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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
versión On-line ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.9 no.1 Juiz de fora jun. 2016
RESENHAS
Vladimir Safatle1
Universidade de São Paulo
O título do novo livro de Belinda Mandelbaum pode nos enganar pela sua restrição aparente. Na verdade, Trabalhos com famílias em psicologia social (Casa do Psicológico, 2014) é mais do que uma coletânea de artigos precisos e rigorosos a respeito da instituição familiar, suas ambivalências e suas dinâmicas que se desdobram entre a violência disciplinar e o espaço de acolhimento. Ele é o resulta do de uma reflexão de larga escala sobre o impacto da psicanálise na análise de fenômenos ligados aos processos de reprodução material dos nossos núcleos de socialização.
O indivíduo como multidão
Ao decidir reunir seus artigos a respeito de sua maneira de explorar o que ela chama de "o hífen pressuposto na integração entre o psicológico e o social" (p. 19), Mandelbaum (2014) mostra como escapar de tendências reducionistas que procuram eliminar a essência profundamente relacional da articulação entre sujeito e sociedade. Eliminar tal essência relacional seria uma forma de nos remeter a múltiplas formas do pensamento da identidade. Pois ou o psicológico seria uma entidade com identidade autárquica e própria, portadora de um sistema de causalidades que se esgota em seu próprio campo, ou ele seria apenas a reificação avançada de um sistema de causalidade social que, este sim, seria dotado de uma identidade autárquica e própria. Nos dois casos, o que se esvairia seria o esforço de pensar regimes de imbricação entre entidades distintas, porém não-indiferentes.
Belinda demonstra clara consciência de que a tarefa de uma psicologia social consiste em mostrar a natureza tensa da relação entre sujeito e outro. Relação que aparece como base tanto da constituição da noção de indivíduo quanto das instituições responsáveis por nossa socialização, em especial, a família. Neste sentido, a reflexão sobre a família aparece, na verdade, como um setor (talvez o mais complexo e dramático) de um problema ontológico de base, a saber: o que significa reconhecer o caráter constitutivo, ao mesmo tempo que não completamente apreensível, da relação à alteridade?
Por levar de forma consequente sua filiação psicanalítica para a análise de fenômenos sociais, Belinda sabe como a hipótese do inconsciente não implica apenas limitações da capacidade de totalização da consciência devidas à submissão de conteúdos mentais a operações de recalque e múltiplas formas de negação. Ela implica, principalmente, reconhecimento de que o sujeito está em confrontação contínua com algo que não se submete por completo à forma do pronome pessoal da primeira pessoa, algo que exige a mobilização de um pronome indeterminado (Isso), forma mais radical da alteridade. É da autora a afirmação consequente neste sentido:
Desde o início somos invadidos e habitados por algo de fora que impede a integração, a continuidade, a inteireza ou a individualidade de prosseguir. Essa é a alteridade radical que a Psicanálise inaugura no interior de cada sujeito e que Freud chamou de inconsciente. Somos um outro para nós mesmos, e a Psicanálise vai se debruçar sobre as vicissitudes da relação entre cada um e o outro, ou os outros, que nos habitam. (Mandelbaum, 2014, p. 68).
É próprio do grande interesse do trabalho de Belinda partir desta concepção profundamente descentrada de constituição do sujeito para extrair disto consequências sociais e políticas maiores. Pois se trata de levar a sério o fato de que:
a partir da Psicanálise, e quase na direção contrária aos processos imperialistas e hegemônicos que as políticas mais amplas foram suscitando desde meados do século XIX até os dias de hoje, na compreensão mais elaborada sobre a subjetividade dos homens, cada um de nós foi colonizado por uma multidão de outros. (Mandelbaum, 2014, p. 68).
Se não somos exatamente indivíduos, mas colônias nas quais podemos encontrar os impactos de uma multidão de outros que não dominamos completamente, então isto deve ser levado em conta quando assumimos papeis que nos fazem ser parte dos processos de reprodução social de formas de vida. Daí a centralidade das discussões sobre a família.
A ambivalência familiar
Seria fácil denunciar a família como núcleo de alienação e de imposição disciplinar de modos de conduta e processos identificatórios. De fato, Belinda se serve do mais famoso dos casos literários neste sentido, ou seja, as cartas de Kafka sobre a sua própria família, isto a fim de mostrar o que podem os conflitos familiares produzir. No entanto, ela lembra como a família também fornece importantes modelos de reconhecimento em situações nas quais o reconhecimento social parece entrar em colapso. Exemplo paradigmático aqui são as situações de desemprego: "A família, de algum modo, é violentada quanto um de seus membros vê-se excluído da esfera do trabalho, e é a própria família um dos espaços privilegiados para a emergência de estratégias possíveis para o enfrentamento dessa situação" (Mandelbaum, 2014, pp. 82-83).
Manejando esta complexidade funcional da instituição familiar, Belinda lembra como uma das maiores conquistas do século XX não foi a crítica totalizante da instituição familiar, mas uma mutação na consciência dos seus membros, o que levou, entre outras coisas, à necessidade dos pais compreenderem que estão "pisando em ovos". Isto significa: se somos uma multidão de outros, agiremos não de forma simplesmente coerente, mas abrindo espaço à circulação de objetos inconscientes que causaram nossos desejos de forma a nos despossuir, de histórias de desejos desejados. Por isto:
Se o pai (e o mesmo se dá com a mãe) "educa", ele encontra no filho coisas que já odiou em si mesmo e não pôde dominar, mas que agora espera seguramente dominar, já que a débil criança parece estar mais em seu poder do que ele próprio. É assim que ataca com furor cego, sem aguardar o desenvolvimento, o homem em evolução, a fim de extirpar o elemento nocivo. (Mandelbaum, 2014, p. 108).
Ter consciência de poder agir a partir de um furor cego, tentando dominar o que também parece despossuir o outro, é a condição para a mutação das nossas ações e a para a mutação qualitativa das instituições, em especial, a família. Como dizia Adorno, a consciência da falibilidade é a primeira virtude moral.
Recebido em: 01/01/2016
Aceito em: 14/01/2016
1 Contato: vsafatle@yahoo.com