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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versión On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.2 São João del-Rei jun. 2021

 

Impactos da (des)territorialização nos processos de subjetivação: experiências migratórias de refugiadas venezuelanas em Bogotá

 

Impacts of (de)territorialization on processes of subjectivation: migratory experiences of Venezuelan refugee women in Bogotá

 

Impactos de la (des)territorialización en los procesos de subjetivación: experiencias migratorias de refugiadas venezolanas en Bogotá

 

 

Núbia Vale RodriguesI; Isabela Saraiva de QueirozII; Aida Milena Cabrera LozanoIII

IGraduanda em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei. E-mail: nubiarodrigues07@hotmail.com
IIProfessora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei. E-mail: isabelasq@gmail.com
IIIProfessora do Departamento de Psicologia da Universidad Santo Tomás (Bogotá). E-mail: aidacabrera@usantotomas.edu.co

 

 


RESUMO

O presente artigo visa analisar os impactos nos processos de subjetivação de mulheres venezuelanas que, em meio ao forte fluxo migratório recente, se veem diante de um processo de (des)territorialização. Propõem-se discussões sobre elementos do sofrimento ético-político, a construção identitária e a feminização da migração, a partir da produção de narrativas, tendo a categoria de gênero como analisador fundamental de tais fluxos. As entrevistas com mulheres que se encontravam em Bogotá, Colômbia, versaram sobre as memórias da Venezuela, a motivação para a saída, o trânsito na fronteira, a chegada à cidade, as dificuldades cotidianas de adaptação, e os ecos desse processo. Ao final, a escuta dessas experiências emerge como forma de enfrentamento ao silenciamento de vozes marginalizadas e de reflexão sobre as estratégias de acolhimento que têm sido adotadas na região.

Palavras-chave: Mulheres refugiadas. Migração venezuelana. Experiências migratórias. Processos de subjetivação.


ABSTRACT

This article aims to analyze the impacts on the processes of subjectivation of Venezuelan women who, amidst the strong recent migratory flow, find themselves facing a process of (de)territorialization. Discussions are proposed about elements of ethical-political suffering, identity construction and the feminization of migration, based on the production of narratives, with the gender category as a fundamental analyzer of such flows. The interviews with women who were in Bogotá, Colombia, were about the memories of Venezuela, the motivation to leave, the border traffic, the arrival in the city, the daily difficulties of adaptation, and the echoes of this process. In the end, listening to these experiences emerges as a way of confronting the silencing of marginalized voices and reflecting on the reception strategies that have been adopted in the region.

Keywords: Refugee women. Venezuelan migration. Migratory experiences. Processes of subjectivation.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar los impactos en los procesos de subjetivación de mujeres venezolanas que, en medio del fuerte flujo migratorio reciente, se enfrentan a un proceso de (des)territorialización. Se proponen discusiones sobre elementos del sufrimiento ético-político, la construcción de la identidad y la feminización de la migración, a partir de la producción de narrativas, con la categoría de género como analizador fundamental de dichos flujos. Las entrevistas con mujeres que se encontraban en Bogotá, Colombia, versaron sobre los recuerdos de Venezuela, la motivación para la salida, el tráfico fronterizo, la llegada a la ciudad, las dificultades diarias de adaptación y los ecos de este proceso. Al final, la escucha de estas experiencias surge como forma de enfrentar el silenciamiento de las voces marginadas y reflexionar sobre las estrategias de acogida que se han adoptado en la región.

Palabras clave: Mujeres refugiadas. Migración venezolana. Experiencias migratorias. Procesos de subjetivación.


 

 

Introdução: panorama sobre migração e refúgio

Diante das grandes guerras que impactaram o cenário global no século XX, a Organização das Nações Unidas (ONU) definiu, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma série de garantias e liberdades inalienáveis e indivisíveis a qualquer ser humano. Essas teriam um caráter tão fundamental para uma existência digna que deveriam ser ratificadas em nível de proteção internacional, como o direito à segurança, saúde, educação, locomoção e liberdade. Mas havia alguma fratura. Somente três anos depois, em 1951, o art. 1º da Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados, acrescido pelo Protocolo de 1967, passou a definir os critérios para que uma pessoa fosse considerada refugiada (Lei n. 9.474, 1997), tendo como base a condição de estar fora de seu país de nacionalidade por "temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas" ou "devido à grave e generalizada violação de direitos humanos".

Tais características continuam sendo referência no Direito Internacional e na elaboração das leis nacionais de amparo ao refugiado e diferem essa categoria de outros perfis de migração. Até o fim do ano de 2019, mais de 79 milhões de pessoas foram deslocadas à força em todo o mundo, entre elas quase 26 milhões de refugiados, de acordo com o relatório Global Trends produzido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, ACNUR (The UN Refugee Agency, 2020). O que se constata no cenário atual, e de forma cada vez mais truculenta, é um significativo ataque à defesa dos direitos humanos, aqueles que seriam o alicerce de uma vida no mínimo decente.

Esse fenômeno chega às fronteiras brasileiras, mais proximamente no caso dos migrantes e refugiados venezuelanos, que já somam mais de 4,5 milhões, segundo informações da Organização Internacional de Migração (OIM) e ACNUR. A grande maioria, cerca de um 1,8 milhão de pessoas, se dirigiu à Colômbia, enquanto o Brasil recebeu número próximo dos 260 mil. De acordo com o "Informe sobre la movilidad humana venezolana" (2018), as principais causas de imigração estão ligadas à insegurança, fome, falta de medicamentos, altos níveis de estresse, desespero pelo que se sucede no país e incerteza sobre o futuro. A situação se mostra como "uma crise política convertida em uma crise econômica e que culmina, a este momento, em uma crise humanitária" (Silva, C., 2018, p. 357). Os desafios do êxodo venezuelano impõem à comunidade internacional, especialmente à América Latina, a organização de uma grande rede de apoio que inclua medidas de orientação, assistência, sensibilização e integração, em meio ainda a disputas partidárias, contradições do neoliberalismo perverso e ataques xenófobos. Todavia, no quadro político que se instaura, despendem-se mais esforços para utilizar o caos como manobra política do que para pensar essa rede.

