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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versión On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.3 São João del-Rei sept./dic. 2016

 

"Escuta no pátio": cuidado e vínculo como práticas de redução de danos

 

"Hearing on the patio": providing care and bonding as harm reduction practices

 

"Escucha en el patio": cuidado y vínculo como prácticas de reducción de daños

 

 

Isabela Saraiva de QueirozI; Ôni Márcia JardimII; Mariana Gonçalves de Deus AlvesIII

IDoutora em Psicologia Social (UFMG). Professora Adjunto IV - Faculdade de Psicologia (PUC Minas). E-mail: isabelasq@gmail.com
IIPsicóloga (PUC Minas - São Gabriel). E-mail: onimarcia_21@hotmail.com
IIIGraduanda em Psicologia (PUC Minas - São Gabriel). E-mail: mariana.gda@hotmail.com

 

 


RESUMO

O artigo trata de uma proposta de prática de estágio supervisionado na área da Psicologia realizada em um CAPS ad, denominada "Escuta no pátio". Para fundamentá-la, apresenta o paradigma proibicionista e sua influência na constituição das intervenções direcionadas às pessoas que usam drogas, fundamentadas prioritariamente no discurso jurídico-moral e nos dispositivos de criminalização e medicalização, e discute o paradigma da redução de danos e as possibilidades de construção de intervenções singulares e cidadãs, que inspiram a proposta de estágio em questão. A metodologia de "Escuta no pátio", orientada pelos pressupostos da atenção integral à saúde e da clínica ampliada, é apresentada como dispositivo de cuidado, que oferece uma escuta qualificada por meio de conversas individuais e coletivas não agendadas, demandadas espontaneamente pelos usuários. Conclui-se que o uso de tecnologias relacionais no cuidado em saúde tende a potencializar o exercício do acolhimento e do vínculo, o que amplia a eficácia das ações, ao favorecer a participação do usuário e seu engajamento na elaboração de estratégias de cuidado e preservação.

Palavras-chave: Uso de drogas; redução de danos; cuidado em saúde; tecnologias relacionais.


ABSTRACT

This paper presents a proposal ofa supervised internshipin Psychology carried out at a CAPS ad (Center for Psychosocial Attention, Alcohol and Drugs) named "Hearing on the patio". To substantiate this practice we present the prohibitionist paradigm and its influence on the constitution of interventions for drug users, initially grounded on the moral-legal speech and the devices of criminalization and medicalization, and then we discuss the harm reduction paradigm and the possibilities of creating individualized, humane interventions, which inspired this internship proposal. The methodology hereby adopted is oriented by the assumptions of integrated health care and expanded clinic, and presented as a care mechanism that provides a high quality hearing service through both individual and in-group unscheduled conversations, spontaneously requested by the users. We observed that the usage of relational technologies in health care tends to strengthen acceptance and bonding, amplifying the effectiveness of the actions by favoring users' participation and their engagement at the elaboration of care and preservation strategies.

Keywords: Drug use; harm reduction; health care; relational technologies.


RESUMEN

El articulo trata de una propuesta de pasantía supervisada en el área de Psicología, realizada en un CAPS ad, denominada "Escucha en el patio". Para fundamentarla, se presenta el paradigma prohibicionista y su influencia en la constitución de las intervenciones direccionadas a las personas que usan drogas, basadas prioritariamente en el discurso jurídico-moral y en los dispositivos de criminalización y medicalización, y discute el paradigma de la reducción de daños y las posibilidades de construcción de intervenciones singulares y ciudadanas, que inspiran la propuesta de pasantía en cuestión. La metodología de "Escucha en el patio" orientada por los principios de la atención integral a la salud y de la clínica ampliada, es presentada como dispositivo de cuidado, que ofrece una escucha cualificada a través de conversaciones individuales y colectivas no agendadas, demandadas espontáneamente por los usuarios. Se concluye que el uso de tecnologías relacionales en el cuidado de la salud, tiende a potencializar el ejercicio del acogimiento y del vínculo, lo que amplía la eficacia de las acciones, al favorecer la participación del usuario y su compromiso en la elaboración de estrategias de cuidado y preservación.

Palabras claves: Uso de drogas; reducción de daños; cuidado en la salud; tecnologías relacionales.


 

 

O paradigma proibicionista e sua influência na constituição das intervenções direcionadas às pessoas que usam drogas

O uso de drogas faz parte da história humana. Em todas as sociedades e épocas, existe registro da utilização de drogas, de diversas formas e com as mais diferentes finalidades: em rituais, atos sagrados, práticas curativas ou mesmo por razões recreativas e lúdicas (Escohotado, 2005). A emergência do "problema das drogas", contudo, é recente em termos históricos, sendo somente no século XX que o uso de drogas se torna uma preocupação social. Foi há aproximadamente 100 anos que as resoluções da Primeira Conferência Internacional do Ópio, realizada em Haia, em 1912, inaugurou o paradigma orientador das concepções gerais sobre drogas que vigoraria até os dias atuais, o paradigma proibicionista (Fiore, 2012). Um dos marcos da consolidação desse paradigma foi a Convenção Única sobre Entorpecentes, coordenada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1961. Patrocinada e sediada pelos Estados Unidos da América (EUA), implantou globalmente o paradigma proibicionista no seu formato atual, estabelecendo uma "luta contra o flagelo das drogas" e punindo quem as produzisse, vendesse ou consumisse (Fiore, 2012).

