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Estudos de Psicanálise

versión impresa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.49 Belo Horizonte enero/jun. 2018

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

Sexualidade e ideal de feminilidade: contribuições para o debate1

 

Sexuality and the ideal of femininity: contributions to the debate

 

 

Ana Cleide Guedes MoreiraI, II, III; Milla Maria de Carvalho Dias VieiraI; Paulo Roberto CeccarelliI, II, IV, V

I Círculo Psicanalítico do Pará
II Universidade Federal do Pará
III Réseau Internacional de Psychopathologie Transculturelle
IV Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
V Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo investigamos a relação entre ideal de feminilidade, sexualidade feminina e a infecção de mulheres por HIV. Os ideais socioculturais são responsáveis por definir o que é ser feminino e masculino em nossa cultura, concebendo padrões de normalidade que constituem a subjetividade. No século XVIII emergiu um novo modelo de feminilidade, ainda vigente, cujo principal autor foi Jean Jacques Rousseau. Nesse ideal, as mulheres deveriam ser passivas aos desejos e às necessidades dos homens, seriam destinadas a um único lugar social – o lar – e à maternidade, não podendo exercer outras funções sociais. Neste trabalho analisamos a problemática da infecção do HIV em mulheres a partir do depoimento de uma das participantes do documentário Positivas. Trata-se de demonstrar a hipótese de que mulheres identificadas ao ideal de feminilidade em questão não conseguem negociar o preservativo na relação sexual com o parceiro, já que, submissas ao desejo do outro, não se posicionam enquanto sujeito do seu desejo.

Palavras-chave: HIV, Psicanálise, Feminilidade, Ideal, Mulheres.


ABSTRACT

In this article we investigate the relationship between the ideal of femininity, female sexuality and women infection by HIV. Sociocultural ideals are responsible for defining what it is to be feminine and masculine in our culture, conceivingnormality patterns that constitute subjectivity. In the eighteenth century a new femininity modelhas emerged, still in force, whose main author was Jean Jacques Rousseau. In this ideal, women should be passive to men’s desires and needs, would be destined to a single social place - the home - and motherhood, not being able to perform other social functions. In this paper we analyze the problem of HIV infection in women,using the testimony of one of the documentary “Positives” participants. It is necessary to demonstrate the hypothesis that women identified to the mentioned ideal of femininity can not negotiate with their partner the use of the condom in sexual relations, since while submissive to the other person’s desire, they do not place themselves as subjects of their own’s.

Keywords: HIV, Psychoanalysis, Femininity, Ideal, Women.


 

Introdução

A problemática da infecção do HIV/AIDS entre mulheres heterossexuais e em relacionamentos estáveis foi silenciada durante anos da epidemia. Um dos fatores para que não se levasse em consideração essa problemática é que, desde o início da descoberta do vírus, a epidemia do HIV/AIDS foi associada à ideia de “grupos de risco”, do qual faziam parte prostitutas, homossexuais, hemofílicos, usuários de drogas injetáveis e haitianos (POLISTCHUCK, 2010). Dessa forma, não foram implementadas estratégias de prevenção da infecção entre mulheres com parceiros estáveis, resultando na feminização da epidemia de HIV/AIDS no Brasil.

Dados do Ministério da Saúde demonstram que em 1983, início da epidemia, havia 1 mulher infectada a cada 40 homens contaminados. Em 2014, a razão passou a ser de 1,9 homens contaminados para cada mulher (BRASIL, 2016). Esse crescente aumento de infectadas pelo vírus HIV configurou a feminização da epidemia que, segundo Parker e Galvão (1996), em nenhum outro país ocorreu de forma tão rápida.

Os fatores que contribuem para um crescente aumento de mulheres infectadas em relacionamentos estáveis foi objeto de pesquisas. Guimarães (1994) fez um estudo com 240 mulheres no Rio de Janeiro e obteve como resultado que a prática do sexo seguro esbarra nas dificuldades delas de negociar o uso do preservativo com seus parceiros que em sua maioria se recusam a utilizá-lo. A conclusão desse estudo indicou que a relação hierárquica entre mulheres e homens foi a razão impeditiva para a prática do sexo seguro.

Nesse ponto da problemática vê-se a importância de pesquisar no campo psicanalítico os ideais culturais introjetados e responsáveis por normatizar a subjetividade das mulheres, os quais as mantêm submissas e passivas em relação ao desejo dos homens, inclusive a desejos que põem em risco sua própria saúde e sua própria vida como o não uso do preservativo na relação sexual.

