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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versión On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.8 no.2 Juiz de fora dic. 2015

 

ARTIGOS

 

Saberes e práticas de enfermeiros na saúde mental: desafios diante da Reforma Psiquiátrica

 

Knowledge and practices of nurses in mental health: challenges in face of the Psychiatric Reform

 

 

Miriam Candida Souza1; Maria Lúcia Miranda Afonso

Centro Universitário UNA, Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

A Reforma Psiquiátrica Brasileira orientou a reestruturação do modelo assistencial em saúde, ensejando a criação de serviços substitutivos em saúde mental. Considerando a importância do profissional de enfermagem na implementação dessa política, foi desenvolvida uma pesquisa sobre os saberes e as práticas dos enfermeiros na área da saúde mental. Os sujeitos foram os enfermeiros que trabalham em dois Centros de Atenção em saúde mental, em duas cidades de Minas Gerais. A pesquisa foi desenvolvida por meio de entrevistas semiestruturadas e observação sistemática e os dados foram submetidos à análise de conteúdo. Os profissionais mostraram conhecer as propostas da Reforma Psiquiátrica, porém apontaram dificuldades para concretizá-las nos serviços, tais como a ausência de articulação intersetorial dos serviços de saúde e a falta, na sua formação acadêmica, de conhecimentos e habilidades específicas para a atuação nos serviços substitutivos de saúde mental. Entretanto, demandam mais conhecimentos na área de psicopatologia e não situam a necessidade de outros saberes e práticas adequados à Reforma Psiquiátrica. O artigo recomenda fortalecer a formação dos enfermeiros na graduação e/ou em capacitações no trabalho, para que esses profissionais possam enfrentar os desafios colocados pelos serviços substitutivos da política de saúde mental.

Palavras-chave: Política de Saúde Mental, Formação em Enfermagem Psiquiátrica, Reforma Psiquiátrica.


ABSTRACT

Brazilian Psychiatric Reform guided the restructuring of the health care model, allowing for the creation of alternative services in mental health. Considering the importance of nursing professionals in the implementation of such a policy, a research on the knowledge and practices of nurses in the mental health area was developed. The subjects were nurses working in two centers of mental healthcare, in two cities of Minas Gerais. The research was conducted through semi-structured interviews and systematic observation and data were subjected to content analysis. The nurses understand the proposals of the psychiatric reform, but reported difficulties to concretize them, such as the lack of inter-agency coordination of health services and the lack, in their educational training, of knowledge and skills specifically required for the professional performance in the substitutive mental health services. However, they still require more knowledge in the area of psychopathology and do not point out the need for further knowledge and practices appropriated to Psychiatric Reform. The article recommends strengthening nursing training at the undergraduate level as well as in training at work, in order to prepare the professionals to meet the challenges of the substitutive services of the mental health policy.

Keywords: Mental health policy, Training in Psychiatric Nursing, Psychiatric Reform.


 

 

A Reforma Psiquiátrica Brasileira foi impulsionada pelos movimentos sociais de trabalhadores de Saúde Mental e familiares de pacientes, através de denúncias sobre maus tratos e abandono de doentes mentais. Os grandes marcos reivindicatórios na área da saúde mental surgem a partir da reforma sanitária, na 8º conferência Nacional de Saúde, em 1986, que norteou a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), inscrito na Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei 8080 de 1990, ou Lei Orgânica da Saúde (Minas Gerais, 2006). O novo modelo de saúde mental teve como eixo principal a reestruturação da assistência, caracterizada pela desospitalização de pacientes internados por longo período e a criação de serviços substitutivos, trazendo novos dispositivos para lidar com o sofrimento mental, dentre eles o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).

No CAPS, o enfermeiro integra a equipe inter-disciplinar, e sua atuação torna-se essencial para a implementação da Reforma Psiquiátrica, uma vez que lhe é atribuído um papel extremamente ativo nos serviços substitutivos, inovando a prática da enfermagem no campo da saúde mental (Brasil, 2004). Assim, com a mudança do modelo assistencial, surge a preocupação com a formação profissional, a fim de garantir uma assistência eficaz e promover a saúde, sem perda da dignidade dos portadores de sofrimento mental. Porém, na prática, isto pode suscitar não apenas apoio, mas, também, resistência por parte dos profissionais, seja por desejarem manter concepções e práticas tradicionais, seja por não saberem como pautar a sua atuação dentro dos novos paradigmas.

A identificação de práticas inovadoras dos profissionais de saúde torna-se necessária para consolidar os conhecimentos necessários ao avanço da Reforma Psiquiátrica e à organização dos cuidados em saúde mental. Este artigo apresenta uma pesquisa realizada em dois centros de saúde mental e que visava responder à seguinte questão: Que saberes e práticas sobre saúde mental têm sido desenvolvidos pelos enfermeiros no CAPS diante do desafio da Reforma Psiquiátrica?

 

Revisão de literatura

A rede de serviços substitutivos: focalizando o Centro de Atenção Psicossocial

A rede de atenção à saúde mental é composta pelo CAPS, Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centros de Convivências, Ambulatórios de Saúde Mental e Hospitais Psiquiátricos e Gerais. Essa rede definiu-se como base comunitária e deve articular diversos serviços substitutivos do hospital psiquiátrico com outras instituições, associações, cooperativas e espaços urbanos: “É, portanto, fundamento para a construção desta rede a presença de um movimento permanente, direcionado para os outros espaços da cidade, em busca da emancipação das pessoas com transtornos mentais” (Minas Gerais, 2006, p.25).