A justificativa social e econômica para a emergência do paradigma proibicionista remonta ao fim do século XVIII. Antônio Escohotado (2005), em sua obra História general de las drogas, conta que no Antigo Regime a presença de álcool e derivados de ópio em composições medicamentosas e tônicos alimentares era altamente disseminada. Esse período, conhecido pelo que o autor chama de liberalismo farmacológico, foi marcado por grandes avanços da química farmacêutica, com a descoberta de novas drogas e sua difusão em diversos produtos. Uma reação antiliberal a esse estado de coisas tem início, contudo, no fim do século XVIII, e passam a ser estabelecidos controles específicos para a produção, comercialização, prescrição e uso de drogas. Segundo Escohotado (2005, p. 493-494), cinco principais fatores podem ser considerados decisivos para o estabelecimento dessa reação antiliberal: o ressurgimento do elemento religioso tradicional no mundo anglo-saxão; as tensões sociais produzidas pelo rápido processo de proletarização e industrialização, combinado com o surgimento de grandes concentrações urbanas; a evolução do empreendimento médico-terapêutico, que herdava competências trazidas do empreendimento eclesiástico; a expansão da burocracia administrativa, marcada pela transição do Estado teocrático ao médico-terapêutico, que passa a assumir funções e serviços antes confiados à sociedade civil, como a assistência aos pobres, loucos, órfãos e alcóolicos; e, por último, a guerra do ópio, promovida pela Inglaterra contra a China, que cria uma importante coleção de estereótipos e define novas pautas coloniais. A soma desses elementos caracterizou a mudança de status das drogas, passando de produtos de consumo incentivado a produtos proibidos. Segundo Escohotado (2005), de modo geral, o estabelecimento da proibição atendeu interesses econômicos e de legitimação social de uma classe médica organizada que assumia um maior poder no Estado e uma função reformadora e moralizadora da sociedade.

Fiore (2012) também sintetiza esse cenário apresentando as principais motivações históricas que contribuíram para o fortalecimento e manutenção do empreendimento proibicionista em todo o mundo: "a radicalização política do puritanismo norte-americano, o interesse da nascente indústria médico-farmacêutica pela monopolização da produção de drogas, os novos conflitos geopolíticos do século XX e o clamor das elites assustadas com a desordem urbana" (p. 9). Por fim, complementando o quadro, para Becker (2008), a legitimidade da proibição do uso de drogas foi garantida por três valores: a defesa do autocontrole, a desaprovação da busca do êxtase como fim em si e o humanitarismo dos então reformadores.

Ainda que seja reconhecida a importância do pioneirismo dos EUA na universalização do paradigma proibicionista, foram as convergências locais que garantiram que ele se tornasse uma realidade global. Nesse sentido, Valença (2010) aponta que a estigmatização das drogas e particularmente da maconha no Brasil seguiu o modelo racializado empregado nos EUA durante o século XIX. Segundo Adiala (2011),

o início da repressão à maconha no Brasil coincidiu com a repressão aos grupos marginalizados, negros e migrantes que ocuparam as encostas dos morros do Rio de Janeiro, e acabou por justificar a repressão policial contra essa população. Esta repressão esteve relacionada ao discurso médico eugenista da época e às propostas de controle racial. (p. 25)

Desse modo, no Brasil, a proibição da maconha, droga historicamente estigmatizada por estar diretamente associada às manifestações culturais da população negra, foi oficializada em 1932, cinco anos antes do mesmo ocorrer nos EUA (Fiore, 2012).

O proibicionismo passou, então, a regular a compreensão contemporânea sobre o uso de drogas, estando focado de modo especial em um grupo específico de substâncias. Sobre isso, cabe lembrar que o conceito farmacológico de droga é bastante amplo, conforme sugere a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS): "substância não produzida pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas produzindo alterações em seu funcionamento." (OMS, como citado em Brasil, 2012). Também conforme Simões (2008), tecnicamente, o termo "droga" serve para designar amplamente qualquer substância que, por contraste ao "alimento" não é assimilada imediatamente como meio de renovação e conservação pelo organismo, e que desencadeia no corpo reações tanto somáticas quanto psíquicas, de intensidade variável, mesmo quando absorvida em quantidades reduzidas. Se essas substâncias modificam o estado de consciência, de humor ou o sentimento das pessoas passam a ser designadas como "substâncias psicoativas". No entanto, não obstante a grande amplitude conceitual apresentada, o termo "droga" historicamente vem sendo utilizado para referenciar especialmente três tipos de substâncias e/ou plantas, eleitas como alvos privilegiados do paradigma proibicionista: papoula/ópio/heroína, coca/cocaína/crack e cannabis/maconha/haxixe (Fiore, 2012). Foi, portanto, a esse conjunto de substâncias que o termo "droga" passou a ser aplicado, integrando a linguagem comum e definindo os contornos de práticas sociais e de saúde.

Vê-se com isso que os desdobramentos do proibicionismo foram muito além das convenções e legislações nacionais:

O proibicionismo modulou o entendimento contemporâneo de substâncias psicoativas quando estabeleceu os limites arbitrários para usos de drogas legais/positivas e ilegais/negativas. Entre outras consequências, a própria produção científica terminou entrincheirada, na maior parte das vezes, do lado "certo" da batalha, ou seja, na luta contra as drogas. (Fiore, 2012, p. 9, grifo nosso).

Nesse sentido, segundo Escohotado (2005), foram estabelecidas - ainda no começo dos anos 1960 - as primeiras propostas de tratamento do usuário de drogas proibidas, o que já exigia que ele fosse concebido como doente e criminoso. Estavam, desta maneira, postas as bases para uma colaboração entre os poderes repressivos e a ciência social em sentido amplo, entendendo-se que com ajuda de psicólogos, sociólogos, antropólogos, assistentes sociais, economistas, estatísticos e outros profissionais seria possível compreender e prevenir o uso de substâncias ilícitas.

Assim, o discurso dominante sobre as drogas na sua busca de abstinência vem sendo contado e repetido. Modificou-se em aparência, modernizou-se para continuar sendo o mesmo. O perigo da experiência que se generaliza sugere a necessidade de campanhas, nas quais o medo, o terror, é considerado fator fundamental de proteção individual e coletiva. O procedimento do comentário busca o controle do aleatório, nega a autonomia, considerada um risco, prevenido pela repetição de palavras de ordem que, na sua estreiteza, não ensinam o sujeito a avaliar os riscos e a deliberar. (Acselrad, 2000, p. 163-164).

