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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versión On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.4 no.2 Rio de Janeiro jul./dic. 2012
ARTIGOS TEMÁTICOS
Contar os cem anos, viver a solidão
Telling the hundred years, living the solitude
Fabiano Chagas Rabêlo
Professor assistente do curso de psicologia da Universidade Federal do Piauí (Campus Parnaíba), mestre em psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - EPFCL - Fórum Fortaleza. E-mail: fabrabelo@hotmail.com
RESUMO
Partindo do problema que Márquez se coloca sobre a origem de seu estilo de escritor, acompanhamos o autor em suas respostas para constatar no seu relato um processo de mudanças subjetivas proporcionado pela eleboração de suas lembranças pela escrita. Reconhecemos um movimento de báscula que Márquez produz em seus textos entre o jornalismo e o fantástico e, em seguida, trazemos à baila os conceitos de fantasia e tiquê para evidenciar as complexidades da relação do sujeito com a realidade. Daí discutimos a abordagem que o autor faz de temas como sonhos, falsas lembranças, sexualidade e morte e, sob o crivo do conceito de lalíngua, analisamos um tema recorrente nos seus romances: a transmissão da solidão entre gerações. Por fim, situamos nesse âmbito o cerne das mudanças desencadeadas por sua escrita.
Palavras- chave: lalíngua, real, sexuação, fantasia, solidão
ABSTRACT
Starting from the problem formulated by Márquez about the origin of his style as writer, we follow the author on his answers and we recognize is his repport a process of subjective changes provided by the transformation of their memories by writing. We testify a movement of weighbridge between journalism and fantastic in his books and, therefore, we use the concepts of fantasy and tichê to discuss the complexities of the subject's relationships to reality.
We argue the way that the author deals with topics like dreams, false memories, sexuality and death and, under the scrutiny of the concept of lalangue, we analyze a recurring theme in the novels of the author: the intergenerational transmission of solitude. Finally, we situate in the transformations of this solitude the core of the changes triggered by his writing.
Keywords: lalangue, real, sexuality, fantasy, solitude.
Introdução
Nesse artigo, propomos estabelecer uma discussão na perspectiva psicanalítica sobre a memória, a linguagem e os efeitos da escrita para o sujeito a partir da leitura da autobiografia de Gabriel Garcia Márquez, Viver para Contar. Nesse livro, o autor se esmera em produzir uma resposta para uma questão que lhe inquieta: como ele se tornou escritor? Com o intuito de conjurar as origens de sua vocação literária, Márquez mergulha no universo de suas lembranças, principalmente as da infância, de onde resgata fragmentos de percepções, vivências e falas que foram transformados, transpostos para o campo da ficção e incorporados a vários de seus livros.
Em nossa leitura, deter- no- emos nas abundantes referências presentes na autobiografia ao romance Cem Anos de Solidão. Defenderemos que há uma íntima interlocução entre esses dois livros, o que nos mostra de modo contundente que a vocação literária de Márquez está profundamente imbricada com o lugar que ele ocupa em seu romance familiar. Daí o título deste ensaio que mescla as palavras dos nomes dessas duas obras. Ao final, faremos menção a outro livro de Marquez que antecede e prepara a escrita de Cem Anos, A Revoada (La Hojarasca).
Buscaremos, portanto, a partir da leitura da autobiografia de Márquez e de seu romance mais conhecido desenvolver os seguintes argumentos: 1) o romance familiar dos Buendía retrata de modo distorcido e fabulado o romance familiar do próprio Márquez; 2) o trabalho de apropriação da estória da família está alicerçado na mobilização de suas lembranças infantis; 3) nos hiatos, imprecisões e equívocos das narrativas familiares, surgem os espaços onde o escritor subverte o seu legado cultural e familiar, produzindo aí um bem- dizer sobre o seu desejo; 4) o reordenamento de seu lugar no romance familiar é solidário à gestação de seu estilo como escritor.
Assim, se nos preocupamos com o estilo do autor, é para inquerir sobre a mudança de posição subjetiva que se processa em consonância com a adoção de uma atitude ética frente ao ato de escrever. A utilização da palavra ética é oportuna, haja vista que a escrita de Márquez é produto de uma afirmação radical de suas lembranças, o que, na nossa concepção, constitui um ato que produz efeitos na vida do autor, exigindo dele uma implicação diante de suas escolhas.
Nosso intuito é o de aprofundar a discussão sobre o processo de remanejamento das lembranças pela fala e pela escrita, campo de convergência entre a literatura de Márquez e a investigação psicanalítica.
Escrita, Estilo e Reordenamentos Subjetivos
No ano de 2002 é publicado Viver para Contar, livro no qual Gabriel García Márquez (2004) vem atender ao chamado que ele considera o dever ético de todo escritor: o de redigir a sua biografia ainda lúcido. Esclarece que o motivo que o levou a se engajar no recenseamento de suas memórias não foi o de organizar uma historiografia, mas produzir algum saber sobre o enigma de como alguém se torna escritor.