Como parte do propósito desumanizador, a mídia, sustentada pela indústria cultural, vende uma imagem impessoal dos sujeitos migrantes. Retratam corpos vivos ou mortos (já não se faz diferenciação) presos em fronteiras, atravessando oceanos, afastados de suas famílias e casas, vistos como ameaças terroristas, invasores dos sagrados limites ocidentais civilizatórios. As lentes e telas focalizam por algum tempo Síria, Afeganistão, Sudão, Venezuela, não o suficiente para que a falácia da globalização inclusiva entre em questionamento, na qual dinheiro e mercadorias circulam livremente, enquanto se seleciona os que se sentarão para o banquete. Como assinala Martins (2002, pp. 20-21), "a vivência real da exclusão é constituída por uma multiplicidade de dolorosas experiências cotidianas de privações, de limitações, de anulações e, também, de inclusões enganadoras". Mas não se sabe sobre as histórias não editadas desses migrantes, do que lhes acontece no novo país ou de suas ligações com suas terras de origem. São milhões de experiências singulares de ser no mundo afogadas nos mares, escondidas nos abrigos, rotuladas por políticos, esquecidas nas manchetes, sufocadas em corpos em fuga. Como colocado por Sawaia (1999, p. 101), o corpo é "matéria biológica, emocional e social, tanto que sua morte não é só biológica, falência dos órgãos, mas social e ética". Qual seria o significado social e ético das milhões de mortes que assistimos acontecer de forma indiferente?

Para pensar tais questões, reconhecemos como ponto de partida fundamental a voz dos sujeitos mutilados pela objetivação desse sofrimento ético-político. A partir do registro de suas histórias, que hegemonicamente têm sido apagadas, é possível pensar sobre as subjetivações desse movimento de (des)territorialização segundo as suas próprias palavras. Na perspectiva de Glória Anzaldúa (1987), feminista chicana que se dedicou a questionar as noções de fronteira a partir das contradições na divisa entre Estados Unidos e México, a noção de território era intimamente ligada à terra geográfica e às linhas divisórias, mas não só. Aquelas terras e seus habitantes traziam consigo bagagens da memória coletiva, no movimento de reconhecimento de suas identidades e raízes. "Cada incremento de conciencia, cada paso adelante es una travesía, un cruce. Vuelvo a ser una extraña en territorio nuevo. Una y otra vez. Pero si huyo de la conciencia consciente, si me escapo de saber, no me moveré. [...] Ya no soy la misma persona que era antes" (Anzaldúa, 1987, p. 99). Para nossos fins de análise, a territorialização pode ser entendida como a apropriação de um espaço não só em seu caráter físico, mas também em sua trama simbólica, isto é, as relações, a cultura, os afetos, a construção narrativa de ser um ator em um lugar que é compartilhado por outros atores. Ser desterritorializado forçadamente, como no caso de refugiados, é ter essa rede de significações usurpada, é perder o substrato de referências no qual a identidade de um sujeito social foi fundada historicamente.

Pensando nessas identidades, optamos por, nessa investigação, vinculada ao Núcleo de Estudos em Gênero, Raça e Direitos Humanos (Negah), realizar um destaque sobre as determinações de gênero, ao considerarmos as histórias de mulheres migrantes venezuelanas. Lugones (2014, p. 939) defende que "diferentemente da colonização, a colonialidade do gênero ainda está conosco; é o que permanece na intersecção de gênero/classe/raça como construtos centrais do sistema de poder capitalista mundial". Nesse sentido, considera-se que as marcas inseridas na subjetividade de ser mulher latino-americana se somam às condições de ser mulher migrante, o que intensifica ainda mais as condições de vulnerabilidade dessas vivências. Toma-se como postura política e organizativa do processo de construção de tal investigação o feminismo decolonial, como crítica ao epistemicídio e sequestro histórico que ao longo dos séculos têm privilegiado projetos coloniais e patriarcais sobre a destruição dos sujeitos "não civilizados" ou, nos termos de Grosfoguel (2016), que têm "exterminado para logo existir".

Entretanto, não basta trazer visibilidade a essas experiências se não nos atentarmos à análise dos mecanismos históricos que, em primeira instância, as sustentaram na dialética de determinações entre objetividade e subjetividade. Trata-se de um processo que revela uma multiplicidade identitária, uma vez que se encontra alinhado às experiências vivenciadas. Nesse sentido, cabe lembrar que, ao valorizar a escuta da experiência, pode-se cair na armadilha de universalizar, fixar ou naturalizar categorias identitárias que conduzem à construção linguística da experiência, impedindo a análise do porquê tais categorias emergiram na trama social, armadilha em que recaem inclusive análises de certos feminismos, como aponta a expoente afro-dominicana do feminismo decolonial Ochy Curiel (Teixeira, Silva, & Figueiredo, 2017, p. 116).

o problema da interseccionalidade é que, por meio dela, primeiro se assume que as identidades se constroem de maneira autônoma [...] E que há um momento em que, como as utopistas, isso se intersecciona. Isso é um problema, porque, quando entendemos o Sistema Mundo Colonial, todas essas condições são produzidas pelos sistemas de opressão.

Isso significa que, ao discutir interseccionalidades entre ser mulher, migrante, refugiada, negra, latino-americana, não devemos jamais perder de vista a discussão sobre a opressão que produziu tais categorias, nomeou tais experiências e fixou essas identidades, e a diversidade de significados que se entremeia sob esses rótulos. A recusa da fixação é o que abre espaço para ressignificações e mudanças, para a historicização das experiências que constituem os sujeitos, como alertado por Joan Scott (1999).

Dizer sobre as mutilações cotidianas a que essas populações em exclusão estão expostas em seu processo de subjetivação histórico é dizer do reconhecimento da falta de legitimidade social, do desejo de ser gente. A importância da escuta das narrativas silenciadas está na aposta pelo desmantelamento dos regimes de discurso que diminuem a dinâmica das vidas vividas em rótulos homogêneos e desconsideram a construção dos sentidos da experiência. Nosso objetivo, portanto, é demonstrar os impactos de experiências de migração no processo de subjetivação de mulheres originárias da Venezuela, por meio da investigação da construção narrativa identitária de tais mulheres, identificando elementos do sofrimento ético-político e como as determinações de gênero interagem diante do fenômeno migratório.