Desse modo, a atuação profissional direcionada ao usuário de drogas foi construída a partir de uma visão de sujeito marcada pelas noções de periculosidade, doença e desvio social. Sobre isso, Gilberto Velho (1987), em seu estudo clássico sobre duas categorias de acusação na cultura brasileira - subversivo e drogado -, mostrou como a visão sobre os usuários de drogas avançou da noção de desvio para uma trama mais complexa de representações notadamente marcadas por discursos predominantemente morais.

Do mesmo modo, Maria Lúcia Karam (2000), membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e da Associação Juízes para a Democracia, argumenta que sentimentos de medo e insegurança, somados ao mistério e fantasia que cercam o tema das drogas qualificadas de ilícitas, as apressadas e muitas vezes falsas informações associadas às ameaças do fenômeno conhecido como criminalidade organizada, e o superdimensionamento das eventuais repercussões negativas da disseminação da oferta e demanda de/por drogas, provocam a busca dos rigores da repressão, da maior intervenção do sistema penal, como alternativa, segundo a autora, tão palpável quanto irreal de solução. (p. 151).

Nesse cenário, é construído um modelo de prevenção e intervenção com usuários de drogas ilícitas que toma emprestadas características próprias do tratamento de doenças infecciosas:

A noção da droga como um produto-vetor que invade o sujeito-paciente, em um ambiente favorável à sua multiplicação - oferta poderosa, banalização do consumo - afirma a noção de sujeitos frágeis, dando origem às campanhas de "vacinação" que seguem o mesmo princípio de "tentar proteger indivíduos indefesos", ajudá-los a resistir. [...] Essa linguagem ajuda a construir uma imagem negativa da própria condição de existência do usuário como alguém que ameaça a tranquilidade coletiva. (Acselrad, 2000, p. 165).

Na tentativa de impedir ou suspender o uso de drogas, as intervenções se tornaram, então, prioritariamente baseadas nos modelos jurídico-moral e de doença, nos quais o usuário é considerado vulnerável e vítima passiva de um contexto permissivo e desagregador, ou de uma doença incurável, nomeada como "dependência química".

Nessa conjuntura, como os efeitos do uso de drogas são considerados sempre trágicos, as intervenções têm caráter diretivo, sendo a vontade do sujeito, fundamental num processo de educação democrática, considerada um obstáculo a ser transposto. Desse modo, tornaram-se raros os programas direcionados ao usuário de drogas que levavam em conta suas diferentes formas de uso: experimental, ocasional, habitual, dependente - essa última, sem dúvida, de manejo complexo. Além disso, costuma ser significativa a atribuição individualizada de responsabilidades e muito raramente promove-se uma discussão sobre a influência do nosso modelo de sociedade no uso abusivo de drogas. As bases estruturais da sociedade, nas quais se localizam os determinantes do processo saúde-doença, têm sido pouco consideradas, havendo uma ênfase excessiva no esforço individual de adesão a escolhas saudáveis como o foco das ações preventivas.

O panorama traçado acima nos possibilita discernir os contornos de um modelo de atenção à saúde de usuários de drogas, que se instituiu no interior do paradigma proibicionista e predominou até o início do século XXI, fundamentado prioritariamente no discurso jurídico-moral, que estabelece modos de vida tidos como corretos e dignos de manutenção, pautados numa visão dicotômica que define os limites entre normalidade e anormalidade. Esse modelo de atenção estabelece como critério de saúde e, por consequência, de "cura" da chamada dependência química, a abstinência de quaisquer drogas, associada a uma mudança comportamental com vistas à adoção de um "estilo de vida saudável". Nele, qualquer retomada do uso de drogas é vista como um fracasso, promovendo a necessidade de retorno dos sujeitos ao tratamento, o que, não raro, leva a um ciclo de reinternações. Além disso, não são discutidas estratégias de redução de danos, nem considerados válidos arranjos pessoais construídos pelo próprio sujeito para lidar com seu uso de drogas.

 

O paradigma da redução de danos: do direito à saúde aos movimentos antiproibicionistas

Na contramão das ideias proibicionistas, temos visto emergir as condições para o surgimento de uma outra concepção sobre uso de drogas, pautada pelas propostas do paradigma da redução de dados e pelos princípios da educação para a autonomia. Esses princípios envolvem, de modo geral, tratamento igual a drogas lícitas e ilícitas, não imposição da abstinência como única meta aceitável, avaliação e consideração dos riscos reais decorrentes do uso de drogas, e compreensão ampliada das fragilidades individuais e coletivas presentes.

Segundo Marlatt (1999), antes de se tornar um conceito e uma estratégia científica a redução de danos deu-se como movimento político. Por volta dos anos 1970, na Holanda, vinha sendo estruturada uma política nacional tolerante às drogas. Especificamente no ano de 1972, antes mesmo da emergência da epidemia de AIDS, houve a publicação de um documento pelo Comitê de Narcóticos, no qual ficou concluído que "as premissas básicas de uma política de drogas deveriam ser congruentes com a extensão dos riscos envolvidos no uso das mesmas" (Marlatt, 1999, p. 31), o que convergia para a aplicação de intervenções via redução de danos. Tal política, segundo Reale (1997), refletia o princípio implícito de que o que deveria estar no centro das ações nesse campo não era mais a erradicação do uso da droga, mas a minimização do seu dano.

Concomitantemente a esse processo de desenvolvimento e implementação de uma política holandesa tolerante às drogas, no início dos anos de 1980, nesse mesmo país, um grupo de usuários preocupados com o aumento do número de casos de hepatite e com a possibilidade de limitação no acesso a agulhas e seringas, organizou-se no sentido de obter, por meio da troca, equipamentos estéreis. A partir de então, pela auto-organização desses usuários numa espécie de "sindicato para usuários de drogas pesadas", chamado Junkiebond(Liga de Dependentes) (Marlatt, 1999), houve um impulso para a geração de novas organizações de usuários de drogas locais, o que culminou na viabilização de propostas de redução de danos em conjunto com o estado holandês. O ponto de partida da Junkiebond era zelar pelos interesses dos usuários de drogas, sendo que o mais importante era combater a sua deterioração. A participação dos usuários associados à Junkiebond levou à implantação do primeiro programa de troca de seringas em Amsterdã, em 1984.

