SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5 número2Técnicas hipnóticas, dor crônica e a emergência do sujeitoDeleuze, G. (2009). Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Compartir


Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versión On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.5 no.2 Juiz de fora dic. 2012

 

A experiência de intervenção feita por alunos de psicologia numa escola pública em Minas Gerais

 

The intervention experience made by a group of Psychology students in a public state school in Minas Gerais

 

 

Sônia Regina Corrêa Lages1; Ananda Martins Carvalho; Heloisa Armond Couto Garcia; Gabriel de Oliveira; Karina Dias Géas; Paulo Henrique Dias

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

O presente trabalho relata a experiência da intervenção feita por alunos de Psicologia de uma universidade mineira, durante o Estágio Básico. A prática ocorreu numa escola pública estadual de uma comunidade rural. As atividades tiveram como objetivo refletir sobre o tema da diversidade e sobre a cultura como instrumento político de valorização das identidades culturais minorizadas. Os resultados apontam para o despreparo da escola em lidar com a diversidade cultural e para a necessidade de um investimento na relação escola-alunos. Aponta também a importância dessa aprendizagem para a construção de uma visão crítica da realidade brasileira nos estudantes de Psicologia.

Palavras-chave: Escola Pública; Preconceitos; Diversidade Cultural; Identidade Coletiva


ABSTRACT

This work reports on an experience made by psychology students from a university of Minas Gerais during basic internship. The experience was carried out at a public state school, in a rural area. The activities were designed to reflect on the theme of diversity and culture as a political tool for the appreciation of minority cultural identities. The results show that the school is not prepared to handle cultural diversity and indicates the necessity of investment in actions which improve the relationship between school and students. The results also show the importance of this learning experience for the building of a critical view of the Brazilian reality by psychology students.

Keywords: Public School, Prejudices, Cultural Diversity, Collective Identity


 

 

As disciplinas de Estágio Curricular Básico I e II são oferecidas para o currículo novo dos cursos de Psicologia, no terceiro e quarto períodos, e tem como objetivo a realização de atividades básicas de investigação e intervenção. Elas são decorrentes das Diretrizes Curriculares para os cursos de graduação em Psicologia, conforme Resolução n° 8, de 07 de maio de 2004, e visam o treinamento em práticas integrativas relacionadas a competências básicas características no núcleo comum.

A disciplina foi organizada em torno do eixo temático dos Direitos Humanos. Durante o primeiro módulo, seguiu a orientação teórica dos estudos que colocam em debate a diversidade e a diferença de identidades (Bobbio, 2004; Hall, 2003; Souza Santos, 2006; Bauman, 2001; Silva Bento, 2003; Guareschi, 1999; Camino, 2001; Lane, 2009; Gonçalves & Silva, 2006; Ciampa, 2009; Foucault, 1975; Sawaia, 1999, dentre outros). No segundo módulo, as atividades foram direcionadas para a preparação dos alunos para a atuação prática, e o campo de intervenção foi eleito como sendo o da adolescência, com estudantes do ensino fundamental de uma escola pública estadual.

Dois encontros foram realizados com a direção da escola com a finalidade de apresentar a proposta de trabalho que envolvia os temas estudados no primeiro e segundo módulos da disciplina, e de conhecer as demandas da mesma sobre a referida questão.

O relacionamento dos alunos e alunas do 5° ao 9° ano do ensino fundamental foi caracterizado pela escola, como necessitando de uma intervenção, uma vez que, cotidianamente, alunos e alunas comparecem à coordenação com queixas de agressões verbais, que na maioria das vezes giram em torno de apelidos ofensivos, o que gera um ambiente de constantes brigas e disputas. Foi-nos solicitado, ainda, a inclusão de mais uma turma, a 1ª série do ensino médio, considerada pelos docentes da escola como sendo muito problemática devido aos conflitos entre os estudantes e professores.