 

Metodologia: mulheres narradoras

Em sua obra A espécie fabuladora, Nancy Huston descreve a excepcionalidade humana na capacidade de contar histórias: "A narrativa confere à nossa vida uma dimensão de sentido que os outros animais ignoram. [...] O universo como tal não tem Sentido. Ele é silêncio. Ninguém pôs Sentido no mundo, ninguém além de nós. O Sentido depende do humano, e o humano depende do Sentido" (Huston, 2008, p. 18). Somos seres narradores, construímos histórias para dizer da nossa experiência subjetiva, histórica e social, que organizam nossa existência e relação com o mundo.

Partindo desse princípio, adotamos para essa investigação o enfoque qualitativo, por meio da metodologia da pesquisa narrativa. Sua escolha se justifica pela valorização das histórias, da luta contra o esquecimento e o silenciamento, da potência em produzir ressignificações. Tratando-se de fenômenos psicossociais, essa é uma forma de perceber as encruzilhadas entre individual e social, e como estas perpassam o processo de subjetivação do sujeito, pois, ao contar sua vida, ele fala do processo por ele experimentado, intimamente ligado à conjuntura social em que se encontra inserido (Silva, Barros, Nogueira, & Barros, 2007).

Utilizamos as entrevistas narrativas como forma de produção dos dados, a partir de um roteiro de tópicos que conduzisse as entrevistadas a produzir elaborações sobre o fenômeno que vivenciavam, "tendo em conta os significados, as experiências e as emoções num determinado acontecimento ou contexto social" (Prokkola, 2014, p. 442). Tais características permitem também inserir a presente pesquisa no campo da Psicossociologia, que, ao sustentar o fazer falar e a tessitura entre as diversas dimensões que perpassam as histórias dos sujeitos, abre possibilidades para novas enunciações e produções de sentido. Como destaca Gaulejac (2005, p.30), "Hablando de 'su' historia, el individuo la (re)descubre. Es decir que hace un trabajo sobre él mismo que modifica su relación con esa historia".

O campo de pesquisa foi a cidade de Bogotá, localidade que recebeu o maior número de migrações venezuelanas em período recente. A presença em campo foi possibilitada por um intercâmbio realizado no segundo semestre de 2019 pelo Programa de Intercâmbio de Estudantes Brasil-Colômbia (BraCol), uma parceria entre universidades brasileiras e colombianas, neste caso entre a Universidade Federal de São João del-Rei e a Universidad Santo Tomás, que visa contribuir para a integração e o fortalecimento acadêmico-científico entre Brasil e Colômbia. Durante o semestre, foi firmada uma parceria com o Centro de Atenção ao Migrante, um dos centros da Fundação de Atenção ao Migrante (Famig), instituição vinculada à Arquidiocese de Bogotá, e que recebe projetos do ACNUR e desenvolve outras iniciativas ligadas à acolhida da população migrante.

Atualmente, a fundação conta com quatro centros espalhados pela cidade, no que atuamos, atende prioritariamente famílias com gestantes ou crianças menores de cinco anos. As famílias que acedem ao local são encaminhadas para locais de curta estada e recebem assistência de transporte, alimentos e roupas. Além disso, participam do projeto chamado "Proyecto de Integración Local y Social a Familias Procedentes de Venezuela en Bogotá", em parceria com o ACNUR, que tem por objetivo ofertar apoio às famílias, para que se estabilizem e consigam se empoderar em nível pessoal e familiar. Nas intervenções grupais, uma assistente social e uma psicóloga desenvolvem oficinas baseadas no tema de luto migratório, diante da dificuldade de adaptação. Na frente familiar, as mulheres contam com o apoio de estudantes de serviço social de uma universidade local, que acompanham casos especiais de grande vulnerabilidade.

Para efetivação do trabalho em questão, houve a oportunidade de realização da técnica de observação simples de três oficinas e do encontro de encerramento do grupo de intervenção familiar. Nesses encontros, foram realizadas entrevistas narrativas com seis participantes do projeto, no idioma espanhol, mediante assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e garantia de sigilo e anonimato. O convite à participação voluntária foi feito por meio da apresentação da pesquisadora pela psicóloga e pela assistente social da fundação a grupos de mulheres que eram atendidas no projeto que coordenavam, salientando que a pesquisadora acompanharia alguns encontros e aquelas interessadas em conceder uma entrevista poderiam procurá-la em intervalos. Ademais, uma sétima entrevista foi realizada com uma trabalhadora da casa em que a pesquisadora se hospedava, que também era venezuelana, e concordou em participar da pesquisa. As perguntas que orientaram a entrevista abordaram a vida pregressa, o processo de saída da Venezuela e a integração a Bogotá. Uma observação importante é a escolha do uso do termo "refugiadas". Apesar do não reconhecimento jurídico do refúgio dessas mulheres naquele momento, adotamos o termo como forma de diferenciar o que experienciavam de uma migração voluntária, já que os deslocamentos delas foram motivados por uma situação de generalizada violação dos direitos humanos, o que, portanto, os categorizavam como experiências de refúgio.

Todas as entrevistas foram transcritas e, além delas, foram produzidos cerca de 25 diários de campo, reunidos em uma série que transita entre a prosa e a poesia, intitulada "Diário de Navegação: entre a casa e o refúgio", com registros das visitas a campo e da própria experiência da pesquisadora intercambista. Entendemos que essa posição de mulher, latino-americana, migrante temporária, estabelecia diálogos com o próprio cenário da pesquisa. Discutir a reflexividade e os processos autorreferenciais é característica de muitos trabalhos de feministas das teorias do ponto de vista e do pós-estruturalismo (Olesen, 2006).

Ao nos dirigirmos para nossos campos de investigação, carregamos bagagens de nosso compromisso profissional e ético, e também de nossa própria existência no mundo, identidades, subjetividades, lutas e cicatrizes. Como colocado por Haraway (1995), devemos sempre estar atentas às questões de responsabilidade, posicionamento e parcialidade, não em um relativismo simplório da "visão de nenhum lugar", mas da visão de "algum lugar" localizado. Não significa diluir as contradições e diferenças, negar a violência entranhada, esconder as dificuldades na representação e na tradução, as vozes de pesquisadora e pesquisada não estão livres de relações de poder e pressões hegemônicas. Mas é um passo para reconhecê-las e trabalhá-las de forma mais crítica, "[...] não para negar significados e corpos, mas para viver em significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro" (Haraway, 1995, p.16).