Sobre a origem desses ideais, a psicanalista Maria Rita Kehl (2008) afirma que a cultura europeia dos séculos XVIII e XIX produziu uma quantidade inédita de discursos que tinham por base a concepção de que as mulheres deveriam ostentar as virtudes da feminilidade:

[...] o recato, a docilidade, uma receptividade passiva em relação aos desejos e necessidades dos homens e, a seguir, dos filhos (KEHL, 2008, p. 48).

Para Kehl (2008, p. 58) foi Rousseau o principal autor dessa perspectiva sobre as mulheres:

[...] de todos os escritores que se manifestaram a favor de uma volta das mulheres ao seu verdadeiro estado, ou seja, o ‘estado de natureza’, o mais influente foi Rousseau.

Foi no livro quinto da obra Emílio ou da educação, de 1762, que ele criou a personagem Sofia, considerada como a esposa adequada para Emílio.

Segundo Kehl, Sofia seria “[...] o paradigma do ideal de feminilidade baseado na dedicação, na doçura, na submissão” (KEHL, 2008, p. 59).

Por conseguinte, Rousseau criou o ideal de feminilidade que persiste até hoje na subjetividade de mulheres identificadas a esse modelo de submissão, passividade e maternidade.

A partir dessa perspectiva e da realidade de mulheres infectadas em relacionamentos estáveis, este trabalho objetiva investigar se mulheres identificadas a tal ideal de feminilidade apresentariam dificuldade em negociar o preservativo na relação sexual com o parceiro estável.

Antes de analisar essa questão, abordaremos o ideal de feminilidade proposto por Rousseau e construído no século XVIII. Em seguida analisaremos as contribuições da psicanálise sobre a feminilidade e a sexualidade feminina. Por último, a partir do aporte teórico psicanalítico, investigaremos uma possível relação entre a identificação ao ideal de feminilidade de Rousseau e a dificuldade de mulheres na negociação do preservativo em relacionamentos estáveis, tendo por base a análise do depoimento de uma das participantes do documentário Positivas.

 

O ideal de feminilidade de Rousseau

Em sua proposta Rousseau considera que seria por causa do sexo que homens e mulheres se diferenciariam e assumiriam diferentes deveres e direitos. A partir dessa concepção de desigualdade ancorada na diversidade morfológica sexual, Silvia Alexim Nunes (2000) afirma que Rousseau

[...] inaugurou todo um discurso sobre a diferença entre os sexos e suas consequências morais e sociais, acoplando diferença sexual e diferença de gênero (NUNES, 2000, p. 38).

Segundo Nunes (2000, p. 43) a concepção de mulher do filósofo francês apontou como inerentes à feminilidade a

“[...] fragilidade, timidez, doçura, sedução e afetividade [...] para ele, feminilidade rima com passividade”. Tais ideias de Rousseau fizeram escola, e o século XVIII viu nascer o desenho do perfil feminino que aqui buscamos abordar.

Na proposta rousseauniana a mulher deveria ser educada para atender as necessidades e os desejos masculinos; assim, elas teriam que ser úteis e sempre procurar agradar aos homens, como podemos ler em suas palavras:

Estabelecido este princípio, segue-se que a mulher é feita especialmente para agradar ao homem. Se o homem deve agradar-lhe por sua vez, é necessidade menos direta: seu mérito está na sua força; agrada, já pela simples razão de ser forte (ROUSSEAU, 1973, p. 415).

Nesse sentido, Ronaldo Sousa Sampaio (2010) afirma que a concepção rousseauniana é sustentada por uma lógica de dominação masculina em que a mulher ocupa uma posição de nítida sujeição ao desejo do homem. O autor também considera que na proposta de Rousseau (1973) há uma relação de complementaridade entre a esposa e o marido: enquanto o homem trabalha na esfera pública, a mulher é a responsável pelo cuidado do lar, dos filhos e do marido.

Para Khel (2008) assim nasce um concepção de feminilidade com o conjunto de atributos próprios a todas as mulheres, em função das particularidades de seus corpos e de sua capacidade procriadora:

[...] a partir daí atribui-se às mulheres um pendor definido para ocupar um único lugar social – a família e o espaço doméstico –, a partir do qual se traça um único destino para todas: a maternidade (KEHL, 2008, p. 48).

