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Estudos de Psicanálise

versión impresa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.51 Belo Horizonte jan./jun. 2019

 

ARTE E PSICANÁLISE

 

Cabeça de Medusa: de Caravaggio a Freud e Lacan - sobre pintura e psicanálise

 

Head of Medusa: from Caravaggio to Freud and Lacan - on painting and psychoanalysis

 

 

Anchyses Jobim Lopes

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
II Universidade Estácio de Sá

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Caravaggio: vida e obra. Suas fantasias de castração ampliadas na infância pelas mortes em sua família causadas pela peste, até aquelas testemunhadas na vida adulta pelas decapitações públicas. O mito de Medusa na mitologia grega. A cabeça de Medusa nos textos de Freud e Lacan. Descrição da obra Cabeça de Medusa, de Caravaggio. Autorretratos e decapitações na obra de Caravaggio. O uso de lentes e espelhos pelos pintores da Renascença conectado com a vivência infantil do estádio do espelho descrito por Lacan. O olhar: pulsão invocante, pulsão escópica e objeto a. O olhar e a castração, a violência e a sublimação na obra de Caravaggio. O quadro como artefato sublimatório contendo a pulsão de morte domesticada pela pulsão de vida.

Palavras-chave: Arte e psicanálise, Mitologia e psicanálise, Castração, Estádio do espelho, Pulsão escópica, Pulsão invocante, Sublimação.


ABSTRACT

Caravaggio: biographical data. His infantile castration fantasies expanded through family deaths brought by the plague and increased in adult life by public decapitations. Medusa’s myth in Greek mythology. Medusa’s head in Freud and Lacan texts. Description of Caravaggio’s work Head of Medusa. Self-portraits and beheadings in Caravaggio’s woks. The use of lenses and mirrors by Renaissance painters asssociated with Lacan’s description of the child’s experience of the mirror stage. The gaze: invocatory drive, scopic drive and as object a. The gaze and castration, violence and sublimation in Caravaggio’s work. The picture as a sublimatory device containing the death drive tamed by sublimation.

Keywords: Art and psychoanalysis, Mithology and psychoanalysis, Castration, Mirror stage, Scopic drive, Invocatory drive, Sublimation.


 

Hor quai nemici fian, che freddi marmi
non divengan repente
in mirando, Signor, nel vostro scudo (...)
Poco fra l’armi
a voi fia d’huopo il formidabil mostro,
ché la vera Medusa è il valor vostro.

Quais inimigos ainda existem que em mármore frio
de repente não se tornem,
se olham, Senhor, vosso escudo (...)
Qual a vantagem que dentre as armas
busquem apenas o formidável monstro,
se a verdadeira Medusa é vosso talento.

(Medusa, Giambattista Marino [1569-1625],
em homenagem a seu amigo Caravaggio)

 

Introdução1

Caravaggio foi um pintor que ficou famoso pela luz que esculpe figuras dramáticas. Apesar de alguns retratos de contemporâneos e personagens mitológicos, de uns poucos quadros cômicos ou singelos com adolescentes, a maioria de suas obras é sobre temas religiosos. Adoração e conversões, escolhas divinas e traições, execuções e sacrifícios – todas prenhes de luz e escuridão, constroem cenas cinematográficas. Nunca aceitou os tipos ideais ou modelos platônicos em poses estudadas. Sob a forma de figuras divinas, santos e mártires, retratou pessoas comuns com roupas da época, os pés sujos e intensas emoções. A violência deste realismo é uma das características revolucionárias e pulsantes de Caravaggio.

Outra era não fazer esboços a lápis como Michelangelo ou Leonardo. Pintava diretamente sobre a tela após algumas marcações ou incisões, sempre utilizando modelos vivos. Na maioria das vezes, suas santas e Nossas Senhoras, eram duas prostitutas – Filide Melandroni e Lena – imortalizadas pela arte. A intensidade das emoções, associada aos personagens em movimento, insere o quadro em um universo narrativo do que ocorre antes e depois de cada cena. Destoam de simples retratos ou de mero recurso ao imaginário. Possuem uma temporalidade própria, uma dramaticidade narrativa, uma passagem para o discursivo e o simbólico. É possível interpretá-las como relatos de cenas oníricas ou de devaneios diurnos que têm suas raízes em um drama muito mais amplo.