O segundo módulo da disciplina, então, passou a preparar os alunos para o trabalho de campo, oferecendo subsídios teóricos e que relatavam as experiências de profissionais psicólogos que atuaram em escolas com temas similares (Afonso, 2006; Cassab, 2006). Em um segundo momento, uma série de atividades foi realizada com o objetivo de preparação para a intervenção através da metodologia rodas de conversa (Afonso & Abade, 2008). Estas simularam o ambiente escolar, levantando pontos de reflexão que pudessem subsidiar o diálogo com os adolescentes, através de uma escuta e olhar críticos sobre os diferentes dispositivos sociais, culturais, econômicos e institucionais que constroem as diferenças entre as pessoas de forma a hierarquizá-las, excluí-las e estigmatizá-las, submetendo-as a controles que atendem aos interesses de uma sociedade movida pelo capitalismo individualista segregador e por uma mídia que serve a estes interesses.

A intervenção recebeu o nome de "Semana VIVA", que abarcou os significados de V - Voz, I - Identidade, V - Valores e A - Amizade, compreendendo a importância do desenvolvimento da consciência crítica dos sujeitos - adolescentes, para questionarem suas relações, sejam pessoais, interpessoais, intergrupais e coletivas, de forma a desvendar de que maneira são construídos os estereótipos e preconceitos, como eles atuam, que grupos sociais são mais atingidos (mulheres, população negra e indígena, homossexuais, portadores de sofrimento mental, usuários de drogas), as ideologias que são favorecidas por estas atitudes, de como esses processos acumulam desigualdades sociais históricas e, naturalizando-as, promovem a exclusão social e a violação dos direitos humanos.

A escola fica situada numa comunidade rural, na região metropolitana de Belo Horizonte, e, de acordo com o CEDEFES - Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva, aquela região é um remanescente quilombola. No entanto, essa identidade não é reconhecida nem reivindicada pelos moradores do local, conforme informação do referido Centro. (CEDEFES).

Essa questão de uma possível identidade étnica quilombola tornou-se, também, alvo das atividades dos estagiários, considerando-se a importância desses fatos para a construção da identidade dos adolescentes.

Diante de tal contexto, os objetivos da intervenção foram: a produção de uma reflexão com os jovens a respeito do individualismo, da visão hegemônica que desrespeita a diversidade cultural, do consumismo, da força da identidade e da participação social e política, da importância de se expressar a afetividade e a subjetividade, sendo esse um dos caminhos para o combate à exclusão social, seja ela relacionada às questões de gênero, de orientação sexual, das diferentes religiosidades, da diversidade étnico-racial, das diferentes classes sociais.

Nosso pressuposto foi de que tais reflexões seriam fundamentais para os adolescentes incorporarem novas práticas coletivas e instrumentos de combate a não aceitação das diferenças e é, neste sentido, que o presente artigo trata desta experiência realizada. Acreditamos que esses pontos seriam alguns dos fatores que poderiam explicar os conflitos entre aqueles adolescentes e, que sendo geradores de preconceitos, se desdobravam em apelidos, que são formas de sua manifestação.

 

Procedimentos metodológicos

A metodologia utilizada na intervenção foi a das Rodas de Conversa sobre direitos humanos e cidadania, método participativo em que se busca a colaboração e cooperação com o grupo (Afonso, 2007). A coleta de dados foi realizada a partir das impressões, percepções dos mediadores e as falas dos sujeitos (os estudantes), as quais foram registradas após a intervenção, através do diário de campo (Da Matta, 1978).

 

Participantes

Os estagiários, em número de quatorze, que se colocaram na posição de mediadores/facilitadores do diálogo, foram distribuídos em seis grupos, atendendo alunos do 6° ao 9° ano do ensino fundamental e os alunos do 1° ano do ensino médio, totalizando 118 alunos atendidos, com idades entre 12 a 17 anos.

 

Procedimentos e descrição das atividades

Os encontros aconteceram em dois dias seguidos, com duração de duas horas cada encontro, sendo que cada turma foi atendida por uma dupla de estagiários. No primeiro dia, todos os grupos tiveram como foco a conversa sobre o significado da "Semana VIVA", levando os jovens a refletirem sobre a importância da voz, da identidade, dos valores e da amizade para sua intervenção no mundo e nos relacionamentos sociais. Para alcance deste objetivo, o encontro foi dividido em três momentos: (1) apresentação dos membros do grupo, acolhimento e aquecimento. As estratégias utilizadas para este movimento variaram de grupo para grupo, pois dependiam de suas habilidades para desenvolvê-las. Elas consistiram em brincadeiras e jogos. Procurou-se, a partir destas, criar um clima de descontração entre os jovens e estagiários, fazendo um apelo ao lúdico e à afetividade, como forma de desinibir o grupo e preparar o campo de diálogos, baseados na confiança. (2) as rodas de conversa que abrangeram os significados da "Semana VIVA" - voz, identidade, valores e amizade e sua relação com a vida dos jovens; e (3) fechamento das atividades.