Nunes (2000) considera que a maternidade exigiria das mulheres o sacrifício de seus anseios, seus projetos, seus direitos pessoais, civis, em nome dos filhos e do marido, por isso:

[...] a ideia de que o ideal de feminilidade supõe que a mulher sacrifique qualquer desejo em nome do marido e dos filhos passa então a ganhar cada vez mais força (NUNES, 2000, p. 77).

Portanto, haveria nesse novo ideal de feminilidade a concepção de que a mulher deveria ser capaz de suportar sofrimentos, injustiças, subjugação e encontrar prazer naquilo a que era destinada.

A partir desse ideal, que traz uma perspectiva misógina sobre a mulher, questionamos: o que a psicanálise tem a dizer sobre a subjetividade feminina, sobre tornar-se mulher, sobre a feminilidade? Ela serviu para caucionar ou para questionar esse modelo presente a partir do século XVIII e XIX?

 

Psicanálise e feminilidade

Com a criação de um novo modelo de feminilidade, constitui-se um ideal que serviu para normatizar, para regular a conduta de muitas mulheres. Em consequência disso, surge também no século XIX a histeria, que, segundo Kehl (2008), é a expressão da experiência das mulheres diante dos ideais tradicionais de feminilidade, que entraram em desacordo com as aspirações das mulheres como sujeitos.

Foi a partir da escuta do sofrimento psíquico das histéricas que Freud fundou a psicanálise. Assim, desde o início dos seus estudos, ele se deparou com a mulher e seus conflitos, o que lhe permitiu construir uma teoria sobre a sexualidade feminina. Segundo Nunes (2000), a partir dessa teoria Freud constitui o perfil feminino que passaremos a examinar.

Podem-se destacar dois momentos importantes sobre a sexualidade feminina ao longo da obra freudiana. O primeiro momento se refere ao período de 1905 até o início dos anos de 1920, quando Freud, pensa a sexualidade feminina a partir do masculino. O segundo momento, após 1920, é quando ele passa a atribuir uma especificidade à sexualidade feminina, ao formular uma nova concepção da diferença entre os sexos e propor um novo modelo de desenvolvimento libidinal para as mulheres (NUNES, 2000).

As contribuições que Freud trouxe para a compreensão da sexualidade foram bastante revolucionárias, já que, para a ciência do século XIX, vigorava a concepção biológica de sexualidade destinada à reprodução. Com o conceito de pulsão introduzido nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud ([1905] 1996) colocou a sexualidade no domínio das representações psíquicas e do prazer.

Contudo, quando teorizou sobre a sexualidade feminina, segundo Nunes (2000), suas teses não foram inovadoras. Ao construir um perfil feminino a partir da sua teoria sobre a sexualidade feminina ele considera que a mulher não apresentaria um superego forte, seria passiva, possuidora de uma inveja do pênis por ser castrada, apresentaria menor capacidade de sublimar e se voltaria para a maternidade com o objetivo de possuir o tão desejado pênis.

Ao longo da teoria freudiana sobre a sexualidade feminina, pode-se verificar a maternidade como o único caminho para que a menina alcance a feminilidade.

Em suas palavras:

[...] a situação feminina só se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar de pênis (FREUD, [1933] 1996, p. 136).

Desse modo, para Freud ([1933] 1996), o desejo da maternidade se constituiria a partir do desejo do pênis, já que por meio da equivalência simbólica entre pênis e filho a mulher teria o tão desejado órgão genital masculino.

Birman (2001, p. 25), ao abordar a perspectiva freudiana sobre a maternidade, considera que o discurso freudiano traz a maternidade como a “[...] forma por excelência de realização do ser mulher”. Do ponto de vista libidinal, sem a maternidade, a mulher não seria efetivamente mulher e estaria no campo da anomalia e da própria patologia libidinal, afastada do encontro com a plena feminilidade, que ocorre com a assunção da maternidade (BIRMAN, 2001).

Essa perspectiva freudiana acabou reforçando o pensamento sobre a mulher presente a partir do século XVIII, segundo o qual ela estaria destinada à maternidade e seria passiva em sua essência, enquanto o homem seria ativo, como pudemos analisar a partir do ideal de feminilidade de Rousseau.

Contudo, é importante considerar que a partir Freud pudemos pensar em um tornar-se mulher e não em uma sexualidade feminina já estabelecida a partir do sexo biológico. Suas contribuições a respeito do Édipo, da bissexualidade psíquica, da fase pré-edípica e de outros conceitos inovadores foram importantes para que autores pós-freudianos pensassem a sexualidade feminina, entre eles, Joyce McDougall.