Enquanto isso, em Liverpool, Inglaterra, as estratégias de redução de danos como prática de saúde pública instituída encontravam sustentação. Segundo Marlatt (1999), a partir de 1985, os dependentes passaram a dispor de uma grande variedade de serviços, incluindo: troca de seringas e educação em sua comunidade; prescrição de drogas como heroína e cocaína; serviços de aconselhamento, emprego e moradia; tratamento para a dependência, incluindo internação para desintoxicação. É relevante assinalar que somente cerca de 10% dos usuários interessavam-se por um tratamento cuja meta fosse "livrar-se" do uso de drogas (Marlatt, 1999).

Segundo Reale (1997), o reconhecimento das intervenções sustentadas na redução de danos como básicas e diretivas deu-se, no contexto inglês, por intermédio de fatores intimamente vinculados à emergência da epidemia de AIDS. Para essa autora, percebe-se, claramente, uma diferença ideológica entre os dois movimentos pioneiros em redução de danos, ou seja, o modelo de Liverpool, Inglaterra, o qual se estrutura a partir de justificativas que legitimam a necessidade de intervenções alternativas e eficazes no âmbito da saúde pública, e o modelo holandês, que se funda numa articulação social entre organizações governamentais e um grupo específico da sociedade civil organizada, o que dá a este um cunho muito mais político e ao de Liverpool um cunho mais científico.

A primeira iniciativa de criação de um Programa de Troca de Seringas (PTS) no Brasil se deu em Santos, em 1989, pela Secretaria Municipal de Saúde. Essa iniciativa correspondia à intenção de implantação de uma série de estratégias de redução de danos voltadas aos usuários de drogas injetáveis na cidade de Santos, uma vez que, nessa época, os índices de infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) entre os Usuários de Drogas Injetáveis (UDI) eram os maiores registrados no país, tendo atingido 59% em 1992 e 65% em 1993 (Reale, 1997). Contudo, restrições legais foram impostas pelas autoridades judiciais locais, o que fez com que o programa deixasse de fazer troca de seringas, mantendo, não obstante, as demais ações de prevenção do HIV, especialmente entre usuários de drogas injetáveis (ao invés de troca de seringas, passou a ser feita a lavagem de seringas com hipoclorito de sódio).

O primeiro PTS, oficialmente financiado pelo Ministério da Saúde, foi o Projeto de redução de danos entre usuários de drogas injetáveis, implementado em Salvador, em abril de 1995. Esse programa, diferentemente do de Santos, não teve problemas com a justiça local, graças a um conjunto de articulações que são específicas de cada realidade geo-política-social. No caso de Salvador, acredita-se que a boa aceitação das autoridades locais deu-se, principalmente, pelo fato de o programa estar associado a uma instituição universitária de tratamento da dependência e prevenção do uso de drogas, sendo um dos centros de referência nacional no assunto - Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas da Universidade Federal da Bahia (CETAD/UFBA). Esse projeto mostrou à imprensa e à sociedade que o trabalho com redução de danos pode trazer resultados positivos, dando credibilidade para a implantação de programas em outros estados do Brasil (Reale, 1997). Atualmente, a redução de danos constitui a abordagem preventiva oficial pela qual a epidemia de AIDS vem sendo enfrentada no Brasil (Brasil, 1996).

Importa lembrar que a redução de danos não é apenas uma alternativa à abstinência no tratamento do uso problemático de drogas, antes, trata do manejo seguro de uma ampla gama de comportamentos de alto risco e dos danos associados a eles. Nesse sentido, o importante na redução de danos não é se determinado comportamento é bom ou ruim, certo ou errado, mas se é seguro ou inseguro (Marlatt, 1999). Em síntese, adotar condutas de redução de danos pressupõe que suportemos a ideia de vivermos fora do campo dos ideais, encontrando formas alternativas de diminuir os prejuízos que podem ser gerados a partir de um determinado comportamento.

Em 1996, foi fundada a Associação Brasileira de Redutores de Danos (ABORDA), com a função de capacitar e articular Programas de Redução de Danos (PRDs) em todo o Brasil. Foram, então, criadas diversas Organizações Não Governamentais (ONGs) a partir da mobilização de redutores de danos e usuários de drogas, o que promoveu maior autonomia na gestão das políticas locais. Conforme Passos e Souza (2011),

Por serem, inicialmente, aparelhos estatais, os PRDs encontravam-se inseridos num contexto institucional que impunha obstáculos à nascente militância dos redutores de danos e usuários de drogas. A militância política forçou a criação de espaços de gestão "exteriores" ao próprio Estado, como as associações, nas quais os usuários de drogas viam a possibilidade de não serem identificados a doentes ou criminosos. [...] Redutores de danos, travestis, usuários de drogas, profissionais de saúde, pessoas vivendo com HIV, estudantes e pesquisadores criaram uma gestão democrática através de redes abertas de interação e cooperação. (p. 159).

Desse modo, enquanto algumas associações foram fundadas por redutores de danos que trabalhavam em PRDs e passaram a se organizar politicamente, outras se constituíram a partir da organização de usuários de drogas que lutavam mais especificamente pela descriminalização das drogas, numa proposta antiproibicionista.

Em A invenção do presente, Melucci (2001) diz que "os movimentos são um sinal [...] são a mensagem daquilo que está nascendo" (p. 21). Dessa forma, eles vêm indicar uma transformação na lógica e nos processos que guiam as sociedades complexas, anunciando aquilo que está se formando "sem que ainda disso esteja clara a direção e lúcida a consciência". Para ele, "os movimentos contemporâneos anunciam a mudança possível, não para um futuro distante, mas para o presente da nossa vida" (p. 21). Podemos entender a partir disso o lugar ocupado pelos movimentos dos usuários de drogas, seja na Holanda, seja nas ONGs de redução de danos, qual seja, o de anunciadores de uma nova forma de pensar o uso de drogas, inaugurando uma nova abordagem, alternativa aos modelos tradicionais fundamentados na abstinência.

