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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versión On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.4 no.1 Rio de Janeiro enero/jun. 2012
ARTIGOS TEMÁTICOS
Quando o passado não passa*
Ana Maria Vicentini de Azevedo
Psicanalista e coordenadora dos Seminários de Psicanálise, São Paulo. Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da UFSCar/SP. avica2009@gmail.com
RESUMO
O trabalho tem como objetivo pôr em questão certas noções de história, memória e verdade, que estão no centro de um debate político nos dias de hoje no Brasil. Esse questionamento se dá através de duas perspectivas diferentes, mas que acabam por convergir. A primeira diz respeito a uma visão etimológica destas noções, tal como concebidas na Grécia Antiga. Esta perspectiva é trazida à tona como forma de produzir um distanciamento crítico necessário para a introdução da visada psicanalítica sobre essas questões, fundadas na disruptiva concepção do funcionamento do aparelho psíquico.
Palavras-chave: história, memória, verdade e trauma
ABSTRACT
This paper aims at questioning contemporary assumptions of history, memory, and truth, at the core of some political discussions going on nowadays in Brazil. This questioning is carried out through two different but converging perspectives. The first one is an etymological overview of these notions as held in Ancient Greece. This perspective is brought about as a means of creating a necessary critical distance from our present standpoint in order to make way for the introduction of the psychoanalytical conception of these notions, grounded on its epistemological breakthrough of the functioning of the psychic apparatus.
Keywords: history, memory, truth, trauma
"O centro de gravidade do sujeito é essa síntese presente do passado a que chamamos história" (LACAN, 1994, p.48).
Começo minhas considerações sobre história, memória e anistia com um convite para que me acompanhem por um percurso pela língua grega, prenhe de história, de poesia, de filosofia, em suma, de humanidade. Em outras palavras, proponho-lhes, desde já, um retorno ao passado, especialmente a um passado com o qual temos muito a aprender, um passado que, para nossa sorte, não cessa de não passar.
Nossa excursão irá girar em torno de dois temas, ou duas noções preciosas para os gregos e objeto central desse colóquio. Refiro-me às noções de memória e anistia.
A primeira, memória, ou mnemosyne, é de tal importância para o mundo grego que ela veio a nomear uma divindade notável: a mãe de todas as musas, Mnemosyne. Através dessa personificação, podemos ver que a memória é concebida como um princípio ativo que gera produções nos campos da literatura, da música, da dança, da história e da astronomia.(1) Esses são os campos fundantes da cultura e fundamentais à vida entre os humanos. Pelos menos para aqueles humanos que construíram a cultura grega. Curiosamente, e de maneira diversa de nossa contemporaneidade, as Musas não são peças encerradas em um museu,(2) mas entidades vivas que agitam a vida na pólis com suas produções.
A memória, pois, constitui um princípio indissociável da vida. Como nos lembra o poeta Hesíodo, em sua Teogonia, Mnemosyne canta "tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será"(3) (HESÍODO, 1927, p.15), entrelaçando, assim, passado, presente e futuro. Sublinhamos, com Hesíodo, que memória não diz respeito somente ao passado, mas refere-se, sobretudo, a uma articulação de três tempos, a um atravessamento do tempo, tornando-a, assim, transtemporal. Importante pôr em relevo essa característica, a fim de começar a questionar uma concepção de memória que a incrusta em um passado estanque e definitivo.
Vemos como, à luz da etimologia, tanto o passado quanto a memória perdem seus limites rígidos e estanques, em ressonância com a epígrafe de Lacan sobre a história que abre este trabalho. O verbo mnemonéo, que dá voz ativa à memória, à mnemosyne, traz para nós outra noção central para nossa discussão -a de anistia. Esta tem origem no verbo grego amnesykakéw, que significa, ao mesmo tempo, esquecer e perdoar, especialmente os males feitos. O prefixo "a" imprime-lhe a marca de negatividade, perfazendo assim uma estranha conjunção: anistiar, ou perdoar, conjuga-se com a negação da memória, com o ato de esquecer. Que ordem de coisas são e podem ser esquecidas quando se anistia alguém? Vamos deixar a pergunta em suspenso e olhar mais de perto o ato de esquecer.
A verdade como palavra
Os gregos concebiam a vida sem mnemosyne através de duas noções: a primeira é amnesía, homônimo em português de amnésia, ou perda de memória. Como vimos acima, o prefixo de negação "a" encontra-se presente também na noção de anistia, ou amnestía, em grego, cujo significado alude novamente a esquecimento. Mais uma torção da língua: anistia e amnésia brotam da mesma raiz. Será que o ato de perdoar, de anistiar, tem como correlato a negação da memória?