No segundo dia, as atividades foram direcionadas para o diálogo sobre o resgate de valores a partir dos valores culturais veiculados pela comunidade, pela escola, e pela família.

 

Resultados e discussão

Quanto ao encontro do primeiro dia, tiveram destaque as reflexões sobre o significado do acróstico "VIVA". A ideia de Voz foi identificada pelos alunos como diálogo, meio de comunicação, gestos e sinais. Os estagiários tentaram ampliar o entendimento e a importância da voz como a possibilidade dos jovens se manifestarem a respeito de seus relacionamentos pessoais, com os professores e a escola de forma autêntica, crítica, demonstrando seus sentimentos em relação ao que vivem nestas interações. Muitos adolescentes relataram que se sentem desrespeitados na escola, por parte de colegas, professores, funcionários e pela família, denominando essa situação de autoritarismo. Quando indagados sobre a busca de soluções para isto, apesar de aparecer a necessidade do diálogo entre as pessoas, foi percebido, pelos mediadores, um desânimo e sentimentos de impotência, de que não há nada a fazer, de que as coisas são e vão permanecer assim, o que foi trabalhado pelos estagiários que apontaram o caminho da participação social e política como uma forma de transformar as relações sociais.

O significado da palavra Identidade foi correlacionado, pelos estudantes, como sendo aquele referente aos documentos, como a Carteira de Identidade e a Certidão de Nascimento. A roda de conversa propôs outras direções e a identidade passou a se referir ao que é singular de cada pessoa. A partir daí, algumas falas surgiram: identidade é "poder ser você mesmo"; "Sou um ser individual no universo e não vai ter ninguém igual a mim daqui a milhões de anos." Temas relacionados ao gênero, como o que é ser mulher e homem, preconceitos contra as mulheres e o machismo apareceram e alguns jovens se colocaram de forma crítica, levantando as maneiras sobre como esse preconceito aparece: "mulher dirige mal", "mulheres não podem trabalhar", "os homens é que têm que pagar as contas". Outros posicionamentos mais conservadores também surgiram: o que é ser uma "moça piriguete", aquelas que gostam de expor o corpo usando saias curtas e blusas decotadas e que possuem liberdade sexual.

O que é "ser negro" foi uma questão que apareceu de forma tímida e recebeu diferentes posicionamentos entre os jovens: ao mesmo tempo em que reconheciam que as pessoas negras e afro-descendentes eram consideradas como inferiores, diziam que isto já tinha acabado, pois existiam leis. Outros negaram a existência da diferença de tratamento entre pessoas brancas e afro-descendentes. Um adolescente que defendeu essa posição, no final da atividade, tomou uma nova posição e deu dois exemplos: "Quando a gente fala 'Você está na minha lista negra!', só coisa negativa é que é negra!", e, "Quando uma menina olha e fala: 'Com aquele neguinho, eu não vou ficar não!'. Ela nem olha pra gente direito, mas só porque é negro!". A questão do racismo foi trabalhada neste momento, e os estagiários colocaram em discussão o tema da colonização, da escravidão e como, a partir, daí vários preconceitos foram sendo construídos a respeito da população negra, produzindo as desigualdades sociais na educação, no mercado de trabalho, na saúde, na moradia.

Quanto às correspondências para a palavra Valores, seu significado foi inicialmente dinheiro, salário, o preço das coisas. Depois, a conversa fez vincular a palavra valores a direitos e deveres. Aproveitou-se o momento para conversar sobre a importância tanto de um, quanto do outro para conviverem entre si. Algumas outras palavras ligadas a valor foram: liberdade, família, ser estudante, respeito e educação. Também se vinculou à palavra valor os sentimentos positivos em geral.