Para além da teoria freudiana, mas partindo dela, McDougall (2001) em sua obra As Múltiplas faces de Eros: uma exploração psicanalítica da sexualidade humana dedica-se à discussão de questões relacionadas à sexualidade, incluindo a feminina e à feminilidade.

A partir do conceito freudiano de bissexualidade, para McDougall (2001), é fundamental o estudo das diversas maneiras pelas quais os anseios homossexuais na infância, em sua versão binária, são transformados e integrados na vida de indivíduos adultos, já que

[...] os conflitos acerca dos impulsos bissexuais, conquanto possam criar sofrimento neurótico, podem com a mesma presteza enriquecer a personalidade (MCDOUGALL, 2001, p. 15).

Sobre o desejo homossexual da menina, McDougall (2001) considera que, como não há uma satisfação dessa pulsão, ela tende a ficar associada a uma ferida narcísica. Como ao mesmo tempo em que isso ocorre, há uma forte atração erótica da menina em relação ao pai, ela é impelida a introjetar muitos aspectos da imagem materna, que formarão uma figura fundamental de identificação importante para o desenvolvimento feminino. McDougall (2001) considera que há várias “mães internas” no mundo psíquico da menina.

Essa identificação com muitos aspectos da imagem materna permite que algumas mulheres se identifiquem com a mãe como adultas sexuais, mas não desejem ter filhos. Nesse sentindo, McDougall (2001) considera que haveria três desejos distintos na subjetividade das mulheres – o sexual, o maternal e o profissional – o que se contrapõe às teses freudianas sobre a sexualidade feminina, que considera a maternidade fundamental para se alcançar a feminilidade.

Para essa psicanalista a identificação da menina com a mãe, o desejo homossexual vivido por ela, o investimento libidinal da mãe no corpo, nos genitais da filha refletirão nas representações inconscientes da menina. Haveria, portanto, uma complexidade que contribui para a imagem de feminilidade de cada mulher.

McDougall (1999) também considera importantes os discursos culturais para o desenvolvimento da feminilidade, ou seja, o perfil de feminilidade de uma época da qual o discurso dos pais sobre a filha seriam uma emanação que incidiria decisivamente sobre o modo de subjetivação das mulheres.

Sobre a importância da cultura no desenvolvimento da feminilidade, Ceccarelli (2010) afirma, freudianamente, que inicialmente, por intermédio dos pais e do grupo primário, a criança adquire as informações sobre o sistema simbólico relativo à sociedade em que está inserida. Em consequência disso, também adquire os códigos responsáveis por delimitar o que é ser menino e menina em nossa cultura, aos quais a criança está submetida.

Assim, Ceccarelli (2010, p. 275) considera:

[...] o que se espera de uma criança está intimamente atrelado a convenções sociais e a regras de conduta oriundas de um sistema simbólico no qual ela se locomove.

Nesse sentido, conclui que os ideais socioculturais construídos ao longo da história serão fundamentais para o desenvolvimento da feminilidade ou da masculinidade, já que servem como possibilidades identificatórias às pulsões.

Do que sustentamos até aqui, o ideal de feminilidade de Rousseau construído no século XVIII ainda serve como possibilidade identificatória para mulheres na modernidade, tornando-as passivas, submissas aos desejos dos homens, o que as impossibilita que se tornem sujeito do seu próprio desejo, como afirma Nunes (2000) e Kehl (2008).

A seguir, para concluir, analisaremos a relação entre esse modelo de mulher ideal e a problemática do HIV/AIDS em mulheres.

 

HIV e ideal de feminilidade: a passividade e a submissão diante do desejo masculino

Esse percurso teórico deve nos possibilitar pensar no aumento significativo de mulheres infectadas em relacionamentos estáveis considerando a sexualidade, a diferença sexual, as representações culturais sobre a sexualidade feminina como construções históricas e subjetivas.

Ao pensar na subjetividade de mulheres identificadas ao ideal de feminilidade presente na perspectiva de Rousseau, questionamos se elas conseguiriam negociar o preservativo no relacionamento afetivo sexual estável, como o casamento ou o namoro.

Para analisar esse questionamento, abordamos o relato de uma das participantes do documentário Positivas, um filme brasileiro de longa-metragem produzido em 2009 e dirigido por Susanna Lira, que mostra a realidade de mulheres infectadas pelo HIV em relacionamentos estáveis, realidade que se contrapõe à perspectiva de que a AIDS é doença de prostitutas e mulheres promíscuas sexualmente, presentes na primeira concepção de “grupos de risco”, já comentada anteriormente.