Para Márquez, a resposta a essa questão é sempre particular e individual, avessa a generalizações. Acrescenta: no âmbito da discussão que promove, a técnica não está no centro de suas preocupações. De acordo com o autor, a técnica serve ao estilo, que é, por sua vez, o traço uníco que cada escritor traz consigo e que o distingue. Dar conta do estilo é o que lhe inquieta.
Assim, ele tenta delinear o caminho através do qual se tornou o que é. Apenas nesse contexto os eventos de sua vida ganham relevância. Os fatos biográficos narrados constituem, portanto, o substratato contigencial de um modo singular de fazer uso da linguagem.
E o que Márquez pode nos elucidar com seu testemunho? Ele demonstra que a sua formação como escritor se desdobrou em solidariedade com a assunção da radicalidade de suas lembranças infantis, com o remanejamento de seu lugar na história da família e com uma contínua tentativa de bordejamento pela escrita dos enigmas da sexualidade, da vida e da morte.
Em breve desenvolveremos essa afirmação. Antes disso, consideramos pertinente problematizar, ainda que de forma pontual, o enodamento que a escrita de Márquez produz entre literatura, a ficção e o jornalismo. Isso nos ajudará a pôr em evidência um elemento que se sobressai em sua obra: o reconhecimento de uma materialidade das palavras que precede e constitui a realidade objetivada.
De modo geral, podemos afirmar que a escrita de Márquez traz consigo uma certa preocupação e perplexidade frente à realidade. Isso se explica pelo fato de que o autor não busca produzir respostas para suturar enigmas. Seus textos testemunham um certo respeito frente ao inexplicável, ao mesmo tempo estão atravessados pela decisão de não recuar frente aquilo que se apresenta como paradoxal. Mesmo diante do assombro, ele não se furta de inquerir o absurdo, mantendo paralelamente uma atitude de continência diante das pretensões de exaurir os mistérios da realidade. O elemento fantástico de seus textos, no nosso entendimento, são tributários de uma escrita que não não se fecha em uma totalidade. É um recurso para quem está advertido de que a verdade só se apresenta como semi- dizer.
Por outro lado, o fantástico e o mágico estão, na escrita de Márquez, ancorados na concretude do cotidiano. Seus personagens, insiste ele, são criados a partir da realidade. No entanto, esclarece: a realidade precisa ser decifrada. Ela não se apresenta como um dado imediato e translúcido.
Sobre isso, Márquez narra um episódio que considera elucidativo sobre o seu modo de criação. Lembra-se do instante em que é tomado por um sopro de inspiração após um longo, árido e improdutivo período de busca deliberada e metódica por novos assuntos. Essa fase foi interrompida quando "a vida real" saiu a seu encontro e lhe proporcionou o que foi a sua "experiência mais feliz" (ibidem, p. 396).
Trata-se de uma vivência singela, até mesmo banal, mas que constituiu o que podemos chamar de um bom encontro. Márquez relata que estava passando de ônibus quando viu o letreiro em uma casa com a frase "vende-se palmas fúnebres". Nesse momento, é tomado pelo ímpeto de bater na porta para perguntar o que aquela mensagem queria dizer. No entanto, coagido pela timidez, permanece no seu lugar e guarda para si os dizeres da mensagem, deixando que reverberasse e frutificasse.
Dessa experiência, o autor retirou o que considera um precioso ensinamento: "um dos segredos mais úteis para escrever é aprender a ler os hieroglífos da realidade sem bater na porta para perguntar nada" (Ibidem, 396). Diante do exposto, propomos resumir o caminho de criação de Márquez da seguinte maneira: trata-se de colher e interpretar as cifras da realidade a partir de encontros contigenciais e fortuitos, utilizando-se como única ferramenta o seu próprio crivo de leitura.
Da perspectiva psicanalítica, podemos denominar esse crivo pessoal de realidade psíquica ou fantasia. Já aos encontros fortuitos, chamamos de tiquê, o encontro faltoso com o real. As repetições da tiquê demandam o novo na medida que mobilizam aquilo que da estrutura psíquica escapou ao tratamento pelo simbólico e se impõe como exigência de elaboração, presentificando e atualizando a realidade sexual do inconsciente (Lacan, 1963-64/1998).
Isto corrobora a tese de que a fantasia constitui o enquadramento que permite a cada sujeito neurótico apreender a realidade. Dessa forma, a fantasia, na teoria psicanalítica, não é sinônimo de uma mera abstração avessa à objetividade. Trata-se, antes, de uma ficção necessária criada por cada um em torno de uma experiência traumática refratária a toda significação. Essa ficção é, ao mesmo tempo, uma fixação que faz com que a estrutura o sujeito esteja alicerçada em torno de alguns significantes privilegiados (Lacan, 1957-1958/1998).
Gostaríamos de destacar que, para Freud e Lacan, a fantasia pressupõe um núcleo opaco irredutível a toda tentativa de significação. Esse núcleo é o lugar da pulsão e do real. É em relação a esse lugar que concerne a ética da psicanálise, a ética do bem- dizer sobre o desejo.