Mas se Caravaggio abre uma brecha para a interpretação psicanalítica de um quadro pelo simbólico, também exacerba seu oposto. Já seu primeiro biógrafo, o pintor rival e inimigo Giovanni Baglione, que o processou por difamação, relata que “[...] os primeiros quadros de Caravaggio foram por ele retratados no espelho” (BAGLIONE apud ZUFFI, 2017, p. 55, tradução nossa). A afirmação é correta, Caravaggio diversas vezes se retratou em seus quadros. E pintava a si mesmo e seus modelos vivos a partir de reflexos no espelho. Não apenas de espelhos comuns, possivelmente também utilizava côncavos e convexos. Escreve o historiador e crítico de arte Roberto Longhi, tido como o maior conhecedor da obra de Caravaggio do século XX, sobre o pintor:

Olhava ao redor, e a realidade lhe aparecia em ‘pedaços’ parados do universo [...] não seria melhor recortá-lo como ele aparece no quadro verídico do espelho, que sempre nos oferece a ‘unidade do fragmento’ imerso na sua luz: uma espécie de ‘realidade aquário’ (LONGHI, 2012, p. 26-31, aspas do autor).

Caravaggio não se limitou à dramaticidade e ao uso de espelhos. Em testemunho ainda mais antigo, cerca de dez anos após a morte do pintor, o médico e colecionador de arte Giulio Mancini, descreve o ateliê de Caravaggio e outros pintores da época.

Próprio desta escola é iluminar com uma luz unida que vem do alto sem reflexo [...], assim ficando os claros muito claros e as sombras muito escuras, dando relevo à pintura, mas de modo não natural, nem feito, nem pensado em outros séculos por pintores mais antigos como Rafael, Ticiano, Correggio e outros (MANCINI, apud ZUFFI, p. 49-50, tradução nossa).

O que propõem Longhi (2012, p. 26, 66), o pintor inglês David Hockney (2001, p. 110-124) e outros estudiosos ou artistas, é o uso por Caravaggio também de lentes e de uma câmara escura. Tese inclusive subscrita pelo fato de que o Cardeal Del Monte, mecenas do pintor e em cujo palácio residiu e que foi seu ateliê em Roma vários anos, era um estudioso das novidades ‘científicas’ e protetor de Galileu, que junto a outros revolucionava até a ótica. Uso da ótica é o provável motivo pelo qual os quadros de Caravaggio provocam a ilusão de tridimensionalidade.

Já o terceiro registro – o do real – dele a obra de Caravaggio é plena. Há martírios, crucificações e sepultamentos de Nossa Senhora, Cristo ou de santos. Mas, acima de tudo, há as decapitações, os decapitados ou os que virão a sê-lo. Que não eram somente reflexos das histórias bíblicas. Desde a Idade Média as pestes cronicamente assolavam a Europa, ceifando milhões de vidas. E as execuções públicas por decapitação de criminosos e por queima na fogueira de hereges eram rotina.

A castração não era parte apenas de um eu ideal prenhe de sadismo e pulsão de morte do artista, a partir do qual alguns autores utilizaram o arsenal psicanalítico para interpretar a biografia autodestrutiva de Caravaggio. O tipo de psicobiografia que desde o próprio Freud sempre foi criticada pelo seu reducionismo e como forma de análise selvagem póstuma. E que, apesar das questões éticas, sempre desperta muito interesse. É preciso considerar o tema da castração para compreender um pouco sua obra e a própria construção da imagem no quadro entre as intersecções do imaginário, do simbólico e do real.

Castração, criação e arte, através de uma leitura psicanalítica, a partir da obra que Caravaggio erigiu em seu símbolo maior, Cabeça de Medusa decapitada, um quadro que se tornou ícone. O que é utilizado pelos gestores da Galleria degli Uffizi, em Florença, um dos maiores museus do mundo, para centralizar uma sala ao redor da obra e dela toda uma ala para atrair o público.