 

Resultados: as protagonistas

A fim de estabelecer uma contextualização para nossa análise, e partindo da noção de território apontada previamente (Anzaldúa, 1987), apresentaremos camadas dessa (des)territorialização. No Quadro 1, encontram-se dados gerais das entrevistadas. Nas Figuras 1 e 2, é possível visualizar o deslocamento geográfico explicitado nas narrativas, com os estados de origem e os bairros periféricos1 que atualmente habitam em Bogotá. E posteriormente, um resumo de temas centrais que foram narrados nas entrevistas, cujas nuances serão discutidas na próxima seção.

Após leitura em profundidade das transcrições das entrevistas, observamos a presença de seis grandes núcleos de significação nas narrativas das mulheres ao contarem sobre o percurso que as conduziu até aquele momento: a vida antes da saída do lugar de origem, a motivação para a viagem, o trânsito na fronteira, a chegada ao lugar de destino, a adaptação e integração, e os impactos gerados pelo processo de migração.

 

A vida antes

Ao se recordarem da Venezuela, descrevem o que chamavam de uma vida comum, tinham seus empregos, estudos e seus próprios bens, em diferentes condições de classe. Várias associavam o compartir, esse tempo compartilhado com outras pessoas, como algo bastante característico do país. María (E1) já trabalhava há 12 anos como técnica em radiodiagnóstico. Elena (E2) era advogada, assim como o marido, tinha casa própria e bens e diz que a vida era divina antes da chegada de Maduro. Gabriela (E3) divide a vida em antes e depois de Chávez e narra seu crescimento junto da decadência do país que se intensificava com a perda de segurança e o avanço da corrupção e da repressão militar. Percebe os impactos em seus três irmãos mais novos, que não tiveram nem a chance de conhecer "o bom da vida". Carmen (E4) tem três filhos e vivia das vendas da fazenda que dividia com o marido, diz que a vida era dura, mas que era bonito, tinha todos por perto. Valeria (E5) vivia nos fundos da casa da sogra, o marido trabalhava, ela estudava Administração, cuidava dos dois filhos e estava grávida do terceiro. Alejandra (E6) diz que passava muito tempo com a família, já que vivia com a mãe e irmãs. Rosa (E7) se recorda da infância, filha de pais colombianos migrantes ("ellos también fueron inmigrantes, porque ellos se fueron cuando Colombia estaba azotada por la guerrilla"). Trabalhava limpando um edifício, não tinha luxos, mas tinha sua comodidade e um salário suficiente.

 

A motivação para a saída

A maioria consegue identificar uma mudança progressiva na rotina, com os impactos principalmente na economia. Começou a haver pouca comida, longas filas, falta de medicamentos, e o salário que recebiam não era mais suficiente. Valeria (E5) se lembra de um sistema de cestas básicas que foi iniciado, porém os alimentos incluídos foram diminuindo gradativamente. Rosa (E7) comenta sobre passar o dia todo em filas para voltar de mãos vazias para a casa, sem condições de comprar nem mesmo rolos de papel higiênico. Além de que o filho, quando não se alimentava em casa, comia a merenda oferecida na escola, até que o governo deixou de fornecer comida aos colégios. Elena (E2) se queixa da dificuldade em encontrar remédios e se lembra das pessoas morrendo, incluindo sua mãe, que faleceu em janeiro, "ya no teníamos ni como enterrar a nuestros difuntos".

Nos relatos é possível distinguir pontos de virada, momentos em que se nota que permanecer naquela situação era insuportável e tomam a decisão de sair do país. Para Valeria (E5), a saída esteve muito relacionada à gravidez e seus direitos reprodutivos. Depois que teve o segundo filho, queria se esterilizar, mas lhe disseram que ainda estava muito jovem e que poderia "seguir parindo". Não tinha acesso a métodos contraceptivos, entregaram-lhe uma pílula, mas terminou grávida mais uma vez. Quando percebeu que o salário mínimo não comprava nem um pacote de fraldas, entendeu que precisava sair. Carmen (E4) se recorda do momento em que a filha pequena foi hospitalizada por desnutrição, e o outro filho pequeno também começava a mostrar sinais. Tinham somente uma refeição diária, oferecida por uma fundação da comunidade. Rosa (E7) conta: "Cuando vi a mis hijos mirarme la cara y yo no tener nada [chora], decirles que no tengo nada, levantarnos sin nada en el estómago y acostarnos, no es justo, no era justo". María (E1) diz que tomou a decisão quando nem com seus dois empregos conseguia pagar uma cesta básica: "De ese momento decidí emigrar, y dejar todo, porque tu dejas todo, tus comodidades, tu empleo, tus raíces, dejas todo".

Gabriela (E3) foi a única que usou o termo refugiada e que afirmou que estava procurando asilo para a família, "yo sé que no debería decir así pero somos refugiados de la situación que está allá, el área que yo vivía hay predicados muy fuertes de persecución política". Além da falta de luz, água, gás, comida, da sua situação de desnutrição, conta dos sistemáticos abusos de poder e até de um tiroteio. "Desde que me persiguieron en mi casa realmente desde la cancha cerca de mi casa con una ametralladora en un helicóptero, hasta ver disparando a un compañero en el ojo saliendo de la universidad".

 

O trânsito na fronteira

Algumas tiveram dificuldades no cruzamento da fronteira, na grande "travessia", como denominou Gabriela (E3). Valeria (E5) tomou um carro com a família para Cúcuta, dormiram na fronteira entre maletas. No ônibus a caminho de Bogotá, desceram no meio da estrada para não serem pegos pela fiscalização. Para Alejandra (E6), a travessia foi ponto marcante na trajetória: "fue la experiencia más grande que yo viví en ese mundo". Caminhou com a família por quatro dias desde Cúcuta, debaixo de sol e chuva, até que o filho de dois anos arrebentasse os sapatos. Chegaram a San Gil, onde dormiram duas noites em uma praça tentando juntar dinheiro para passagens. Não conseguiram o valor total, mas foram até o terminal rodoviário, onde uma atendente disse que sabia do sacrifício que passavam, deixando que embarcassem no ônibus.