A saúde mental proposta através dos serviços substitutivos estabelece uma rede de cuidados diversificados no território, permitindo melhor acompanhamento dos resultados do tratamento, bem como na qualidade de vida cotidiana e na construção da identidade, em uma abordagem psicossocial da saúde. Segundo Amarante (1994), o trabalho no território é de reprodução de vida e subjetividade, porque nele se encontram os elementos do cotidiano, com suas práticas, costumes e saberes, essenciais para promover a inclusão social.

O CAPS tem uma posição estratégica na articulação da rede de atenção em saúde mental no território, que deve ser, por excelência, promotora de autonomia, já que articula os recursos existentes em variadas redes: sócio-sanitária, jurídica, social e educacional, dentre outras (Minas Gerais, 2006). A função do CAPS depende do reconhecimento local do projeto de saúde mental. Destacam-se duas de suas funções:

Uma delas consiste em atuar como um espaço intermediário entre o nível básico e o hospital psiquiátrico, atendendo os casos de relativa gravidade, porém preferindo encaminhar os mais difíceis e graves: nesse caso, o CAPS funciona como um serviço complementar ao hospital. A outra é quando integra um conjunto de ações e serviços que dispensam esta retaguarda, ou seja: quando se integra numa rede de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico (Minas Gerais, 2006 p.36).

O funcionamento do CAPS é definido pela Portaria GM nº 336/2002: atende pacientes em crise, com atendimentos diurnos (CAPS I e II), de segunda-feira a sexta-feira, e em regime de 24 horas (CAPS III), de segunda-feira a segunda-feira (SUS, 2002).

O CAPS pode absorver profissionais de nível superior com diferentes formações, integrados em equipe multiprofissional, como enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, pedagogos ou outros. A exigência do perfil do profissional difere de acordo com o tipo de CAPS. São também admitidos profissionais de nível médio, como técnicos e/ou auxiliares de enfermagem, técnicos administrativos, educadores e artesãos, além das equipes de limpeza e de cozinha (Brasil, 2004).

A Portaria nº 336/2002 (Sistema Único de Saúde [SUS], 2002) determina que os CAPS ofereçam atendimento individual, em grupos, em oficinas terapêuticas, por meio de visitas domiciliares, atendimento à família e atividades comunitárias, enfatizando a integração do doente mental na comunidade e sua inserção familiar e social. Entretanto, para que estas novas práticas se tornem possíveis, é necessário que os profissionais sejam capacitados para desenvolvê-las.

Ensino de enfermagem como fator fundamental da Reforma Psiquiátrica

O processo de formação do enfermeiro, definido pelas Diretrizes Curriculares Nacionais, reitera a necessidade do compromisso com a reforma sanitária brasileira, valorizando o SUS e buscando garantir a integralidade das ações do cuidar. Para essa formação, é fundamental uma visão crítica e reflexiva inserida no contexto histórico-social, pautada em princípios éticos e articulada à consolidação da atenção à saúde. Em saúde mental, essas competências e habilidades devem ser voltadas para dar respostas aos princípios propostos na Política Nacional de Saúde Mental (Fernandes et al., 2009).

Já no ano de 2000, Villa e Cadete (2000) apontavam a necessidade de articular o novo modelo de assistência com as práticas acadêmicas sobre os novos dispositivos de saúde mental. As autoras reiteravam a importância de a formação profissional ser fundamentada em uma nova concepção sobre a loucura, no resgate da cidadania e na participação efetiva do enfermeiro na assistência.

Entretanto, como discute Maftum (2004), a partir de uma pesquisa sobre 23 escolas públicas e privadas, no Paraná, os cursos de enfermagem apresentam ambivalências relativas aos conteúdos de saúde mental, nem sempre integrados aos currículos, bem como dificuldades para redimensionar a prática dos docentes e de outros profissionais atuantes na saúde mental. Essa contradição entre o discurso e a prática de formação em saúde mental foi também enfatizada por Rodrigues, Santos e Spriccigo (2012), em um estudo sobre escolas de enfermagem, públicas e privadas, em Santa Catarina, nos anos de 2009 e 2010. Por um lado, o discurso dos docentes era pautado na Reforma Psiquiátrica, entendendo que a atuação do enfermeiro deveria ser baseada no sintoma apresentado pelo sujeito, que seria apreendido por meio de disposição profissional, atenção, escuta e comunicação. Por outro lado, no currículo, o conteúdo de enfermagem em saúde mental estava organizado em especialidades, o que contribuía para uma prática fragmentada, e representava apenas 4,8% de todo o curso.

Também Souza (2010), ao analisar 13 escolas públicas de São Paulo, constatou avanços em alguns aspectos nos planos de ensino da disciplina enfermagem em saúde mental/psiquiátrica, mas identificou que a maioria dos conteúdos estavam centrados nas psicopatologias e terapêuticas medicamentosas. Identificou um descompasso entre teoria e prática, sendo que as aulas ofereciam apenas teorias, ficando a prática dependendo da iniciativa isolada dos estudantes que procuravam contato com os serviços.

Indaga-se, assim, como introduzir, na formação do enfermeiro, a abordagem do cuidado pautado numa relação de ética e de cidadania, valorizando as demandas dos usuários, suas histórias de vida e relações. Essa questão surge na pesquisa aqui apresentada, cuja metodologia é descrita a seguir.

 

Metodologia

A presente pesquisa, de natureza qualitativa, abordou os saberes e práticas considerados necessários pelos enfermeiros para a sua atuação profissional nos CAPS, enfatizando, como lembra Minayo (1994, p.22), “significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes que respondem a um espaço mais profundo das relações”. O trabalho de campo foi desenvolvido de outubro de 2012 a março de 2013, por meio de entrevistas semiestruturadas e observação sistemática.