Na América Latina, um novo movimento de usuários começou a ser articulado em 2012, a Rede Latino-Americana de Pessoas que Usam Drogas (LANPUD), que, com o apoio da Rede Internacional de Pessoas que Usam Drogas (INPUD), do Centro Brasileiro de Política de Drogas - Psicotropicus, da Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos (ABESUP) e do CETAD/UFBA, realizou no mesmo ano, em Salvador, sua reunião inaugural. Segundo os organizadores, "a necessidade de se estabelecer uma rede como esta deriva do fato de que nenhum grupo de pessoas oprimidas jamais alcançou libertação sem o envolvimento daqueles diretamente afetados por esta opressão." (LANPUD, 2012). Os ativistas internacionais usuários de drogas já haviam se pronunciado de forma organizada no ano de 2006, quando, em Vancouver, no Canadá, explicitaram na declaração "Por que o mundo precisa de uma rede internacional de ativistas que usam drogas" seus princípios e reivindicações:

Somos usuários de drogas de todas as partes. Somos pessoas que foram marginalizadas e discriminadas, mortas, prejudicadas sem necessidade, colocadas na prisão, descritas como pessoas do mal, estereotipadas como perigosas e desnecessárias. Chegou agora a hora de erguermos nossas vozes como cidadãos, estabelecer nossos direitos e reivindicar o direito de sermos nossos próprios porta-vozes [...] por meio de ações coletivas, lutaremos para mudar a legislação local, nacional, regional e internacional sobre drogas e formular uma política de base científica que respeite a dignidade e os direitos humanos, em vez de uma política de drogas alimentada por moralismos, estereótipos e mentiras. (Os ativistas, 2006).

É justamente essa elaboração cotidiana de significados alternativos da conduta individual e coletiva que caracteriza a atividade principal das redes de movimentos contemporâneos. Segundo Melucci (1999), esses movimentos têm como função principal revelar o que o sistema social não diz de si mesmo. "Os movimentos declaram que a estrutura que o poder propõe como solução dos problemas, não só não é a única solução possível, mas esconde interesses específicos e um núcleo de poder arbitrário e de opressão" (p. 64, tradução nossa). O anúncio que os movimentos sociais nascidos no interior do paradigma da redução de danos fazem, então, é o da possibilidade de haver outras estratégias de abordagem ao uso de drogas que não aquela fundamentada exclusivamente na repressão, exclusão e associação imediata a problemas médicos.

 

Política pública sobre drogas: dos dispositivos de criminalização e medicalização às possibilidades de construção de intervenções singulares e cidadãs

A questão das drogas não se estabelece apenas sob normasrepressivas, sendo também produzida por um conjunto de saberes positivos que fundam sua própria existência como uma questão contemporânea. Fiore (2002) utiliza o conceito de dispositivo, desenvolvido por Foucault (1988), para dizer que não há a materialização de um saber soberano nas instituições de controle, mas a existência de um conjunto de saberes constituídos por meio de práticas discursivas regidas por um dispositivo composto por dois elementos principais: a medicalização e a criminalização (Fiore, 2002). Essas duas concepções participam do dispositivo simultaneamente, orientando a produção de saberes e o debate público sobre drogas.

O termo "dispositivo" surge em Foucault na década de 1970 e designa inicialmente "operadores materiais do poder, isto é, técnicas, estratégias e formas de assujeitar desenvolvidas pelo poder." (Revel, 2011, p. 43). A utilização da noção de "dispositivos" - de poder, de saber, disciplinares, de sexualidade - foi engendrada a partir de uma escolha metodológica de Foucault, qual seja, a de não tratar do edifício jurídico da soberania, em torno dos aparelhos do Estado e das ideologias que o acompanham, mas dos seus mecanismos de dominação (Foucault, 1979).

Nesse sentido, Foucault (2010) distingue o pensamento médico do pensamento jurídico, esclarecendo seu modo de funcionamento:

Por pensamento médico entendo uma maneira de perceber as coisas que se organiza em torno da norma, quer dizer, que tenta dividir o que é normal do que é anormal, que não é, justamente, o lícito e o ilícito; o pensamento jurídico distingue o lícito e o ilícito, o pensamento médico distingue o normal e o anormal; ele se dá, ele procura, também, dar-se os meios de correção que não são, exatamente, os meios de punição, mas meios de transformação do indivíduo, toda uma tecnologia do comportamento do ser humano, que está ligada a isso... (p. 160-161).

Mais tarde, o termo "dispositivo" recebe uma acepção mais precisa, constituindo-se como objeto de uma teorização completa em que a expressão "dispositivo da sexualidade" é central. Um dispositivo passa a ser conceituado então como

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma: o dito e o não-dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. (Foucault, 1979, p. 244).

Para Castro (2009), a noção foucaultiana de dispositivo refere-se a "uma formação que, em um momento dado, teve por função responder a uma urgência. O dispositivo tem, assim, uma função estratégica" (Castro, 2009, p. 124), e é esse imperativo estratégico que serve como matriz para a composição dos elementos de medicalização e criminalização presentes na sua constituição. Dentre seus engendramentos, encontra-se a disseminação de suas categorias e conceitos pelo senso comum, o que faz com que haja uma convocação a uma participação compulsória da sociedade em busca de uma determinada noção do bem e da saúde comuns (Fiore, 2002). Nesse sentido, no intuito de

resguardar um distanciamento dos diversos aspectos que compõem a complexa problemática do corpo, do prazer e da normalidade, e com o pretenso objetivo de defender interesses superiores da humanidade, os discursos e pressupostos médicos foram levados ao encontro da moral e, principalmente, da bio-política. (Fiore, 2002, p. 24).