 

A chegada ao destino

A chegada a Bogotá, até alcançarem certa estabilização, continua trazendo desafios. Elena (E2) se lembra de que quando chegou teve de pedir dinheiro em um semáforo com a família, até o momento em que se sentou na calçada para chorar. A neta lhe pedia para parar e o marido lhe dizia para não desanimar, se não ele também desabaria, diz que foi o que lhe deu forças para seguir. Alejandra (E6) marca a sensação de estar perdida. Dormiram duas noites em um parque até encontrarem o centro de atenção, que os encaminhou a um local para pernoite. Valeria (E5) chegou grávida, dormiram na rua por duas noites, em tábuas de um edifício em construção, até que uma senhora lhes ofereceu espaço na casa e um acordo de aluguel. O esposo conseguiu um emprego, que durou apenas duas semanas, diz que o patrão gostava de humilhar venezuelanos. Seguiu vendendo amendoim nos sinais, até o momento em que ele retornou para a Venezuela para cuidar da mãe, deixando-a com os filhos. Gabriela (E3) denuncia a sexualização do corpo feminino venezuelano, "cuando yo llegué acá lo primero que me preguntaron fue ¿cuánto cobra?".

A busca por emprego e as relações estabelecidas no campo do trabalho materializam de forma explícita a precarização das condições de vida como migrantes. María (E1) expressa grande indignação ao dizer que passou três anos estudando e 12 trabalhando para hoje vender café em uma praça, assim como o marido, que tinha vários empregos e hoje trabalha como entregador em um aplicativo popular. Relata que ouviu que veio à Colômbia para roubar o trabalho do colombiano, o marido da colombiana, que são umas venecas (termo pejorativo comumente usado em contextos de insulto a venezuelanos). Carmen (E4) trabalha como costureira fazendo calças jeans, recebendo 1.500 por peça, algo como dois reais, enquanto tem de deixar os filhos de sete e oito anos em casa sozinhos quando não estão na escola. Valeria (E5) conta que depois do retorno do marido à Venezuela, coube a ela manter os filhos, saindo pela rua e estações de ônibus vendendo doces. Conseguiu um emprego em um restaurante, mas seu bebê começou a apresentar sinais de varicela, uma doença cutânea, e teve que parar de trabalhar para cuidar das crianças, "aquí en Colombia todos somos esclavos, aquí todo es trabajo, trabajo, trabajo". Queixa-se dos anúncios que dizem ser necessário ser colombiana para a vaga. E quando não o dizem explicitamente, ao perceberem que é venezuelana, colocam-na para fazer o dobro do trabalho por um salário pior. Conta de um trabalho anterior como garçonete, que durou apenas uma semana, pois o chefe a assediava, dizendo que se ela não tivesse relações com ele a demitiria. E assim foi demitida.

Os impedimentos a uma vida digna também podem ser percebidos no acesso à educação e saúde. No que tange à educação, apareceram muitas inconsistências. Algumas conseguiram inscrever os filhos, outras se queixam da exigência de cartas e do PEP (Permiso Especial de Permanencia). Sobre a saúde, a situação é bastante deficitária. María (E1) lembrou-se do caso de uma amiga grávida, que quando foi atendida em um hospital, foi questionada sobre porque deveria trazer um filho ao mundo, e acusada de trazer doenças venéreas para o país. Elena (E2) se queixa de crises de asma, consegue remédios por meio de uma freira, "No tenemos acceso a salud". Já no caso de Valeria (E5), que teve o filho em Bogotá, disse que não teve problemas, e diferentemente da tentativa na Venezuela, conseguiu ser esterilizada.

 

A não adaptação

Conversamos sobre a adaptação ao novo território, ou mais precisamente sobre a não adaptação. Compartilharam as diferenças culturais percebidas e a relação com os colombianos. Algumas enfatizam a solidariedade de muitos que cruzaram o caminho delas, outras evidenciam a xenofobia no cotidiano. María (E1), que vende café em uma praça, lembrou-se do caso do senhor que cuspiu o café quando notou o sotaque venezuelano. Gabriela (E3) denuncia a xenofobia nos serviços de atenção pública, a constante culpabilização por qualquer problema de ordem, o comportamento de homens que a assediam nas ruas e a estigmatização generalizada de todos os venezuelanos como um grande grupo homogêneo. Relata também a imposição cultural que é percebida na língua, por exemplo, já que, mesmo que ambos os países falem espanhol, existem diversas diferenças entre os vocabulários, o que a leva a encarnar uma autocorreção para não ser advertida, ou escutará um "estás en Colombia, tienes que aprender Colombia". Carmen/E4 conta do bullying que o filho, negro e venezuelano, sofreu na escola, "el niño ya ni siquiera quería ir a clase, ay mamá todo mundo me llama negro venezolano". Elena (E2) e Valeria (E5) denunciam a violência direcionada aos venezuelanos nos protestos que atingiam o país no período da pesquisa, alimentando os pedidos de deportação. Rosa (E7) narra que chorou por quase um ano, repetindo que queria ir-se dali, mas conclui que não valeria a pena, "ser inmigrante no es un delito, salir a buscar una mejor vida no es un delito".

 

Os impactos da migração

Um último núcleo de significação é constituído pelos impactos decorrentes da experiência de migração. Sobre os ecos dos processos vivenciados, muitas notam transformações. María (E1) diz que tudo isso lhe mudou a vida, "la mujer de Venezuela era alegre, las lágrimas eran de alegría, aquí no, aquí es tristeza. No eres la misma, porque no es la misma alegría, porque no tienes tu familia, no tienes tu empleo, no te valoran como tal". Gabriela (E3) diz de transformações na política, alerta que Colômbia e outros países da região estão repetindo os mesmos passos da Venezuela, "Lo que no saben es que así comienza, los problemas con el gobierno, el abuso de poder de entidades de seguridad, cada cosita de esos es un paso". Carmen (E4) diz que tudo isso a fez mais forte, a obrigou a assumir muitas responsabilidades, mas isso a sufoca, "me sentía como un abismo [...] lloro porque siento que estoy como a punto de explotar". Valeria (E5) relata sobre o marido que voltou à Venezuela, que encontrou trabalho, está se relacionando com outra mulher e por lá ficou. Com raiva e tristeza, não entende como o pai pôde abandonar as crianças. A responsabilidade de ser mãe é bastante presente, "primero que ser mujer yo tengo que ser madre". Percebe muitas mudanças em si, "creo que en Venezuela era alguien como que muy sumisa, como que dependía a todo de mi esposo y pues la verdad he vivido acá entre tantas cosas malas me han hecho ser una mujer creo que fuerte". Alejandra (E6) diz que não nota mudanças, mas a fez perceber que há muita gente precisando de ajuda e que tem estendido mais a mão a quem necessita. Rosa (E7) relata pasar dias chorando. "Era más alegre, me gustaba más arreglarme, ahora como que llegar y no llegar a mi casa (chora), todo aquí para mí, para mí aquí no hay nada familiar, no sé si porque tengo poco tiempo aquí pero es que no lo siento mío, no siento como que soy de aquí".