Foram entrevistados três enfermeiros que atuavam, no mínimo há seis meses, em dois centros de atenção à saúde mental, em Minas Gerais. O Enfermeiro 1 e o Enfermeiro 2 trabalhavam em um Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) da Cidade 1 (grande centro urbano), e o Enfermeiro 03, no CAPS da Cidade 02, de médio porte.

As entrevistas semiestruturadas continham perguntas fechadas e abertas, tendo sido gravadas e transcritas para a análise. Os temas abordados foram: formação dos profissionais; atividades realizadas nos centros de saúde mental; fatores que facilitam e dificultam a atuação do enfermeiro; conhecimento sobre a política de saúde mental vigente; influência da política de saúde nas atividades cotidianas realizadas.

Em cada centro estudado, foram também feitas observações sistemáticas de aproximadamente 03 horas de duração, distribuídas em 03 dias, visando conhecer as atividades desenvolvidas pelos profissionais de enfermagem. As agendas dos profissionais foram consultadas e as observações anotadas em um diário de campo. Foram registrados aspectos relacionados a: organização do trabalho e cotidiano institucional; trabalho do profissional de enfermagem; e formação do profissional.

As entrevistas foram trabalhadas por meio da análise de conteúdo temática, conforme desenvolvida por Bardin (2011). Essa abordagem analisa a fala dos entrevistados, considerando as significações e formas de expressão, buscando conhecer os sentidos expressos pelos sujeitos, dentro das suas condições de produção.

Ao serem convidados a participar do estudo, os sujeitos foram informados sobre os seus objetivos e sobre as questões éticas que envolvem estudos com seres humanos. Todos eles assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido. A pesquisa obedeceu às normativas do Conselho Nacional de Saúde e recebeu a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, estando inscrita na Plataforma Brasil com o CAAE número 04999012.0.0000.5098.

 

Análise e discussão dos dados

Perfil e formação dos profissionais pesquisados

Os três sujeitos participantes estavam na faixa etária de 29 a 49 anos, sendo 02 do sexo feminino e 01 do sexo masculino. O tempo de graduação em enfermagem dos entrevistados variou entre 05 e 20 anos, sendo que o tempo de serviço na área da saúde mental variou de 02 a 05 anos.

Perguntou-se aos enfermeiros se consideravam que a sua formação lhes dava base para atuação no modelo da promoção da saúde mental no contexto da Reforma Psiquiátrica. As respostas denotam que a sua formação se ancorou no modelo centrado na doença. Destacaram que as disciplinas cursadas sobre saúde mental foram trabalhadas em cargas horárias teóricas e práticas de curta duração, dificultando apreender saberes afinados aos preceitos da Reforma Psiquiátrica e às práticas pertinentes ao enfermeiro no CAPS e no CERSAM, como disse o Enfermeiro 01:

Era uma disciplina relativamente curta, foram 30 horas teóricas. A gente somente fez uma visita, só conheceu o CAPS, mas não chegou a ter prática, não. Então a gente via as teorias de enfermagem psiquiátrica, um pouquinho de história, mas muito pouco, aí entramos com o conteúdo. A gente via cada transtorno e os cuidados com cada transtorno e neste meio víamos um pouco de psicofarmacologia, mas nada muito aprofundado não.

A análise das falas nos revela que há um descompasso entre teoria e prática no ensino de enfermagem e saúde mental/psiquiátrica, acarretando prejuízo na formação do enfermeiro e comprometendo a sua atuação nos CAPS ou no CERSAM. Chamam atenção os conteúdos desenvolvidos, com ênfase nas teorias tradicionais de enfermagem psiquiátrica, que abordam psicopatologia, psicofarmacologia e cuidados, mais próximos da reprodução do modelo tradicional e não integrados à política de saúde mental.

Os entrevistados demonstraram inquietação e insatisfação ao avaliar a sua formação para atuar em CAPS e em CERSAM, considerando-a precária e insuficiente e buscando construir um saber calcado na prática diária, como diz o Enfermeiro 03:

“eu avalio como muito precário, porque o que eu aprendi de saúde mental, aprendi aqui, não aprendi lá não”.

Esses dados são corroborados pelos estudos de Maftum (2004), Souza (2010) e de Rodrigues, Santos e Spriccigo (2012), que mostraram que a formação dos enfermeiros em psiquiatria ou saúde mental ainda é predominantemente voltada para a psicopatologia, centrada na doença, fragmentada, desarticulada das proposições da Reforma Psiquiátrica e reforçando práticas asilares.

A análise dos dados permitiu compreender que os saberes dos profissionais, na área da saúde mental, estão sendo construídos com a imersão na prática diária dos serviços e na interação com a equipe multiprofissional. Essa orientação foi reiterada no estudo realizado por Costa (2005) que analisa como os recursos utilizados pelos enfermeiros para fundamentar suas práticas acontecem nas situações cotidianas do serviço através das reuniões de equipe e reuniões clinicas.

Silva e Fonseca (2005) também ressaltam que as ações de enfermagem no campo psiquiátrico têm como base o conhecimento teórico e prático do manejo da doença e sua sintomatologia. A ação do enfermeiro se tornava indispensável através do poder que incidia sobre o outro através do gerenciamento, administração, normatização, controle e disciplina.

A partir do rompimento com o modelo tradicional psiquiátrico, surge uma crise de identidade do enfermeiro, que se vê perdido em relação às práticas no campo psicossocial, como expressa o Enfermeiro 01:

“eu costumo falar que existem três sujeitos que ficaram perdidos após abrir a porta do manicômio, que é o psiquiatra, o enfermeiro e o próprio paciente”.