Meninas de uma das séries apresentaram o tema da beleza como valor, elegendo atores de novelas como a beleza masculina. Os rapazes se colocaram de forma mais crítica dizendo que "Aquelas mulheres não existem! São só silicone, maquiagem, photoshop." Os estagiários procuram envolver tal tema com a padronização de beleza promovida pela mídia e pela indústria de consumo, e como elas constroem os mais variados tipos de preconceitos.

Quase a totalidade dos adolescentes não soube responder sobre o significado de capitalismo, e nem como ele constrói desigualdades sociais através dos diferentes padrões de consumo que ele cria. Foi a oportunidade dos mediadores chamarem a atenção dos jovens para o fato de que o consumismo cria hierarquias que tentam controlar grupos sociais desprivilegiados socioeconomicamente, e que isto gera consequencias que acabam atingindo os relacionamentos entre eles, como a estigmatização através de apelidos que, na verdade, tentam é expor o indivíduo a situações ridicularizantes, por fugirem ao que é padronizado.

Para a palavra Amizade, foram elencados os seguintes significados: confiança, afeto, solidariedade, amor e liberdade. Avaliaram as relações que têm uns com os outros com expressões como: brigas, conversa fiada, inveja, mágoa, fofoca, apelido, falta de respeito, falsidade e ignorar o outro. Chamou a atenção, praticamente em todos os grupos, a referência às fofocas que permeiam o dia-a-dia da comunidade, e de como isto afeta a vida dos adolescentes: "basta alguém ver uma menina conversando com algum garoto, que estava 'ficando' com eles e ela é criticada e mal vista por isso". Quanto aos garotos, alguns disseram sofrer por serem vistos em companhias de alguns colegas usuários de drogas, pois fofocas chegavam aos ouvidos dos seus pais, dizendo que eles também estavam usando. Fica claro, nessas falas, os preconceitos e esteriótipos veiculados na comunidade sobre determinados comportamento dos jovens (liberdade sexual, uso de drogas), mas percebe-se que os adolescentes questionam esses posicionamentos.

A palavra bullying apareceu na maioria dos grupos e seus significados foram associados a: "chamar alguém de preto", "apelido", "briga", "algo que começa na escola e termina na rua". Muitos alunos demonstraram estar inteirados do que é e quais são as causas do bullying, apresentando vários casos que foram noticiados pela mídia. A partir dessa questão, o tema da diversidade social foi debatido e de como o repúdio às pessoas diferentes ou às minorias sociais causam o bullying, sendo este, na verdade, o preconceito contra determinadas pessoas e grupos sociais.

Alguns mediadores chegaram a relatar, no final dos encontros, que tiveram muita dificuldade em lidar com este tema, pois viam-no acontecendo o tempo inteiro: "tratavam uns aos outros com apelidos pejorativos, cochichavam e davam risinhos olhando para determinados colegas". Estes, os humilhados, por sua vez, demonstraram visível constrangimeno, vergonha, e acabaram acuados, não participativos e calados.

No dia seguinte, realizou-se o segundo encontro e foi solicitado aos jovens que falassem um pouco sobre os seguintes temas: "Como surgiu a comunidade, que histórias as pessoas contam sobre o lugar?", "Que tipo de manifestações culturais existem no local?"; "O que eles mais gostam, o que menos gostam e o que desejam para a comunidade em que vivem?", e "Que percepção eles têm da escola?".

Com referência ao lugar em que moram, poucos souberam falar de sua origem, demonstrando muito constrangimento em falar sobre o tema. Alguns poucos adolescentes relataram que lá, em tempos muito antigos, havia sido um lugar em que moravam índios e escravos. Outros disseram que já tinham ouvido os pais falarem a respeito. Um rapaz fez questão de colocar que não era de lá e que havia morado em outra cidade a maior parte de sua vida.