 

Discussão: sobre vivências

Refúgio em seu significado mais cotidiano remete a um lugar que abriga e ampara, um escape. No contexto de busca por refúgio por essas e tantas outras mulheres, a intenção se mantém, mas a realidade está longe de ser acolhedora. Nessas trajetórias, os momentos de acolhimento foram escassos e frágeis, o mínimo para seguir sobrevivendo, para algumas nem isso. Em cada um dos núcleos de significação analisados, identificamos múltiplas mutilações de sofrimento ético-político que discutiremos a seguir, a saber, a (des)territorialização, os impactos na construção identitária, as especificidades da feminização da migração, o olhar em relação ao migrante e a xenofobia.

O termo (des)territorialização se baseia na ideia de desterritorialização e reterritorialização, de Deleuze e Guattari. Esses seriam dois elementos indissociáveis e constitutivos de sua ampla noção de território como agenciamentos maquínicos de corpos e coletivos de enunciação (Deleuze & Guattari, 1997). A escolha desse termo aqui ressalta um duplo movimento que por vezes não se completa: uma sujeita territorializada em uma rede que a sustenta e que compõe sua própria construção identitária perde esse alicerce e se vê forçada a buscar um território outro, novos pilares para tecer novas redes. As adversidades, como visto, passam pelo "deixar tudo", por cenários de vulnerabilidade, pela solidão, pela insistência de uma falta, pela luta por condições de existência e resistência. O ser-entre-lugares é um ser que não consegue fincar raízes. Logo, a casa se torna um momento no passado, os vestígios entranhados na carne e na memória. Sair de um cenário de risco e encontrar um novo teto em um novo lugar não significa necessariamente encontrar casa.

O sonho do retorno à verdadeira casa é compartilhado por todas as narradoras, mas não enquanto a Venezuela não for a mesma, e elas próprias já não são as mesmas, assim como eu também não sou a mesma depois daquele semestre e daquelas histórias, como já destacamos no valor dado à reflexividade, ao encontro de pesquisador, campo e pesquisadas, e aos ecos dessa invenção. Metamorfoses, diria Ciampa (1996). É por esse conceito que o autor vai tratar de identidade, esta não como algo imutável, imediato e dado, mas como algo que se transforma permanentemente, um dar-se. Nos cruzamentos de autorias coletivas entre coautores e autorias individuais dos atores-autores, criamos personagens no viver-fazer. María, Elena, Gabriela, Carmen, Valeria, Alejandra e Rosa inventaram, construíram e lapidaram novos modos de ser para encarar a jornada inesperada que se delineou em suas vidas. Apropriaram-se da personagem migrante e tudo o que ela representa no palco da vida. A migrante do adeus, a migrante fronteira, a estranha estrangeira no estranho estrangeiro, a entre-lugares, a migrante-pesquisadora. Isso não significa que "a migrante" ou "a refugiada" é uma personagem acabada ou que é a única personagem ou que exista separadamente das outras. Significa essencialmente processo de subjetivação, construção constante do ser no duplo objetividade-subjetividade. Simboliza poder de transformação, poder de narrar novas histórias (com todas as cicatrizes que se acumulam), um vir a ser outra, a mesma, mas outra.

Mais um ponto importante a se pensar nesses corpos em trânsito, nessas personagens, é o fenômeno da feminização da migração venezuelana. Marcela Ojeda, consultora do projeto Feminización de la migración venezolana en Colombia (Sanabria, 2018) salienta que esse processo, que historicamente costuma ser caracterizado pela maciça presença masculina, conta hoje com mais ou menos 49% de migrantes mulheres. Esse fato dá novos contornos às problemáticas que perpassam o fenômeno. Torna-se fundamental atentar-se, por exemplo, à necessidade de inserção laboral, já que muitas dessas mulheres estão em idade ativa e são provedoras do lar, o que, por consequência, resulta em uma modificação da configuração e mobilização dos núcleos familiares. Essa conjuntura se soma à realidade de muitas mulheres na América Latina, que seguem em piores condições laborais em comparação aos homens. A diferença entre a taxa de participação de homens e mulheres no mercado de trabalho na região latino-americana é em média de 25,9 pontos percentuais (Cepal/OIT, 2019), números que aumentam ao incluirmos na análise níveis de escolaridade.

Grande parte migra acompanhada dos filhos ou enquanto estão grávidas, na tentativa de garantir condições melhores para a criação deles, como escutado nas entrevistas. Tal característica acendeu diversas críticas pelo país e mensagens na imprensa, que as mandavam ter seus filhos em sua própria terra.3 Por muitos meses, os casos de bebês apátridas4 estampavam as manchetes, trazendo à tona também a dificuldade no acesso dessa população a direitos básicos, como saúde, educação, informação, casa e trabalho, além de debates sobre os corpos que podem e/ou querem e os que não podem e/ou não querem ser mães, e toda a representação social que a maternidade recebe na cultura. Abordar a feminização também significa abordar os direitos sexuais e reprodutivos dessas mulheres, em adição aos temas de tráfico humano e exploração sexual. De nossas entrevistadas, escutamos, de Valeria (E5), as dificuldades no acesso aos direitos reprodutivos, a obrigação em seguir uma gravidez, o abandono do marido e episódios de assédio sexual no trabalho; de María (E1), o comentário de que viria roubar o marido de colombianas e o lamento da amiga grávida desrespeitada no hospital; de Gabriela/E3, o nojo ao ser interrogada sobre quanto cobraria por seu corpo; de todas as mães e provedoras do lar, a enorme carga de responsabilidades que carregam na busca pela própria sobrevivência e a de seus filhos. Esses são alguns dos motivos pelos quais esse grupo é marcado por uma dupla violação que se conecta ao enfoque de direitos humanos e ao enfoque de gênero.