O significado de “estar perdido” relaciona-se à falta de normas e rotinas, o que, para Amarante (2008), faz parte da estrutura do serviço de atenção psicossocial, que precisa ser flexível, para que não se torne um espaço burocratizado que enfoca a doença e não a pessoa, na sua subjetividade.

Essa falta de identidade é também abordada no estudo de Dias e Silva (2010): os enfermeiros acreditam que as atividades que realizam fogem completamente da competência de sua profissão e têm dificuldade para definir sua função no processo de produção de saúde num serviço extra-hospitalar. Isto porque o conceito que têm sobre ser enfermeiro está ligado à prática hospitalar, causando-lhes um sentimento de distorção da sua identidade profissional.

Perguntou-se aos entrevistados que aspectos mudariam em sua formação acadêmica a fim de se prepararem para trabalhar na área de saúde mental. Foram levantados conteúdos relacionados às práticas nos serviços de saúde mental, a necessidade de aumento na carga horária da disciplina de enfermagem psiquiátrica e teorias de enfermagem psiquiátrica. Os entrevistados consideram que, para uma formação sólida, seria necessário maior conhecimento sobre as patologias e os cuidados nas diferentes situações de saúde e doença.

A necessidade de um contato maior com as atividades práticas no campo de atenção psicossocial foi enfatizada por diversos autores (Luchesse & Barros, 2009; Villa & Cadete, 2000; Maftum, 2004; Soares, Silveira & Reinaldo, 2010) que argumentam que a prática possibilita um espaço dinâmico para desenvolvimento das competências, mobilizando recursos diversos. É constituída de situações complexas que possibilitam a construção de saberes e fazeres que superem o modelo psiquiátrico tradicional, orientando a assistência também nos eixos político e social.

Dentre as necessidades percebidas, enfatizam-se as seguintes falas dos entrevistados:

“Acho que deveria investir nas patologias mesmo, e a visão do enfermeiro dentro do CERSAM” (Enf 02) e “Se o enfermeiro estiver mais capacitado ele sabe o que ele está vendo, saber a patologia, com certeza vai saber lidar com este tipo de paciente” (Enf 03).

Certamente os estudos de psicopatologia são necessários, desde que não sejam os únicos conteúdos abordados. É preciso evitar o retrocesso à abordagem que prioriza a doença e reproduz o modelo de assistência tradicional. A atuação dos enfermeiros poderia buscar embasamento também na interdisciplinaridade e na atuação em rede, promovendo a cidadania dos usuários. Assim, há outros saberes, além daqueles que versam sobre patologias, necessários à intervenção na área da saúde mental.

Essas ponderações encontram fundamentos na literatura. Nessa direção, Silveira e Viana (2010) enfatizam a necessidade de se construir marcos teóricos na saúde mental para resgatar o sujeito social e a cidadania. Costa (2005) argumenta que os planos de ensino em saúde mental precisam ser mais elaborados, incluindo a vida social e familiar do paciente. A abordagem interdisciplinar na saúde mental é defendida por Silveira e Viana (2010), Pinheiro (2011) e Costa (2005).

Atividades realizadas pelos enfermeiros no CAPS e no CERSAM

A portaria 336/2002 preconiza que os CAPS ofereçam: atendimento individual, atendimento em grupos, atendimento em oficinas terapêuticas executadas por profissional de nível superior ou nível médio; visitas domiciliares; atendimento à família; atividades comunitárias enfocando a integração do doente mental na comunidade e sua inserção familiar e social (SUS, 2002).

O trabalho de campo mostrou que as agendas dos enfermeiros da Cidade 01/CERSAM eram definidas institucionalmente e compreendiam: duas agendas programadas em atividades semanais, pertencentes ao Enfermeiro 01 e ao Enfermeiro 02, apresentando características semelhantes relativas a: sua função de Plantonistas no acolhimento à crise, avaliando e definindo condutas; consultas agendadas em Ambulatório de pacientes que estão em atendimento semiintensivo ou não intensivo; atuação como técnicos de referência; supervisão de enfermagem; administração de enfermagem; e participação em reuniões.

Estes enfermeiros estão lotados no mesmo serviço. Diferenciam-se no que diz respeito ao atendimento à família e à participação em oficinas pois, segundo o Enf 01, isto

“se deve ao fato de não ter tempo hábil numa carga horária de 20h para realizar estas atividades”.

Foi observado, através dessas agendas, estabelecidas institucionalmente, que o enfermeiro sai da posição administrativa, gerencial e passa a se responsabilizar por tecnologias de cuidados reconhecendo a singularidade do usuário, o envolvimento da família e da equipe na condução de casos. A supervisão de enfermagem é distribuída em dias específicos.

Como mostrou Costa (2005), existe uma identificação forte dos enfermeiros com as atividades consideradas inerentes à profissão, como a supervisão, gerenciamento da equipe de enfermagem e outros procedimentos específicos. Não se reconhecem como profissionais de enfermagem quando conduzem os projetos terapêuticos com os usuários.

Já na agenda do enfermeiro da Cidade 02/CAPS não havia uma programação semanal, sendo que a rotina diária se repetia no decorrer da semana. O Enfermeiro 03 realizava supervisão de enfermagem, atendimento à família, participação em reunião e acolhimento aos usuários, como retarguarda para outros profissionais da equipe interdisciplinar. O Enfermeiro 3 diz:

“Eu venho para cá (recepção e setor administrativo) para ajudar no acolhimento, eu fico muito na retarguada de acolhimento, por exemplo telefone, urgência eu quem atendo [...]. “Quem está no acolhimento eu fico na retarguarda lá fora, e quando chega uma urgência eu encaminho lá para dentro”.