Outro termo grego para esquecimento nos serve para matizar essas aproximações. Tratase da noção de léthe, um aspecto da vida equivalente à sua negação, ou seja, à morte. Léthe é o lugar do esquecimento no mundo subterrâneo, o mundo dos mortos. Além dessa dimensão, o substantivo comum léthe significa esquecimento. Vê-se por aí como morte e esquecimento caminham juntos no lógos grego.
Porém, esse pensamento opera de forma diversa da moderna razão ocidental, onde pares antinómicos predominam. Na ambiguidade linguageira que prevalece nos tempos de Hesíodo e Homero, mnemosyne e léthe se conjugam em uma dimensão posta em cena justamente através da potência criadora da primeira: ao provocar e inspirar as artes, os cantos, a história e o conhecimento do cosmo, a memória desafia a morte e o esquecimento, superando-a ao nível do simbólico. Um morto de quem se guarda a memória ou um morto que será declamado e cantado não cairá jamais no subterrâneo do esquecimento e terá, assim, alcançado a imortalidade. Temos aí, de forma pulsante, um exemplo de como a memória embaralha passado, presente e futuro.
Esse aspecto de resistência ao oblívio, de negação do esquecimento, articula-se intimamente com a experiência do saber e traz à luz uma noção crucial para o pensamento grego: aquilo de que não se esquece é chamado de Alétheia. Essa importante noção grega está igualmente imersa na ambiguidade da língua: o que não se esquece é também o nome dado em grego à verdade -Alétheia. Algo é verdadeiro quando não é recoberto pelo véu do esquecimento.
Tal noção figura com eloquência entre poetas, historiadores e filósofos (não apenas gregos) e traz à tona a força da palavra nesse mundo: o prefixo de negação "a" e, sobretudo, os discursos dos quais a palavra emerge são indicadores preciosos de que devemos tomar Alétheia juntamente com seu duplo, sua outra face -Léthe. A negatividade de a se afirma positivamente com e contra o esquecimento, ressaltando o fato que, em toda verdade, paira inextricavelmente a sombra do esquecimento. Essa conjugação de "pares antitéticos"(4) é uma marca do funcionamento psíquico, conforme o desenvolvimento de Freud e de Lacan. Este último, inclusive, postula, ecoando os gregos, que a verdade só pode ser meio-dita: "a verdade, nunca se pode dizê-la, a não ser pela metade" (LACAN, 1992, p.34), posto que ela "[se] revela complexa por essência, humilde em seus préstimos e estranha à realidade, (...) aparentada com a morte e, pensando bem, basicamente desumana" (LACAN, 1998, p. 437).
Tendo essas relações como pano de fundo, voltemos para o estatuto da memória entre os gregos. De um lado ela articula-se na e pela palavra com sua negação - a amnésia, ou a Léthe, o esquecimento mortífero. Por outro, através de sua força inspiradora e "co-movedora", ela se associa com a negação do esquecimento, com Alétheia, especialmente por propiciar à atividade mental uma experiência de travessia no tempo.
Além de ser uma força articuladora de opostos, Alétheia transgride limites humanos tão inexoráveis como o esquecimento mortífero e a temporalidade, em um jogo tensional entre desvelar e velar (5) que lhe imprime um traço de opacidade, de enigma, este no sentido que lhe identifica Lacan - um "semi-dizer" (LACAN, 1992, p.35).
Dessa forma, vê-se como a noção de verdade no pensamento grego arcaico se afasta do quadro opositivo "falso-verdadeiro" que orienta, por exemplo, o discurso da ciência moderna, para pór em relevo outra forma de relação com o saber, marcada pelo exercício da palavra que "des-cobre". Nessa tensão dialética, a verdade como enigma comparece com vigor, tornado-se uma força propulsora que move, em especial, a palavra poética e a divinatória. (6)
Não somente Alétheia é enigmática, como também aqueles que a transmitem necessariamente se tornam portadores de uma palavra enigmática. É nesse sentido, pois, que seus porta-vozes por excelência são os poetas e os mânticos oraculares: "o oráculo de Delfos não diz nem subtrai, ele indica [semaznei]", assim designa Heráclito a marca enigmática do principal oráculo grego (HERÁCLITO, 1980, Frag. 93).(7) Talvez seja por isso, por só poder-se dizer de soslaio, que a verdade consegue conjugar memória e esquecimento.