A identidade étnica quilombola não foi apresentada pelos adolescentes como uma realidade local e, como já havia acontecido no primeiro dia de atividade ("o que é ser negro"), de difícil abordagem. De uma forma geral, em todos os grupos houve silêncio, muita inibição e falta de disposição para conversar sobre o tema. Em um dos grupos, um dos alunos, com certo receio, disse que um dos colegas dele era descendente de negros. Esse colega, então, negou essa afirmação. Quando foi lhe perguntado o motivo, ele disse que não era descendente de escravos. Apesar de ter muitos colegas negros, parece que seus colegas consideravam que apenas ele era negro, por sua pele mais escura. Outro aluno perguntou aos estagiários se era verdade que os negros tinham mais resistência às doenças. Foram retomadas as reflexões obre o preconceito contra as pessoas negras e afro-descendentes: sua genealogia, o mito da democracia racial, o desrespeito às diferenças culturais, a desigualdade social, as formas sutis como o racismo aparece (Da Matta, 1990; Camino, 2001; Silva Bento, 2003).

Em algumas turmas, em que foi mais difícil o diálogo sobre o tema do racismo, os mediadores buscaram por outra alternativa de expressão. Foi solicitado, então, que em vez de falar, eles desenhassem em cartolinas imagens que representassem as questões colocadas. O envolvimento dos alunos, de maneira geral, foi grande nessa atividade, o lúdico facilitou a abordagem da questão e muitas experiências dos jovens com relação à comunidade emergiram. Alguns desenhos que surgiram foram: panelas de barro (na comunidade há a tradicional confecção de panelas pelas paneleiras), casarões antigos, igrejas e figuras do congado local. Muitos desenhos representaram as festas promovidas pela igreja. Diante disto, foi tratada a importância da memória cultural para uma comunidade, como ela é responsável pela construção da identidade cultural de um povo e de como ela pode ser utilizada para promover o reconhecimento e a igualdade social.

Sobre o que faltava na comunidade, foram apresentados: desenhos de um hospital, um banco, um posto de gasolina e uma farmácia. Incentivados a falar sobre isso, os alunos deram uma série de exemplos: "Se alguém fica doente, tem que ir para a cidade pra se tratar, se o carro estiver sem gasolina, não tem como abastecer, tendo que ir lá também, e se tiver sem dinheiro não tem como tirar dinheiro no banco". Conversaram também sobre a falta que faz um campo de futebol e um posto policial. Essas colocações demonstraram uma forma crítica de se pensar o bairro, elegendo os serviços públicos como direitos humanos.

Um dos jovens levou uma reportagem de um jornal que relatava a situação precária do posto de saúde local, o que possibilitou um debate interessante sobre as dificuldades enfrentadas pelos moradores quanto à falta de atendimento médico e ausência de cuidado com os pacientes. Foi levantado também a questão do lixo acumulado nas ruas, que deveria ser mais bem observada pela prefeitura, e, ainda, sobre o alcoolismo, que foi representado como fazendo parte do cotidiano dos jovens, das famílias e moradores do lugar, sendo relacionado à pobreza e à falta do que fazer.

Todas essas experiências foram relacionadas à importância da participação pública das pessoas, e dos adolescentes, nos espaços de reivindicação dos direitos do cidadão e da importância de eleger governantes comprometidos com essas causas.

Os estagiários, numa atuação sócio-educativa, conversaram com os jovens sobre a importância das tradições culturais como transmissora de valores sociais, como integradora dos membros da coletividade e fornecedora de uma identidade social e política, pois instrumentaliza as pessoas e grupos para a luta em prol de seus interesses, para a participação e controle social dos bens públicos. Foram sugeridas aos jovens atitudes que podem contribuir para mudanças na sociedade como a participação no grupo de congado local e a solicitação de reuniões junto à direção da escola para tratar de assuntos de seus interesses.

Quanto à percepção sobre a escola, muitos concordaram que deveria ter aulas de dança, educação física e uma quadra de futebol. Um grande número de jovens comentou que a merenda da escola poderia ser melhor, porque muitas vezes eles têm que comer sopa quando está fazendo calor, ou então, se ganham biscoito ele está murcho. Levantaram a necessidade de incluir frutas e suco natural na merenda.

Ainda quanto à escola, foi apontado que eles não são ouvidos, que o diretor raramente está presente na escola e que muitas coisas deveriam ser mudadas: a merenda, a qualidade dos professores, o pequeno espaço físico da escola, o acesso à direção e coordenação da escola, a biblioteca considerada deficiente e a falta de funcionários. Este momento foi importante para tornar evidente, por parte dos estagiários, a importância da voz dos alunos para se posicionarem de forma crítica ao modelo educacional vigente no país, uma vez que, apesar desses problemas estarem localizados num lugar específico, eles são decorrentes das políticas de educação no Brasil.