 

Caravaggio: o drama pessoal como obra de arte

Michelangelo Merisi, ou Michelangelo Merisi da Caravaggio, mais conhecido apenas como Caravaggio, nasceu em Milão em 29 de setembro de 1571. Seus pais eram de Caravaggio, uma pequena cidade na região da Lombardia, quarenta quilômetros a leste de Milão. Uma família de boa situação econômica, que mesmo na capital servia aos marqueses senhores da vila. Cinco anos mais tarde, quando a peste assolou Milão, a família retornou à sua vila de origem. Sem muito efeito. Pouco tempo depois, no mesmo dia, o pai e o avô do futuro pintor faleceram da peste. Nada mais se sabe de sua infância. Uma única certeza é que seu talento foi precocemente reconhecido. Aos doze anos retornou a Milão como aprendiz do pintor Simone Peterzano. Aos dezenove anos faleceu sua mãe e com vinte Michelangelo Merisi foi tentar a sorte como artista em Roma. Longhi descreve o amplo conhecimento do jovem pintor sobre os artistas de sua época e de seus predecessores, tanto de sua terra natal como das regiões vizinhas. E de como ‘[...] Caravaggio seguiu para Roma passando por Pietramala2 e Florença’ (LONGHI, 2012, p. 20).

Após de alguns anos, que biógrafos e vídeos descrevem de grande penúria e dificuldades, conseguiu ser bem-sucedido. Obteve um patrono poderoso: o Cardeal Del Monte, em cujo palácio morou e foi seu ateliê vários anos. De família toscana, o cardeal além de patrono de Galileu, era amante da ciência, da alquimia, da pintura e da música. Ao mesmo tempo representava em Roma dos Médici, Grão-Duques da Toscana. A partir daí, Michelangelo, já conhecido como Caravaggio, obteve muitas encomendas particulares, de colecionadores e de várias ordens religiosas e igrejas. Entre 1600 e 1606 Caravaggio se tornou o pintor mais famoso de Roma. Mas seu temperamento exaltado e briguento, adepto a frequentar locais e pessoas não muito respeitáveis, crescia. Em 1605, para escapar de ser preso por agressões, ofensas e dívidas, evadiu para Gênova por pouco mais de um mês. No ano seguinte uma briga de gangues acabou em duelo selvagem, e Caravaggio cometeu um assassinato. Rival amoroso ou de peleja esportiva, ou de ambos? A história é confusa e muito romanceada. Foi condenado à morte nos Estados Papais, onde à época o Papa era ao mesmo tempo chefe espiritual e governante terreno. Caravaggio fugiu. Primeiro para as propriedades da poderosa família Colonna e depois para Nápoles, capital do reino vizinho aos Estados Papais. Sempre com a ajuda de quem o conhecia desde criança: Costanza Sforza Colonna, Marquesa viúva de Caravaggio. Em Nápoles executou várias obras de peso. Um ano depois partiu para a ilha de Malta, sede do principado dos Cavaleiros de Malta, onde fez retratos de vários membros da ordem, inclusive do grão-mestre, além de pinturas religiosas. Embora não fosse de família nobre, acabou sendo consagrado Cavaleiro de Malta, o que lhe poderia render o perdão papal. Mas novamente um episódio mal conhecido o levou a ser preso e expulso da ordem. Com o auxílio de outros cavaleiros, fugiu da prisão e foi para a Sicília. Nessa ilha passou por Siracusa, Messina e Palermo. Sua fama o precedia, sempre provendo por onde passava encomendas de pinturas. E muitas histórias de brigas e perseguições.

Jamais deixando de lado a compulsão pela pintura, Caravaggio retornou a Nápoles em 1609. E seus admiradores em Roma, os poderosos cardeais Gonzaga e Borghese, continuavam em seu empenho. No ano seguinte chegou a notícia de que o Papa finalmente concordara em lhe conceder o perdão. Partiu em direção a Roma, primeiro por barco, com alguns quadros para presentear e influenciar seus protetores. Mas numa escala do barco foi preso. Dessa vez não havia feito nada. Ou a lista dos procurados estava desatualizada, ou fora apenas um engano. Em pouco tempo o pintor foi solto. Mas o barco partira sem o passageiro. Caravaggio seguiu por terra, para primeiro encontrar o barco e recuperar seus quadros. Mesmo sua morte é controversa. Os biógrafos discutem se foi por exaustão e/ou por uma doença que o acometia há muitos anos, talvez malária ou sífilis. Pesquisas recentes propõem que a causa tenha sido um envenenamento crônico pelo mercúrio e chumbo das tintas. Ou seu corpo teria sido encontrado na praia (LAMBERT, 2004, p. 90). Ou teria falecido no hospício da Confraternita di San Sebastiano no dia 18 de julho de 1610 (SCHÜTZE, 2017 p. 303). Mas sempre em Porto Ercole, na costa da Toscana, onde foi enterrado quase como indigente. Sem saber do falecimento, dias depois era tornado público seu perdão pelo Papa.