Encontra-se, desse modo, todo um aparato médico e social de controle dos corpos com vistas à produção de uma determinada noção de saúde e bem-estar conquistada às custas de uma ortopedia social: trata-se, por um lado, de constituir populações nas quais inserir os indivíduos - por meio do gerenciamento da sociedade em função de modelos normativos globais -; e, por outro lado, trata-se também de instalar um sistema de individualização que se destine a modelar cada indivíduo e a gerenciar sua existência, o que promove o duplo aspecto do controle social (governo das populações e governo pela individualização) e o inscreve como um mecanismo de aplicação do poder diferente da disciplina, uma vez que incorpora todo um conjunto de técnicas de governamentalidade (Revel, 2011, p. 28). Nas palavras de Foucault (2004): "Eu chamo de governamentalidade o encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas [de governo] de si." (p. 214).

São tais técnicas de governamentalidade que permeiam a relação dos sujeitos com as drogas, definindo, a partir dos dispositivos de medicalização e criminalização, possibilidades e interdições. Cabe ressaltar, contudo, que as tentativas de normalização por meio da disciplina e da regulação, ainda que tenham alcançado uma extensão notável, nem por isso são estáveis em sua hegemonia, tendo de enfrentar movimentos de luta e questionamento. (Castro, 2009).

O controle das drogas se articula na confluência entre dois eixos da biopolítica: a tecnologia política da vida que investe nas disciplinas do corpo, na regulação das condutas individuais, e a que se preocupa com a regulação das populações. Corpos úteis e descartáveis, "produzidos" pelas táticas de governamentabilidade podem, contudo, reclamar a posse de si. Saber que temos corpo e que ele nos pertence suscita a insubmissão; a reivindicação da posse e da decisão sobre ele são afrontas contumazes à medicalização da vida [...]. (Rodrigues, 2004, p. 322).

Os movimentos de usuários erigidos em torno das reivindicações e propostas de redução de danos exemplificam o modo como relações de força mobilizadas historicamente a partir dos dispositivos de medicalização e criminalização podem ser questionadas. Desse modo, ao colocar em cena uma diversidade de possibilidades de uso de drogas sem que os usuários sejam necessariamente identificados aos estereótipos de criminoso e doente, promove-se um deslocamento nas concepções hegemônicas sobre drogas. Fala-se, então, de

pessoas que usam drogas e não precisam de tratamento, pessoas que não querem parar de usar drogas e não querem ser tratadas, pessoas que querem diminuir o uso sem necessariamente parar de usar drogas. [...] É dentro deste eixo de problematização e produção de verdades sobre o corpo e sobre o prazer que a redução de danos abre um novo campo de possibilidades clínicas, políticas e existenciais. (Passos & Souza, 2011, p. 157-158).

Em 2003, a política do Ministério da Saúde de Atenção Integral ao Usuário de Álcool e outras Drogas elegeu a redução de danos como estratégia de saúde pública, por meio da qual foi incentivada a criação e sistematização de intervenções com pessoas que usam drogas com o objetivo de estruturar e fortalecer a rede de assistência centrada na atenção comunitária, associada à rede de serviços de saúde e sociais, com ênfase na reinserção social dos usuários e calcada em dispositivos extra-hospitalares de atenção psicossocial especializada (Brasil, 2003). Pela primeira vez, em âmbito governamental, as ações de redução de danos foram assumidas como relevantes intervenções de saúde pública, para ampliar o acesso e as ações dirigidas a uma população historicamente desassistida de contato com o sistema de saúde. A política de Atenção Integral ao Usuário de Álcool e outras Drogas foi um importante marco institucional para a redução de danos, pois fez com que ela migrasse do campo exclusivo das políticas de DST/AIDS para se tornar uma importante diretriz na constituição dos CAPS ad1 (Passos & Souza, 2011).

A visibilidade conquistada pelos modelos de cuidado de base comunitária às pessoas que usam drogas, que se originam e se movimentam fora do espectro hospitalocêntrico ou da abstinência como única alternativa de encontrar qualidade de vida, coloca em debate questões fundamentais, como: liberdade de escolha; responsabilidade individual, familiar e social; direito do usuário à universalidade e integralidade de ações e dever do Estado de criar condições para o exercício do autocuidado; articulação de redes sociais de apoio e sua conexão com as redes informais dos usuários, dentre outras (Brasil, 2003). Adotar condutas de redução de danos na atenção ao usuário de drogas pressupõe, ainda, a aceitação de que as práticas de alteração de consciência pela via da intoxicação são intrínsecas à experimentação com a consciência humana, podendo, algumas vezes, resultar em problemas de saúde e na consequente necessidade de intervenções especializadas.

Na visão de Soares (2007), a educação para a autonomia, associada aos pressupostos da redução de danos e da saúde coletiva, propõe, portanto, uma abordagem não alarmista, humanizadora e não culpabilizadora do usuário. Essa visão rejeita a infantilização e vitimização dos usuários, considerando-os como sujeitos políticos, capazes de compreender sua realidade e construir respostas singulares, diferentes daquelas formatadas pelos padrões dominantes; e encoraja nos usuários a compreensão da determinação histórica dos processos coletivos de produção de estados de saúde-doença, com vistas ao reconhecimento das raízes dos problemas de saúde que os acometem, dentre eles, o uso abusivo de drogas. Trata-se, assim, de "instrumentalizar os grupos e as classes sociais para compreender os determinantes do processo saúde-doença, bem como o movimento social no processo de interpelação do Estado por melhores condições de trabalho e vida e por alocação adequada de serviços de saúde." (Soares, 2007, p. 137).

Assim, aposta-se na consciência crítica, na responsabilidade de cada um diante de si mesmo e do outro, como alternativa às intervenções autoritárias e repressoras, que pretendem erradicar uma prática que tem raízes na história pessoal e social (Acselrad, 2000). Trata-se, portanto, de construir junto com o usuário intervenções singulares com vistas ao desenvolvimento de práticas de autocuidado e à elaboração de estratégias de preservação no uso de drogas (Silva, 2000).

A abstinência não pode ser, então, o único objetivo a ser alcançado. Aliás, quando se trata de cuidar de vidas humanas, temos que, necessariamente, lidar com as singularidades, com as diferentes possibilidades e escolhas que são feitas. As práticas de saúde, em qualquer nível de ocorrência, devem levar em conta esta diversidade. Devem acolher, sem julgamento, o que em cada situação, com cada usuário, é possível, o que é necessário, o que está sendo demandado, o que pode ser ofertado, o que deve ser feito, sempre estimulando a sua participação e o seu engajamento (Brasil, 2003).

Cabe lembrar, por fim, que, no Brasil, o proibicionismo como paradigma orientador das práticas nesse campo ainda não foi superado, pelo contrário, segue definindo ações e políticas públicas, tais como a internação compulsória e a admissão das Comunidades Terapêuticas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Assim, o paradigma proibicionista segue coexistindo com as ações e políticas que visam a sua superação, baseadas nos princípios da redução de danos e da educação pra a autonomia.

A seguir, passaremos à discussão de uma intervenção fundamentada no paradigma da redução de danos e na construção de práticas de cuidado singulares e cidadãs, realizada no âmbito de uma prática de estágio supervisionado do curso de psicologia em um CAPS ad.

 

"Escuta no pátio": cuidado e vínculo no cotidiano de um serviço de saúde mental

A prática de cuidado no Brasil tem ganhado novos contornos nas últimas décadas, especialmente no âmbito da saúde mental, resultado da transformação histórica e política nessa área, que instaurou um novo olhar sobre a questão, voltado para a atenção psicossocial, incluindo a assistência aos indivíduos usuários de drogas. Nesse contexto, o cuidado deve ser construído com base no diálogo, criatividade e transformação social decorrente do exercício profissional (Barros, Oliveira & Silva, 2007). Mais que um ato, trata-se, portanto, de uma atitude, fundamentada na importância da construção de projetos de vida significativos para cada um, integrados às estratégias de acolhimento e exercício da cidadania.

Os profissionais nesse exercício do cuidado devem pautar suas ações na atenção e responsabilização, com atuação na perspectiva de promover "a escuta, o acolhimento, a ética, a autonomia, o resgate da cidadania, a subjetivação, o respeito, a liberdade e a inclusão social, dentre outros" (Barros, Oliveira & Silva, 2007, p. 817) e desenvolver práticas voltadas para as reais necessidades do usuário, estimulando sua consciência quanto aos seus problemas, incentivando a emancipação, ampliação da autonomia e estabelecimento do vínculo dos usuários com a instituição.

Segundo o Ministério da Saúde, pela Portaria nº 3.088 de 23/11 (Brasil, 2011), a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas deve ser constituída por equipe multiprofissional responsável por um conjunto de ações de saúde, em todos os níveis de atenção, de âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde, com o objetivo de desenvolver a atenção de maneira integral, de modo que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas. Privilegia o cuidado em dispositivos como os CAPS ad, que oferecem acompanhamento diário pautado na lógica da redução de danos, com planejamento terapêutico singular, de forma individualizada e evolução continuada.

É no âmbito de um CAPS ad que a proposta aqui apresentada está sendo desenvolvida, por meio de prática de estágio supervisionado do curso de Psicologia, cujo objetivo é a inserção de acadêmicos na discussão teórico-prática e histórico-política sobre o uso abusivo de álcool e outras drogas, e o desenvolvimento de intervenções psicossociais em dispositivos do SUS.

A unidade de saúde onde o estágio está sendo realizado conta com amplo espaço físico, infraestrutura adequada e equipe multiprofissional (psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, enfermeiro, clínico geral, psiquiatra, redutor de danos e equipe de enfermagem). O atendimento prestado no CAPS ad inclui três modalidades, ambulatorial, permanência dia (PD) e hospitalidade noturna (HN). A partir do estabelecimento de um vínculo de confiança com a instituição e os profissionais que nela atuam, estratégias como atendimentos individuais, orientações educativas e de autocuidado, fornecimento de preservativos e outros insumos, oficinas em grupo, são utilizadas para a abordagem ao usuário, com vistas à minimização dos efeitos danosos do uso abusivo de drogas em sua saúde. Desse modo, o CAPS ad, por meio da equipe multiprofissional, da transdiciplinaridade e da rede intersetorial de apoio assistencial, oferece atendimento integral aos usuários com vistas à sua reabilitação psicossocial.

A intervenção desenvolvida no estágio orienta-se pelo referencial teórico e metodológico que versa sobre atenção integral à saúde e clínica ampliada. Nomeada como "Escuta no pátio", consiste na oferta de uma escuta qualificada a usuários do serviço em diversos espaços da unidade de saúde, especialmente, no pátio. Por meio de conversas individuais e coletivas não agendadas, demandadas espontaneamente pelos usuários, são abordadas questões que contemplam dimensões pessoais, relações afetivas e familiares, bem como dimensões sociais e políticas, no campo do trabalho, da justiça e da circulação por instituições.

 

Discussão: a tecnologia das relações como dispositivo de atendimento humanizado

Pensar nas tecnologias relacionais como dispositivo de atendimento humanizado requer antes de tudo analisar o que se entende por humanização. Heckert, Passos e Barros (2009) definem humanização como tratar com respeito, carinho, educação, empatia; colocar-se no lugar do outro e aceitá-lo; acolher; dialogar; ser tolerante; aceitar as diferenças, em suma, resgatar a dimensão humana nas práticas de saúde. Já Fortes e Martins (2000) comparam humanização com reconhecimento, ou seja, reconhecer o usuário que busca os serviços de saúde como sujeito de direitos, observando-o em sua individualidade, ampliando assim as possibilidades para que ele possa exercer sua autonomia.

Desse modo, humanizar os serviços de saúde implica em transformar o próprio modo como se concebe o usuário, ou seja, de objeto passivo a sujeito; de necessitado de atos de caridade àquele que exerce o direito de ser usuário de um serviço de saúde que garanta ações técnicas e políticas, eticamente seguras, prestadas por trabalhadores responsáveis. O enfoque à saúde apresenta-se, assim, numa dimensão ampliada, relacionada às condições de vida inseridas em um contexto sociopolítico e econômico. (Marques & Souza, 2010).

Criar uma cultura de humanização, com base em práticas acolhedoras, implica, portanto, em profunda valorização do potencial humano e compreensão de equipe, de modo que todos os membros da coletividade sintam-se beneficiados e beneficiários. Nota-se, desse modo, a premência de estimular um ambiente de cuidado que envolva gestão, equipe de saúde e usuários, em suma, um ambiente onde todos cuidam, mas também são cuidados. (Pereira et al. 2010).

Ao propor a "Escuta no pátio", investimos na elaboração do vínculo como tecnologia leve no cuidado orientado ao usuário de álcool e outras drogas. O uso de tecnologias relacionais como dispositivo de atendimento responde à proposta de Merhy (2007), que afirma que o cuidado em saúde deve ser estruturado a partir do que ele nomeia como tecnologias "leves". As tecnologias "leves" são as que permitem operar os processos relacionais no encontro entre profissional de saúde e usuário, como o acolhimento, o vínculo e a gestão dos processos de trabalho. A escuta se estabelece, então, como tecnologia leve, ou seja, tecnologia das relações, que permite operar os processos relacionais entre o trabalhador de saúde e o usuário, com vistas à autonomização e responsabilização.

A tecnologia leve é conceituada por Merhy (1997) como sendo

a tecnologia de (e das) relações - dos intercessores, no interior dos processos que podem gerar alterações significativas no modo de se trabalhar em saúde [...] sob uma ótica analisadora pautada pela ética do compromisso com a vida e expressa em ato nas dimensões assistenciais do trabalho vivo em saúde, como a relação de acolhimento, a criação do vínculo, a produção da resolutividade e a criação de maiores graus de autonomia no modo das pessoas andarem na vida. (p. 105).

Nesse sentido, o grande desafio e compromisso de quem realiza o cuidado é utilizar as relações como tecnologia, no sentido de edificar um cotidiano, por intermédio da construção mútua, entre os sujeitos. E, por meio dessas relações, dar sustentação à satisfação das necessidades dos indivíduos (trabalhadores e usuários) e os valorizar como potentes para intervirem na concretização do cuidado. (Rossi & Lima, 2005). Desse modo, propomos aqui que atuar com usuários abusivos de álcool e outras drogas em dispositivos abertos requer não apenas qualificação técnica, mas disponibilidade para cuidar, sendo o vínculo a força motriz da produção do cuidado com esses sujeitos, e a dimensão relacional o caminho para as mudanças nas práticas de cuidado dos profissionais de saúde. (Merhy, 2007).

Cabe aqui retomar o apontamento de Ayres (2009) sobre a necessidade de reflexão sobre o conceito de "cuidado" nas práticas de saúde, no contexto da intersubjetividade. O autor considera que cuidar da saúde de alguém é mais do que intervir com procedimentos técnicos para aplicação de um tratamento, é uma ação terapêutica que deriva de uma interação entre dois ou mais sujeitos, visando ao alívio de um sofrimento, ou o alcance de um bem-estar, sempre mediada por saberes especificamente voltados para essa finalidade. (p. 42). O autor também trabalha a noção de cuidado, de certa forma, na perspectiva relacional entre os sujeitos, sendo uma interação dialógica, ou melhor, um "encontro" que busque construir projetos de felicidade. "Cuidar da saúde de alguém é mais que construir um objeto e intervir sobre ele. Para cuidar há que se considerar, e construir, projetos". (p. 37).

Para o Ministério da Saúde (Brasil, 2004), a aproximação entre usuário e profissional de saúde promove um encontro, um e outro sendo sujeitos dotados de intenções, interpretações, necessidades, razões e sentimentos, mas em situação de desequilíbrio, de expectativas diferentes, em que um, o usuário, busca assistência em estado físico e emocional fragilizado, junto a outro, um profissional, que deve estar capacitado para entender e cuidar da causa de sua fragilidade. Assim, cria-se um vínculo, gerando ligação afetiva e ética entre ambos, numa convivência de ajuda e respeito mútuos.

A escuta se dá, portanto, num encontro, que promove vínculo e amplia a eficácia das ações de saúde, favorecendo a participação do usuário (Campos, 2002). Tal espaço deve, assim, ser utilizado para a construção de sujeitos autônomos, tanto pacientes quanto trabalhadores, pois não se constrói vínculo sem que ambos sejam reconhecidos em sua condição de sujeitos que falam, desejam e atuam no mundo.

 

Considerações finais

Apesar das limitações presentes na proposta de "Escuta no pátio", especialmente no que se refere ao curto período de tempo disponível para o seu desenvolvimento no âmbito de uma prática de estágio supervisionado e do pouco tempo passado desde a sua implementação, o que impede uma avaliação mais consistente dos seus resultados, a possibilidade de acesso a um espaço não estruturado de fala e vinculação tem representado para muitos usuários o encontro com a elaboração de novos significados possíveis à sua experiência com álcool e outras drogas.

Tal prática tem promovido o fortalecimento do vínculo do usuário com o serviço, sendo uma proposta apoiada por toda a equipe de profissionais. Ao escutá-los, sem fazer nenhuma exigência prévia à sua fala, acolhemos sua demanda de afeto e significação. É importante considerar, ainda, que o cuidado, ao contribuir para o estabelecimento do vínculo entre o usuário e o profissional, potencializa também suas relações familiares e comunitárias. A "Escuta no pátio" serve, assim, para que o próprio serviço conheça melhor as demandas dos usuários, fortalecendo o manejo de suas singularidades.

Por fim, a escuta se configura como uma forma de os usuários conhecerem a si mesmos, sendo notável o efeito terapêutico dessa oferta, especialmente nos quadros de ansiedade. Também cabe mencionar o efeito positivo do vínculo como fator de encorajamento, no que tange ao reconhecimento dos usuários de suas potencialidades para a superação dos seus problemas, e para a elaboração de estratégias de cuidado e preservação.

 

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Recebido em: 25/01/2016
Aprovado em: 06/10/2016

 

 

1 Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPS-ad), dispositivos ambulatoriais, de base territorial, que oferecem assistência especializada a usuários de drogas no âmbito do SUS.

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