A conjugação entre memória, verdade e esquecimento se faz presente, de maneira eloquente, na invocação que Homero faz às Musas, na abertura da Odisseia: "Conte-me, oh Musa, sobre esse homem de múltiplos ardis [polytropon]... " (1)
(HOMERO, 1938, p.2).(8) Os significantes poéticos são incisivos.
Em primeiro lugar, o primeiro e principal atributo do herói a ser (de)cantado, Odisseu, é o fato de ele ser poly-tropos, ou seja, aquele que sabe tecer múltiplos ardis com a palavra. Em face desta característica, bem como da magnitude de seus feitos, o poeta sabe-se incapaz, ou melhor, ele sabe que há uma vasta dimensão que lhe transcende. E mais, em face disto, pede à Musa que lhe traga a palavra, que lhe conte a respeito desse homem - "conte-me [énnepe]" (1).
Odisseu é poly-tropos. Seus trópoi, suas torções da palavra são o que chamamos hoje de figuras de linguagem. Ou seja, a verdade sobre os feitos desse herói protomoderno será contada pela memória (pela filha Mnemosyne), através de jogos de palavras, constituídos na tensão entre o desvelar e o velar. Dessa forma, a memória entra em cena como fonte causadora de uma história que deve ser lembrada; portanto, como algo a serviço do par Alétheia/Léthe.
A posição do aedo homérico é digna de nota: ele se apresenta como não sabedor de um saber maior, mais relevante, sobre o qual ele não fala, mas, antes de tudo, coloca-se na posição de ser falado. Dito de outra forma, antes de falar, esse sujeito é falado, posto que advertido sobre a presença de um saber ao qual ele está assujeitado.
Essa posição aproxima-se com intimidade do sujeito da psicanálise, um sujeito dividido pela presença dessa instância maior que Homero situa no âmbito do mito, e Freud no do inconsciente. Não é à toa, então, que o criador da psicanálise, notavelmente íntimo da cultura grega, afirma que "Wo Es war, soll Ich werden" - onde está o isso, o eu deve advir, traduz interpretativamente Lacan (1998). Ou ainda, "o eu não é senhor em sua própria casa", outra máxima freudiana que o cantor de Homero põe em relevo, avant la lettre.
Por esses e muitos outros aspectos do pensamento grego é que podemos situar a psicanálise como uma herdeira zelosa dessa tradição; como um discurso que entretém múltipla afinidades com o éthos e o lógos gregos.(9) É por isso que fizemos esse percurso pela história da língua grega, através das noções centrais a esse colóquio. Aqui cabe pór em relevo o papel fundante e fundador do mito tanto no pensamento grego quanto na criação da psicanálise. A atemporalidade estrutural do primeiro vem ao encontro de sua atualização na história da qual emerge o sujeito, história esta que se funda também em um mito: o do complexo de Édipo. Assim, podemos acompanhar Lacan quando postula que:
O mito é o que confere uma fórmula discursiva a qualquer coisa que não pode ser transmitida na definição da verdade, porque a definição da verdade não se pode apoiar senão sobre si mesma, e é enquanto a palavra progride que ela a constitui.10 (1987, p.47)
Essa verdade constituída pela palavra não somente se debruça sobre a noção grega de Alétheia, como traz à baila a própria natureza do inconsciente, em seu constante movimento de (re)velar. De fato, como observa Pierre Vidal-Naquet, "a verdade é, em primeiro lugar, palavra" (DETIENNE, 1988, p.8).
À luz dessas reflexões, especialmente do estatuto da verdade, podemos já avançar uma questão para debate: como pensar, nos dias de hoje, a criação de uma instância de poder, definida como "Comissão da Verdade", conforme tem sido proposto e propagado em vários setores da vida social brasileira? Por ser matéria linguageira, é antinómico à verdade ser apropriada por qualquer instância discursiva, seja ela de parte do poder público, da sociedade ou de indivíduos. Para dar garantia ou sustentação a uma "comissão da verdade", é necessário que alguém se coloque em uma posição de poder dizer a verdade sobre o verdadeiro. Como a psicanálise tem demonstrado nas últimas décadas, é impossível que alguém possa colocar-se em um lugar fora da linguagem para emitir um parecer verídico de que isto é a verdade. Trata-se de uma impossibilidade lógica-discursiva que se aproxima do delírio.(10) Por outro lado, como fazer vir à tona algo que permanece recalcado, ignorado, esquecido?