 

Caravaggio e a castração

Além desses, outros dados biográficos de Caravaggio são escassos e confusos. De sua infância quase nada se sabe, o que torna uma psicobiografia psicanalítica algo mais temerário que de costume. Mas dois fatos da vida real não podem ter deixado de criar marcas profundas em sua história da infância e de adulto jovem: a peste e as execuções.

Desde o século XIV a peste negra ou bubônica periodicamente atingia a Europa. Um novo surto ocorreu entre 1573 e 1588, atingindo Milão em 1577. Foi mencionado que a família do futuro pintor, numa tentativa de escapar da peste, retornou à pequena cidade de Caravaggio. E que de nada adiantou. Primeiro em 17 de agosto de 1577 faleceu o tio do menino.

Em 20 de outubro de 1577 foi registrada em Caravaggio a morte do pai do pintor, Fermo Merisi, de seu avô paterno, Bernardino Merisi, e (sem citar o nome) de sua avó (GRAHAM-DIXON, 2014, p. 56, tradução nossa).

Uma hipótese ousada seria que o trauma e a fixação de todas essas perdas ocorridas entre os cinco e seis anos do futuro pintor, tenham se manifestado na vida adulta através da escolha do artista de ser conhecido pela alcunha de Caravaggio. Afinal não era seu local de nascimento e em toda sua vida só morou lá entre os cinco e doze anos

Quanto à violência política, social e religiosa, há dados muito concretos. Apenas em relação aos anos em que o artista morou em Roma, capital dos Estados Papais, território diretamente governado pelo Papa, um dos estudiosos da obra do pintor que descreve:

As estatísticas coligidas por Paglia em La Morte Confortata, apêndice 2, indicam que no ano de 1599 cinco pessoas foram apenas decapitadas, uma foi ‘espancada, massacrada e esquartejada’, e dez foram enforcadas e esquartejadas. Durante os anos em que Caravaggio residiu em Roma, de 1592 a 1606, ocorreram 21 decapitações e 112 esquartejamentos post mortem, dentre as 658 execuções que lá ocorreram (VARRIANO, 2006, p. 151).

As execuções eram espetáculos públicos. Nessa lista Caravaggio deve ter presenciado uma das decapitações mais célebres da história, a de Beatriz Cenci em 1599, filha de um conde que com frequência a estuprava, bem como abusava de outros filhos, da primeira e da segunda esposa. Além dessas violências, o conde chegou a ser encarcerado também pela denúncia de outros crimes. Fatos que eram notórios em Roma. Mas sua importância social sempre o levava à liberdade. Os filhos e a madrasta por fim tramaram sua morte. Ao todo foram quatro execuções. Ao longo dos séculos os Cenci tornaram-se tema de inúmeras obras de arte, inclusive um poema dramático de Gonçalves Dias. Também é pouco provável que Caravaggio tenha deixado de assistir a um dos maiores espetáculos de Roma em 1600, a morte pela fogueira do filósofo Giordano Bruno condenado pela Santa Inquisição.

 

A Medusa da mitologia

Ao início da Grécia Arcaica havia apenas uma Górgona. Os primeiros poemas épicos que dão início à literatura ocidental, a Ilíada e a Odisseia, pela tradição atribuídos ao poeta cego Homero (século VIII ou VII a. C.), descrevem a Górgona como uma criatura horrenda que espalhava terror e derrota, mas cujo rosto, que também possuía o poder de amuleto e de arma, decorava o escudo da deusa Atena. O segundo grande autor da Grécia Arcaica, Hesíodo (século VIII ou VII a. C.), descreve em sua Teogonia (A origem dos deuses) que eram três as Górgonas: Esteno, Euriale e Medusa. Filhas de Forcis e Ceto, deuses marinhos muito anteriores aos deuses olímpicos, pois eram filhos de Gaia, a deusa Terra-mãe, por sua vez filha do Caos primordial. Na lista de Hesíodo, Medusa parece ser a mais jovem e também a única que é mortal. Além dessas diferenças, os versos de Hesíodo descrevem que ‘ela deitou-se com o de Crina preta (Poseidon) no macio prado entre flores da primavera’ e quando Perseu a decapitou, de seu pescoço nasceram o gigante Crisaor (nome que significa ‘Espada-de-ouro’) e Pégaso, o cavalo alado (ZIOGAS, 2013, p. 84).