Ojeda ressalta, ainda, quanto o tema da saúde mental não está sendo trabalhado com esse grupo populacional. María (E1) descreveu sua jornada como "odisseia". Ulisses é considerado um dos heróis clássicos da mitologia grega e da literatura, sua trajetória enfrentando obstáculos no caminho de volta para casa é usada como simbologia da jornada do herói. Enquanto isso, "Síndrome de Ulisses" (Achotegui, 2009) é o nome dado a uma série de sintomas característicos da população migrante, incluindo tristeza, estranhamento, isolamento e estresse. De fato, estes são estados possíveis de serem sentidos por esse grupo, entretanto, inventar uma nomeação psiquiátrica para designar os efeitos de um fenômeno social parece ser o caminho mais fácil, em oposição a direcionar o olhar para as causas desse fenômeno e os diversos problemas no estabelecimento de políticas públicas eficazes e redes de apoio acessíveis. A viagem de Ulisses só nasce porque ele estava isolado em uma ilha depois da guerra que o levou para longe de casa. A necessidade de um refúgio nasce a partir da guerra. Como dito por Pussetti (2010, p. 94), o foco na fragilidade mental "permite transformar problemas sociais, econômicos e políticos de grupos desfavorecidos em elementos potencialmente patológicos que podem ser controlados e monitorizados farmacologicamente". Olhares que enfatizam a vulnerabilidade e a visão assistencialista ignoram as dimensões singulares dos sujeitos e tolhem as possibilidades de resistência e empoderamento, que também puderam ser percebidas nas narrativas e no próprio ato de se voluntariar e compartilhar o testemunho de ser quem são.

Notou-se que outra questão que dificulta a integração dessas mulheres diz respeito aos conflitos e desconfortos relatados em variadas interações cotidianas. Mais da metade das entrevistadas afirmaram ter sido chamadas de "venecas" em ataques preconceituosos. Curiosamente, uma das possíveis explicações para a origem desse termo diz da longa história que relaciona os países Colômbia e Venezuela,5 que não pode ser ignorada na compreensão dos conflitos atuais. Por mais de 40 anos e especialmente nos anos 1980, era a Venezuela que recebia um grande número de colombianos, devido à contratação de indústrias petroleiras e do cenário marcado pelos conflitos internos e guerrilhas. Tal situação pode ser percebida na história de Rosa (E7), cujos pais eram colombianos e também buscavam um futuro melhor em terras estrangeiras, assim como ela. Diz-se que "veneco" era o nome dado às crianças nascidas na Venezuela (vene-) filhas de colombianos (-co). Os papéis se inverteram agora, o que também produziu uma categoria de retornados, pessoas que voltam à Colômbia diante da crise no outro país. Isso faz da Colômbia um país emissor, receptor e de trânsito de migrantes, além de ser líder em deslocados internos, com quase 8 milhões de pessoas nessa situação (The UN Refugee Agency, 2020). Essa história se cruza às diferenças culturais de cada nação, às divergências político-ideológicas entre movimentos e à situação de vulnerabilidade socioeconômica a que muitos colombianos já estão expostos. Tais relações complexas impregnam as manifestações de rejeição, as relações no trabalho, na escola, nas ruas, criando obstáculos à construção de um pensamento coletivo que reconhece o outro como parte de uma comunidade que compartilha uma memória e um território físico e simbólico.

Tratando-se de xenofobia, temática de larga pertinência no campo das migrações e leitura possível desse cenário, o preconceito na América Latina e Caribe tem suas raízes históricas na discriminação étnico-racial. Migrações no continente são motivadas historicamente devido à falta de oportunidades de emprego, desequilíbrios econômicos e conflitos armados.

Tal discriminación se transfiere al otro-extranjero, sobre todo si no es blanco y migra desde países caracterizados por una mayor densidad de población indígena, afrolatina o afrocaribeña. La xenofobia se exacerba si aumenta la masa de desplazados entre fronteras, sea por razones económicas o expulsados por conflictos bélicos; y sobre todo si las migraciones internacionales presionan sobre mercados laborales ya restringidos en los países receptores. (Hopenhayn & Bello, 2001, p. 5).

Tais raízes, por sua vez, estão estreitamente entrelaçadas ao colonialismo e seus rastros genocidas e epistemicidas.6 Esses rastros estão presentes para além das formas de dominação e exploração, e dos regimes de conhecimento, pois permanecem vivos na experiência dos povos colonizados, naquilo que Maldonado-Torres (2007) chamou de "colonialidade do ser". María Lugones (2014), ativista argentina do feminismo decolonial, afirma que a compreensão da hierarquia entre humanos e não humanos é a dicotomia central da modernidade colonial. No processo de colonização, nós, latino-americanos, fomos considerados não humanos, e essa desumanização das populações possibilitou grande parte das violências vivenciadas em nossos territórios. E ainda seguimos perpetuando lógicas europeias, brancas e patriarcais, desumanizando o estrangeiro e o estranho, o que pode se refletir nos casos de xenofobia. Ao mesmo tempo em que historicamente buscamos formas de resistir à colonialidade, também somos reprodutores dela, constituídos dentro dela.

Essa desumanização carrega, ainda, marcas da lógica de uma socialização violenta. Prado (2008) declara que o preconceito alimenta um esquema de hierarquização-subordinação e inferiorização-opressão que se complementam ao naturalizar e generalizar configurações que, na verdade, são historicamente construídas. Tal esquema cria o nós versus eles, os bons versus maus, tentando racionalizar e projetar harmonicamente a experiência que já se tornou cindida e irracional. Crochík (1996), ao refletir sobre o preconceito, encontra a união de um estereótipo com uma reação de estranhamento ou hostilidade, em uma dicotomia de força-fragilidade, dinâmica que em suas origens revela que o apontamento do frágil no outro visa negar o frágil presente em todos nós. Nos ataques aos venezuelanos, os discursos a favor do fechamento das fronteiras são justificados por dificuldades no mercado laboral e no acesso aos serviços públicos, o dever da prioridade do Estado aos cidadãos do país e um suposto aumento na violência. Ou traduzindo, "também estamos lutando para sobreviver".

[...] a fragilidade do outro lembra/suscita a fragilidade daqueles à sua volta, que o perseguem para proteger o que ilusoriamente julgam possuir, para protegerem-se de uma estranha familiaridade presente tanto na possibilidade de realização como na fragilidade. A verdade que a necessidade da dominação revela é a negação da fragilidade de todos. (Franciscatti, 1998, p.122).