Nesse caso, o enfermeiro não se responsabiliza pela condução de casos, desenvolvendo atividades burocrático-administrativas e supervisão de enfermagem na maior parte do tempo, se alinhando a atividades tradicionalmente exercidas pela enfermagem. Observa-se a falta de saberes para desenvolvimento de escuta singularizada e condução de casos. Na saúde mental, os enfermeiros ainda não participam nas decisões dos tratamentos e têm dificuldades para definir o seu objeto de trabalho. Configuram-se, portanto, duas situações: uma atuação do profissional de enfermagem voltado para as atividades administrativo-burocráticas e outra atuação com a sua participação na atenção ao usuário, planejando e conduzindo o processo terapêutico (Oliveira & Alessi, 2003; Dias & Silva, 2010; Santos, 2009; Bertoncello & Franco, 2001; Oliveira, Silva & Silva, 2009; Pinheiro, 2011).

Fatores que facilitam ou dificultam a atuação do enfermeiro no CAPS/CERSAM

Uma das principais dificuldades mencionadas pelos entrevistados para a sua atuação em saúde mental foi a falta de definição da identidade do enfermeiro na área psicossocial, dentro do novo modelo, e o tempo dedicado a ser técnico de referência, como diz o enfermeiro 01:

“Falta de perfil, a questão de técnico de referência toma muito o tempo da gente. Sinto falta das coisas da enfermagem [...]”.

Existe uma busca de identificação do enfermeiro no campo psicossocial. As atividades desenvolvidas como técnico de referência são entendidas como um empecilho para a realização das atividades construídas historicamente pela enfermagem, como supervisão de enfermagem e procedimentos técnicos.

Analisando a percepção dos enfermeiros acerca das práticas assistenciais nos serviços extra-hospitalares em saúde mental, Calgaro e Souza (2009) verificaram que os profissionais se sentem desvalorizados quanto às práticas especificas do enfermeiro. Essa indefinição de papéis entre “ser enfermeiro” e “ser técnico de referência” tem provocado, segundo Costa (2005), um movimento de afirmação/negação na profissão. A nova identidade de técnico de referência pode entrar em conflito com o papel tradicional, mas os papéis também podem coexistir sem se anularem.

O técnico de referência é definido pela Linha Guia de Saúde Mental como profissional de nível superior que estabelece e sustenta o vínculo com o paciente, traça as linhas de seu projeto terapêutico individual, define a frequência dos atendimentos, faz os contatos com a família e outros, no espaço social, sempre que necessário (Minas Gerais, 2006).

Outras dificuldades apontadas referem-se à sobrecarga de trabalho, ao número reduzido de profissionais no serviço, à desvalorização do profissional quanto ao salário e à falta de reconhecimento, pela gestão municipal de saúde, da importância do trabalho da enfermagem para a saúde mental. O discurso do enfermeiro (Enf 03) aponta um senti mento de desvalorização causado pela falta de recursos políticos locais para com os serviços de saúde mental.

“A discriminação não é só da sociedade em relação a saúde mental, mas da próprio Sistema o CAPS é o último sempre em tudo” (Enf 03).

Um outro aspecto, levantado por Azevedo e Ferreira Filha (2012), é que muitas dificuldades encontradas por profissionais do CAPS para desenvolver suas atividades de inclusão social relacionam-se a entraves nos recursos financeiros e materiais e à necessidade de se ampliar as equipes matriciais do CAPS a todas as equipes de Saúde da Família.

Quanto aos aspectos facilitadores mencionados por alguns enfermeiros do CAPS/CERSAM citam-se: o relacionamento e o trabalho em equipe bem como a identificação pessoal com a área de saúde mental. Veja-se, como exemplo, a fala do Enfermeiro 03:

O gostar muito do que eu faço, gostar de saúde mental. Eu acho que... Ver muito a questão do resultado. A gente vê que quando o paciente é tratado de uma maneira correta e ele também tem o apoio da família, a gente sabe que dá resultado. A equipe é um fator positivo, proativa e unida.

Observou-se que a interação em equipe é imprescindível para a construção coletiva do trabalho diante da demanda do usuário, o que pressupõe uma atuação complexa, necessitando de um conjunto de saberes que se inter-relacionam, ultrapassando os limites das disciplinas. Esta interação é um fator determinante para o processo de atuação do enfermeiro no CAPS/CERSAM. Mas isto requer contextualizar o trabalho da equipe dentro da política de saúde mental, inclusive na referência das políticas municipais.

Outro ponto facilitador do processo de trabalho do enfermeiro é a sua busca contínua por educação na área de saúde mental:

Buscar aperfeiçoar ajuda, passando pelas pós-graduação, não que isso seja imprescindíveis, sempre fui um profissional que não se limitava ao fazer mas o porque de tudo (Enf 01).

A formação continuada mostra-se muito importante assim como a pró-atividade do enfermeiro em buscar de novos saberes e práticas afinadas com a reforma psiquiátrica. Azevedo e Ferreira Filha (2012) constataram que a realização de capacitação proporcionava maior articulação da rede de cuidado em saúde, integrando os serviços de saúde mental, favorecendo, desta forma, a construção das redes sociais e a integralidade do cuidado.