Em seu artigo O tema dos três escrínios, Freud ([1913] 1996) descreve como na mitologia grega, seguindo em narrativas épicas e populares de outras culturas, indo até tragédias de Shakespeare, uma figura feminina é desdobrada em três. Cada qual representa uma das três mulheres da vida de um homem: a mãe, a esposa e a morte. Medusa é a única das três irmãs que é mortal e efetivamente morre.

Uma Górgona ou três, suas representações na Grécia Arcaica são de criaturas repelentes e com características animalescas. Eram aladas, dotadas de grandes garras, presas de javali e pele coberta de escamas. Vasos e camafeus as figuram com um corpo feminino humano completo, que se continua por trás com outro com dorso e duas patas traseiras equinas (NAPIER, 1986, p. 60-62). Dessa forma, a Górgona é um centauro, só que do tipo mais antigo figurado pela mitologia grega, anterior aos centauros da Grécia Clássica, que passaram a ser representados como seres humanos até a cintura e cavalos daí para baixo. Um pouco de imaginação freudiana, e é fácil vê-las como originárias de figuras totêmicas. Nessas representações arcaicas, Perseu é representado decapitando a Górgona ou Medusa e olhando para o lado oposto. O olhar da Górgona, ou alguma outra característica, são mortais (GANTZ, 1996, v. 1, p. 303-307).

Séculos depois, o poeta Píndaro (viveu aproximadamente entre 522 e 443 a. C.), em uma de suas odes canta Medusa como uma mulher bonita. A beleza deve ter sido acentuada ao longo das épocas Clássica e Helenística e originado diversas narrativas que não chegaram até nós. Mas a partir delas é o poeta romano Ovídio quem nas Metamorfoses narra que Medusa

[...] famosa por sua beleza, provocou a cobiça de muitos nobres, e em toda ela não havia parte mais digna de admiração que os cabelos. Consta que o Rei do Mar a desonrou num templo de Minerva. A filha de Júpiter voltou-se e cobriu o casto rosto com o escudo. E, para que o fato não ficasse impune, transformou os cabelos da Górgona em horrendas serpentes. E agora Minerva, para aterrorizar e encher de medo seus inimigos, ostenta no peito as serpentes que criou (ZIOGAS, 2013, p. 84, tradução nossa).

Assim, Ovídio explica por que das três irmãs, Medusa era a única com serpentes em vez de cabelos. No mito mais arcaico, Perseu já era representado olhando para o outro lado enquanto decapitava a Górgona. Todavia não era dito se seu poder era transformar em pedra quem a olhasse. Comenta o helenista Ionnis Ziogas (2015, p. 85): “A transformação do cabelo de Medusa reflete um estupro cruel e uma acusação injusta”. De fato, o deus do mar era famoso por sua violência sexual e seus filhos monstruosos ou equinos. E para muitas feministas contemporâneas, Medusa tornou-se um ícone.

 

A Medusa de Freud e Lacan

Há três menções diretas de Freud sobre a terrível Górgona em sua obra completa Além disso, podemos associar a Górgona a mais dois textos freudianos.

O primeiro e mais extenso é A cabeça de Medusa, escrito em 1922, mas só publicado postumamente em 1940. Freud traça vários simbolismos. Ainda viva, a Górgona era uma caricatura da mulher fálica: uma castradora cuja mera visão petrificava. Freud é conciso: “decapitar = castração” (FREUD, [1940/1922], 1980, p. 289). Toda ameaça e perigo ganham poder pelo medo de aniquilamento do eu que, encaixando-se na ameaça e na angústia de castração, finalmente revivem o primeiro de todos os traumas: o do nascimento/morte.

Assim, quando decapitada e morta, o horror da castração amplia-se ainda mais. Agora mesmo é que ‘a visão da cabeça da Medusa torna o espectador rígido de terror, transforma-o em pedra’. E as serpentes venenosas mais uma duplicação – ou multiplicação – da imagem do complexo de castração. Mas, como para o inconsciente os opostos são o mesmo, por assustadoras que possam ser em si as serpentes,

[...] na realidade, porém, servem como mitigação do horror, por substituírem o pênis, cuja ausência é a causa do horror. Isso é uma confirmação da regra técnica segundo a qual uma multiplicação de símbolos de pênis significa castração [...]. Observe-se que temos aqui, mais uma vez, a mesma origem do complexo de castração e a mesma transformação de afeto, porque ficar rígido significa uma ereção. Assim, na situação original, ela oferece consolação ao espectador: ele ainda se acha de posse de um pênis e o enrijecimento tranquiliza-o quanto ao fato (FREUD, [1940/1922], 1980, p. 289).