Dita análise aponta para um sintoma de uma sociedade adoecida e irracional, em que a vida digna é constantemente negada ou forjada em ilusões, uma sociedade tão notoriamente racional que é burra. E a gênese da burrice (Adorno & Horkheimer, 1985) está no endurecimento de nossa sensibilidade para a sustentação de vidas sacrificadas em nome do capital. Esse fenômeno caracteriza a barbárie, conceito trabalhado por Adorno (1971) como o fato de que "estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização". Segue-se lutando pela sobrevivência, apesar de as condições materiais já serem suficientes para terminar a guerra, segue-se lutando por uma vida morta. Como pequena luz nesse caminho, podemos ressaltar que o "lócus fraturado" de Lugones, esse lugar de fronteira que abriga o paradoxo do oprimir e resistir dentro da diferença colonial, abriga a potência de perceber as marcas da violência em nós e fazer frente a essa colonialidade do ser, do gênero e do saber, num exercício ativo e contínuo de construção da decolonialidade.

Os elementos do sofrimento ético-político elencados, assim como tudo que se imbrica na teia social, não atuam de maneira desarticulada. Julieta Paredes (2008), ativista do feminismo comunitário, diz de elementos complementares, recíprocos e autônomos que mantém uma comunidade e um território vivos, um ciclo que une corpo, espaço, tempo, movimento e memória. Nessa pesquisa, estamos falando de corpos femininos, latino-americanos, de diferentes cores, de diferentes idades, em trânsito. Algo os diferencia, algo os une. Foi o corpo que ganhou as rugas, as cicatrizes, que sentiu as intempéries do caminho. É a língua desse corpo que tenta se acostumar ou resistir ao novo sotaque. É esse corpo objetificado e colonizado que é violado. É esse corpo que carrega novas vidas ou que deseja cessá-las. É desse corpo que saem as lágrimas de tristeza e alegria, a resistência para caminhar debaixo de sol e chuva, a voz que desafia o opressor e que conta histórias. O espaço é o estranho, o estrangeiro, que nasce na ambiguidade. Bogotá carrega as esperanças de um amanhecer melhor e as dores de quem partiu. O tempo é extremamente marcado, referenciado. Lembram-se da data de chegada, das horas na fila, dos dias dormindo nas ruas, das datas festivas que celebrarão longe de quem amam, como alguém que corta os dias em um calendário em uma contagem regressiva sem data. O movimento é contínuo, muitas relatam que nunca há dia para descanso, ao mesmo tempo em que sabem que foi o movimento que as salvou. E a memória é o verdadeiro refúgio, lembranças resgatadas que embalam sonho e saudade.

 

Considerações finais: bússola quebrada

A partir das vivências entre pesquisadora-narradora e pesquisadas-narradoras e da apresentação dos núcleos narrativos que incluíram as memórias na Venezuela, a motivação para a saída, o trânsito na fronteira, a chegada a Bogotá, as dificuldades de adaptação e integração presentes no cotidiano, na busca por emprego e no acesso a direitos, e os impactos gerados pelo processo de migração, foi possível propor discussões sobre o sofrimento ético-político presente no atual fenômeno migratório largamente feminizado, representado nas manifestações de xenofobia e colonialidade do gênero, e no interminável ciclo de (des)territorialização do ser-entre-lugares. Consequências do êxodo incluem também metamorfoses identitárias e a construção de narrativas e resistências que dão sentido à experiência e fazem frente aos desafios que emergem no novo caminho. Tais apontamentos são matéria para fomentar reflexões sobre a necessidade da jornada por refúgio, a violência entranhada nas raízes da terra latino-americana e a exclusão que sustenta uma globalização hipócrita.

É importante salientar, como limitações da pesquisa, o número restrito de encontros e as diferenças linguísticas. Para diminuir o risco de perdas entre traduções, as transcrições foram revisadas pela orientadora colombiana. Para mais análises dessa temática, uma nova investigação será realizada em contexto brasileiro no ano de 2021.

Se a reflexão a respeito da atuação ética da Psicologia passa pelo questionamento sobre a que e a quem ela se compromete, a resposta mais urgente que grita aos nossos ouvidos surdos hoje seria o apelo ao compromisso com uma ordem social mais justa. A partir da alegoria de Angelus Novus, Walter Benjamin (2005) diz sobre o afastamento do ser humano das ruínas da própria história, por ceder à ameaça da tempestade do progresso, que o força a levar seu olhar para o futuro. Apesar de seguirmos em um balé absorto de uma sociedade bárbara que conduz nosso olhar somente para certos protagonistas, é preciso se agarrar na dança que não segue um único compasso. Propagar as histórias dessas mulheres é beber de doses intragáveis e necessárias, é insistir na descoberta de caminhos de desvio e de novos mapas que não precisem mais levar ninguém à busca por refúgios.

 

Referências

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Recebido em: 10/9/2020
Aceito em: 8/6/2021

 

 

1 Destacamos que o cinturão das periferias da cidade de Bogotá se constitui como um terreno complexo, marcado por grande inequidade, onde a população migrante divide espaço com outros atores que também estão à margem, incluindo deslocados internos, vítimas do conflito armado e atuação de grupos paramilitares, peças-chave nas tensões históricas em contexto colombiano.
2 Os nomes utilizados para identificação das entrevistadas são fictícios.
3 Primeiro dia de visita ao Centro, acompanho atendimentos da psicóloga B. Terceiro caso, uma jovem de vinte e poucos, grávida, quarto filho, uma pasta gigante de documentos nas mãos. B pergunta de quantos meses está, três meses. B encara a barriga da mulher por um momento, pede documentos que comprovem a gravidez. Ela abre a pasta e pega raios-X. Encara a barriga de novo, "você sabe, né, tem muita gente tentando enganar". Sozinhas, pergunto. Como tá sendo a gravidez? Ah tá bem até agora, mas tô preocupada de como vai ser depois. E preciso criar os outros. Estão lá com a minha mãe. E o pai? Ah, aí no mundo, né? (Trechos do Diário de Navegação)
4 Checar, por exemplo, "Crisis en Venezuela: 'Viven en las sombras', el drama de los miles de bebés nacidos en Colombia de padres venezolanos que no tienen nacionalidade." BBC Mundo, de junho de 2019. Recuperado de: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-48626674.
5 Para mais informações, Sánchez, S. M. (2012).
6 Para mais informações, Grosfoguel (2016).

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