Conhecimento dos enfermeiros sobre a Política de Saúde Mental

Foi perguntado aos enfermeiros do CAPS/CERSAM como percebem e interpretam a Política de Saúde Mental vigente no País. Os entrevistados sugerem que há necessidade de um rearranjo político, para a plena implementação dessa política, bem como para melhoria das estratégias que possibilitem a reinserção social dos usuários. Argumentam que essa implementação depende, em larga medida, das iniciativas municipais e da infraestrutura local.

A partir de suas experiências profissionais, todos os entrevistados consideraram que a Política de Saúde Mental ainda é ineficiente, em nível local, por que não cumpre a contento a legislação vigente e não garante a assistência aos portadores de sofrimento mental, em serviços abertos, tal como regulamentado pela Lei n.10.216 de 04/06/2001 (Brasil, 2001), assegurando uma rede comunitária de serviços em substituição à internação hospitalar, como garantia dos direitos das pessoas com transtorno mental.

Para a reestruturação da Política de Saúde Mental local, os enfermeiros apontam a necessidade da implantação de dispositivos substitutivos, como residência terapêutica2, atuação na comunidade, articulação com a unidade de saúde, articulação com outras políticas públicas além da qualificação dos profissionais das unidades básicas de saúde para trabalhar de maneira integrada com a saúde mental.

Entendendo que os enfermeiros têm um lugar estratégico de referência em saúde mental, questionamos nossos entrevistados sobre a avaliação que fariam do projeto de Saúde Mental dos seus municípios. Disseram que são projetos interessantes, mas que precisariam ir além da assistência clínica e construir articulações intersetoriais. Além disso, sinalizam a falta de dispositivos na rede, impossibilitando essa articulação, como expressa o Enfermeiro 01, com ênfase na ação do profissional:

Eu acho que ele precisa transcender urgentemente esta questão assistencial, entender que esta questão assistencial não é nem de longe a meta da saúde mental. Se quer voltar para isso de maneira criativa, entender que o público está mudando, que a luta antimanicomial... ela tem que ser uma coisa contínua...

Como afirma o Enfermeiro 3, é preciso investir mais na construção e na articulação da rede assistencial:

“Falta muita coisa. Acho que falta articular bastante rede, alguns dispositivos para esta rede, por exemplo, a residência terapêutica, que não têm. Mas faltam alguns dispositivos, para que a gente tenha uma rede de saúde mental mais atuante”.

Torna-se importante lembrar, com Yasui (2006, p. 146), que a “organização de um CAPS que assume isoladamente a responsabilidade de dar conta de toda a demanda e toda a complexidade da vida do sujeito é muito semelhante à proposta autoritária do hospital psiquiátrico”. A influência da política de saúde mental não se limita à organização dos serviços, mas é ela, inclusive, que pode criar condições de sustentabilidade para novas identidades profissionais, para o trabalho em equipe e a inter-disciplinaridade na saúde mental.

Influência da política de saúde mental no trabalho cotidiano dos enfermeiros

Foi perguntado aos entrevistados como percebiam as novas formas de cuidar criadas a partir da atual política de saúde mental. Eles citaram o trabalho com a equipe interdisciplinar e o papel de técnico de referência, como na fala do Enfermeiro 01:

“A ideia do técnico de referência por exemplo. O fato de você virar técnico de referência, não que seja ruim, mas impedindo você de exercer a sua profissão... Eu sentia muita falta de ser enfermeiro [...]”.

Ora, a tecnologia de cuidados que deveria ser desenvolvida nos serviços substitutivos tem a proposta de romper com a prática tradicional. Entretanto, mesmo adaptando a sua atuação terapêutica à demanda do serviço substitutivo, o entrevistado acima não se sente confortável em “virar técnico de referência”. Identifica-se, assim, a dificuldade do profissional em definir a sua atuação no serviço substitutivo de acordo com a política de saúde mental e de compreender as práticas da clínica da enfermagem psiquiátrica.

Dias e Silva (2010) acreditam que as atividades realizadas pelos enfermeiros na saúde mental extrapolam a sua competência e eles têm dificuldade para definir sua função no processo de produção de saúde em serviços extra-hospitalares, e isto ocorre porque a sua compreensão do trabalho do enfermeiro está ligada à prática hospitalar, criando uma imagem limitada de sua identidade profissional. Mostram-se despreparados para as exigências introduzidas pelo cuidado ao usuário da saúde mental. Portanto, precisariam buscar uma formação teórico-clínica que fundamentasse a sua atuação na condução dos casos.

Em um plano teórico, os entrevistados reconhecem o trabalho do técnico de referência como uma inovação no cuidado, sintonizado com os princípios do tratamento individualizado, preconizado pela política de saúde mental, próximo ao usuário, promovendo a inserção social, articulado com a equipe multidisciplinar e com o território. No entanto, fazem uma divisão entre os cuidados associados a “ser técnico de referência” e os cuidados específicos tradicionais de enfermagem, ou seja, “ser enfermeiro”. Sugerem que o enfermeiro perde sua especificidade dentro da equipe ao assumir o papel de técnico de referência, vivendo um desconforto que pode leva-lo a recorrer aos dispositivos tradicionais.

Finalmente, é interessante observar, conforme enfatizou Ornelas (2010), que as práticas dos profissionais que atuam nos serviços substitutivos devem ter clara orientação políticas, alinhadas com as políticas antimanicomiais.

Comparações entre os centros estudados, com referência nas diretrizes da política de saúde mental

Observa-se que os enfermeiros do CER-SAM/Cidade 01 atuam ativamente no acolhimento à crise, como plantonista, responsabilizando-se pelo atendimento do usuário, definindo condutas e recorrendo à equipe interdisciplinar, caso necessário. Alinha-se, portanto, com os princípios da atual Política de Saúde Mental.