Motivados a refletir sobre possíveis soluções para os questionamentos colocados, mais uma vez demonstraram desânimo e sentimentos de impotência para mudar a situação. Foi sugerido pelos estagiários que eles deveriam se organizar e apresentar para a direção da escola propostas de criação de um espaço de diálogo em que pudessem expressar seus sentimentos e afetos, assim como reivindicar alternativas e soluções para os pontos levantados por eles.

A avaliação dos estagiários a respeito de seus papéis nos encontros variou bastante. Alguns relataram que tiveram muitas dificuldades em lidar com o comportamento dos jovens devido às conversas paralelas, desinteresse pelos temas tratados, falta de participação, atitudes irônicas e debochadas dos participantes quanto a determinados mediadores.

Foi relatado pela maioria dos mediadores que o receio dos adolescentes de se manifestarem diante de determinados assuntos dava a impressão de que sentiam medo de falarem coisas que seriam consideradas erradas e que gerariam punições. Este fato, segundo a percepção dos estagiários, pode ter sido gerado pelas recomendações dos professores sobre o comportamento adequado que deveriam ter. Em alguns grupos, em que esta situação foi na hora percebida, levou os mediadores a colocarem a situação em reflexão, incentivando-os a se manifestarem sem o julgamento do certo e do errado, o que é imprescindível para que a pessoas possam discutir suas necessidades em qualquer espaço, seja o das relações afetivas e familiares, ou políticas, em seu sentido mais amplo.

Outros consideraram que se sentiram confiantes e seguros, e que as turmas foram receptivas e participativas, acreditando que contribuíram para que aqueles jovens despertassem para alguns questionamentos nunca antes realizados, possibilitando que uma maneira nova de pensar suas relações interpessoais, intergrupais e coletivas, surgisse desses encontros.

 

Considerações Finais

As atividades realizadas junto a estes jovens levaram às seguintes considerações: as brigas entre eles, que surgem através dos apelidos, são reflexos de uma série de preconceitos sociais existentes na sociedade brasileira, seja contra os negros e afro-descendentes, contra os que são usuários de drogas, contra as mulheres, contra as tradições, contras as pessoas pobres, entre outros. Foi observado que os adolescentes constroem hierarquias entre eles, reproduzindo dentro de sua própria classe social (que é desfavorecida socioeconomicamente) as mesmas hierarquias e lógicas que os poderes e discursos oficiais constroem para controlar e manipular pessoas e grupos sociais.

Essa realidade é bastante perigosa, pois coloca esses jovens - inseridos em grupos sociais desfavorecidos e estigmatizados - uns contra os outros, o que faz perder a possibilidade da construção de uma identidade crítica, de uma consciência coletiva, de um espírito de luta e de sentimentos de indignação contra as injustiças, as desigualdades sociais e as violações dos direitos humanos. Em decorrência disto, surge a formação e fortalecimento de coletivos alienados que servem de massa de manobra às ideologias dominantes.

Nenhuma liderança ou pessoa de referência foi citada, seja na escola ou na comunidade, apesar do incentivo dos mediadores para que essas pessoas pudessem aparecer na fala dos jovens. Esse dado é de fundamental importância, pois pessoas de referência, que são aquelas portadoras da admiração e respeito por parte dos membros da coletividade, são essenciais no período da adolescência. São esses outros significativos os mediadores entre os adolescentes e o mundo social; são através destes que eles aprendem e internalizam a confiança no mundo, a crença de que é possível modificar o meio em que vivem, os valores de igualdade, justiça e cidadania. No entanto, não se pode afirmar que não existem essas pessoas na comunidade e, para isto, um trabalho mais aprofundado deveria ser realizado.

Apesar de algumas tradições da comunidade terem aparecido, como as festas da igreja, o congado, as paneleiras, parece que estes símbolos culturais estavam desconectados dos seus sentidos mais profundos, o de memória e identidade cultural. As críticas à escola foram muitas, desde o seu espaço físico, qualidade da merenda, falta de funcionários, papel higiênico nos banheiros, até a relação com a direção e com os professores. Chamamos a atenção, em particular, para estas últimas queixas, feitas de maneira geral, por todas as turmas, que se referiram, principalmente, às pessoas responsáveis pela direção, como sendo autoritárias, desrespeitosas, e sem uma real preocupação com os alunos e a sua aprendizagem. Alguns, de forma mais enfática, relataram que as turmas e alunos são rotulados de forma pejorativa (como "alunos problema", "turmas que professor nenhum gosta de dar aula", "mau exemplo") por determinados professores e pela direção, e que, inclusive, estes rótulos os atingem na comunidade.

As queixas levantadas pelos alunos parecem apontar para uma dinâmica já existente nos processos sociais e que visam à criação de estereótipos e preconceitos. No entanto, seria prematuro afirmar que tais queixas coincidem com a realidade, pois a escola não foi alvo de investigação. No entanto, cabe enfatizar, que a educação deve ser entendida num sentido muito mais amplo, em sua roupagem política e humana: a de formar crianças e jovens como sujeitos históricos capazes de mudar a sociedade que os exclui dos bens simbólicos culturais, sociais e econômicos, contribuindo com a aprendizagem em direitos humanos.

Concluímos, afirmando a necessidade de implantação e desenvolvimento de ações que objetivem melhorar as interações entre os alunos e a escola como um todo, e, ainda, enfatizando a importância do estágio de núcleo básico para a experiência dos alunos fora da sala de aula, que, considerando os contextos sociais, propicia a construção de uma visão crítica da realidade e da Psicologia.

 

Referências

Afonso, M. L. & Abade, F. L. (2007). Para reinventar as rodas. Belo Horizonte: Rede de Cidadania Mateus Afonso Medeiros.         [ Links ]

Baumann, Z. (1999). Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Bobbio, N. (2004). A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus.         [ Links ]

Camino, L. I. E, da Silva, P., Machado, A. & Pereira, C. (2001). A face oculta do racismo no Brasil: uma análise psicossociológica. Revista de Psicologia e Política, 1(1), 13-36.         [ Links ]

Cassab, M.A. J. (org.) (2006). Para construir espaços solidários: uma metodologia de trabalhos com jovens. Juiz de Fora: EdUFJF.         [ Links ]

Cedefes/Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva. Pinhões. Retrieved October, 10, 2011 fromhttp://www.cedefes.org.br/index.php?p=projetos_detalhe&id_pro=110        [ Links ]

Ciampa, A. C. (2009). Identidade. In S. T. Lane & W. Codo. (orgs.) Psicologia Social -o homem em movimento (pp. 58-75). (13a ed.). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Foucault, M. (1996). Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Da Matta, R. (1993). Digressão: a fábula das três raças, ou o problema do racismo à brasileira. In R. Da Matta, Relativizando -uma introdução à Antropologia Social (pp. 58-87). Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Da Matta, R. (1978). O ofício do etnólogo, ou como ter "Anthropological Blues". In E. O. Nunes (org). A aventura sociológica (pp.23-35). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Gonçalves, L. A. O. & Gonçalves e Silva, P. B. (2006). O jogo das diferenças -o multiculturalismo e seus contextos. (4a. ed.). Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Guareschi, P. A. Pressupostos psicossociais da exclusão: competitividade e culpabilização. In B. Sawaia (org.). As artimanhas da exclusão -análise psicossocial e ética da desigualdade social (pp.141-156) (8a. ed.). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Hall, S. (2003). Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG.         [ Links ]

Lane, S. T. M. (2009). O Processo Grupal. In: S. T. M. Lane & W. Codo (orgs.) Psicologia Social -o homem em movimento (pp.78-98). (13a. ed.). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Sawaia, B. (org) (2008). As artimanhas da exclusão -Análise psicossocial e ética da desigualdade social. (8a. ed.). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Souza Santos, B. (2006). A gramática do tempo: para uma nova cultura política. (2a. ed.). São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Silva Bento, M. A. (2003). Branqueamento e Branquitude no Brasil. In I. Carone & M. A. Silva Bento. Psicologia social do racismo -estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 25-58). (2a. ed.). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 12/05/2011
Aceito em: 27/03/2012

 

 

1 Contato: sonialages@ig.com.br