Na busca de caminhos que nos tragam novas perspectivas de análise, vamos voltar a atenção para outros dois temas propostos para esse debate: memória e anistia. O primeiro é algo caro à psicanálise e sobre ele esta tem muito a dizer. E, para começar, recorro à mediação de um escritor moderno, que, como Homero, tem a memória em posição central na sua obra.
"Aquele que não é capaz de relembrar o passado está condenado a revivê-lo"
Assim nos alertou Marcel Proust em seu romance Em busca do tempo perdido, (11) que põe em cena uma fecunda experiência e reflexão sobre tempo e memória. Essas duas noções são matizadas por coloraturas modernas desde o próprio título da obra e estendidas ao longo da narrativa proustiana. De imediato, a asserção de Proust traz à baila o esquecimento e um de seus principais efeitos - a reedição do passado em tempo presente, ou seja, o aprisionamento do sujeito em um passado que insiste em retornar sob a máscara do presente. A saída apontada pelo escritor reside em um ato que também traz o passado para o presente, mas de outra forma, qual seja, a da rememoração.
Para a psicanálise, esse movimento constitui o cerne da experiência analítica. O que foi esquecido pelo sujeito, o recalcado, pode e deve retornar à lembrança a fim de que ele possa fazer outras, novas conexões e, a partir disso, deixar o passado no lugar que lhe cabe.
Esse processo começou com a hipnose, a qual foi abandonada justamente em função de um refinamento na concepção do funcionamento do aparelho psíquico, em que a memória passa a ser entendida como algo bastante distinto de um tesouro escondido no mundo subterrâneo, à espera de ser resgatado, tal como postulado por várias instâncias discursivas contemporâneas, particularmente aquelas dedicadas a "resgatar a memória".
O passado é objeto de uma atividade restauradora que, por sua vez, o reinstaura como tal. Essa atividade, que Proust denominou de "relembrar", para a psicanálise, é a espinha dorsal do tratamento psicanalítico. Através da associação livre, busca-se em uma análise recordar o que foi esquecido, recalcado, a fim de que a alétheia do sujeito possa ser composta por e em palavras.
A noção de memória para a psicanálise, pois, é algo inovador e difere da noção de Proust de "memória involuntária". Em primeiro lugar, ela não é um arquivo à espera de ser consultado para fazer revelações surpreendentes, nem tampouco um tempo perdido que será encontrado ou redescoberto. A rigor, o psiquismo é marcado por traços mnêmicos, ou seja, por inscrições feitas em um tempo pretérito, que são reinvestidas a partir de uma determinada experiência. Tem-se, assim, um movimento de retroação no tempo que tem por efeito a reconfiguração dos traços mnêmicos.
Assim sendo, a memória em si interessa pouco ao trabalho que se faz em uma análise, mas sim a conexão que o psiquismo estabelece entre eventos do passado e do presente. A história de um sujeito que se conta e se constitui ao longo de uma análise difere, pois, de uma concepção estanque de história como narrativa de fatos pregressos para se tornar um trabalho presente e premente de ligações, de associações entre eventos de diferentes temporalidades que se interpenetram, dando origem a novas configurações. Afastamo-nos assim de concepções de natureza positiva e linear da história, seja ela de um sujeito, de uma cultura, de uma nação, ou de um determinado recorte temporal.
Pode-se ver como a "memória" perde o foco para a psicanálise, chegando a ser caracterizada por Freud como algo que encobre fatos ou eventos mais relevantes para a história psíquica do sujeito e que, em razão de mecanismos de recalcamento, permanecem obliterados (1962). Muitas vezes a memória é ativada não para revelar, mas sim para encobrir certos acontecimentos da vida psíquica. Como vemos, não apenas para os gregos, mas também para a psicanálise, Alétheia e Léthe continuam entrelaçados nas produções de Mnemosyne.
Por exemplo, uma lembrança pode ser produzida por mecanismos que visam deixar recalcados outros fatos mais relevantes, os quais só poderão vir à tona através das associações feitas pelo analisando. Tal como a Mnemosyne grega, a memória para a Psicanálise é algo que produz eventos, é um trabalho psíquico que implica uma ação e, portanto, um verbo que a nomeie: "recordar" (erinnern), foi o verbo usado por Freud em suas discussões acerca do estatuto da memória, em "Lembranças encobridoras"( Über Deckerinnerungen), de 1899, e em "Recordar, repetir, elaborar, (Erinnern, wiederholen und durcharbeiten), de 1914.