Em seguida Freud lembra que a deusa Atena era representada com a cabeça de Medusa esculpida sobre a couraça em seu peito. Símbolo de como punira quem desonrara seu templo e de como castigaria quem atentasse contra sua virgindade.

Esse símbolo de horror é usado sobre as suas vestes pela deusa virgem Atena, e com razão, porque assim ela se torna uma mulher que é inabordável e repele todos os desejos sexuais, visto apresentar os terrificantes órgãos genitais da Mãe (FREUD, [1940/1922], 1980, p. 289).

Nesse momento Freud deu um salto sobre o qual não discorreu. Conectou a imagem da cabeça de Medusa com o complexo de Édipo. Condensou toda a ambivalência do período edípico clássico por ele descrito numa imagem que é a deusa da sabedoria, benfeitora de Ulisses e do início da cultura ocidental e, ao mesmo tempo, representa uma criatura monstruosa e mortal se incestuosamente desejada pelo menino. E Atena pode ser tida como uma das fontes para a criação do mito cristão da mãe virgem. Pode ser que Freud não tenha se dado conta ou aceito que a lei não é só aquela patriarcalmente trazida pelo pai.

Não tendo desenvolvido o tema edípico, Freud passa diretamente ao herói masculino. Do mesmo modo que Perseu passou a utilizar a cabeça de Medusa como uma arma em sua defesa, Freud descreve como ela se tornou um amuleto com o dom de afastar e evitar desgraças e malefícios. E como os opostos são o mesmo para o inconsciente, assim como as víboras dos cabelos de Medusa são mortais e símbolos fálicos, esculpidos em couraças ou escudos, a imagem do falo tornou-se na Antiguidade um amuleto benigno complementar.

O órgão masculino ereto também possui um efeito apotropaico, mas graças a outro mecanismo. Mostrar o pênis (ou qualquer de seus sucedâneos) é dizer: ‘Não tenho medo de você. Desafio-o. Tenho um pênis’. Aqui, então, temos outra maneira de intimidar o Espírito Mau (FREUD, [1940/1922], p. 290).

A segunda menção de Freud sobre a cabeça de Medusa encontra-se em A organização genital infantil, artigo publicado um ano depois que foi escrito A cabeça de Medusa. O tema é repetido com um acréscimo. No primeiro texto Freud mencionara que “[...] os gregos eram, em geral, fortemente homossexuais” (FREUD, [1940/1922], p. 290), portanto era inevitável que encontrássemos entre eles uma representação da mulher como um ser que assusta e repele por ser castrada. Nesse segundo texto e na contramão da maior parte de sua obra, Freud torna sua generalização sobre os gregos em um diagnóstico médico do século XIX.

Também é sabido o quanto a depreciação da mulher, o horror à mulher e a disposição à homossexualidade derivam da convicção final sobre a falta de pênis da mulher. Ferenczi (1923) recentemente reconduziu, com toda razão, o símbolo mitológico do horror – a cabeça de Medusa – à impressão do genital feminino sem pênis (FREUD, [1923] 2018, p. 240-241).

A terceira e última menção de Freud a cabeça de Medusa ocorre dez anos depois da primeira, na Conferência XXIX: Revisão da teoria dos sonhos, das Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise. Com referência indireta ao Édipo e ao incesto.

Segundo Abraham (1922), uma aranha, em sonhos, é um símbolo da mãe, mas da mãe fálica, a qual tememos; assim, o medo de aranhas expressa temor do incesto materno e horror aos genitais femininos. Os senhores sabem, talvez, que a criação mitológica, a cabeça de Medusa, pode ser atribuída ao mesmo motif do medo de castração (FREUD, 1933 [1932] 1976, p. 33).

É curioso que Freud sempre utilize a expressão ‘cabeça de Medusa’, nunca ao ‘mito de Medusa’. Entre 1896 e 1911 Freud esteve por quatro vezes em Florença. Parece pouco provável que tenha deixado de ver a Cabeça de Medusa, de Caravaggio, objeto favorito da coleção dos Médici. E a Galleria degli Uffizi fora iniciada como museu particular no século XVI e aberta ao público desde 1769.