Diferentemente, o enfermeiro do CAPS/Cidade 02 não se responsabiliza pelo acolhimento à crise, pela exigência da escuta qualificada e nem se responsabiliza pelo planejamento dos primeiros planos de cuidados. O enfermeiro é como um “recepcionista de usuários”, fazendo o seu encaminhamento para o psicólogo, o terapeuta ocupacional ou assistente social, para definição de condutas.

O desempenho de atividades administrativo-burocráticas pelo enfermeiro, na maior parte do tempo, restringe a assistência junto à equipe de enfermagem e ao paciente (Oliveira & Alessi, 2003; Silva & Dias, 2010; Santos 2009; Bertoncello & Franco, 2001).

Em relação às atividades desempenhadas com a equipe interdisciplinar, o enfermeiro do CER-SAM/Cidade 01, pratica maior interação de saberes, decorrente das discussões de casos clínicos, seja para condutas em acolhimentos ou no plano terapêutico, como técnico de referência. Esta aproximação ocorre por meio de diálogo constante. Outro dispositivo rico de interação interdisciplinar são as reuniões de equipe, realizadas no CERSAM ou na microárea das unidades básicas de saúde. O enfermeiro do CAPS/Cidade 02 participa de atividades interdisciplinares, nas quais há discussão de casos para interferência no plano terapêutico, que se dá diariamente ou em reuniões de equipe.

Em relação ao desenvolvimento de atividades de grupo, tanto no CERSAM/ Cidade 01 quanto no CAPS/Cidade 02, o enfermeiro não as realiza com os usuários. As atividades em grupo realizadas pelo enfermeiro no CERSAM/Cidade 02 se restringem às oficinas desenvolvidas com os técnicos de enfermagem sobre o autocuidado. E, nas oficinas terapêuticas, o enfermeiro coloca-se como auxiliar de outros profissionais da equipe técnica. Já no CAPS/Cidade 02 o enfermeiro não atua em quaisquer atividades em grupos. Pode-se interrogar se o enfermeiro não encontrou, em sua formação, os saberes necessários para desenvolver estas diferentes estratégias de cuidado, que poderiam ser grupos de convivência, de reflexão e debate, educativos, de negociação de conflitos, assembleias, dentre outros.

No estudo realizado com enfermeiros do CERSAM, Castro (2008) evidenciou um despreparo acadêmico para a condução de grupos, embora esta seja uma atividade amplamente realizada pelo enfermeiro. Monteiro (2006) ressalta o despreparo acadêmico dos enfermeiros para as atividades de reabilitação, tendo aprendido apenas a cuidar de um indivíduo, quando, na saúde mental, em caso de grupos, assume dezenas de pacientes por dia que necessitam de atividades reabilitadoras.

Todos os enfermeiros do CERSAM/Cidade 01 e do CAPS/Cidade 02 apresentaram dificuldades em definir estratégias de cuidado para serem desenvolvidas nos territórios onde estão localizados os centros de saúde. Limitavam-se a trabalhar na rede de saúde mental buscando integração com as unidades básicas de saúde e dedicando-se às atividades de cuidado no interior do CAPS ou do CERSAM. Segundo Brasil (2005), trabalhar no território não é trabalhar na comunidade, mas trabalhar com componentes, saberes e forças concretas da comunidade que propõem soluções. Entretanto, os entrevistados não apresentam essas concepções.

Ao descrever as estratégias de atuação comunitária com participação efetiva do enfermeiro, Kantorski, Pinho, Saeki & Souza (2006) levantam estratégias como: atividades físicas como caminhadas e jogos; participação em cursos de preparação para o trabalho (cozinha, costura, padaria), comercialização dos produtos confeccionados em oficinas. Uma experiência interessante foi a oficina externa com participação do enfermeiro juntamente com os usuários numa programação semanal de uma hora, no rádio da cidade, incluindo a divulgação de receitas culinárias, músicas, eventos, debates e entrevistas com autoridades locais da saúde mental.

Em relação à sua formação acadêmica, tanto o enfermeiro do CERSAM/Cidade 01 quanto os do CAPS/Cidade 02 declararam que receberam uma carga horária maior destinada às aulas teóricas, com pouca atenção às aulas práticas, as quais eram, inclusive, reduzidas às visitas técnicas, no que tange aos serviços substitutivos. As aulas teóricas abordavam psicopatologia, psicofarmacologia e cuidados de enfermagem frente aos transtornos mentais. Em ambos os centros estudados, os enfermeiros tiveram uma formação baseada no modelo manicomial e constataram que a formação acadêmica foi ineficiente para sua atuação profissional. Afirmaram também, que o conhecimento tem sido construído diariamente, principalmente com a comunicação estreita com a equipe interdisciplinar.

Os meios utilizados para a capacitação do enfermeiro do CERSAM/Cidade 01 foram: discussão de casos clínicos, cursos, livros, artigos, conferências, supervisão clínica, reuniões de equipe, dentre outros. No CAPS/Cidade 02, a capacitação se limitava à reunião de equipe. Nem no CER-SAM/Cidade 2 nem no CAPS/Cidade 02 foram observados quaisquer documentos que se remetiam a cursos, capacitações ou fóruns, com a participação do enfermeiro, que fossem promovidos pelos gestores locais ou Estaduais.

Esses dados se assemelham àqueles enfatizados por Castro e Silva (2002), segundo os quais os enfermeiros relataram não ter recebido treinamento ao ingressarem na política de saúde mental. Aponta-se, por um lado, que não há preocupação das instituições formadoras em preparar os acadêmicos para ingressarem nos serviços substitutivos e, por outro lado, também não há preocupação da Gestão de Saúde Mental Local em capacitar e aperfeiçoar os saberes e práticas dos funcionários, o que pode levar ao comprometimento da qualidade da assistência e a equívocos na atuação da enfermagem no campo psicossocial.

Ao opinar sobre os saberes que são necessários para o desenvolvimento de práticas nos serviços substitutivos, todos os entrevistados disseram ser importante investir nos estudos das psicopatologias e das teorias de enfermagem psiquiátrica, com maior carga horária para formação prática e teórica, demostrando a dificuldade com a ruptura do modelo hospitalocêntrico, centrado na doença e não no sujeito. Não explicitaram conteúdos ligados aos serviços psicossociais. Nesse sentido, os profissionais estudados pareciam estar à margem dos movimentos pela transformação do modelo de assistência à saúde mental.

Para Dias e Silva (2010), o enfermeiro tem uma compreensão heterogênea das ações desempenhadas pela enfermagem. Uma parcela acredita no modelo hospitalar, focalizado na supervisão da equipe de enfermagem, atenção aos efeitos dos medicamentos, alimentação, higiene e repouso. Outra parcela acredita que é necessário haver flexibilidade na atuação do enfermeiro na equipe multi-profissional.

Um dos desafios para o avanço da reforma psiquiátrica no Brasil, para Bezerra Jr. (2007) e Sampaio (2011), passa justamente pela formação teórica e técnica sólida e continuada. Ressalta-se que a maior parte dos novos profissionais de saúde é formada por jovens que não participaram do processo de luta política em saúde mental em toda a sua intensidade e extensão e que têm necessidade de outros mecanismos para compartilhar os seus significados.

 

Considerações finais

O presente estudo abordou os saberes e práticas dos profissionais de enfermagem nos serviços substitutivos da área da saúde mental, com foco em um CERSAM e um CAPS. Foram entrevistados três profissionais da enfermagem que atuam há mais de seis meses nesses serviços e foram realizadas observações sobre as suas agendas diárias.

Em relação à sua atuação no serviço, os enfermeiros percebem uma lacuna entre os conhecimentos teóricos e práticos desenvolvidos em sua formação e os saberes específicos necessários para sua atuação nos serviços substitutivos de saúde mental. No entanto, quando indagados sobre o que mudariam em sua formação, explicitam uma demanda por mais estudos psicopatológicos e não incluem saberes e práticas definidas na Reforma Psiquiátrica e na política de saúde mental, tais como o trabalho com grupos e territórios e estratégias de inserção social dos usuários. A pesquisa mostrou, nesse sentido, que a identidade profissional dos entrevistados ainda está ligada aos saberes e práticas tradicionais, em uma visão hospitalocêntrica e ainda distante da política de promoção da saúde mental.

Embora declarem conhecer as propostas da Reforma Psiquiátrica, os profissionais apontam dificuldades para a sua concretização na prática dos serviços. Expressam a necessidade de capacitação, enfatizando saberes e práticas que devem ser mobilizados e/ou desenvolvidos de acordo com as diretrizes da política de saúde mental. Ressalta-se a necessidade de capacitação para os enfermeiros dos serviços substitutivos, para que possam desenvolver uma escuta qualificada, a criatividade nos cuidados, as atividades preconizadas na política de saúde mental, utilizando recursos do território, e possibilitando, o trabalho interdisciplinar, que tem se revelado um grande dispositivo de preparação desses profissionais para os desafios de sua atuação no CAPS e no CERSAM.

A pesquisa apontou uma dissociação entre as proposições da Reforma Psiquiátrica e os conhecimentos e práticas desenvolvidas no cotidiano do profissional de enfermagem, nos centros estudados. É crucial lembrar que essa dissociação também é gerada pela organização dos serviços, que enfatiza mais a abordagem do sintoma do que a inserção social do portador de sofrimento mental. Ou seja, mesmo quando os profissionais identificam que a política de saúde mental, em nível municipal, apresenta avanços, são unânimes em apontar que a rede de serviços ainda necessita ser expandida, fortalecida, complementada e articulada às demais políticas públicas, para que os propósitos da saúde mental sejam alcançados. A oferta de serviços substitutivos e a ampliação da rede de atenção em saúde mental são fundamentais para o desenvolvimento e a sustentabilidade de novos saberes e práticas na atuação profissional. A expansão, fortalecimento, complementação e articulação da rede é condição básica para o surgimento e o desenvolvimento de novas identidades profissionais, dando sustentabilidade à mudança de paradigma na área da saúde mental.

O processo de construção de uma política de saúde mental requer não apenas recursos materiais e técnicos, mas também o desenvolvimento de saberes e práticas inovadoras que possam imprimir sustentabilidade ao novo sistema de atendimento. Reafirma-se, nesse sentido, a relevância da atuação do enfermeiro para a efetivação da Reforma Psiquiátrica, para a qualidade do tratamento e para o respeito à dignidade do portador de sofrimento mental. Recomenda-se, nesse sentido, a realização de novos estudos que aprofundem a questão da formação e do trabalho dos profissionais envolvidos na política de saúde mental bem como do avanço da construção da rede de assistência, com ênfase na utilização das atividades preconizadas na política de saúde mental.

 

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Recebido em: 23/06/2014
Aceito em: 23/01/2016

 

 

1 Contato: miriam_prof2010@hotmail.com
2 Residências terapêuticas são moradias destinadas a usuários de saúde mental que perderam os laços familiares e não contam com outros suportes sociais.

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