O prefixo "re" que a língua portuguesa traz para recordar nos serve de alerta quanto à natureza dessa operação psíquica - ao se recordar, não se está reeditando uma mesma experiência. Ou seja, a repetição de que trata Freud não é a repetição do mesmo. Como sugere o título - "Recordar, repetir, elaborar" -. e como desenvolvido por Freud neste ensaio, a ênfase do trabalho analítico não recai sobre o recordar (erinnern), mas, sim, sobre o que o alemão designa como wiederholen, ou seja, sobre o buscar de novo. De fato, não é somente a dimensão da repetição que está presente aqui, mas, sobretudo, a do novo: buscar de novo o novo.
O que não passa
Há algumas experiências, entretanto, que jamais podem ser recuperadas pelo trabalho da memória, ou pela perlaboração. Em geral, essas experiências se deram em um tempo em que o sujeito não pôde compreendê-las ou que, devido à sua natureza, escaparam à compreensão e só posteriormente, em um só-depois, foram objeto de interpretação ou de entendimento. Chamamos esse tipo de experiência de trauma.
Quero sublinhar esse conceito de trauma para a psicanálise na medida em que ele nos ajuda a pôr em questão certas concepções pouco produtivas para um trabalho que vise aliviar ou libertar o sujeito dos efeitos do trauma. Tenho em mente em especial uma noção fartamente empregada pela mídia e pelo senso comum (mas não apenas por eles!) de uma "síndrome póstraumática". Se o trauma é algo que se constitui como tal em dois tempos, em um trabalho de retroação feito pelo psiquismo, como podemos entender uma situação como "pós-traumática"? Essa categorização trabalha com uma noção linear de tempo incompatível com o funcionamento psíquico, situando o trauma em um tempo pregresso, em um antes a-histórico, privilegiando o pós. Pós o que?, cabe interrogar.
A experiência traumática se caracteriza não somente por se constituir num só-depois, mas também pelo fato de resistir à simbolização por parte do sujeito. Em face desse hiato na memória, o sujeito repete tal experiência em ato. É o que chamamos de acting out ou atuação. Por exemplo, alguém que foi objeto de agressões físicas ou sexuais por parte de uma figura de autoridade, digamos, o pai, poderá repetir, ou reeditar essa violência em outra situação onde se presentifique uma figura de autoridade, por exemplo, na situação analítica. Nesse sentido, a "compulsão à repetição", como conceitualizou Freud (1958, p. 150), é uma forma enviesada, se quisermos, sintomática, de recordação do evento traumático. É por isso que podemos dizer que, nesses casos, o passado não passa, conforme a rica indicação dos organizadores desse colóquio, ao propor esse título para nossa mesa-redonda.
Tal como a personagem de Proust, o sujeito que passou por uma experiência traumática será incapaz de relembrá-la, estando, portanto, "condenado a revivê-la". Triste condenação essa, que incide sobre a experiência traumática, fazendo com que ela seja dolorosamente reeditada ao longo da vida do sujeito.
Porém, há um aspecto positivo na tendência à repetição. Como sugerimos anteriormente, além de ser uma forma de recordação, ela encerra também a busca de/o novo: "a repetição é a transferência de um passado esquecido (...) para uma situação atual" (FREUD, op. cit., p.151). Nesse sentido, a repetição é já uma via aberta ao trabalho de simbolização.
Esse trabalho, que Freud chamou de perlaboração, é central no tratamento analítico. Nele se trata não apenas de trazer à dimensão da palavra o que estava recalcado no oblívio, mas, sobretudo, de empreender uma tessitura desse novo evento com a história do sujeito. Essa é a parte do trabalho que leva a efeito as mudanças mais profundas e duradouras, como também é o ponto de distinção da psicanálise em relação às psicoterapias (Ibid, p.155).
Pois bem, quando o passado não passa, quando o trauma é reeditado e insiste em retornar, o trabalho da rememoração torna-se imprescindível. Nesse contexto devemos invocar Mnemosyne, em toda sua força produtiva, para que se possa simbolizar o evento traumático e inscrevê-lo na história. Assim se procede em uma análise: devemos recordar uma dor, um sofrimento, um episódio traumático para poder esquecê-lo. Assim, passamos da ação de Mnemosyne para a sua negação, Léthe, esquecimento. Esse giro é acompanhado de uma derivação de mnemosyne, qual seja, a amnistia. Para poder esquecer algo, é preciso também perdoar. Por isso a língua grega tão sabiamente conflui as duas noções em um mesmo termo.