Cida, uma professora da rede pública de ensino, 54 anos, que vive há nove anos com o vírus HIV, ao comentar sua perspectiva sobre o aumento de mulheres infectadas em relacionamentos estáveis, afirma:

Eu acredito que o número de mulheres infectadas tenha aumentado porque nós, mulheres, fomos educadas para não discutirmos relação, aceitamos o que o parceiro quer. Se a mulher tem já algum tempo já de casada, muito menos. Como ela vai pedir pro marido usar preservativo? [...] Nós, em casa, aceitamos os nossos parceiros, às vezes sabendo que eles têm outras relações fora de casa e aceitamos sem o uso do preservativo. Negociar o preservativo ainda é muito difícil. Eu acho que o que tem que ser feito é a mulher se empoderar e dizer: “Não, sem preservativo eu não vou transar”. Então, a partir do momento que as mulheres começarem a observar que elas têm o direito de dizer não. Se as pessoas acham que prova de amor maior é não usar o preservativo, eu falo sempre nas palestras o contrário, prova de amor maior é usar o preservativo.

Cida alerta sobre as condutas que muitas mulheres têm diante dos homens e que estão relacionadas com o aumento no número de mulheres infectadas. Assim, não discutir relação nem poder dizer não ao marido, tendo apenas que aceitar o que o parceiro quer como o não uso do preservativo na relação sexual, são condutas que muitas mulheres do século XXI ainda apresentam, mas que surgiram nos séculos XVIII e XIX, a partir de Rousseau. Esse fato nos faz pensar em uma identificação a um ideal de feminilidade rousseauniano. Quando a mulher apenas aceita o que o parceiro quer, como fica a questão do seu desejo enquanto sujeito?

Em relação à perspectiva de Rousseau, Nunes (2000) considera que, para se voltar apenas para a maternidade e para o marido, a mulher deveria abdicar não só de atividades sociais e intelectuais, como também de algo mais profundo, ou seja, de qualquer desejo pessoal.

Dessa forma, quando Cida afirma que “aceitamos o que o parceiro quer” e comenta a dificuldade da mulher em dizer que sem preservativo não haverá relação sexual, questionamos: Como se posicionar como sujeito do seu desejo? Pensando na infecção do HIV, como a mulher, identificada a esse ideal de feminilidade, conseguiria negociar o uso do preservativo com um parceiro que não quer usá-lo?

Segundo Nunes (2000), no projeto de Rousseau, a mulher é aquela que se sacrifica e abre mão da sua condição de sujeito em nome do homem. Dessa forma, ela seria puro objeto de desejo e de gozo masculino e estaria submetida a uma posição de objeto e não a uma posição de sujeito.

Paul-Laurent Assoun (1993), por sua vez, ao comentar sobre as mulheres presentes no século XIX, em seu livro Freud e a mulher, afirma:

Condenada a entrar no desejo apenas através da união com o homem, ela lhe devia até mesmo a propriedade de sua angústia. Quando se sentia frustrada, o essencial de sua alienação social já fora decidido, uma vez que era seu ingresso no casamento que a condenava a ligar ao homem sua economia de gozo (ASSOUN, 1993, p. 152).

Nesse modelo de feminilidade, o próprio desejo da mulher surge a partir do desejo masculino, como afirmou Assoun (1993), já que ela se sacrifica e abre mão de sua condição de sujeito em nome do homem, em nome da família.

A partir dessa perspectiva, defendemos a hipótese de que a mulher identificada a esse ideal não dispõe de recursos subjetivos para negociar o uso do preservativo na relação sexual, pois não se posicionaria enquanto sujeito na relação com o parceiro sexual estável, epermanecendo na posição de objeto e submetida ao desejo do homem.

 

Considerações finais

Ao longo da história, os homens foram os grandes teóricos sobre o corpo da mulher, a sexualidade feminina e a feminilidade, dessa forma condenadas a se identificarem com discursos misóginos que as mantinham e ainda as mantêm submetidas aos desejos masculinos.

Um desses homens foi Jean-Jacques Rousseau, cuja teoria sobre a existência de uma essência feminina dominou a Europa dos séculos XVIII e XIX. E domina ainda no século XXI, como bem relatou Cida ao comentar sobre mulheres que apenas aceitam “o que o parceiro quer” e não conseguem dizer: “não, sem preservativo eu não vou transar”. Permanecem passivas ao desejo do marido já que não se posicionam enquanto sujeito diante do outro, mas tornam-se objeto do desejo masculino.