O texto de Freud de 1922 e suas duas referências subsequentes sobre a cabeça de Medusa também provocam outras questões. Há toda uma ambivalência no mito e na interpretação freudiana. Há atração sexual e castração, fascínio e medo, desejo e repulsa. Medusa foi metamorfoseada de mulher fatal em monstro, mas continua sendo emblema de ambas, ou desvelando que ambas são o mesmo. A função das três figuras femininas na vida de um homem que Freud descreve no já mencionado texto O tema dos três escrínios (FREUD, [1913] 1996): a mãe, a companheira e a morte. Castração será só culpa de Medusa e a vítima só quem é atingido por seu olhar? Ou da cisão do eu por parte de quem a deseja? E o conceito de pulsão de morte, descrito na década seguinte ao texto dos Três escrínios não expande a morte para desde o início da vida? Eros e Tânatos, o côncavo e o convexo como complemento e até o mesmo. Dois objetos espelhados que são o mesmo e duas identificações simultâneas?

As ideias de Freud sobre Medusa também conduzem a um texto bem anterior, aquele em que ocorre a primeira menção direta a Górgona e ao Tema dos três escrínios. Em A significação antitética das palavras primitivas (1910) Freud já mencionara que:

Em latim `altus‘ significa `alto’ e `profundo’, `sacer‘ ‘sagrado’ e ‘maldito’; aqui por conseguinte temos a antítese completa de significação sem qualquer modificação do som da palavra (FREUD, [1910] 1996, p. 165).

Isso faz lembrar a palavra também latina fascinum significa ‘malefício’, ‘mau olhado’, mas também ‘membro viril’. Em geral se refere a objetos para proteger e dar boa sorte: estátuas, amuletos e joias representando falos (origem da mão com os dedos em figa, no Brasil ‘boa sorte’, e em alguns países uma ofensa grosseira). E como os romanos criavam deidades para tudo, Fascinus também é o nome de um deus benéfico, protetor das crianças. Deus associado a Baco e Príapo, seu culto e guarda em Roma pertenciam às virgens vestais.

A tradição romana e a função apotropaica do rosto de Medusa no busto da estátua de Atena citado por Freud são de origem muito anterior a uma escultura da Grécia Clássica. Há relevo da Grécia Arcaica, século VII a.C., com soldado carregando um grande escudo todo talhado com a imagem de uma Górgona (MARINI, 2003, p. 167). Em época mais tardia, um conhecido mosaico encontrado em Pompeia mostra Alexandre o Grande lutando numa batalha tendo no peito uma efígie de Medusa. O mosaico data do século I a.C., mas reproduz uma pintura desaparecida de Apelles do século IV a.C. Também é da época romana a origem do maior número de joias, túmulos e objetos diversos com o rosto de Medusa. O busto do imperador Adriano o representa com a face de Medusa esculpida no peito.

O termo ‘fascinum’, origem de ‘fascinação’ ‘fascínio’ em português (e muitos outros idiomas), continua sendo antitético. Pode significar tanto ‘mau olhado’ quanto ‘encantamento’ e ‘deslumbramento’. E que podemos generalizar como sendo o efeito da duplicidade de tudo que é olhado e do próprio olhar.

Também é curioso que, na segunda observação sobre a cabeça de Medusa, Freud mencione Ferenczi e na última Abraham. Seus dois discípulos mais próximos e brilhantes. Mas que morreram bem antes dele. E não há explicações do editor James Strachey sobre Freud nunca ter publicado em vida a primeira menção, o pequeno e muito interessante artigo.

De Lacan temos uma menção, retomando a temática freudiana, a Medusa em O seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise ([1954-1955] 1978):

Da imagem aterradora, angustiante, nesta verdadeira cabeça de Medusa, na revelação deste algo de inominável propriamente falando, o fundo desta garganta, cuja forma complexa, insaciável, faz dela tanto o objeto primitivo por excelência, o abismo do órgão feminino, de onde sai toda vida, quanto o vórtice da boca, onde tudo é tragado, como ainda a imagem da morte, onde tudo vem se acabar [...] Há, portanto, a aparição angustiante de uma imagem que resume o que podemos chamar de revelação do real naquilo que tem de menos penetrável, do real sem nenhuma mediação possível, do real derradeiro, do objeto essencial que não é mais um objeto, porém este algo diante do que todas as palavras estacam e todas as categorias fracassam, o objeto de angústia por excelência (LACAN, [1954-1955] 1978, p. 196, tradução nossa).