A prática clínica, entretanto, nos mostra que há eventos ou experiências que jamais poderão ser anistiados - perdoados e esquecidos. Talvez seja essa uma das razões para Freud ter batizado sua talking cure por psico-análise. Neste tipo de trabalho, a relação dialética de forças opositivas se mantém, e a síntese, quando advém, é algo fugaz, transitório. Não é à toa que umas das reflexões centrais da maturidade de Freud seja seu "Mal-estar na cultura".
Isso posto, gostaria de fazer um giro temporal e discursivo para nosso aqui e agora e evocar, à guisa de conclusão (que é um início de conversa), o trauma que constitui na história brasileira os vários períodos de regime político autoritário, especialmente o mais recente, o da ditadura militar. Este é um passado que não passou para nós. Não apenas ele insiste em ser dito, contado, recontado, ou seja, simbolizado, como, sobretudo, pesa sobre ele uma dimensão de censura, de recalcamento que chama a atenção. Tenho em mente em particular os arquivos, que permanecem lançados no Léthe, no mundo subterrâneo do esquecimento.
Tal como a noção de memória, o arquivo para a psicanálise se afasta de um depositário de informações, de dados, para dar lugar a um trabalho que conhecemos como análogo à arqueologia. Neste se trata de escavar, de trazer à luz da simbolização registros, traços, vestígios de experiências, traumáticas ou não, que estavam soterradas.
Pois bem, hoje, no âmbito social brasileiro, temos, por um lado, a instauração de uma comissão da Verdade, da qual preferimos sublinhar a dimensão de desvelamento, destinada a trazer à tona eventos traumáticos. Por outro lado, vemos, estarrecidos, a reedição da interdição de arquivos referentes a essa história.
A dimensão, grave, de recusa (da Verleunung freudiana) que informa esse movimento paradoxal é posta em relevo na visada psicanalítica. O fato de impedir o acesso a esses arquivos tem como consequência a coibição de um trabalho de perlaboração, enquanto aspecto teleológico das cultuadas atividades de memória e de anistia. Isto implica o aprisionamento da história (do sujeito) em um passado traumático, em que a única alternativa que resta é repetir sintomaticamente este passado. Esta repetição, como já sabemos, está longe de ser uma busca do novo. É, na verdade, a retirada do centro de gravidade do sujeito, da história, que se desvanecem em heroicidades imaginárias.
Notas
(1) As Musas são: Calíope, poesia épica; Clio, história; Euterpe, flauta; Melpomene, tragédia; Terpsicore, dança; Eratô, lira; Polyhymnia, música sacra; Urânia, astronomia.
(2) Note-se que museu é, por origem, o lugar das Musas.
(3) Hesíodo, Teogonia (Peri Theon). Ed. André Dupin e Armand Fournier. Paris: Hachette, 1927. . Em língua portuguesa, consultei a tradução de Jaa Torrano. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1986.
(4) Retiro essa expressão do escrito de Freud, "O significado antitético das palavras primitivas" (1910). In The Standard Edition of the Complete Psychological Works of S. Freud (SE), vol.XI. Londres: The Hogarth Press, 1957. Todas as referências a Freud serão retiradas da Standard inglesa.
(5) Note-se a esse respeito que a primeira e mais palpável tradução para Alétheia é "desvelamento". Cf. Liddell & Scott, Greek-English Lexicon. Oxford University Press, 1994.
(6) Como já indicado, Lacan faz ressoar essa dimensão da verdade na psicanálise. No sentido que é indicado agora, a verdade surge como causa , e não como fim (télos) a ser atingido, tal como no discurso da religião e da ciência.
(7) Trad. adaptada por mim. Sobre o estatuto de Alétheia, ver em particular a lapidar obra de M. Detienne, Os mestres da verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
(8) A tradução do verso aqui citado é de minha autoria, em cotejamento com outras traduções modernas. O número entre parênteses refere-se ao verso grego.
(9) Uma argumentação detalhada sobre essas intersecções é desenvolvida em meu A metáfora paterna: psicanálise e literatura. Brasília: Ed. UnB e São Paulo: Imprensa Oficial, 2001.
(10) Meu grifo
(11) Cf, por exemplo, Lacan, "La science et La vérité". Écrits. Paris: Seuil, 1966, esp. P. 866-69.
Referências Bibliográficas
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Recebido em: 11/4/2012
Aprovado em: 2/8/2012
* Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no Congresso Internacional História, Memória e Justiça, realizado na PUC/RS, em maio de 2011.