McDougall, por sua vez, se contrapondo a essa perspectiva, possibilitou pensarmos o feminino para além da maternidade e da passividade. A autora destaca que a identificação da menina com a mãe possibilitaria o surgimento de três desejos distintos – o sexual, o maternal e o profissional. É a partir da identificação com a mãe, enquanto adulta sexual, enquanto profissional e enquanto mãe que há a possibilidade do surgimento desses diferentes desejos na menina e de um modo de subjetivação diverso do modelo rousseauniano.

Como afirma Ceccarelli (2013), não estamos questionando a pertinência de uma teoria que usa o falo como organizador social. Todavia, a teoria falocêntrica, assim como qualquer teoria, é um arranjo sintagmático que utilizamos para ler o real. Com isso, quando se determina a diferença dos sexos a partir da referência fálica, essa teoria serve de apoio à desigualdade dos sexos.

Assim, pensar a sexualidade feminina e a feminilidade, sem uma perspectiva misógina, só é possível se a psicanálise for

[...] plástica o suficiente para acompanhar e compreender as mudanças sofridas pelos sujeitos na medida em que muda a sociedade em que vivemos [...] A psicanálise nasceu para dar voz ao emergente e não para corroborar a tradição (KEHL, 2008, p. 257-258).

A psicanálise é uma importante ferramenta tanto clínica quanto teórica, para que velhos ideais sejam quebrados e, assim, possam surgir outros que valorizem o sujeito, o seu desejo e a sua história pulsional e não apenas os discursos normativos, que ditam modelos de feminilidade e tornam as mulheres submetidas a uma cultura misógina.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ana Cleide Guedes Moreira
E-mail: acleide@uol.com.br

Milla Maria de Carvalho Dias Vieira
E-mail: milla_Mluz@hotmail.com

Paulo Roberto Ceccarelli
E-mail: paulorcbh@mac.com

Recebido em: 16/11/2017
Aprovado em: 06/04/2018

 

 

SOBRE OS AUTORES

Ana Cleide Guedes Moreira
Graduada em psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA, 1982).
Mestre (1992) e doutora (2000) em psicologia clínica na PUC São Paulo.
Pós-Doutora em psicologia clínica na Universidade Paris 7.
Professora Associada 4, aposentada, da Pós-Graduação em psicologia, mestrado e doutorado na UFPA.
Psicanalista e fundadora do Círculo Psicanalítico do Pará.
Diretora Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental.
Membro fundador da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.
Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes sobre Mulher e Relações de Gênero. Membro do Grupo de Trabalho da ANPEPP Psicopatologia e Psicanálise.
Pesquisadora visitante do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social PUC-Rio/Universidade Veiga de Almeida. Chercheur associé à l’ Université Paris 7 Denis-Diderot.
Membro da Réseau Internacional de Psychopathologie Transculturelle.
Docente e tutora do Programa de Atenção ao Paciente Crítico, Residência Multiprofissional, UFPA-EBSERH.

Milla Maria de Carvalho Dias Vieira
Psicóloga clínica.
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA. 2014).
Mestre em Psicologia pela UFPA (2017) na linha de Psicanálise Teoria e Clínica.
Realiza formação em psicanálise pelo Círculo Psicanalítico do Pará.
Participante do Laboratório de Psicopatologia.

Paulo Roberto Ceccarelli
Psicólogo.
Psicanalista.
Doutor em psicopatologia fundamental e psicanálise pela Universidade de Paris 7 - Diderot.
Pós-doutor pela Universidade de Paris 7.
Coordenador do Instituto Mineiro de Sexualidade (IMSEX <www.imsex.com.br>).
Diretor científico do Centro de Atenção à Saúde Mental (CESAME <www.cesamebh.com.br>).
Membro da Société de Psychanalyse Freudienne - Paris, França.
Membro da Associação Universitária de Pesquisa em psicopatologia fundamental.
Pesquisador do CNPq.
Professor Adjunto IV da PUC Minas.
Professor e orientador de pesquisas do mestrado de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência/MP, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Professor e orientador de pesquisas na pós-graduação em psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Sócio do Circulo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Sócio fundador do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).

 

 

1 Este trabalho é parte da dissertação intitulada Positivas: o ideal de feminilidade em Rousseau e a infecção de mulheres pelo HIV, defendida em 2017, no programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA pela primeira autora, sob orientação da segunda autora e coorientação do terceiro autor, com bolsa do CNPQ.

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