Tal premissa faz com que, para Lacan, esse bem- dizer seja sempre um semi- dizer, uma vez que a verdade estará, em última instância, suspensa e arraigada a esse núcleo traumático. Daí que o bem- dizer do desejo não se confunde com o dizer tudo. Haverá sempre um impossível de ser significado, mas que, mesmo assim, é tangenciado pela escrita e pela fala.
Podemos afirmar que o estilo do autor é testemunha do encontro fundamental do sujeito com os significantes que o marcaram em um momento primeiro de alienação, momento esse que só pode ser situado como um tempo mítico. Compreendemos esses significantes como sonoridades e imagens - visuais e cenestésicas - que acompanham as primeiras experiências de satisfação de uma criança (Lacan, 1963-1964/1998).
Tais significantes, por sua vez, só recebem uma significação em um tempo a posteriori, quando se organizam em cadeia. Dizemos em psicanálise que, no neurótico, essa organização é franqueada por um significante de exceção, o nome- do- pai (Seminário: livro 05..., Op. Cit.). Decorre daí que o processo de estruturação subjetiva no neurótico é solidário à criação de seu romance familiar.
Esse romance de cada um, o mito individual do neurótico, é definido por Freud (1909/1997) como uma ficção necessária. É o resultado do atravessamento do Édipo pelo sujeito, que cria uma historieta que lhe serve de orientação no que diz respeito a sua posição na partilha dos sexos e na transmissão de mensagens entre as gerações de sua ascendência. Ou seja, trata-se de uma resposta ao enigma do desejo que está na origem do sujeito, o desejo do Outro, de onde recebe sua própria mensagem invertida.
Daí, em sua biografia, ao falar de si, Márquez aborda uma questão mais ampla. Macondo pode ser Aracataca, mas também pode encarnar qualquer cidade do mundo, na medida que serve de pano de fundo para a construção da trama, ao mesmo tempo ficcional e autobiográfica, que recolhe e alinhava os fragmentos do encontro traumático com o Outro. Ao tentar tocar esses elementos mais radicais de sua memória, Márquez faz ressoar a interrogação sobre o desejo e o uso singular que cada um faz da linguagem.
O Encontro com a Mãe
A autobiografia (Viver para contar, Op. Cit.) tem início com o relato de um fato que condensa e atualiza várias lembranças da infância de Márquez. Trata-se do encontro com a mãe em Barranquilla, que o procura para pedir que a acompanhe em uma viagem a Aracataca com a finalidade de tratar da venda da casa família. No trajeto para a cidade onde Márquez nasceu e viveu boa parte de sua infância, tomamos conhecimento que a venda da casa é apenas um dos motivos que fez sua mãe ir ao seu encontro. A pedido do pai de Márquez, ela está incumbida de demover o filho da idéia de abandonar a faculdade de direito que ele deixara de frequentar para trabalhar como jornalista e escritor.
O curioso é que o subterfúgio utilizado pela mãe para convencê-lo a seguir a orientação paterna - o retorno às raízes familiares - surte efeito contrário ao esperado por ela. É a partir dessa atualização das reminiscências infantis que se consolida a convicção de se tornar escritor e não mais retornar à faculdade de direito.
Salientamos que rememorar a infância não significa aqui a simples reprodução das reminiscências. Constitui antes um trabalho de remanejamento dos significantes que opera efeitos no real, proporcionando mudanças subjetivas:
No dia em que fui com minha mãe vender a casa eu recordava de tudo que me havia impressionado na infância, mas não tinha certeza do que tinha acontecido antes e o que aconteceu depois, nem o que significava nada daquilo na minha vida" (ibidem, p. 62).
Decorre daí que essa viagem produz uma reviravolta na vida de Márquez. Seu relato nos convida a testemunhar uma travessia - a separação da autoridade paterna e a autoafirmação como escritor - que se desenvolve em consonância com a apropriação e transmutação das lembranças de sua infância.
Reproduzimos aqui algumas passagens do livro que revelam a intensidade do impacto dessa viagem para Márquez: "foi ali que eu tomei a decisão mais importante de minha vida, a de se tornar escritor" (Ibidem, p. 09). Na mesma página, lemos: "aquele cândido passeio de dois únicos dias seria tão determinante para mim que nem a mais longa e diligente de todas as vidas não me bastaria para acabar de contá-lo" (Ibidem, p. 09).
Para nossa sorte, Márquez não recua diante do desafio de transmitir os efeitos que essa experiência transformadora lhe causou, mesmo diante de seu caráter fugidio e enigmático.
Ele nos fala do seu dilema na época do encontro com a mãe: vivia com dificuldade em Barranquilla exercendo o ofício de jornalista em dois empregos diferentes, que, juntos, rendiam-lhe uma remuneração precária. Com frequência necessitava da ajuda e empréstimos de amigos.
Temos então que, por um lado, o exercício do jornalismo despontava como uma grande paixão da qual não queria abdicar; por outro, não encontrava em si nenhum gosto ou vocação para o curso de direito, cujas aulas deixara de frequentar há mais de um ano. Sua família era pobre e ele se via no lugar de depositário das esperanças dos pais e irmãos. A expectativa era maior por parte do pai, que aguardava do filho mais velho o diploma que ele próprio não conseguira obter.
Desse modo, desde que se afastara das aulas de direito, adiava uma visita aos pais. A razão da postergação, explica Márquez, não era o medo do confronto com o pai, mas a percepção de que algo de seu próprio desejo estava em questão. Algo ainda indefinido e impreciso, mas que exigia dele uma tomada de posição: "sentia, sem conseguir explicar, que possivelmente meus argumentos só seriam válidos para mim mesmo" (ibidem, p. 12).
Essa travessia de Barranquilla até a casa da infância em Aracataca para se tornar escritor encontra no rio pantanoso singrado pelo velho barco a vapor um cenário atemporal. Márquez lembra-se do dito de seu avô materno, o Coronel Márquez, de quem herdou o sobrenome: "não devemos ter medo deste pantanal, e sim respeito" (ibidem, p.14).
Na viagem em companhia da mãe, as águas do rio, normalmente revoltas, mantém-se calmas durante todo o trajeto, como se o tempo quisesse mostrar algumas paisagens da infância do escritor. Márquez secreta à mãe uma cena viva de uma das viagens na companhia de seu avô, uma recordação ao mesmo tempo bela e bizarra: uma multidão de galinhas mortas misturadas às espumas do encontro do rio com o mar. Escreve em seguida a impressão que seu relato causou: "como ocorre com todos os adultos, ela achou que era mais uma alucinação da minha infância" (ibidem, p. 17).
É interessante situar o lugar que Márquez ocupa nessa frase. Já adulto, ele enuncia o testemunho de uma lembrança de sua infância que delineia os limites do significável, mas não a desqualifica como alucinações absurdas, tal qual provavelmente ocorreria no discurso cotidiano do senso comum. Para ele, essas lembranças possuem uma materialidade que é própria à linguagem infantil e ao seu modo singular de organizar as percepções e os registros mnémicos.
A viagem prossegue de trem. O autor enumera a sequência de placas com os nomes dos povoados que estampavam os pórticos de cada nova estação. Entre esses nomes havia um em especial, Macondo:
Essa palavra tinha me chamado atenção desde as primeiras viagens com meu avô, mas só depois de adulto descobri que gostava de sua ressonância poética. Nunca a ouvi de ninguém, nem sequer perguntei seu significado" (ibidem, p. 23).
Remetemos o leitor aqui a um trecho de Cem anos de Solidão, onde Márquez comenta os efeitos da sonoridade desse mesmo nome para um dos personagens do romance. Após abandonar sua cidade natal, o patriarca José Arcádio, instigado por um sonho premonitório, decide fixar residência em um local que denomina Macondo: "um nome que nunca tinha ouvido, que não possuía significado algum, mas que no sonho teve uma ressonância sobrenatural" (Márquez, 1967/2006, p. 29).
Esses dois comentários manifestam o reconhecimento da primazia do significante em relação ao significado e de seu enodamento com as vivências infantis e os pensamentos dos sonhos. Na narrativa de Márquez o poético, o infantil, o onírico e a musicalidade sonora das palavras se entrelaçam.
Durante toda a viagem, acontece um diálogo ao mesmo tempo sutil e intenso entre o autor e sua mãe. Esse embate argumentativo lhe esclarece sobre um elemento determinante para sua vocação de escritor: "devo a essência do meu modo de ser e pensar às mulheres de minha família e às muitas empregadas que pastorearam a minha infância" (Op. Cit., Viver para Contar, p. 68).
A força da herança materna se destaca de modo pungente tanto na obra como na vida de Márquez. A prova disso é a surpreendente sincronia entre a escrita de Viver para Contar e os últimos dias de Luíza Santiago: "Ela faleceu quando já estávamos nos preparando para celebrar seu primeiro século de vida, e no mesmo dia e quase na mesma hora em que pus o ponto final nestas memórias" (ibidem, p. 46). Desse modo, Gabriel Garcia Márquez em Viver para Contar também rende uma homenagem à sua mãe e antecipa o trabalho de luto à sua morte.
A Casa e seu Idioma
Ao chegar em Aracataca, encontram a casa em ruínas. Nela moravam várias famílias vivendo em situação de miséria. A venda não se concretiza, mas aquela visita é o bastante para que Márquez reconstrua em pensamento todas as estórias que ouvira sobre o lugar onde morou. Afirma: "Durante a minha infância ela era descrita de tantas maneiras que eram três casas que mudavam de forma e sentido, conforme quem estivesse descrevendo" (Ibidem, p. 35).
Ato contínuo, resgata seus circuitos pela casa para organizar mentalmente a sua planta: o quarto onde nascera, o quarto onde dormira nos primeiros anos de vida, os corredores, as salas, a cozinha e, principalmente, os cômodos cujo acesso lhe era vedado. Esses últimos ganham destaque em razão do mistério que incitava a imaginação do escritor quando criança.
Encontramos nas lembranças associadas à casa da família vários detalhes e temas incorporados ao livro Cem Anos de Solidão: o baú e urinóis guardados no derradeiro quarto - um dos que lhe eram proibidos -, os movimentos e barulhos das mulheres na cozinha, os animaizinhos de caramelo confeitados pela avó Tranquilina, os peixes de ouro confeccionados no escritório pelo avô Nicolas e a castanheira frondosa e arcaica que ficava no quintal "à margem do mundo e do tempo" (Ibidem, p. 39).
À medida que emergem as lembranças da casa, Márquez costura traços de imagens, cheiros, sons e palavras que acompanharam os cuidados que lhe foram dedicados na infância. Recorda as criadas, que lhe mostravam os corpos e lhe falavam coisas, escreve ele: "como se eu não entendesse, sem perceber que eu entendia tudo porque atava os nós que elas mesmas deixavam soltos" (ibidem, p. 69).
É partir do contato com as criadas da casa que ele retém as impressões mais fortes do encontro com a diferença sexual. Diante da visão da genitália de Lúcia, a quem atribui a virtude de uma "malícia pueril", Márquez lembra ter sido captado não pela visão do órgão sexual em si, mas por uma mancha contígua "que se estendia pelo seu ventre como um mapa- múndi de dunas arroxeadas e oceanos amarelos" (ibidem, p. 69).
Um outro episódio "revelador" se sobressai de suas lembranças: o parto de uma criada da casa, Matilde Armenta, que presenciou de soslaio, no meio da confusão dos adultos, divido entre "o susto e a curiosidade". Após o nascimento da criança, é descoberto por uma das mulheres do recinto, de quem escuta a frase: "você está em pecado mortal" (...) "não torne a lembrar do que você viu. Nunca" (Ibidem, p. 69).
Márquez relata que, mesmo antes do testemunho do parto de Armenta, estava intensamente mobilizado em torno de suas investigações sexuais. Como prova disso, destaca a sua reação de esgasgar-se de rir ao escutar as estórias dos adultos sobre a origem dos bebês, que diziam serem trazidos de Paris pelas cegonhas.
Diante do exposto é possível afirmar que as proibições e admoestações que ouvira como reprimenda à transgressão perpetrada durante suas investigações infantis ao invés de abolir o seu interesse pelo sexo, intensifica- o. Um indicativo disso é a presença do nome Armenta entre os personagens de Memórias de Minhas Putas tristes. Trata-se da prostituta conselheira que na velhice - ou quem sabe na condição de voz alucinada - transmite ao protagonista algum saber sobre os encontros e desencontros sexuais, sobre a busca da felicidade e a inevitável resignação frente a solidão (Márquez, 2004/2009, p. 108-111).
Márquez vai além da constatação de seu interesse infantil pelos mistérios da sexualidade. Insiste que, no seu caso, a força desses enigmas infantis se mantém incólume ainda na maturidade: "Devo confessar que nem então nem agora consegui relacionar o parto com o sexo" (Op. Cit. Viver para Contar, p. 71). A respeito das impressões remanescentes de sua primeira relação sexual, afirma: "Desde então soube de alguma forma confusa e irreal que havia um mistério insondável que eu não conhecia, mas que me perturbava como se eu conhecesse" (ibidem, p. 70).
Essas afirmações coadunam com o aforismo de Lacan (1972-73/2003), no seminário, Livro XX: não há rapport sexual. Isto é, não há qualquer tipo de complementaridade ou equivalência entre os sexos. A sexuação, a tomada de posição frente a diferença sexual, põe em questão o real e seus limites à representação. Desse modo, a realidade do inconsciente é, em última instância, sexual e traumática, uma vez que está alicerçada em um resto que se mantém irredutível a toda tentativa de significação.
Nessa pesquisa sobre os significantes que permearam a sua infância, Márquez põe em destaque a influência das mulheres na conformação do idioma falado na sua casa, o qual descreve como um "castelhano sem ossos com faíscas radiantes", dotado de uma "precisão depravada" e atravessado por um "duplo sentido sem remédio" (Viver para Contar, Op. Cit., p. 65). Reconhece nessa língua doméstica uma mistura do espanhol com idiomas indígenas, principalmente o da tribo Guajira. Lembra-se de várias expressões Guajiras utilizadas exclusivamente na sua casa e do modo poético como Meme - a velha índia, criada de sua avó - expressava-se.
Em outro trecho, retorna ao tema da linguagem da infância ao narrar as noites em uma viagem marítima ao lado de um companheiro de quarto, um atirador de facas circense que conhecia seis dialetos da ásia menor, mas que só era capaz de falar o seu idioma materno nos balbucios durante os sonhos (Ibidem, p. 173).
Encontramos aqui um tema bastante recorrente em seus romances: a referência aos sonhos como uma via de acesso privelegiada à linguagem, às lembranças e aos pensamentos. Em Viver para Contar, Márquez faz várias menções aos seus próprios sonhos. Lemos em uma dessas referências que, na adolescência, recebia com frequência a visita de pesadelos herdados da mãe. Eram sonhos enigmáticos, sinistros e terríveis, carregados de sentimento de culpa. Compara- os com um sonho que sua mãe lhe confidenciara: ela com sua própria cabeça no colo a catar piolhos e lêndeas dos cabelos (Ibidem, p. 191).
Se na viagem de barco com o atirador de facas o escritor é testemunha de uma fala que evoca um idioma infantil que habita os sonhos, aqui ele se encontra no lugar de enunciação dessa fala que o ultrapassa e que insiste em retornar.
Já destacamos que essa linguagem infantil e onírica constitui a matéria bruta de muitos dos romances de Márquez. Gostaríamos de chamar atenção para o que consideramos um dos elementos centrais de Cem anos de Solidão e de Viver para contar: o esforço do escritor em abordar o tema da transmissão entre gerações das paixões, pesadelos e sonhos. É a partir desse trabalho de depuração e transformação dessa herança que o autor se engaja na discussão sobre o estilo.
Em vários momentos de sua autobiografia, Márquez se detém na análise do legado simbólico de sua família. Ele nos mostra que sua árvore genealógica lhe impôs um considerável exercício de abstração, haja vista os inúmeros filhos bastardos tanto de seu pai como os de seu avô materno. Sua mãe acolhia os outros filhos do marido sob a justificativa de que eles tinham o mesmo sangue de seus filhos e, portanto, não podiam andar por aí como um qualquer. Sua avó, Mina, por sua vez, anotava em uma caderneta os nomes dos filhos do Coronel Márquez à medida que iam aparecendo para lhes conferir lugar "na contabilidade da família" (ibidem, p. 67).
Márquez destaca outro componente importante de sua árvore genealógica: a magia que emana dos nomes próprios. Já como escritor, essa magia sonora lhe serviu de diretriz para compôr os personagens de seus livros. Confessa que não se senta para redigir um romance até que, a partir da ressonância dos nomes dos personagens, estes não adquiram vida e comecem a falar por si mesmo.
O autor refere-se repetidas vezes à casa de sua infância com as mesmas palavras usadas pela avó Mina (Tranquilina): casa de lunáticos. Para Márquez, a casa da família era um espaço de exceção na cidade, com sua própria rotina, expressões, preconceitos, costumes e estórias. Eram respeitados por todos em Aracataca e mantinham boa relação com a vizinhança, mas viviam para dentro, em isolamento. Era um lugar onde se respirava a nostalgia e a solidão.
A expressão "Casa de Lunáticos" ganha vida novamente na boca da também centenária matriarca dos Buendía, Úrsula (Cem anos de Solidão, Op. Cit). Do mesmo modo que Mina, Úrsula se engaja na contabilidade dos filhos de seu marido. Podemos apontar essa personagem (Úrsula) como um mosaico que agrega características de várias mulheres da família Márquez. Além de Mina, uma outra parenta de Márquez que lhe empresta traços é a irmã mais velha do coronel Nicolas, Petra.
As lembranças dessa tia cega em seus passeios pela casa, guiada pelo olfato e o tato, a cantarolar, são descritas com vivacidade: "Era esbelta e furtiva, com uma pele de açucenas murchas, uma cabeleira radiante cor de madrepérola, que usava solta até a cintura, e da qual ela mesma cuidava. Sua pupilas verdes e diáfanas de adolescente mudavam de cor com seus estados de espírito" (Ibidem, p. 74). Já adulto, descobre que essa descrição é uma falsa lembrança. Segundo a mãe, Petra morrera antes de Márquez completar dois anos. Essa informação, contudo, não diminuiu a força inquietante da presença de Petra em sua vida.
Após apresentar ao leitor uma outra "falsa" e "improvável" lembrança de sua infância a qual remorara com nitidez, Marquez descreve o impacto que o relato de suas reminiscências causava nas pessoas de sua família: " muitos casos como esse me criaram na casa a má reputação de que eu tinha lembranças intra- uterinas e sonhos premonitórios" (Ibidem, p. 64).
Sabemos com Freud (1899/1997) que essas falsas lembranças, as quais nomeia com mais precisão de "lembranças encobridoras", são portadoras de uma verdade e, nessa condição, constituem, tal qual os sonhos, uma formação do inconsciente e uma via de acesso ao recalcado.
Ao tomar essas lembranças como substituto de um elemento elidido e acolhê- las como fragmentos legítimos de sua vida, Márquez nos atesta que está empenhado em seguir os rastros do retorno do recalcado a partir dos efeitos de distorção, deslocamento e condensação que lhes delineam o caminho (Freud, 1915/1997).
A relação de Márquez com sua avó Mina, por sua vez, é complexa e intensa; marcada por um misto de admiração e medo. Ela é a principal fonte dos relatos sobre o passado da família em Barrancas, cidade onde a família materna residia antes da mudança para Aracataca. Márquez nos diz que muitas estórias de seus pais e antepassados lhe foram transmitidas pela boca de Mina durante os seus delírios, nos últimos anos de sua vida, quando se encontrava acometida por uma espécie de estado demencial.
Márquez é tão intensamente tocado pela urdidura dos relatos de Mina, que talvez não seja exagero dizer que ele a sucede na função de narrador das estórias familiares, a contabilidade da família. Trata-se do mesmo lugar ocupado por Úrsula em Cem anos de Solidão.
Os Restolhos do Aluvião Humano
Márquez revela que, antes da viagem à Aracataca com sua mãe, estava envolvido na escrita de um livro para o qual não conseguia encontrar uma direção. Lembra que, nessa época, quanto mais falava do livro e das infrutíferas ideias que surgiam como solução para os impasses de sua redação, mais se convencia da insuficiência de sua estória.
Recorda que a inspiração para começar a escrevê-lo surgiu de um panfleto sobre um veterano da guerra dos mil dias. Ao ler o panfleto, Márquez é cativado pela foto de um soldado. Esse personagem quase anônimo da história colombiana lhe lembrou o avô: "por isso pensei escrever um romance com o título La Casa, sobre a epopéia de uma família que podia ter muito da nossa durante as guerras estéreis do coronel Nicolás Márquez" (Ibidem, p. 342). Ainda sobre o personagem do panfleto, acrescenta: "Esqueci seu nome, mas seu sobrenome haveria de ficar comigo para todo o sempre: Buendía" (ibidem, p.342).
Esse livro permaneceu inconcluso como "um projeto que nunca teve mais de 40 páginas soltas" (Ibidem, p. 349). Malgrado sua interrupção, Márquez reconhece nele os primeiros contornos da estória que anos depois, após um longo trabalho de elaboração, iria transformar-se no romance Cem Anos de Solidão.
No entanto, até que isso acontecesse, fez-se necessário que Márquez destilasse a fonte de seu "veneno literário" (ibidem, p. 322). O exercício contínuo imposto pela redação de contos e crônicas para jornais e revistas havia lhe fortalecido a convicção que não se cria nada do zero, que a verdadeira literatura não brotava da pura abstração, mas da experiência.
Daí que, após regressar de Aracataca, em meio ao arrebatamento produzido pela viagem com a mãe, chega à seguinte CONCLUSÃO: "o livro que eu vinha tentando escrever era pura invenção retórica sem nenhuma base em uma verdade poética" (ibidem, p. 357). Em seguida, conclui:
O modelo de uma epopéia como a que eu sonhava não podia ser outro que o da minha própria família, que nunca foi protagonista e nem mesmo vítima de coisa alguma específica, e sim testemunha inútil e vítima de tudo" (ibidem, p. 357).
Como resultado dessa reviravolta, Márquez principia um novo romance, o qual intitula La Hojarasca. Trata-se de uma expressão utilizada por sua avó Tranquilina para se referir ao fluxo migratório que se dirigiu a Aracataca após a chegada da United Fruits Company, uma empresa americana que se instalou na cidade com o fito de plantar bananas em grande escala para exportação. Reconhece nessa expressão da avó um tom ao mesmo tempo desdenhoso e compassivo, ao passo que identifica nela os resquício do passado aristocrático da família (Ibidem, p. 359).
Hojarasca significa em espanhol a sujeira acumulada pelas folhas caídas da copa de uma árvore. Em um sentido metafórico, pode designar também algo sem importância ou valor, o excesso de uma retórica que lhe dificulta o entendimento (Real dicionário español, 2006).
O título em português deste que foi o primeiro romance publicado de Márquez é A Revoada: O Enterro do Diabo (Márquez, 1955/2011). O tema central do romance é a transmissão inaudita de um mistério entre três gerações de uma mesma família (o avô. a mãe e seu filho). O livro inicia-se com um epigrafe da tragédia de Sófocles, um trecho da fala de Antígona, onde ela, resoluta, está prestes a infrigir a lei da pólis e sepultar o cadáver de seu irmão Polinice.
Logo em seguida, no prefácio, Márquez dá um sentido mais específico à expressão Hojarasca, que gostaríamos de pôr em evidência. Trata-se de "um aluvião revolto, alvoroçado, formado pelas sobras e materiais dos outros povoados" (Ibidem, p. 07); "um aluvião humano" (Ibidem, p. 07) que "perdeu seu impulso, mas adquiriu unidade e solidez; e sofreu o natural processo de fermentação e se juntou aos germes da terra" (Ibidem, p. 08).
Enfatizamos as palavras aluvião e restolho para, a partir daí, propor uma aproximação com o conceito de lalíngua presente no ensino de Lacan na década de 70. Em Radiofonia, Lacan discute a condição de sensibilidade do corpo humano que o torna suporte de alíngua. Lemos então que o corpo:
pode portar a marca adequada para situá-lo numa sequência de significantes. A partir dessa marca, ele é suporte da relação, não eventual, mas necessária, pois subtrair-se dela continua a ser sustentá- la" (Lacan, 1970/2003, p. 407).
Já na conferência de Genebra (Lacan, 1975/1998), encontramos mais elementos para entender a proposta que Lacan traz sobre lalíngua: trata-se daquilo que impregna o corpo da criança a partir do encontro com a com a fala do outro; é o banho de linguagem que torna o corpo portador "da marca do modo pelo qual o sujeito foi aceito pelos pais" (Ibidem, p. 09). É em função desse modo particular pelo qual lalíngua foi falada e ouvida, em sua equivocidade, que alguma coisa "reaparecerá nos sonhos, em todo tipo de tropeços, em toda espécie de modos de dizer" (Ibidem, p. 10).
É na lalingua que Lacan encontra o que denomina motérialisme do Inconsciente. Esse neologismo condensa mot (do francês, palavra) e materialismo, indicando que se trata aí do substrato material com o qual a psicanálise se ocupa. Transcrevemos aqui outro trecho da mesma conferência onde Lacan aborda os efeitos das marcas deixadas na criança pelo fato de seu encontro com a linguagem:
[...] "há algo nela (a criança), uma peneira que se atravessa, através da qual a água da linguagem chega deixar algo para trás, alguns detritos com os quais brincará, com as quais ele necessariamente terá de desembaraçar-se. É isso que deixa toda essa atividade não- reflexiva - os restos as quais mais tarde - porque ele é um imaturo agregarão os problemas do que vai lhe assustar. Graças a isto, ele irá fazer a coalescência, por assim dizer, dessa realidade sexual e da linguagem" (Ibidem, p. 11).
Podemos avançar um pouco mais nessa discussão trazendo alguns elementos de A Terceira, (Lacan, 1974/1991). Nessa conferência, lalíngua é definida como depósito, aluvião, a petreficação que se marca a partir do manejo por um grupo de sua experiência Inconsciente (Ibidem, p. 89).
Acreditamos ser possível realizar uma aproximação entre o aluvião humano de Márquez com esse último da lalingua teorizado por Lacan. Em ambos os casos, encontramos um restolho transmitido de uma geração a outra que se precipita no corpo, deixando traços. Defendemos que a escrita de Márquez em Cem Anos de Solidão se esmera em promover o resgate e a depuração dessas marcas.
Na década de 50, Márquez volta a viver por um breve período com sua família em Sucre e em Cartagena. Muitos lembranças dessa época são amalgamadas às reminicências de sua infância e, em seguida, incorporadas à estória de seus romances vindouros. Podemos qualificar esse período como uma espécie de laboratório onde os resíduos das falas atuais e passadas são confrontados e transformados.
Vislumbramos do relato de Márquez uma intensa mobilização pulsional envolvida na elaboração dos restos daquilo que fora transmitido pelas gerações de sua família. Esse esforço, que culminou no delineamento de um estilo de escrita, ensejou também a produção de impasses subjetivos do autor e, consequentemente, a possibilidade de ultrapassá-los. É o que podemos depreender dos trechos que se seguem:
Não me atrevi a confessar que com La Hojarasca estava acontecendo a mesma coisa que tinha acontecido com La Casa" [. ] "Depois de um ano trabalhando com tanto júbilo, achei que o livro havia se revelado um labirinto circular sem entrada nem saída" [...] "Não sentia o livro respirar. Depois de tanto tempo trabalhando nas trevas, eu estava atolado, e via o livro fazer águas sem saber onde estava as rachaduras. O pior de tudo é que naquele ponto da escrita ninguém poderia me ajudar, porque as fissuras não estavam no texto, mas dentro de mim, e somente eu poderia ter olhos para vê- las e coração para sofrê- las" (Viver para Contar, op. Cit. p. 392).
Márquez lembra de sua aparência de mendigo no período quando estava envolvido com a escrita de La Hojarasca. Para ele, o desleixo com as vestimentas era consequência da canalização de todas as suas enegias para o esforço de aprender a escrever. Tão logo ele encontrou um caminho pelo qual prosseguir, houve uma mudança brusca na sua rotina, no seu modo de se vestir, na sua relação com as pessoas e até mesmo na sua condição financeira.
Para Concluir: A Solidão Domesticada
Aproximadamente uma década se transcorreu desde a publicação de La Hojarasca nos meados da década de 50 até a conclusão de Cem Anos de Solidão, redigido durante o exílio do escritor no méxico. Talvez esse tempo tenha sido necessário para que Márquez sustentasse o trabalho de destituição subjetiva necessário à aceitação da solidão, que, de acordo com o que leitura que empreendemos de sua autobiografia, processa-se em paralelo à mobilização e atualização das marcas remanescentes de suas experiências linguageiras infantis.
Essa solidão está intrisecamente arraigada ao usufruto dos amores possíveis e à aceitação do luto dos amores perdidos e das empresas utópicas. Constatamos que a sombra da solidão permeia a estória dos Buendía e dos Márquez na condiçao de uma maldição transmitida de pai para filho. O trabalho subjetivo que permeia redação de Cem Anos está em apropriar-se e dar um destino a essa maldição.
Podemos dizer que a pergunta formulada no início de sua autobiografia - o origem do estilo do autor - é solidária ao enigma sobre a verdade de seu desejo. A partir da depuração dos resíduos do aluvião humano dos quais é portador, Márquez se esforça em produzir um saber que possa circunscrever o real da não- relação sexual.
Referências Bibliográficas
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Recebido em: 18/102012
Aprovado em: 12/12/2012