rio de Janeiro mayo/ago. 2023  Epub 03-Mayo-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.77692 

PSICOLOGIA SOCIAL

Sentidos de Intolerância Religiosa Contra Religiões Afro-brasileiras por Grupos com e sem Religião

Meanings of Religious Intolerance Against Afro-Brazilian Religions by Groups with and without Religion

Sentidos de Intolerancia Religiosa Contra las Religiones Afrobrasileñas por Grupos con y sin Religión

Fernando Antônio da Silva* 

Doutor Psicologia PPG - Psicologia da UFPE. Psicólogo e professor da Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco.


http://orcid.org/0000-0001-9554-6265

Fatima Maria Leite Cruz** 

Professora Titular UFPE, Departamento de Psicologia, Inclusão e Educação, Centro de Educação. Permanente PPG-Psicologia, Pesquisadora NUFOPE - UFPE


http://orcid.org/0000-0002-9620-4424

*Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Recife, PE, Brasil

**Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Recife, PE, Brasil


RESUMO

Neste artigo, discutimos os resultados de pesquisa sobre sentidos atribuídos às minorias religiosas, Religiões Afro-brasileiras (RAb’s) por participantes com e sem religião e suas relações com a Intolerância Religiosa (IR). Adotamos a Teoria das Representações Sociais em articulação com as Relações Intergrupais e Identidades Sociais. O método é qualitativo com técnicas de análise auxiliadas pelo software Iramuteq em questionários de associação livre de palavras aplicados a 165 participantes e análises de conteúdo das justificativas das associações evocadas. Os resultados sugerem mudanças e permanências: de uma parte, um pensamento social de exclusão influenciado pelos discursos religiosos dominantes; de outra, a representação das RAb’s como religiões, com indícios de ambiguidades no Núcleo Central. Foi observada objetivação com elementos novos (religião e cultura) e antigos (rituais, espírito, terreiro, orixás). Nos núcleos de sentido do grupo com religião: exclusão de negros e ancoragem em rituais; ênfase na corporalidade ritualística, visual e performática expressando sentidos simbólicos de malignidade e demonização das pessoas de bem (com religião) X pessoas do mal (Rab’s). Os resultados sugerem crença institucionalizada nas pessoas e sentido de pertencimento social, inclusão à identidade grupal e exclusão dos “diferentes”, o que pode provocar acirramento da intolerância.

Palavras-chave: representações sociais; intolerância religiosa; religiões afro-brasileiras; pertencimento religioso.

ABSTRACT

In this article we discuss the results of research on meanings attributed to religious minorities, Afro-Brazilian Religions (RAb's) by participants with and without religion and their relations with Religious Intolerance (IR). We adopted the Theory of Social Representations in conjunction with Intergroup Relations and Social Identities. The method is qualitative with analysis techniques aided by the Iramuteq software in free word association questionnaires applied to 165 participants and content analysis of the justifications for the evoked associations. The results suggest changes and continuities: on the one hand, a social thought of exclusion influenced by dominant religious discourses; on the other hand, the representation of RAb's as religions, with indications of ambiguities in the Central Nucleus. Objectification with new elements (religion and culture) and old ones (rituals, spirit, terreiro, orixás) was observed. In the nuclei of meaning of the group with religion: exclusion of black people and anchoring in rituals; emphasis on ritualistic, visual and performative corporeality expressing symbolic meanings of malignity demonization of good people (with religion) X evil people (Rab's). The results suggest an institutionalized belief in people and a sense of social belonging, inclusion in the group identity and exclusion of the 'different', which can lead to an intensification of intolerance.

Keywords: social representations; religious intolerance; afro-brazilian religions; religious belonging.

RESUMEN

En este artículo, discutimos los resultados de investigación los significados a las minorías religiosas, Religiones Afrobrasileñas (RAb's) por los participantes con/sin religión y sus relaciones con la Intolerancia Religiosa -IR. Adoptamos la Teoría de las Representaciones Sociales en conjunto con las Relaciones Intergrupales y las Identidades Sociales. El método es cualitativo con técnicas de análisis auxiliadas por el software Iramuteq en cuestionarios de asociación libre de palabras aplicados a 165 participantes y análisis de contenido de las justificaciones de las asociaciones evocadas. Los resultados sugieren cambios y continuidades: por un lado, un pensamiento social de exclusión influido por los discursos religiosos dominantes; por otro lado, la representación de los RAb como religiones, con indicios de ambigüedades en el Núcleo Central. Objetivación con elementos nuevos (religión y cultura) y antiguos (rituales, espíritu, terrero, orixás). En los núcleos de significación del grupo con la religión: exclusión de negros y anclaje en rituales; énfasis en la corporalidad ritualista, visual y performativa que expresa significados simbólicos de malignidad y demonización de personas buenas (con religión) X personas malas (Rab's). Los resultados sugieren creencia institucionalizada en las personas un sentido de pertenencia social e inclusión en la identidad grupal exclusión de los 'diferentes', lo que puede conducir a intensificación de la intolerancia.

Palabras clave: representaciones sociales; intolerancia religiosa; religiones afrobrasileñas; pertenencia religiosa.

A Intolerância Religiosa (IR) parece estar em curva ascendente no campo religioso brasileiro e a vitalidade das suas expressões violentas sugere a pertinência de estudos acadêmicos que visem à compreensão e análise de repercussões desses comportamentos na vida social. Propomos neste artigo apresentar resultados de pesquisa defendida de doutoramento em Psicologia que discutiu sobre minorias religiosas e suas relações com a violência religiosa na sua expressão de intolerância religiosa, a partir da perspectiva da Teoria das Representações Sociais (TRS) (Moscovici, 2010; 2012) em articulação com as Relações Intergrupais (Sherif, 1983) e Identidades Sociais (Tajfel & Turner, 1986). A pluralidade de referentes e a polissemia de significados que o fenômeno da IR sugere justificam a adoção da Teoria das Representações Sociais como um dos meios possíveis para desvendar as raízes e sombras que tal construção encerra, seja pelas matrizes culturais que a constituem, seja pela base sociocognitiva permeada pela ideologia e pelas tradições que orientam as práticas sociais.

A relevância do estudo se destaca quando se analisa, segundo o Relatório de Intolerância e Violência Religiosa no Brasil do então Ministério dos Direitos Humanos da Presidência da República, denúncias de todo o território nacional relacionadas à intolerância religiosa, desde 2011 até 2015. Conferimos que houve um significativo aumento (3.706%) das denúncias de casos de intolerância: 15 casos em 2011, e 556 em 2015. Em 2016, houve 759 denúncias de violação às liberdades religiosas, um aumento de 36,51% em relação ao ano de 2015 (Fonseca & Adad, 2016). A partir de 2017 e 2018, nota-se um declínio nos registros de denúncias de discriminação religiosa em todo o território nacional. Não se sabe exatamente as razões de tal declínio. O que se percebe, todavia, é que há uma coincidência entre a diminuição dos registros de IR (não necessariamente dos casos) e a ascensão política do conservadorismo religioso no plano da conjuntura nacional.

As Religiões Afro-brasileiras (RAb’s) lideram as estatísticas dessas denúncias por sofrerem agressão, sendo seguidas por evangélicos, católicos e espíritas. Estes casos envolvem os próprios sujeitos religiosos entre si, isto é, são comportamentos de intolerância de grupos religiosos contra outros grupos religiosos: católicos contra evangélicos; pentecostais e neopentecostais contra religiões afro-brasileiras; evangélicos contra espíritas e outras variadas configurações no enfrentamento entre estes distintos grupos. Estes conflitos sugerem um tipo de intolerância, cujo objeto de afronta é o outro sujeito ou grupo religioso e as palavras e ações violentas parecem ser, para estes grupos, o único recurso possível de interação, pelo desejo de exclusão do diferente.

No Brasil, o cenário religioso contemporâneo aponta para o processo histórico de construção de identidades religiosas em amálgama com a identidade nacional, configurando-se como espaço de matrizes peculiares de manifestações de violência religiosa, aparentemente diversas em certos aspectos daquela típica do fundamentalismo. Sabe-se que os processos envolvidos na formação da sociedade brasileira com suas diversas expressões identitárias implicam relações entre diferentes formações religiosas que estiveram por um longo período histórico sob a égide da dominação do Catolicismo Romano (Del Priori & Venâncio, 2016). Dessas relações constituíram-se crenças, imagens, conceitos, palavras, enfim, sentidos objetivos e simbólicos atribuídos aos diversos segmentos religiosos que se firmaram em terras brasileiras, dentre estas e, principalmente, as chamadas Religiões Afro-Brasileiras, constituídas desde o período escravocrata por negros trazidos da África e que se firmaram na manutenção das crenças, advindas de outra matriz cultural, distinta dos colonizadores europeus (Bastide, 1985; Domezi, 2015).

Apoiados por estes marcadores sócio-históricos, buscamos, a partir de uma abordagem psicossocial, compreender as representações sociais das RAb’s por grupos de pessoas com religião e sem religião para entender como essa pertença/não pertença se relaciona às manifestações de IR contra minorias religiosas.

Psicossociologia da Violência Religiosa: Implicações na Identidade

A IR é um tipo específico de violência e, em muitos aspectos, está associada ao fundamentalismo religioso, mas não se confunde com aquele. Uma diferença entre ambos é que a chamada IR, tal como a definimos modernamente, remonta às guerras religiosas europeias do século XVI, enquanto o chamado fundamentalismo religioso se inscreve dentro da tradição religiosa protestante do século XIX, em confronto com o liberalismo religioso de base cientificista (Armstrong, 2016). Em suas expressões práticas, contudo, a violenta rejeição ao diferente, ao considerado ofensivo e inaceitável, segundo critérios religiosos específicos, amalgamam fundamentalismo e intolerância em um evento único. Assim, o que Geering (2009) afirma caracterizar o fundamentalismo encontra eco, também, no fenômeno de intolerância religiosa, pois, segundo este autor, “o que os fundamentalistas têm em comum não é um conjunto de crenças específicas, mas a atitude da mente. É a convicção de que possuem o conhecimento absoluto da verdade, da qual se tornaram guardiões” (p. 41). É com base em convicções e opiniões, por assim dizer, que fundamentalismo e intolerância religiosa parecem ancorar suas práticas de exclusão.

Nesta perspectiva, a atitude fundamentalista, violenta ou não, permite ao sujeito simplificar a complexa relatividade das sociedades modernas, apegando-se às suas verdades (convicções) absolutas e imutáveis (Pace & Stefani, 2000). Possibilita, também, um pensamento social em torno de um objeto social altamente divergente dos padrões religiosos dominantes, conferindo-lhe sentidos e significados em consonância com suas pertenças religiosas específicas (Pereira & Santos, 2004; Pierucci, 2004). Este sentido social da violência religiosa nos remete ao conceito de representação social como possibilidade de integração de aspectos culturais, sociais e históricos aos processos de cognição que compõem expressividade da violência (Moscovici, 2010).

Para Moscovici (2012), os conceitos de objetivação e ancoragem estabelecem no plano simbólico o vínculo entre o sujeito e seu meio formativo. Por meio deles os sujeitos pertencentes a determinada instituição religiosa, ao se depararem com a diversidade e o relativismo identitário e religioso da vida moderna, podem se ancorar cognitivamente às verdades fixas capazes de assegurar uma coesão interna frente a um mundo fragmentado. Esta perspectiva diz respeito a um modo de pensar que busca na simplificação de leituras religiosas, bíblicas ou não, um reduto familiar de sentidos já dados, nos quais possa apoiar suas experiências subjetivas e sociais, influenciando a constituição de suas identidades.

Identidade Social e Processos Exogrupais e Endogrupais: Repercussões nas Atitudes

Identidades religiosas são, antes de tudo, identidades sociais que dizem respeito à necessidade que os sujeitos têm de enquadrar-se em determinados esquemas categoriais, isto é, pertencer a certos grupos. Este pertencimento é fator preponderante e desenvolve compartilhamento de sentimentos e crenças semelhantes aos do grupo que nos cerca, é a base da identidade social, e se relaciona, por sua vez, aos processos grupais (Tajfel & Turner, 1986). Estes autores propuseram que os sujeitos constroem sua identidade social, a partir do contato com outras pessoas, por meio de três movimentos: 1) os sujeitos esforçam-se por construir e manter uma imagem social, isto é, uma identidade social positiva; 2) essa imagem é sua identidade social alcançada através de comparações favoráveis em relação a outros grupos, uma oposição entre a dimensão endogrupo/exogrupo, na afirmação pelo pertencimento grupal em oposição a outros grupos com pertencimentos diversos dos seus; 3) é possível que o sujeito não se sinta plenamente integrado à identidade social que seu grupo de pertença lhe confere e, então, pode fazer o movimento de autoexclusão grupal buscando outros grupos.

Assim, o pertencimento grupal se configura como uma dimensão fundamental das relações entre os sujeitos e os grupos que se estendem por um continuum entre dois polos, do interpessoal para o intergrupal, isto é, entre as relações dos sujeitos e seus pares e os exogrupos. No polo interpessoal, se sobressaem as características individuais peculiares nas relações imediatas entre os sujeitos em interação social; no polo intergrupal, por sua vez, os sujeitos são definidos em função de características gerais ou categorias sociais que até certo ponto impõem crenças e comportamentos considerados pertinentes (Santos Fernandes & Pereira, 2018). No campo religioso brasileiro, percebe-se uma significativa variedade de religiões convivendo e interagindo, em muitos aspectos incompatíveis entre si, e ávidas por expansão. Este cenário de diversidade grupal faz eclodir tensionamentos entre os diversos grupos religiosos, com persistentes sentidos de rejeição/exclusão.

Identidades Religiosas Atuais: O que Trazem de Particular aos Sujeitos com/sem Religião

Esta variedade de possibilidades de afirmação religiosa parece se distribuir entre dois distintos segmentos: de um lado, identidades fluidas e instáveis, mas afirmativamente religiosas em termos de crenças e práticas; e, de outro lado, identidades que buscam uma certa estabilidade na medida em que as instituições religiosas, tradicionais ou não, podem oferecer. Estas últimas congregam as pessoas e grupos com religião, significando que afirmam um pertencimento religioso, institucionalizado ou não (Berger, 2017). Os sujeitos sem religião, designados como “religiosos sem instituição” (Villasenor, 2011), abarcam um variado leque de experiências ditas religiosas. Este grupo comporta segmentos de pessoas com religiosidade própria, à maneira dos mosaicos espirituais, até pessoas que se reconhecem como ateus e agnósticos. Em comum, compartilham o fato de não frequentarem qualquer instituição religiosa e, no caso dos ateus e agnósticos, pela ausência de crenças e práticas religiosas (Mariz & Machado, 1998). De uma forma geral, o aspecto que unifica os sem religião em um determinado nicho filosófico ou espiritual é que todos são céticos quanto à institucionalização das crenças religiosas. Há, portanto, uma ausência de fronteiras que os delimite em uma identidade religiosa grupal, que os tornaria, à princípio, menos susceptíveis aos discursos doutrinários típicos das religiões institucionalizadas.

A Teoria das Representações Sociais e suas Relações com a Intolerância Religiosa

Entendemos que os eventos de intolerância se desenrolam no âmbito social e estão imbricados com diversos outros aspectos (culturais, históricos, cognitivos) que interagem para a sua produção e expressão. Em função desse marco, decidimos realizar a articulação teórica entre cognição, relações interpessoais, relações intergrupais, cultura/sociedade e história para melhor compreender os fenômenos da intolerância religiosa. Para tanto, procuramos articular a perspectiva societal de Doise (2002) e a abordagem cognitiva de Abric (1993). Selecionamos, na perspectiva de Doise, as análises das representações sociais perpassadas pelos seguintes níveis de compreensão: estudo dos processos interindividuais, que estuda os processos interindividuais e situacionais; as diferentes posições que os atores sociais ocupam no tecido das relações sociais e, por fim, os sistemas de crenças, representações, avaliações e normas sociais que balizam os comportamentos dos sujeitos, dos grupos e das sociedades. Com essa articulação pretendemos apreender representações sociais de RAb’s por grupos de pessoas com religião e sem religião. Buscamos, portanto, identificar essas representações por compreendermos que elas ajudam esses diferentes grupos a nomear e diferenciar os diversos aspectos da realidade social cotidiana, proporcionando uma base interpretativa que os orienta na tomada de posições a respeito da realidade social e a defendê-la (Jodelet, 2001).

Nesse sentido, entendemos que o pensamento social desses grupos atualiza na cognição de seus membros, em interação social, processos históricos e culturais que lhes chegam por meio de crenças, atitudes aprendidas, e comportamentos herdados que sofrem um processo de ressignificação dialógica, isto é, linguística (Berger & Luckmann, 2014), por meio da qual as interações intergrupais se estruturam.

Para Doise (2002), os processos de ancoragem são propriamente o nível societal das representações sociais, assim denominados por compreender os fenômenos psicossociais dentro das dinâmicas sociais que lhes imprimem sentidos, ligados aos processos ideológicos e culturais. Para Doise e Valentim (2015), existem 3 tipos de ancoragens: a psicológica, na qual se apresentam crenças sociais que incidem diretamente na cognição; a psicossociológica, na qual os sujeitos se situam simbolicamente em relação às relações sociais em determinado campo; e a sociológica, na qual as pertenças identitárias, sociais e suas relações com as representações sociais se articulam. Abric (1993), por sua vez, advoga que os aspectos cognitivos sustentam socialmente comportamentos e atitudes em face a um objeto de representação social. Para este autor, “uma representação social se estrutura em um sistema central (ou núcleo central) e um sistema periférico” (p.2). com uma relativa estabilidade e continuidade, por estar fixado no “centro” do pensamento psicossocial acerca de um dado objeto social.

Procedimentos Metodológicos

Participantes

Participaram da pesquisa 165 pessoas em uma capital do nordeste brasileiro, em sua maioria (90% dos participantes) com escolarização superior na metade de um curso de graduação, estudantes universitários de uma universidade pública federal; e outros, (menos de 10% dos participantes) de uma instituição de ensino superior privada, também estudantes na metade de um curso. A participação foi voluntária por aceite do convite direto do pesquisador. Quanto à religião, o grupo foi constituído de 100 pessoas que se autodeclararam com religião: católicos romanos praticantes e não praticantes, protestantes históricos, evangélicos pentecostais, evangélicos neopentecostais, espíritas, testemunhas de Jeová e mórmons. Nesse grupo, a composição privilegiou a declaração da pertença religiosa, mesmo daqueles que se reconhecem não praticantes, nas modalidades institucionais exigidas em seus rituais. O objetivo foi tentar apreender o senso comum ao conjunto das denominações religiosas e suas variações, o que confere a identidade no grupo religioso, embora sua participação seja esporádica.

O outro grupo, com 65 pessoas autodeclaradas sem religião, é formado por: ateus, agnósticos, e os chamados “religiosos sem religião”, isto é, pessoas com religiosidades diversas não institucionalizadas (práticas esotéricas e/ou espiritualísticas, filosóficas, ecléticas). Os ateus e agnósticos sustentam sua identidade se contrapondo à religião; todavia, entre eles/elas há um interesse em entender as religiões e relativizar as crenças difundidas, o que na pesquisa nos traria interessantes contrapontos em relação à construção de preconceitos. O número inferior de participantes no grupo sem religião se deve à proporção menor desse segmento na composição do campo religioso brasileiro e que também se expressou na amostra (Tabela 1).

Tabela 1 Sentidos de intolerância associados às RS das RAb's por grupos com religião e sem religiâo. 

Participantes Quantidade Justificativas Quantidade Percentual
Com Religião 100 Sentidos associados à IR 31 30,6%
Sem Religião 65 Sentidos associados à IR 8 12,3%

Em relação ao gênero, cuidamos para que os participantes formassem equitativamente o quantitativo de homens e mulheres (aproximadamente 50% em cada grupo), com idade acima de 18 anos. Apenas dois dos participantes se autodeclararam pertencentes ao grupo LGBTQIAP+.

Procedimentos de Coleta de Dados

Aplicamos de forma coletiva em salas de aula Questionários de Associação Livre de Palavras (QALP), com a instrução de associarem por escrito as cinco palavras que lhes viessem à mente, quando lessem cada uma das palavras indutoras - Xangô, Macumba, Umbanda e Candomblé - que remetem direta e/ou indiretamente às Religiões Afro-brasileiras. Após as associações, pedimos aos participantes que justificassem suas escolhas, com um pequeno texto, para cada uma dessas palavras.

Instrumentos e Procedimentos de Análise

Para os QALP, foram utilizados procedimentos de análises prototípica e de similitude auxiliados pelo software IRAMUTEQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) que realiza análises estatísticas sobre textos e tabelas de palavras (matrizes), consistindo em uma técnica de análise lexical de base estatística com propósitos qualitativos (Camargo & Justo, 2013). Já a análise de conteúdo das justificativas foi realizada segundo Bardin (2008).

Na análise prototípica, após a submissão das planilhas com o conjunto de palavras evocadas, obtivemos um mapa com quatro quadrantes. O primeiro corresponde ao Núcleo Central (NC) que agrupa as palavras por maior frequência e evocação, indicando a centralidade na composição da representação social e, portanto, um indício do campo comum. Ajuda-nos a compreender o NC a chamada primeira periferia (PP), pois agrupa palavras que poderiam estar no NC, mas que figuram nos quadrantes inferiores, por apresentarem uma combinação de evocação e frequência menor do que o NC. O terceiro quadrante compõe a Segunda Periferia (SP), onde se encontram as evocações inferiores ao ponto de corte, elementos de pouca importância para a estrutura das representações sociais. O quarto quadrante é a chamada Zona de Contraste (ZC) em que se encontram elementos representacionais dissociados do grande grupo consensual indicado pelo NC, configurando um conjunto de crenças e ideias relativamente consistentes e sistemáticas, compartilhado por um pequeno número de participantes (Wachelke & Wolter, 2011). Os procedimentos acima descritos foram submetidos e aprovados pelo CCAE - Comitê de ética da UFPE, Processo 89984318. 1.0000.5208, Parecer 2.822.102.

Resultados e Discussão

Campo Comum do Grupo com Religião para a Frequência de Evocação e OME

A Tabela 2 apresenta o campo comum das representações sociais das RAb’s pelo grupo com religião, obtido por meio da composição estrutural da análise prototípica das evocações.

Tabela 2 Analise prototípica das associações relativas aos termos indutores macumba, xangô, candomblé e umbanda por participantes autodeclarados com religião 

Núcleo central Primeira periferia
Evocação OMS Evocação OMS
Religião 114-23 Música 41-3.1
Dança 83-2.5 Negro 35-2.7
África 76-2.5 Mal 27-2.8
Cultura 66-23 Oferenda 25-3
Ritual 57-2.4 Tambor 24-3
Espirito 55-2.4 Macumba 23-3.1
Terreiro 31-2.5 Roupas 22-3
Orixá 25-22 Afro-brasileiro 20-2.8
Batuque 19-2.4 Preconceito 19-2.9
Crença 19-2.6 Sacrifício 19-32
Zona de Contraste Segunda periferia
Evocação OMS Evocação OMS
Instrumento 17-2.5 Entidade 15-3.1
Fe 15-23 Politeísmo 13-3.3
Satanás 13-2.5 Culto 12-3
Desconheço 11-2.1 Medo 12-3.4
Despacho 11-2.6 Galinha 10-2.9
Respeito 9-2 Espírita 9-2.8
Seita 9-2 Bahia 8-3.8
Santos 9-2.6 Animal 8-3.1
Sem-deus 8-2.1 Festa 8-3.4
Espiritualidade 8-2.4 Ruim 8-2.9
Morte 7-1.9 Possessão 7-2.7
Historia 7-23 Escravo 6-32
Trabalho 7-23 Encruzilhada 6-4
Feitiço 6-23 Entendimento 6-3.7
Estranho 6-2 Pai-santo 64
Cores 6-2.5 Invocação 5-32
Adoração 5-2.4 Diversidade 5-3.6
Místico 5-22 Alegria 5-3.8
Intolerância 5-2.6 Yemanjá 5-3
Manifestação 5-3.4
Candomblê 5-2.8
Desconhecido 5-3
Magia-negra 5-2.8

Para este grupo de participantes, o NC apresenta as RAb’s associadas aos aspectos culturais e religiosos, sentidos valorizados dessas religiões, dissociados, portanto, de uma imagem negativa que historicamente se atribuiu (Domezi, 2015), durante séculos às RAb’s, que não foram consideradas como religiões, e sim, feitiçaria, rituais, isto é, alguma forma inferior de religiosidade em comparação à religião cristã, considerada em pleno sentido do termo. A palavra com maior frequência (114 evocações) foi religião, associação conceitual abstrata, seguida das palavras cultura e crença que também sugerem semelhante abstração.

A respeito da palavra cultura, com 66 do total geral das evocações (OME 2.3), reflete um processo de assimilação das RAb’s à sociedade brasileira. Todavia, pareceu-nos que os participantes pretenderam realçar elementos arcaicos (Silva, 2015), o que pode sugerir uma persistência desse movimento de desconsiderar as RAb’s como religião, embora o tensionamento sugestivo de mudança com a prevalência do termo religião, o mais evocado, faça sobressair os aspectos religiosos sobre os culturais.

Algumas palavras sugeriram natureza prática, em frequência igual à palavra religião, tais como: dança, África, ritual, espírito, terreiro, orixá, batuque, evocando a dimensão performática da cultura associada intimamente às RAb’s. Mesmo fora do âmbito religioso, a cultura africana é associada a uma vivência mais pragmática do que racional, mesmo que seus sistemas de crenças sejam tão elaborados quanto qualquer outro sistema de crenças religiosas (Silva, 2015). Neste ponto, aspectos raciais e religiosos parecem se imbricar para a produção da objetivação na imagem da religião e dos povos africanos marcados por rituais considerados primitivos, a partir de uma ótica colonialista que ainda parece persistir na sociedade brasileira.

Os resultados sugerem tensionamentos sugestivos de mudanças e de permanências: de uma parte, um campo comum de valor semântico relacionado à intolerância, um pensamento social de exclusão, influenciado pelos discursos religiosos dominantes e historicamente construídos. De outra, a tendência de superar a exclusão das RAb’s, destacando aspectos culturais considerando-os como religião, embora haja indícios de ambiguidade no NC: elementos novos na objetivação (religião e cultura) e elementos antigos, rituais (espírito, terreiro, orixás). Na interpretação dos núcleos de sentido, percebemos aspectos raciais imbricados às representações sociais das RAb’s: na ancoragem da exclusão, os negros e seus rituais, considerados primitivos. A princípio, tal associação parece, por um lado, realçar os elementos culturais socialmente visíveis dessas religiões. Por outro lado, tal ênfase em uma corporalidade ritualística, visual, e performática reproduz uma visão reducionista, tanto da religião quanto dos povos africanos. Segundo esta ótica, os povos colonizadores eram os portadores de uma racionalidade superior, a partir da qual os povos colonizados foram subalternizados e inferiorizados sob todos os aspectos (Domezi, 2015).

No conjunto de respostas, interpretamos que o NC das RS das RAb’s por grupos com religião está estruturado em dois elementos: aspectos atualmente valorizados da cultura e da religiosidade de origem africana, e outros aspectos associados às performances e práticas ritualísticas, ligadas à história dessas religiões no Brasil. As palavras religião, cultura e crença, estas duas últimas, mesmo que sem tanta relevância em sua valência para o NC, um elemento novo, ainda assim podem ter relação com as mudanças recentes, por exemplo, a partir de políticas educacionais que abriram o currículo escolar do Ensino Médio e das universidades à apreciação do legado cultural dos povos de origem africana para a formação da sociedade brasileira (Wedderburn, 2003). A exposição dos estudantes universitários participantes, a maioria do grupo, a estes novos e mais valorizados aspectos das culturas africanas podem ter influenciado nas representações construídas historicamente.

No NC do quadro prototípico 3 a palavra religião aparece com maior frequência de evocação, em 72, e OME, em 2.2. A estas palavras seguem-se outras que associam as RAb’s aos aspectos religiosos e culturais, como indicam orixá, África e , e outros performáticos relacionados à corporalidade e aspectos materiais: ritual e instrumento, no NC. Há, portanto, uma organização semântica neste quadrante que sugere um sentido predominantemente cultural e abstrato (religião) atribuído às RAb’s, associando-as a uma compreensão mais cognitivamente elaborada, em sintonia, portanto, com o perfil predominantemente escolarizado dos participantes.

Campo Comum do Grupo sem Religião para a Frequência de Evocação e OME

O grupo sem religião, Tabela 3, por seu turno, também elencou, em menor intensidade, sentidos culturais e abstratos no NC, assim como elementos de performance e práticas ritualísticas.

Tabela 3 Analise prototipica das associações relativas aos termos indutores macumba, xango, candomblé e umbanda por participantes autodeclarados sem religiào 

Núcleo central Primeira periferia
Evocações OMS Evocações OMS
Religião 72-22 Dança 38-3.1
Cultura 46-23 Preconceito 33-2.9
Africa 46-23 Negro 27-2.7
Ritual 33-2.4 Música 23-33
Orixã 18-1.9 Macumba 20-2.9
Instrumento 16-1.7 Roupas 20-3
15-22
Zona de Contraste Segunda periferia
Evocações OMS Evocações OMS
Terreiro 14-1.9 Oferenda 13-2.8
Divindade 11-23 Desconhecido 12-2.6
Espiritualidade 11-2.1 Festa 10-3.1
Espirito 11-2.1 Tradição 9-2.7
Crença 11-1.9 Bahia 9-3.4
Culto 11-2.5 Força 9-2.8
Batuque 10-18 Mal 9-3.2
Resistencia 10-1.6 Sincretismo 8-3.1
Respeito 9-23 Encruzilhada 8-2.9
Pai_santo 9-2.4 Espirita 8-2.6
Entidade 8-1.9 Tambor 7-3.7
Medo 6-4.3
Afro-brasileiro 6-6.3
Intolerância 6-2.7
Sacrifício 6-2.8
Feitiço 5-2.6
Identidade 5-3
Candomblé 5-3.4
Despacho 5-32
Natureza 5-3
Diversidade 5-3
Animal 5-3.6
Deus 5-2.8

No NC do quadro prototípico acima a palavra religião aparece com maior frequência de evocação, em 72, e OME, em 2.2. A estas palavras seguem-se outras que associam as RAb’s a aspectos religiosos e culturais, como indicam orixá, África e , e performáticos relacionados a certas práticas ligadas à corporalidade como os termos ritual e instrumento, sendo estas as únicas palavras com esta conotação semântica a figurar no NC. Há, portanto, uma organização semântica neste quadrante que sugere um sentido predominantemente cultural e abstrato (termo religião) atribuído às RAb’s, associando-as a uma compreensão mais cognitivamente elaborada; em sintonia, portanto, com o perfil predominantemente acadêmico dos participantes.

Em termos de NC, podemos afirmar que o grupo sem religião elenca sentidos culturais e abstratos, assim como elementos de performance e práticas ritualísticas, em menor intensidade, na mesma linha que o grupo com religião. Os termos que indicam um significado performático, ritual e instrumento não chegam a ser 25% do total, enquanto no grupo com religião, figuram com mais de 50%. Em termos de estrutura prototípica indicada pelo NC, isto é, há uma pequena diferença nas representações sociais de minorias entre os dois grupos. Esta diferença, no entanto, não parece ser significativa.

Comparação entre os Grupos com/sem Religião nas Análises Prototípicas

Em termos de estrutura prototípica indicada pelo NC, há uma pequena diferença não significativa, nas representações sociais de minorias entre os dois grupos. Na Tabela 3 vemos que, pelo critério de frequência, os dois grupos não apresentaram diferença em suas associações. A palavra religião nos dois grupos é a mais frequente e de mais pronta evocação (OME baixa). Se a centralidade de uma representação social é indicada pela palavra de maior frequência e menor OME, então, os núcleos centrais dos dois grupos estariam indicando que seus elementos de representação social são praticamente iguais.

À primeira vista, portanto, não há diferença na situação dos grupos com ou sem religião na representação social das RAb’s. Sabemos, contudo, que uma representação social não se faz evidente apenas pelas evocações que aparecem no NC. Um outro aspecto a considerar para obtermos um quadro o mais aproximado possível de uma representação social diz respeito à semântica dos termos evocados. Pessoas com religião e sem religião podem evocar as mesmas palavras, mas com conotações valorativas diferentes. Por exemplo, a palavra ritual que apareceu nos NC’s dos dois grupos pode fazer referência a uma experiência religiosa significativamente positiva, como nos rituais católicos de passagem (primeira comunhão, crisma), mas podem também remeter a outras experiências religiosas socialmente desvalorizadas, como as que em geral são retratadas nas práticas rituais das RAb’s.

Além disso, é pertinente acrescentar que mesmo que os sentidos das palavras evocadas possam ser inteligíveis apenas em função do contexto dos grupos, a evocação compartilhada das mesmas palavras pelos dois grupos sugere um contexto social e cultural amplamente impregnado por uma terminologia específica referente às RAb’s. Como sabemos, a significação de tais termos sofrerá variações segundo fatores posicionais, situacionais e grupais (Doise & Valentim, 2015). Contudo, o universo consensual de tais referências às RAb’s parece ter relação com a construção histórica e social da imagem desse segmento religioso (Domezi, 2015). Dessa forma, mesmo que os termos do NC dos dois grupos sejam ao mesmo tempo iguais (na forma) e diferentes (nos significados), eles se inscrevem dentro de um cenário social em que a imagem das RAb’s durante séculos admitiu pouca ambiguidade, chegando até à atualidade ainda com estigmas.

Pertença Religiosa e Sentidos de Intolerância - Grupos com Religião / sem Religião

As justificativas dadas às palavras hierarquizadas no questionário de associação livre foram agrupadas segundo os sentidos associados à IR. Proporcionalmente, é possível afirmar que pessoas com religião fizeram mais associações de IR ligadas às RAb’s do que as pessoas sem religião. Estes sentidos, em geral, remetem a uma dimensão histórica das relações entre o Catolicismo dominante e as religiões minoritárias. Segundo Domezi (2015), as práticas ritualísticas e crenças, tanto de indígenas quanto dos escravos africanos eram consideradas mentiras e engodos do demônio, orientados para o mal e a perversidade, conteúdos que também emergiram nas justificativas. Para os colonizadores, as práticas africanas deveriam ser, portanto, sistematicamente reprimidas ou submetidas à catequização. Na análise das justificativas, estes sentidos de malignidade e maldade foram permeados por preconceitos historicamente arraigados:

Eu não entendo dessas religiões. Foi difícil para falar delas. Só acho que eles só trabalham para o mal. Não tenho conhecimento de nenhuma pessoa que conviva nesse meio que esteja com Deus no coração. Sempre estão em perturbações, conflitos, enfim com falta de amor no coração. Deus é bom sempre. Amém. (s1feb) a1

Macumba para mim é algo que fazemos para prejudicar outro, porque fui criada dessa forma, não considero uma religião. Umbanda e candomblé são algo que envolve espírito em um terreno, espíritos que são considerados santos que são parecidos com o catolicismo. E xangô não conheço, não posso falar sobre. (s9fsc)

No segundo exemplo, a palavra religião faz referência às RAb’s não se constituindo como religião. Em outros extratos de justificativas os participantes fizeram esta mesma afirmação apenas em determinados termos indutores, tais como macumba e xangô:

Quando vi os nomes das religiões me assustei com a macumba, pois não considero ela como religião. Talvez por não ter uma visão amplificada ou pelo desinteresse de conhecer tal assunto. Macumba sempre é falada como algo que serve para fazer o mal ao próximo. Porém, as outras já não me assustaram tanto, pois sou conhecedora de tais atos, não que eu já tenha participado, mas entendo que essas ditas religiões não tenham tanta visibilidade quanto as outras. (s15fsi)

Notemos a caracterização das RAb’s como não religião e, ao mesmo tempo, práticas de maldade contra outras pessoas, como na objetivação dos termos espíritos malignos, rituais e sacrifícios nas representações sociais dessas religiões, em ambos os grupos com/sem religião. Parece haver aqui uma estrutura básica em torno da qual gravitam outros sentidos periféricos. Os achados empíricos acima elencados foram sintetizados na Tabela 1.

O grupo de pessoas autodenominadas com religião apresentou elementos representacionais mais fortemente relacionados à IR, em comparação ao grupo de pessoas autodenominadas sem religião. Isto nos sugere que o pertencimento religioso institucional parece tornar seus integrantes mais propensos à IR. Diante disso, uma questão pertinente nos impõe a reflexão: como se explica que pessoas com religião apresentem mais elementos relacionados à IR do que pessoas sem religião? Uma das explicações possíveis é que a pertença social é um dos mais importantes elementos que aportam a constituição das identidades dos sujeitos e que reverbera nas identidades religiosas. O sentimento de pertencimento grupal recebe importante incentivo das religiões institucionalizadas tradicionais, como o Catolicismo, mas também nos discursos de segmentos religiosos de origem contemporânea, como o Pentecostalismo e o Neopentecostalismo.

Podemos refletir que não é sem razão que comunidades e segmentos religiosos têm se difundido no Brasil e no mundo. Sob a pressão de uma sociedade profundamente individualista e empobrecedora das relações humanas (Bauman, 2005), os sujeitos, neste caso, assujeitados pelos ditames do capital, parecem sentir com mais intensidade os apelos dos discursos religiosos por coesão, sentido e significado (experiências estas, em geral, vivenciadas no âmbito grupal religioso) e, dessa forma, o sentimento de unidade endogrupal recebe um significativo reforço. Ou seja, a sensação de que não se está sozinho, diante de um mundo hostil e carente de significados universais. Isto contribui para o fomento de sentimentos de exclusão para com o diferente, mas não se constitui como um fator exclusivo de incentivo ao conflito com o diferente que aparece como ameaçador.

Algumas Considerações à Guisa de Conclusão

Nas representações sociais das RAb’s, os sistemas de crenças religiosas historicamente constituídas e socialmente compartilhadas estabelecem parâmetros sócio-históricos para um conflito que é, ao mesmo tempo, antigo e atual; sobretudo, quando as crenças religiosas dicotomizam o mundo entre o bem e o mal, necessitando, dessa forma, objetivar (Moscovici, 2012) estes conceitos tão demasiadamente abstratos em facticidades mais facilmente controláveis. Isto é, a ideia de mal, no campo das crenças religiosas, necessita de um objeto social referente para que possa assim ser melhor combatido, fortalecendo, ainda mais, a unidade endogrupal (Tajfel & Turner, 1986).

Os diferentes sistemas de crenças religiosas, por mais diversos em suas configurações institucionais e plurais em suas crenças, convergem em um aspecto fundamental: a necessidade de perpetuação institucional. Se quisermos pensá-la em termos históricos e sociológicos (Berger, 1985), isto leva a criar programas de conservação e conversão de novos adeptos. Se quisermos pensar este fenômeno do ponto de vista da lógica interna dos grupos religiosos, o que se percebe é que a cosmovisão que apoia as práticas de seus membros (sobretudo, nas religiões monoteístas, representadas no estudo pelo grupo com religião) enquadra os seus desafios em termos escatológicos, isto é, dentro de um contexto de mal/perdição ou bem/salvação, em que as pessoas são forçadas a escolher. Assim, é intrínseco ao monoteísmo o proselitismo e, com ele, a negação do direito a ser como se é.

De acordo com os sentidos simbólicos compartilhados pelos participantes da pesquisa, a salvação estaria no endogrupo e a perdição, no exogrupo. Quando este exogrupo é socialmente minoritário, mais atitudes de intolerância são fortalecidas e justificadas, ancoradas em um processo histórico de “demonização” do diferente e de exclusão de segmentos religiosos indesejados, na lógica maniqueísta de pessoas do mal versus pessoas do bem. Um aspecto da dinâmica da IR não analisado e que se constitui como um limite na pesquisa, mas que parece estar latente nas entrelinhas é se a dicotomia bem versus mal se assenta exclusivamente nos sistemas de crenças dos grupos estudados e seu pertencimento identitário ou se também é influenciada pela cor da pele dos sujeitos que professam a crença minoritária (Almeida, 2019), como emergiu em algumas das justificativas. A análise desta relação em estudos posteriores pode permitir uma melhor compreensão de como o fator raça se expressa e o quanto o racismo contribui para as manifestações de IR, preconceito e rejeição, compondo o denominado racismo religioso, dirigido às pessoas pretas das minorias religiosas de matriz africana.

Consideramos um avanço do presente estudo a abordagem da temática da IR, assunto ainda pouco explorado nas pesquisas acadêmicas, principalmente, em uma conjuntura de opressão e perseguição ideológica e religiosa que se vive atualmente na sociedade brasileira.

Notas

1 Para garantir o anonimato, as respostas dos participantes foram abreviadas: s=sujeito; f=feminino; m= masculino; eb= ensino básico sc= superior completo; si=superior incompleto; 1,2,3...=numeração atribuída aos participantes.

Referências

Abric, J-C. (1993). La recherche du noyau central et de la zone muette des représentations sociales. In J-C. Abric (Ed.), Méthodes d´études des représentations sociales: Érès: Ramonville Saint-Agne (pp. 59-80). Érès. (Traduzido por Maria de Fáltima de Souza Santos (UFPE) para uso de pesquisa) [ Links ]

Almeida, S. (2019). Racismo estrutural. Pólen Produção Editorial Ltda. [ Links ]

Armstrong, K. (2016). Campos de sangue, religião e a história da violência. Companhia das Letras. [ Links ]

Bastide, R. (1985). As religiões africanas no Brasil: Contribuição a uma sociologia das interpretações das civilizações. Pioneira. [ Links ]

Bauman, Z. (2005). Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi. Schwarcz-Companhia das Letras. [ Links ]

Bardin, L. (2008). Análise de Conteúdo (4a ed.). Editora: 70. [ Links ]

Berger, P., & Lukmann, T. (2014). A construção social da realidade (33a ed.). Vozes. [ Links ]

Berger, P. (1985). O Dossel Sagrado: Elementos para uma teoria sociológica da religião. Paulina. [ Links ]

Berger, P. (2017). Os múltiplos altares da Modernidade: Rumo ao paradigma da religião numa época pluralista. Vozes. [ Links ]

Camargo, B. V., & Justo, A. M. (2013). IRAMUTEQ: Um software gratuito para análise de dados textuais. Temas em psicologia, 21(2), 513-518. http://dx.doi.org/10.9788/TP2013.2-16Links ]

Del Priore, M., & Venâncio, R. (2016). Uma breve história do Brasil (2a ed.). Planeta. [ Links ]

Domezi, M. C. (2015). Religiões na história do Brasil. Paulinas. [ Links ]

Doise, W. (2002). Da Psicologia Social à Psicologia Societal. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 18(1), 27-35. http://www.scielo.br/j/ptp/a/y94K6BGPXHq7zm6HdnhrFMt/?lang=ptLinks ]

Doise, W., & Valentim, J. P. (2015). Levels of Analysis in Social Psychology. In J. D. Wright (Ed.), International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences (Vol. 13, 2a ed. pp. 899-903). Elsevier. http://www.europhd.net/sites/europhd/files/images/onda_2/07/35th_lab/scientific_materials/doise_valentim_2015.pdfLinks ]

Fonseca, A. B., & Adad, C. J. (Orgs.). (2016). Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015): Resultados preliminares. Secretaria Especial de Direitos Humanos. https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/RelatorioIntoleranciaViolenciaReligiosaBrasil.pdfLinks ]

Geering, L. (2009). Fundamentalismo: Desafio ao mundo secular. Fonte Editorial. [ Links ]

Jodelet, D. (2001). As Representações Sociais. EDUERJ. [ Links ]

Matriz, C. & Machado, M. das D. C. (1998). Mudanças recentes no campo religioso brasileiro. Antropolítica, 5, 21-43. [ Links ]

Moscovici, S. (2010). Representações sociais: Investigações em psicologia social (5a ed.). Vozes. [ Links ]

Moscovici, S. (2012). A psicanálise, sua imagem e seu público. Vozes. [ Links ]

Pace, E., & Stefani, P. (2000). Fundamentalismo religioso contemporâneo. Paulus. [ Links ]

Pereira, M. S., & Santos, L. A. (Orgs.). (2004). Religião e violência em tempos de globalização. Paulinas. [ Links ]

Pierucci, A. F. (2004). O desencantamento do mundo: Todos os passos do conceito. Editora 34. [ Links ]

Santos Fernandes, S. C., & Pereira, M. E. (2018). Endogrupo versus Exogrupo: O papel da identidade social nas relações intergrupais. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 18(1), 30-49. https://doi.org/10.12957/epp.2018.38108Links ]

Silva, V. G. (Org.). (2015). Intolerância religiosa: Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. EDUSP. [ Links ]

Sherif, M. (1983). Psicologia social dos conflitos grupais e cooperação. Routledge. [ Links ]

Tajfel, H., & Turner, J. C. (1986). The social identity theory of intergroup behaviour. In S. Worchel & W. G. Austin (Eds.), Psychology of Intergroup Relations (pp. 7-24). Nelson-Hall. [ Links ]

Villasenor, R. L. (2011). Crise institucional: Os sem religião de religiosidade própria. Revista do Núcleo de Estudos de Religião e Sociedade (NURES), (17), 1-13. https://revistas.pucsp.br/index.php/nures/article/view/5517Links ]

Wachelke, J., & Wolter, R. (2011). Critérios de Construção e Relato da Análise Prototípica para Representações Sociais. Psicologia: Teoria e Pesquisa. 27(4), 521-526. https://www.scielo.br/pdf/ptp/v27n4/17.pdfLinks ]

Wedderburn, C. M. (2003). Novas bases para o ensino da história da África no Brasil. In Educação anti-racista (134-142). SECAD. https://www.alex.pro.br/africa1.pdfLinks ]

Recebido: 29 de Junho de 2021; Revisado: 16 de Agosto de 2022; Aceito: 03 de Abril de 2023

Endereço para correspondência Fernando Antônio da Silva Rua José Barbosa de Souza, 137, Centro, Feira Nova - PE, Brasil. CEP 55715-000, Endereço eletrônico: fernando_psi@outlook.com

Fatima Maria Leite Cruz Avenida Beira Rio, 1091 apto 502, Madalena, Recife - PE, Brasil. CEP 50610-100, Endereço eletrônico: fatima.cruz@ufpe.br

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.