Nesse relato literário e poético, é de interesse a narrativa sobre a garganta. Descreve perfeitamente o grito mudo, como se fosse um som petrificado, tal qual na imagem da Cabeça de Medusa de Caravaggio. Assim como Freud, é muito provável que Lacan tivesse em sua mente a imagem do mesmo escudo pintado por Caravaggio. Em O seminário livro 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ao longamente dissertar sobre o olhar, a pulsão escópica e a arte da pintura, Lacan faz uma referência explícita ao quadro exposto na sala contígua do mesmo museu que a Cabeça de Medusa: “[...] o Baco de Caravaggio, nos Uffizi3 (LACAN, [1964] 1973, p. 102, tradução nossa).

No mesmo seminário Lacan ([1964] 1973, p. 207) faz uma segunda e breve menção à cabeça de Medusa, apenas para retomar ao tema da semana anterior. Inclusive há citações sobre a Górgona decapitada para discorrer sobre o sonho e o real em O Seminário, livro 5 (7 de maio de 1958) e livro 19 (21 de junho de 1972). A lista pode estar incompleta, uma vez que a maior parte dos seminários publicados não possui índices e os compêndios sobre nomes e termos na obra de Lacan mostram-se especialmente falhos sobre o nome ‘Medusa’.

 

A Medusa de Caravaggio

Perseu matou Medusa por meio de uma artimanha. Para evitar o olhar mortal da Górgona, não a encarou diretamente. Mas foi o reflexo dela em seu escudo que guiou sua mão a cortar-lhe o pescoço. Caravaggio capturou o instante logo após: o reflexo da cabeça decapitada da Górgona no escudo de Perseu. O olhar arregalado e a boca escancarada ainda refletem ter sido pega de surpresa. Assustadas, as serpentes se movem furiosamente. A cabeça “parece flutuar sobre um funcho esverdeado” (SCHÜTZE, 2017, p. 93-94). Do pescoço espirram jatos de sangue. Medusa, flagrada no instante logo após a decapitação, não fixa seu olhar na direção do olhar do espectador, o que poderia petrificá-lo, mas para baixo, para seu próprio pescoço cortado.

Mas a Cabeça de Medusa, de Caravaggio, não é sobre um quadro convencional, uma pintura a óleo sobre uma tela retangular ou quadrada. Mas em uma forma muito usada na Renascença italiana, um “tondo”: uma composição de pintura ou escultura realizada sobre um suporte de formato redondo no interior de um disco. Mas a cabeça de Medusa também não está num mero “tondo”, mas sobre um de forma convexa: um escudo, só que de madeira. Mas que também cria a ilusão de algo mais que um escudo. Um leve movimento do corpo do espectador, ou apenas de seu olhar, pode transformar o convexo em côncavo: o escudo pode se tornar um espelho (PROSE, 2005, p. 52). O movimento do espectador diante do escudo dá a impressão de que a tela, principalmente as serpentes, foi feita usando recursos contemporâneos de terceira dimensão (observação nossa).

A Cabeça de Medusa, de Caravaggio, data de 1597 ou 1598. Em seguida foi presenteada pelo Cardeal Del Monte ao Grão-Duque da Toscana, Ferdinando I de Médici. Neste período, Caravaggio pintou outros quadros. Contudo, um chama mais a atenção: Narciso olhando-se no lago. A associação entre as duas obras não precisa ser feita por um psicanalista, descreve Schütze (2017), pesquisador e especialista da obra do pintor sobre a Cabeça de Medusa do Uffizi em seu catálogo da obra completa de Caravaggio:

O caráter auto referencial da pintura é mais enfatizado pelo fato de que Caravaggio provavelmente estudou seu próprio rosto em um espelho para a Cabeça de Medusa (SCHUTZE, 2017, p. 94).

Há uma outra Cabeça de Medusa sobre um escudo atribuída a Caravaggio. Um pouco menor, teria sido feita um ano antes daquela que hoje está no Uffizi. Possui o que seria a assinatura do pintor, feita com a mesma tinta vermelha do sangue que jorra. Pertence a uma coleção particular. Embora Schütze (2017, p. 346), assim como grande parte dos especialistas, não a considere autêntica. Mas é reconhecida como tal por muitos outros. