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Interamerican Journal of Psychology
versión impresa ISSN 0034-9690
Interam. j. psychol. vol.43 no.3 Porto Alegre dic. 2009
A zona muda das representações sociais: uma aproximação a partir do jogo de areia
The mute zone in social representations: an aproach based on the sandplay
Beatriz Judith Lima ScozI,1; Albertina Mitjáns MartinezII
ICentro Universitário FIEO, São Paulo, Brasil
IIUniversidade de Brasília, DF, Brasil
RESUMO
O objetivo deste artigo é fundamentar e mostrar a utilização do Jogo de Areia como recurso metodológico inovador para o estudo da zona muda das representações sociais, especialmente as representações sociais de professores pela sua significação para a prática pedagógica. A utilização do Jogo de Areia foi alicerçada nos princípios que o norteiam, nas experiências profissionais e como pesquisadoras das autoras e nas concepções teóricas de importantes especialistas. Também serão enfatizadas as possibilidades que o Jogo de Areia oferece para a articulação das representações sociais com a construção da subjetividade. Evidenciam-se assim, as contribuições que o aprimoramento das pesquisas sobre as representações sociais dos professores pode oferecer às necessárias transformações que devem acontecer nas formas em que esses profissionais se formam na atualidade.
Palavras-chave: Representações sociais; Zona muda; Ensino e aprendizagem; Subjetividade; Jogo de areia.
ABSTRACT
The aim of this article is to argue for the use of Sandplay and show it as an innovative metodological resource to studying the mute zone of social representations, mainly of teachers‘ social representations bacause of its significance to pedagogical training. The use of Sandplay was strengthen on the principles that guide it and on the professional and research experiences of the authors of this paper, so as on the theoretical conceptions of remarkable specialists. It will be also stressed the potencial of Sandplay linking social representations and the construction of subjectivity. Thus, it is demonstrated the contributions of the improvement of researches of social representations of teachers to necessary changes That might happen to the ways in what these professionals are educated nowadays.
Keywords: Social representations; Mute zone; Teaching and learning; Subjectivity; Sandplay.
As pesquisas sobre representações sociais, na maioria das vezes, baseiam-se nas verbalizações dos sujeitos investigados através de entrevistas, questionários e outros instrumentos identificadores de discursos. A ênfase é colocada na expressão verbal e no discurso diário, como sistemas de mediação simbólica, através dos quais o indivíduo se apropria do mundo externo e, nessa comunicação estabelecida na interação, ocorrem “negociações”, re-interpretações das informações, dos conceitos e significados.
Entretanto, segundo Abric (2005), há algumas defasagens entre o que as pessoas dizem e o que elas pensam, entre o que elas dizem (em seus discursos) e o que elas fazem (em sua prática), o que coloca em dúvida a compreensão das representações sociais. Ainda, para esse autor (2005), as pessoas entrevistadas não nos dizem tudo, elas escondem alguns componentes de seus pensamentos em certas situações, e nestas existem duas facetas da representação: uma, explícita, verbalizada; outra não verbalizada, não expressa, denominada “zona muda”.
A impossibilidade de estudar as representações sociais a partir apenas do que as pessoas expressam verbalmente de forma direta tem sido defendida por diversos especialistas das representações sociais, uma vez que elas não são necessariamente totalmente conscientes. As explicações em relação à falta de conscientização de elementos que integram as representações são diversas e estão em consonância com as concepções teóricas sobre as representações sociais que têm sido elaboradas por diferentes autores.
Para Abric (2005), a “zona muda” é constituída pelos elementos da representação que têm um caráter contra-normativo. Para explicitar essa idéia, Abric (2005) toma as concepções de Guimelli e Deschamps (2000), que denominam a zona muda como um subconjunto específico de cognições ou de crenças que, mesmo sendo disponíveis, não são expressas pelos sujeitos nas condições normais de produção; e, se fossem expressas (notadamente em certas situações), poderiam questionar os valores morais ou as normas valorizadas pelos grupos.
Assim, certos elementos de representação – mesmo aqueles que seriam centrais – podem ficar “escondidos” ou “mascarados”, de modo que aparecem só os elementos periféricos. Abric (2005), considerando ainda, que os elementos do núcleo central podem ser funcionais – práticas em relação ao objeto da representação –, ou normativos – avaliação, julgamentos, atitudes ou estereótipos em relação ao objeto da representação –, sugere que os que ficam na zona muda são os normativos, pois estes são mais ligados a avaliações e valores, que aparecem como ilegítimos para o grupo de pertença do indivíduo que os representa. Apesar da orientação cognitivista do autor e de sua interpretação limitada sobre as razões pelas quais alguns elementos da representação ficam no que denomina “zona muda”, suas conceitualizações permitem aumentar a visibilidade de um aspecto das representações – seus elementos não conscientizados – que demandam formas indiretas de exploração para avançar na sua compreensão.
Para Abric (2005) e Menin, (2006), conseguir revelar os elementos da zona muda de representação implica descobrir e desenvolver novos instrumentos de investigação que permitam demarcá-la e evidenciá-la. Menin (2006) sugere instrumentos que reduzam a pressão normativa sobre o sujeito que representa, permitindo que ele expresse seus pensamentos através da redução dos riscos de julgamento negativo da parte de seus interlocutores.
Nesse sentido, uma tentativa como o Jogo de Areia, um instrumento inovador de pesquisa (explicitado nos próximos itens deste artigo), apresenta-se como um recurso muito rico para a realização de pesquisas com a zona muda das representações sociais e junto a outras formas indiretas de exploração já em utilização, pode abrir novas possibilidades metodológicas e técnicas, que permitirão à teoria das representações sociais conhecer desenvolvimentos mais promissores. Assim, o objetivo central deste artigo é fundamentar e mostrar a utilização do Jogo de Areia como recurso metodológico para o estudo da zona muda das representações sociais, especialmente as representações sociais dos professores pela significação destas para a prática pedagógica.
Subjetividade e Representações Sociais
O conceito de representação social significou a criação de uma nova zona de sentido dentro da Psicologia Social, orientada a um dos processos mais importantes da subjetividade social (Mitjáns Martínez & González Rey, 2006). Entretanto, nos estudos das representações sociais, as relações com a subjetividade não têm sido suficientemente consideradas. Concordando com González Rey (2003), as representações sociais devem ser percebidas como produções subjetivas que têm fundamento em uma realidade social, na qual também intervêm processos de subjetivação que a configuram.
Ainda de acordo com González Rey (2003), as representações sociais estão constituídas por uma multiplicidade de elementos de sentido e significação, que circulam na sociedade e dão às representações sociais sua dimensão subjetiva constituída por sentidos subjetivos responsáveis pela unidade inseparável entre o emocional e o simbólico.
As representações sociais apresentam-se como uma forma de organização do espaço simbólico em que o sujeito se desenvolve. A realidade aparece para as pessoas através das representações sociais e dos diferentes discursos que formam o tecido social. Por meio deles, nos sujeitos individuais que se confrontam em um determinado espaço social, configuram-se os sentidos subjetivos das diferentes esferas de suas vidas, e se desenvolvem os processos de significação de si mesmos e de suas relações com os outros (Mitjáns Martínez & González Rey, 2006).
Tal como demonstram Mitjáns Martínez e González Rey (2006), há uma confluência de sentidos configurados de forma simultânea no espaço social e no sujeito individual, ou seja, a qualidade da aprendizagem é influenciada por elementos de sentido procedentes de outras áreas da vida do sujeito, como sua identidade social, e, ao mesmo tempo, pelas emoções desse sujeito, que aparecem através de sua expressão singular. Dessa maneira, as representações sociais estão implicadas com os temas do subjetivo e da subjetividade social. Se não fosse assim, a dicotomia mecanicista do social e do individual acabaria dominando o campo de estudos das Representações Sociais, ou se cairia na negação absurda do individual, defendida, nem mais nem menos, do que por indivíduos concretos muito bem caracterizados em sua definição singular.
Além disso, a separação entre os conhecimentos gerados social e individualmente é extraordinariamente frágil, pois em cada momento social de gênese de uma representação aparece um conjunto de sujeitos individuais, cujas criações, contradições e ações são centrais na constituição do núcleo figurativo de um sistema representacional, ao qual ficam subordinados por múltiplos mecanismos de caráter social depois que a representação se apropria do espaço social em que foi engendrada. Este é um processo infinito do desenvolvimento social (Mitjáns Martínez & González Rey, 2006).
Outra questão aparece com freqüência no estudo das representações sociais, a partir da concepção da subjetividade numa perspectiva histórico-cultural (González Rey, 2003): a integração da categoria “sentido” à linguagem e ao significado. Nesta perspectiva, a categoria “sentido” é muito mais ampla, pois representa uma formação dinâmica, fluida e complexa, que tem inúmeras zonas de sentido que variam em sua instabilidade. Trata- se de um agregado de todos os fatores psicológicos que surgem em nossa consciência como resultado da palavra. O significado, por sua vez, é apenas uma das zonas de sentido que a palavra adquire no contexto da fala (Vygotsky, citado por González Rey, 2003).
Desse ponto de vista, as representações sociais expressam realidades sociais que não se esgotam em sua expressão discursiva e nem na linguagem porque são parte de um tecido social constituído e organizado historicamente, que se reproduz não só nos espaços conversacionais, mas também na constituição subjetiva de seus protagonistas (Mítjáns Martínez & González Rey, 2006).
O conceito de sentido nas representações sociais, relacionado à discussão sobre a zona muda aponta para duas direções: a primeira é a necessidade de utilização do conceito de sentido subjetivo (González Rey, 2003, 2007) para definir o caráter subjetivo das representações sociais e suas diferenças com entidades puramente lingüísticas ou discursivas; a segunda, derivada da primeira, é evidenciar a expressão emocional dos conteúdos representacionais que até hoje não têm sido suficientemente considerados nas teorias das representações sociais.
Para que isso ocorra, é necessário compreender o estudo da zona muda das representações sociais como um processo complexo que demanda a utilização de instrumentos indiretos que permitam a expressão dos aspectos não conscientizados e dos aspectos emocionais que a integram. Nesse sentido, o Jogo de Areia apresenta-se como um instrumento valioso de pesquisa, uma vez que constitui um espaço de produção do sujeito no qual se geram sentidos subjetivos e se expressam processos simbólicos vinculados às representações sociais impossíveis de serem explorados de forma direta. Destaca-se assim, o valor metodológico do Jogo de Areia como instrumento de pesquisa para o estudo das representações sociais, reconhecendo-se, no entanto, que a complexidade da constituição destas, demanda formas de indagação que não se esgotam com a utilização de um único instrumento.
Na produção de cenas realizadas pelo sujeito no Jogo de Areia, junto com os elementos da representação contra- normativos defendidos por Abric (2005) – cognições e crenças que não são expressas pelo sujeito em condições normais de produção, pois podem entrar em conflito com valores morais ou normas de um determinado grupo – é necessário considerar as produções de sentido subjetivo que permeiam as representações. Nessas situações há, por vezes, uma complexa síntese de um conjunto de estados afetivos sobre os quais o sujeito pode ou não ter consciência. Esses estados não podem ser ignorados, pois eles, na perspectiva da subjetividade, se integram nas representações sociais. No Jogo de Areia, a presença da dimensão emocional resulta às vezes em vivências muito intensas que facilitam a compreensão dos sentidos subjetivos produzidos pelos sujeitos e, ao mesmo tempo, a leitura de suas emoções como pode-se notar nesses comentários de uma autora de cena no Jogo de Areia (Weinrib, 1993, p. 39-40):
Com o Jogo de Areia você escolhe um objeto coloca-o na caixa e torna-se mais consciente de um sentimento. A caixa torna-se uma extensão de você mesma. Eu sei o que é certo para colocar nela. Às vezes entro em conflito. Se não parecer direito, eu retiro. Ela torna meus sentimentos acessíveis à mim mesma, me ajuda a distingui- los. Ela me diz que eu tenho um sentimento – esteja ou não celebrando alguma coisa –. Eu sei como me sinto quando faço um cenário. Ele me conta. Assemelha-se um diálogo silencioso entre mim e eu mesma.
As Representações Sociais e Algumas Preocupações no Âmbito do Ensino e da Formação de Professores
As representações sociais e, conseqüentemente, os significados e sentidos subjetivos que os professores produzem em seus processos de aprender e de ensinar, têm sido pouco considerados na educação. Mentores e implementadores de programas ou cursos de formação continuada, que visam mudanças em cognições e práticas, têm a concepção de que, oferecendo conteúdos e trabalhando a racionalidade dos profissionais, produzirão mudanças em posturas e formas de agir a partir do domínio de novos conhecimentos. Essa concepção é muito limitada. Os professores são pessoas integradas a grupos sociais de referência, nos quais se gestam concepções de ensino e aprendizagem que constituem representações e valores, os quais participam da forma em que os professores se relacionam com os conhecimentos que lhes chegam. Ou seja, os conhecimentos são incorporados ou não, em função de complexos processos não apenas cognitivos, mas sócio-afetivos e culturais (Gatti, 2003).
Não podemos esquecer outro fator presente na escola, que pode atuar como empecilho para um trabalho com as representações sociais dos professores. Há, nas escolas, um forte componente que contribui para comportamentos estereotipados: a tendência ao enquadramento faz com que os professores fiquem presos a estereótipos, falando não de suas próprias representações, mas do que conhecem das representações de outros grupos com os quais convivem.
Desse modo, os professores podem ser levados a verbalizar somente conhecimentos acerca dos processos de ensino e aprendizagem conformes à norma e não expressar aqueles que não são conformes. Ou seja, quando um indivíduo encontra alguém pela primeira vez – no caso deste estudo, o professor – ele busca, geralmente, passar uma impressão favorável. Um dos meios de criar essa imagem positiva é expressar as atitudes que parecem as mais adequadas à situação: verbalizar somente as opiniões, ou crenças aceitos pelo grupo de pertencimento (Abric, 2005).
Há ainda, por vezes, resistência por parte dos próprios formadores de professores a aceitar uma produção original que escapa às delimitações impostas por tendências dominantes do pensamento pedagógico. Dessa maneira, como já mencionado, o professor limita- se a repetir aquilo que é esperado, cerceando sua capacidade reflexiva, suas ações docentes e suas possibilidades de transformação.
Apresenta-se, assim, a necessidade de descobrir e de colocar em funcionamento novos instrumentos de estudo das representações sociais de professores, que permitam demarcar e evidenciar a zona muda de suas representações sociais. Sem isso, talvez os estudos e pesquisas sobre as representações sociais de professores fiquem limitados à dimensão discursiva de estas e consequentemente não consigam evidenciar elementos importantes a ter em conta no delineamento de estratégias de mudanças no processo de formação profissional. O aprimoramento das pesquisas sobre as representações sociais dos professores pode contribuir às necessárias transformações que devem acontecer nas formas dominantes em que se forma os professores na atualidade. Como afirma Gatti, (1996), ao continuarmos com os mesmos métodos de formar professores e prover seu aperfeiçoamento, assistiremos, como já temos assistido, a simulacros de mudança, mas não transformações reais.
Enfrentar esses desafios exige a busca de caminhos teórico-metodológicos que permitam lidar com a complexidade contida nas questões anteriormente apontadas. O jogo de areia, anteriormente citado, utilizado criativamente a partir de uma concepção das representações sociais como expressão da subjetividade social (nós acrescentaríamos: da subjetividade individual) (González Rey, 2003) e devidamente embasado teoricamente pode ser um recurso muito rico para a realização desse propósito.
O Jogo de Areia
O Jogo de Areia foi desenvolvido entre 1954 e 1956 por Dora Kalff, analista suíça formada no Instituto C. G. Jung em Zurique. Ela enfatizou as possibilidades desse método psicoterapêutico para trabalhar com adultos, pois acreditava que brincar livremente, construir cenas e criar imagens passo a passo, reavivava a imaginação e liberava a capacidade de expressão. Além disso, nessa atividade, os adultos deixavam cair por terra muitas defesas e resgatavam o mundo infantil. Segundo Kalff (citado por Weinrib, 1993, p. 62), “no Jogo de Areia, lembranças perdidas vêm à tona e fantasias reprimidas são liberadas.”
O aspecto central do Jogo de Areia é o conceito de “espaço livre e protegido”, que tem dimensões tanto físicas quanto psicológicas: enquanto há liberdade para criar aquilo que se deseja na caixa de areia, sua dimensão e o número de miniaturas, embora extensos, são limitados e “continentes”, criando-se assim uma situação segura e protegida. A segurança psicológica decorre da atmosfera protegida, na qual o sujeito recebe aceitação incondicional (Kalff, citado por Weinrib, 1993). Essas características do Jogo de Areia – a redução dos mecanismos de defesa e a atmosfera protegida – entreabre uma pista metodológica para favorecer a expressão da zona muda das representações sociais tal como conceituada por Abric (2005): a redução da pressão normativa que se exerce sobre o indivíduo.
Os procedimentos criados por Kalff para a utilização do Jogo de Areia consistem na utilização de uma ou duas caixas com areia, a qual poderá ser molhada para poder ser moldada. Kalff também sugere uma grande coleção de miniaturas para facilitar a expressão do maior número possível de conteúdos, tanto do mundo externo quanto do mundo interno, que se constituem em um conjunto de emoções, sentimentos, pensamentos, valores, expectativas.
A Caixa
A forma da caixa é retangular, com 72 cm de comprimento, 50 cm de largura e 7,5 cm de profundidade. Essas medidas correspondem ao campo de visão de uma pessoa, que se encontra sentada diante da caixa. O fundo é pintado de azul claro para representar água, quando se desejar. As dimensões físicas da caixa são muito importantes porque promovem a concentração e, ao mesmo tempo, limitam e contêm, ou seja, pode-se criar o que se deseja, mas o espaço físico é finito, mantendo a fantasia em limites seguros. Assim, é possível atender à característica central do Jogo de Areia: a de espaço livre e protegido.
A Areia
A areia é considerada por Kalff (citado por Azevedo, s.d.) um material extremamente importante por conter, como a terra, elementos naturais primordiais que remetem às cenas e brincadeiras da infância. Além disso, a areia permite inúmeras sensações táteis e uma grande mobilidade: criar espaços elevados, depressões, fazer buracos, enterrar objetos etc. Ainda segundo Kalff (1980, p. 71), “os movimentos fluidos na areia, ou o deixar simplesmente escoá-la por entre os dedos, mostra que algo começou a mobilizar-se dentro do sujeito."
As Miniaturas
As miniaturas são variadas e representam todo o universo: pessoas de diversas raças e em diferentes épocas e funções; animais; vegetação; pedras; conchas; moradias e construções de diferentes tipos (casas, castelos, igrejas, pontes, etc.); mobília; utensílios domésticos; instrumentos de trabalho; meios de transporte; brinquedos de play-ground; figuras religiosas e mitológicas etc. Também é importante oferecer materiais (de encaixe, por exemplo) que possibilitem construir o que não estiver disponível.
É importante lembrar que as miniaturas, por seu valor simbólico, não são apenas analogias de outras coisas, mas adquirem vida própria, força real e dinâmica, valor emocional e conceitual. Além disso, remetem à realidade da vida cotidiana, oferecendo-se assim uma oportunidade para que as pessoas possam perceber valores e normas sociais valorizados por seus grupos de convivência, podendo questioná-los e expressar suas próprias crenças, cognições e emoções em relação a eles.
No Jogo de Areia, a produção de sentidos subjetivos pode ser compreendida pela dimensão simbólico – emocional, pois essa produção não ocorre fora de uma rede de sentidos já constituídos pelos sujeitos na qual o simbólico e o emocional formam uma unidade. A preparação dos cenários por si só é um ato simbólico e os símbolos são representados pelas construções na areia ou pelas miniaturas que são utilizadas como ferramentas de expressão. Quando esses processos de simbolização estão carregados de vivências emocionais pode se afirmar que trata-se de processos de produção de sentido subjetivo.
Uma outra especificidade do Jogo de Areia é a dimensão do fazer, que se expressa pela transformação visível da matéria: os cenários e a areia. O efeito “mão na massa” pode ser positivo em pessoas muito intelectualizadas, habituadas a expressar-se ou até mesmo a “controlar” diversas situações apenas por meio das palavras. O Jogo de Areia, também pode beneficiar pessoas que se expressam mal verbalmente (Ammann, 2002).
Há uma especificidade central no Jogo de Areia que precisa ser ressaltada: sua capacidade como procedimento “projetivo”, uma vez que o sujeito é posto na presença de situações pouco estruturadas. Essa questão é importante, pois contribui para revelar a zona muda das representações sociais tal como concebida por Abric (2005).
Além disso, o Jogo de Areia permite extrapolar apenas o conteúdo observável à primeira vista que se expressa verbalmente, para avançar em possibilidades de expressão simbólica, figurativa e emocional. Assim, o Jogo de Areia pode ser utilizado para compreender aspectos não conscientizados das representações sociais de professores acerca dos processos de aprender e de ensinar, na condição de indutor de informação relevante sobre esses aspectos.
Expansão: O Jogo de Areia como Instrumento de Pesquisa
Alguns estudos mencionados por Franco e Pinto (2003, p. 98) estão sendo realizados no Brasil, com o intuito de ampliar o âmbito de utilização do Jogo de Areia. Para essas autoras, sem descuidar do risco de um ecletismo teórico-metodológico, trata-se de encarar toda a riqueza inerente a essa técnica em benefício da produção de conhecimento científico. Por outro lado, essas autoras também apontam a necessidade de se buscar formas de aplicação específicas, mais abrangentes e menos elitistas com o Jogo de Areia, para que ele não fique restrito aos consultórios.
Na história do Jogo de Areia no Brasil, a criação do PROTEJA (Projetos e Estudos em Terapia com o Jogo de Areia) pode ser considerada, um marco de desenvolvimento de pesquisas com o Jogo de Areia. No primeiro simpósio do PROTEJA agregaram-se pesquisadores de diferentes universidades e de diferentes áreas do conhecimento que referendou, num certo sentido, a inserção do Jogo de Areia em um contexto de pesquisa acadêmica brasileira. Neste simpósio considerou-se o Jogo de Areia, para além de um método psicoterapêutico, ou seja, reconheceram-se características do Jogo de Areia como um novo procedimento metodológico na pesquisa qualitativa.
Por outro lado, as pesquisas em Psicologia e em Educação com abordagens psicossociais, no caso deste estudo, as Representações Sociais, necessitam reconhecer novos princípios epistemológicos que orientem as pesquisas com esse enfoque. Nesse sentido a Epistemologia Qualitativa proposta por González Rey (1997, 2005) constitui uma interessante alternativa epistemológica para o delineamento de pesquisas qualitativas nas quais, o pesquisador, utilizando instrumentos abertos e semi abertos de diferentes naturezas possa avançar na compreensão de objetos de pesquisa complexos, os quais as representações sociais dos professores sobre o ensinar e o aprender constituem uma expressão. Peter Reason (1998), ao analisar algumas propostas metodológicas atuais no campo da investigação qualitativa, também sugere outros meios de pesquisa tais como formas expressivas: a dança, o teatro, etc. (e poderia se acrescentar, o Jogo de Areia), considerando-as maneiras de conhecer que oferecem possibilidades mais ricas, coloridas e intensas para a pesquisa. Esse autor menciona ainda, atividades como a narrativa de histórias, sóciodramas, teatro de bonecos, desenhos, pinturas, considerando-os valiosos canais de expressão para ressignificar histórias de vida e para validar dados que não podem ser obtidos por processos ortodoxos de pesquisa.
É importante lembrar ainda que a própria autora desse método (Kalff, 1980) afirmou ser o Jogo de Areia não apenas um método de psicoterapia, mas também um meio que tornaria os conteúdos da imaginação reais e visíveis. Ou seja, essa premissa justifica outros enquadramentos teóricos e metodológicos para intervir tanto nas demandas psicoterapêuticas quanto nas da investigação em psicologia.
Por essa razão, temos utilizado o Jogo de Areia não como método psicoterapêutico, mas como um instrumento de pesquisa para tentar compreender as Representações Sociais de Professores a partir dos significados e dos sentidos subjetivos que eles produzem em relação a seus processos de aprender e de ensinar.
O Jogo de Areia na Pesquisa: Integrando as Narrativas à Dimensão Imagética
Embora o foco principal de análise seja a dimensão imagética do Jogo de Areia, e a cena possa, de certa forma, se auto-narrar, algumas narrativas originadas na cena podem contribuir para revelar como o narrador interpreta as coisas, ou seja, os significados e sentidos das coisas para ele. Como diz Oswaldo Saidon (citado por Fernández, 2001, p. 87). “a cena narra na medida em que produz um acontecimento . . . e a narração convoca a cena.”
A narrativa também pode facilitar a compreensão de uma multiplicidade de sentidos na medida em que permite que inúmeros assuntos aflorem, surgindo, inclusive, aqueles que não estão presentes na situação face a face, ou aqueles com os quais nunca tivemos ou teremos experiência direta (Berger & Luckmann, 1999). Assim, embora o foco principal do Jogo de Areia seja o aspecto vivencial, as contribuições das narrativas ou depoimentos para a compreensão das Representações Sociais dos professores também devem ser consideradas.
Nos relatos autobiográficos, algumas vezes os afetos também podem se evidenciar, pois no esforço para lembrar de alguma coisa, o que mais frequentemente vem à mente é algo excitante, algo desagradável, algo que causou embaraço, etc. Bruner (1997, p. 56) acrescenta que “os “esquemas” de memória estão sempre sob controle de uma “atitude afetiva”.
Assim sendo, passaremos a mostrar a utilização do Jogo de Areia, como um instrumento de pesquisa – incluindo os comentários dos participantes durante o desenvolvimento das cenas – para compreender as representações sociais dos professores sobre os processos de aprender e de ensinar e sobre suas próprias representações sociais acerca desses processos.
Utilizamos o termo instrumento de pesquisa no sentido amplo de qualquer recurso facilitador da expressão do sujeito em relação ao tema em estudo (González Rey, 2002). Além disso, o Jogo de Areia pode ser considerado uma técnica (González Rey, 2002) na medida em que propõe procedimentos e maneiras de abordar e tratar o objeto investigado, como veremos no próximo item.
O Jogo de Areia como Instrumento: Um Exemplo de sua Utilização
Não pretendemos aqui apresentar a pesquisa e seus resultados na íntegra, uma vez que o objetivo deste artigo é apenas fundamentar e exemplificar algumas vantagens na utilização do Jogo de Areia para compreender a zona muda das Representações Sociais. Apresentamos assim, uma breve narrativa sobre a introdução e a utilização do Jogo de Areia na pesquisa que uma das autoras deste artigo realizou, salientando seu valor como instrumento de pesquisa.
O espaço que escolhemos para evidenciar o Jogo de Areia como instrumento de pesquisa foi um curso de especialização em Psicopedagogia (da Pós-Graduação lato-sensu da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP/BR) onde uma das autoras já atuava como docente e já vinha realizando o trabalho com o Jogo de Areia na formação dos alunos. Nossa opção por esse curso foi a presença de um grande número de alunos que atuavam como professores, principalmente na educação básica.
A pesquisa foi realizada com 36 professores em quatro etapas durante quatro meses subseqüentes. Nessas etapas os professores eram divididos em quatro grupos. Nos três primeiros meses foram vivenciadas quatro cenas diferentes: 1ª etapa, cena livre; 2ª etapa, cena de alguém ensinando e alguém aprendendo; 3ª etapa, cena marcante de aprendizagem e cena marcante de aprendizagem modificada; a 4ª etapa consistiu na projeção dos slides para os participantes das cenas fotografadas nas etapas anteriores.
Os objetivos da pesquisa foram indicados a todos os participantes, lhes asseguramos que a participação teria caráter confidencial e que preservaríamos o anonimato deles. As fotos das cenas em slides e as narrativas das mesmas, foram realizadas a partir de um consentimento esclarecido dos participantes.
Na primeira etapa da pesquisa, ao observar o material do Jogo de Areia os participantes da pesquisa demonstravam curiosidade e alegria, principalmente diante das miniaturas lembrando, comentando e, por vezes, rindo muito de suas brincadeiras de infância. Confirmava-se assim o que Weinrib (1993, p. 62) escreve sobre o Jogo de Areia: “o aspecto lúdico parece propiciar ao adulto uma entrada ou um rito de iniciação no sentimento, no afeto e no mundo da criança. Lembranças perdidas vêm à tona, fantasias reprimidas são liberadas.” Essa situação evidenciava, pouco a pouco, a confluência de uma série de sentidos que se articulavam na história daqueles alunos/professores ao manipular as miniaturas possibilitando um reconhecimento de suas representações sociais sobre os processos de ensino e aprendizagem.
Ao realizar a cena livre, na maioria das vezes, os participantes da pesquisa representavam episódios da vida familiar, revelando assim inúmeros sentidos que iam produzindo nesse contexto. Ao mesmo tempo, algumas vezes, as cenas livres evidenciavam a projeção de episódios futuros, revelando uma configuração de sentidos que determinavam em sua integração o sentido subjetivo da atividade atual desenvolvida pelas autoras de cena. Esses sentidos eram traduzidos e representados por crenças e expectativas em relação à vida, às pessoas, aos seus processos de aprender e de ensinar, revelando-se assim suas representações sociais acerca desses processos.
Ao propor a cena alguém ensinando, alguém aprendendo, todos os participantes da pesquisa representaram cenas de relações de ensino-aprendizagem na escola, vivenciadas no presente ou no passado, possibilitando assim uma configuração de sentidos que revelava suas subjetividades como pessoas e como profissionais. Além disso, os objetos do cotidiano presente nas cenas ajudava os participantes da pesquisa a criar uma representação simbólica de suas vivências, o que facilitava a reflexão, a análise dos processos de aprender e de ensinar, evidenciando-se, ao mesmo tempo, suas representações sociais acerca desses processos.
Ao realizarem a cena marcante de aprendizagem, na maioria das vezes, os participantes da pesquisa colocavam- se no lugar do aluno. As cenas representavam situações desagradáveis que vivenciaram na escola, provocadas principalmente pela postura autoritária de seus professores que não os reconheciam como sujeitos pensantes ou os desqualificavam como alunos. A seguir, sugeria-se a realização de uma outra cena, a partir da seguinte instrução: “Se você pudesse modificar esta cena, como ela ficaria?” Na cena modificada, na maioria das vezes, os participantes da pesquisa representavam uma situação de aprendizagem que consideravam ideal, oferecendo assim possibilidades para a compreensão dos sentidos que produziam em relação aos processos de aprender e de ensinar e, consequentemente, sobre suas representações sociais acerca desses processos.
Na quarta etapa da pesquisa a sequência das cenas realizadas pelos participantes foram mostradas através dos slides, tornando assim mais clara a visualização do processo vivenciado por eles. O distanciamento em relação à própria cena fazia com que eles mesmos percebessem melhor o “lugar” que ocupavam no cenário, o que facilitou o reconhecimento de suas representações sociais.
No final das projeções, os participantes da pesquisa manifestaram sentimento de alívio ao “pôr prá fora” suas relações de ensino e aprendizagem há tanto tempo guardadas, ou como diz Abric (2005, p. 24) “elementos não expressáveis . . . escondidos.” Enfim, era como se situações aparentemente incompreensíveis e incontroláveis fossem visualizadas e objetivadas. Isso possibilitava um momento de novas produções de sentidos e, consequentemente, o reconhecimento de suas representações sociais acerca dos processos de aprender e de ensinar.
Sabe-se que as verdadeiras transformações em uma pessoa requerem muito tempo. Todavia, na última etapa do trabalho, percebemos que o Jogo de Areia provocava nos participantes da pesquisa inúmeras alternativas de ruptura com o estabelecido, que poderiam acarretar novas representações sociais e assim, possíveis transformações em suas ações profissionais.
As Cenas de Rita
Para mostrar de forma específica as possibilidades metodológicas da utilização do Jogo de Areia para o estudo das representações sociais, foram selecionadas algumas cenas produzidas por Rita, uma das participantes da pesquisa anteriormente referida.
Exemplificar a utilização do Jogo de Areia com uma professora permitirá ao leitor compreender as possibilidades do instrumento para obtenção de informação relevante em relação à zona muda das representações sociais em relação ao ensinar e o aprender.
Rita tem 31 anos, nasceu e mora em Recife/BR. É graduada em Pedagogia e especialista em Informática Educativa. Há cinco anos é professora desta disciplina na educação infantil e no ensino fundamental em uma escola particular. Antes trabalhava como professora no ensino fundamental.
A Cena Livre
Rita colocou as seguintes miniaturas na cena: meninos, meninas, casas, árvores, uma ponte, uma bicicleta, um escorregador e um balanço de play-ground.
Nessa cena, Rita relata que vivenciou momentos prazerosos que marcaram sua infância em uma praça próxima à sua casa. Nesse lugar, evidenciava-se a cumplicidade entre as crianças e o contato com a natureza e com situações lúdicas e descontraídas. Desses momentos, segundo Rita, resultaram inúmeras relações de ensino e aprendizagem.
O significado da miniatura da ponte, foi assim explicitado por Rita:
Coloquei a ponte como uma coisa que caracteriza a praça, porque as praças em geral têm uma ponte, embora nessa da minha infância não tivesse.
Em sua cena, acompanhada de seu depoimento, embora Rita não estivesse consciente de que a ponte poderia significar um elemento de ligação entre sua infância e a fase adulta, parece que o simples fato de chamar a atenção para ela, e de Rita visualizá-la, fez com se percebesse melhor. A partir daí, revelou que muitas vezes ainda sonhava com esses momentos de sua infância, expressando o desejo de integrá-los em sua vida atual.
Rita expressou suas lembranças a partir dessa cena:
Quero falar sobre a ponte. No início olhei a cena e pensei: Será que a ponte tem a ver com a brincadeira? O que tem a ver com a praça? Mas mesmo assim resolvi colocar. Mas continuei pensando: por que eu a coloquei na praça, se na praça de minha infância não tinha uma ponte? Será que pensei na estética ou no padrão de praça que eu tinha na cabeça? Em um ideal de praça? Mas também pode ser uma questão subjetiva. O que eu estou querendo dizer com essa ponte? Estou querendo ligar o quê com o quê? Será que eu estou querendo fazer uma ponte com a minha infância? Será que eu estou querendo voltar a viver a infância? Será que eu consegui sair de lá?
Esse depoimento revela que Rita começava a perceber o que a ponte representava em sua cena e se produziam sentidos subjetivos que integravam diferentes espaços e momentos de sua trajetória de vida. Vinculada a essa integração, Rita começava a reconhecer a si mesma na situação que estava enfrentando e podia falar de suas lembranças e preocupações atuais, revelando, assim, aspectos da constituição de sua subjetividade. Por outro lado, também se evidenciava o valor simbólico da ponte: sua força real e dinâmica aliada aos depoimentos das participantes do grupo, provocava em Rita a confluência de uma série de sentidos que se articulavam em sua história e nas situações concretas dentro das quais ela atuava no momento.
A Cena com Alguém Ensinando e Alguém Aprendendo. Rita colocou as seguintes miniaturas na cena: mulheres, homens, várias árvores, galhos de árvores, flores e pedras.
Acho que um momento de aprendizagem dever ser muito prazeroso. Eu vivenciei muitos momentos assim... O aprender tem que estar ligado com o prazer e isso tem relação com o ambiente, com o que você tem em volta, como você está colocada aí, como você se sente aí... Eu coloquei um lugar de aprendizagem ao ar livre. Sempre quis estar perto do verde, da natureza. Eu queria que todas as escolas tivessem essa condição.
Nessa cena e em seu depoimento, tornam-se mais claras as representações sociais e, como parte delas, os sentidos que Rita ia produzindo em relação a seus processos de aprender e de ensinar. Para ela, a aprendizagem tem que estar relacionada com o prazer decorrente do ambiente que a circunda, e este, por sua vez, implica um contato com a natureza. Essa situação é tão marcante para Rita que direcionou suas escolhas no curso de graduação – Engenharia Florestal e Agronomia (não concluídos) – e até hoje interfere em sua atuação docente. Isso demonstra que “cada configuração subjetiva de um espaço social está constituída por elementos de sentidos procedentes de outros espaços sociais, assim como elementos que caracterizam esse próprio espaço em momentos históricos anteriores” (González Rey, 2003, p. 209). Entretanto, Rita diz que acabou optando pelo curso de Pedagogia porque era financeiramente mais viável, e também porque no curso de Engenharia Florestal e Agronomia as mulheres eram muito discriminadas.
Nesse depoimento, associado aos seus valores e crenças, Rita revelou suas motivações, interesses, expectativas, elementos que participavam das suas produções de sentidos subjetivos, e que eram multideterminantes de suas escolhas profissionais. Ao mesmo tempo, esses elementos também participavam de suas representações sociais sobre os processos de aprender e de ensinar que, por sua vez, se refletiam em suas ações docentes – uma aprendizagem prazerosa tem que acontecer ao ar livre e em contato com a natureza.
Cena Marcante de Aprendizagem
Rita colocou as seguintes miniaturas na cena: homens, mulheres, árvores, flores e um relógio. Na cena, Rita reproduz uma sala de aula tradicional.
Esta é uma aula de matemática com os alunos em filas indianas completamente parados, sem reação nenhuma. O professor geralmente de costas para os alunos só ficava fazendo registro no quadro negro. E a gente tentando acompanhar... Esse relógio que coloquei na cena significa a eternidade que eram esses momentos... E, como sempre, do lado de fora coloquei o verde. A gente ficava no espaço delimitado que era essa sala. Eu era essa mulher perto da porta, eu ficava sempre ali porque quando me dava ‘os cinco minutos’ eu já estava em uma posição estratégica para sair da sala. Eu me sentia, ao mesmo tempo, perdida e culpada por não conseguir acompanhar a aula. Agoniada, angustiada, com uma vontade de sair dali e de jogar tudo ‘prá cima’.
Nessa cena, Rita revelou suas emoções, ou seja, conseguiu exprimir o sentimento de culpa, de confusão e de angústia em que se encontrava diante daquela situação. Esses estados afetivos, irão integrando suas representações sociais e suas produções de sentidos acerca de seus processos de aprender e de ensinar, o que será demonstrado mais adiante em uma outra cena
Cena Marcante de Aprendizagem Modificada
Em vez de modificar a anterior, Rita preferiu construir outra cena colocando as seguintes miniaturas: homens, mulheres, crianças, mesas, banco, árvores, flores, material escolar, lunetas e outros materiais em cima das mesas. Em sua cena, Rita coloca uma situação de sala de aula em um espaço externo, em contato com a natureza.
Esta cena está em um espaço aberto, mas eu coloquei mesas porque eram necessárias para o registro das aulas. Coloquei também materiais concretos para nos ajudar a manipular e a pensar a partir de uma coisa concreta. Ou seja, você aqui está livre, está à vontade para circular pelo ambiente e para sistematizar o conhecimento que está buscando. Na outra sala de aula a gente via o cálculo, mas não sabia o que fazer com aquilo. Aqui eu estou curiosíssima para saber o resultado final. Na outra sala de aula era a Matemática pela Matemática. Eu nunca fui fã de matemática por conta disso. Têm crianças que odeiam a matemática até hoje porque nunca tiveram a oportunidade de aprender dentro de um contexto que leve à compreensão. Eu nunca daria uma aula dessa forma. Lembrando da cena anterior, no mínimo me viraria para falar com os alunos. Eu estaria preocupada, sabendo que estava causando aquilo nos alunos e também estaria me sentido culpada.
Nessa cena, Rita revelou novas representações sociais e, ao mesmo tempo, um movimento de integração de sentidos subjetivos em relação a seus processos de aprender e de ensinar. Ao colocar mesas em sua cena, objetos escolares e lunetas, ela começou a perceber que a sistematização do conhecimento pode coexistir com uma situação descontraída de aprendizagem. Por outro lado, sua aversão pela matemática revela suas representações atravessadas pelos sentidos subjetivos que ela ia produzindo em relação à aprendizagem dessa disciplina. Mais uma vez, revela-se uma confluência de sentidos subjetivos que iam sendo produzidos acerca de seus processos de aprender e de ensinar: o modo como o professor transmite o conhecimento e se relaciona com os alunos em sala de aula interfere também nas representações sociais dos alunos e na maneira como o aluno produz sentidos subjetivos no processo de aprender.
A Projeção dos Slides
Comentários de Rita:
A cena de aprendizagem ao ar livre me dá uma espécie de saudade, porque faz tempo que não trabalho assim... A gente tem um momento de roda, mas depois as crianças vão para as máquinas e a sistemática de trabalho é diferente. Acho uma coisa comum em todas essas cenas: minha necessidade de contato com o externo, não diria só com a natureza, mas com mais espaço para fazer do jeito que eu quero. Mas, na cena livre, eu também percebi que havia limitações. Eu morava em frente à praça, via todo mundo brincando, mas nem sempre eu podia ir para lá... Eu sonhava morar lá, mas, na verdade, não era isso o que eu queria, eu estava buscando aquela sensação boa, aquilo que o local, o espaço traziam prá mim... Eu acho que ainda tem entraves fortes, ainda não cheguei ao meu ideal, no que eu quero, que ainda falta muito para encontrar, mas estou buscando. Além disso, nas outras cenas deu prá perceber que, apesar de não estar em minha sala de aula ideal, também estou fazendo uma coisa que eu gosto e passo para os alunos. E acho que isso é o mais importante, porque ajuda a fluir aquele momento de aprendizagem.
Comentário final de Rita sobre o trabalho:
Foi muito bom, porque voltei no tempo. Pensei em várias etapas que estavam guardadas lá atrás. Acho que, se não fosse esse trabalho, nem sei como ia pensar nelas para avaliar, para fazer essa ponte. Agora sei que eu sou um pouquinho do que guardei: do que eu quero que permaneça; do que eu não quero que permaneça e também do que eu já consegui transformar. O trabalho foi excelente! O Jogo de Areia me autorizou a ser o que eu sou. Me senti muito bem, gostei muito de fazer...
Considerações Finais
Nas vivências realizadas com o jogo de areia, surgiram várias possibilidades de síntese para compreender as representações sociais de Rita a partir dos sentidos subjetivos produzidos acerca dos processos de aprender e ensinar; a percepção que ela tinha de suas próprias representações sociais; os novos sentidos que ia produzindo e, conseqüentemente, sua subjetividade em processo de constituição.
Nas cenas e nos depoimentos de Rita, evidenciaram- se suas representações sociais acerca dos processos de aprender e de ensinar atravessados por uma confluência de sentidos subjetivos que se ancoravam em sua história de vida e nas condições concretas em que ela atuava no momento. Isso ajuda a compreender a gênese e as possíveis relações entre os sentidos subjetivos que ela ia produzindo nesse processo.
O ato simbólico da preparação dos cenários no Jogo de Areia também constituiu uma expressão de elementos subjetivos, de visualização de aspectos conflituosos e de reflexão; e, também, como um estimulador de impulsos dinâmicos e criativos, fazendo com que Rita se percebesse diante da situação em que se encontrava, e redefinisse suas representações sociais, e produzisse novos sentidos subjetivos em relação aos processos de aprender e de ensinar.
Além do acesso à maneira como Rita se situava como sujeito reflexivo, o Jogo de Areia também possibilitou acesso às emoções que ela sentia em diferentes situações de ensino e aprendizagem, em diferentes momentos de sua vida. Podia-se assim compreender, com mais clareza, suas representações sociais e, conseqüentemente, suas produções de sentidos subjetivos nesse processo. Exemplo dessa situação aparece quando Rita expressa seus sentimentos como aluna e como professora, em suas cenas marcantes de aprendizagem, e a mesma modificada, dizendo sentir-se em aula de matemática “ao mesmo tempo, perdida e culpada por não conseguir acompanhar a aula . . . agoniada, angustiada, com uma vontade de sair dali...”; e, como professora, “nunca daria uma aula dessa forma. No mínimo me viraria para falar com os alunos. Eu estaria preocupada sabendo que estava causando aquilo nos alunos e também estaria me sentindo culpada.”
Esses estados emocionais iam definindo suas representações sociais sobre os processos de aprender e de ensinar e, consequentemente, a qualidade da realização em suas atividades docentes, evidenciando-se assim a importância de serem considerados.
Cabe assinalar que as vivências, em geral, possibilitaram à Rita uma percepção dela mesma diante da situação em que se encontrava: reconhecia suas próprias crenças, expectativas, valores e atitudes, refletindo sobre elas e, ao mesmo tempo, entrava em contato com estados afetivos que permeavam suas representações sociais sobre seus processos de aprender e de ensinar. Para ela, foram oportunidades para sair de uma situação de enquadramento e de padronização, muitas vezes, impostos pelas normas e valores de seu próprio contexto profissional – a escola –, conseqüentemente, de produzir novas representações e sentidos acerca daqueles processos. Desse modo, Rita encontrava condições para reposicionar-se diante de suas práticas e de seus alunos.
A capacidade que Rita demonstrou de representar os processos de aprender e de ensinar e os seus próprios processos, conseqüentemente, de produzir sentidos, de questioná-los, e, a partir daí, de fazer surgir novos sentidos, enfim, a capacidade de realizar um trabalho lúcido (e lúdico), sobre si mesma, também abria espaços de aprendizagem e, ao mesmo tempo, fazia com que surgissem novas representações sobre seus processos de aprender e de ensinar.
É importante que esse movimento seja captado e transformado em ações concretas que propiciem a abertura, a descoberta e o funcionamento de novas possibilidades para compreender a zona muda das representações sociais de professores sobre os processos de aprender e de ensinar.
Desse modo o Jogo de Areia, pode permitir elaborar alguns indicadores para compreender não apenas os aspectos das representações sociais que não são conscientizados, mas também as necessárias relações entre representação social e produção de sentidos subjetivos. Ainda, em sua articulação com outros instrumentos, pode contribuir significativamente para a compreensão da constituição e do desenvolvimento da subjetividade dos professores no exercício de seus processos de aprender e ensinar, questão que pode ser relevante para os especialistas interessados no melhor delineamento dos sistemas de formação profissional.
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Received 09/11/2008
Accepted 10/05/2009
Beatriz Judith Lima Scoz. Centro Universitário FIEO, São Paulo, Brasil.
Albertina Mitjáns Martinez. Universidade de Brasília, DF, Brasil.
1 Endereço para correspondência: Rua Evezu, 22, Alto de Pinheiros, São Paulo, Brasil, CEP 05447-160. Tel.: (11) 38127919; Fax (11) 3037 7845. E-mail: beatrizscoz@uol.com.br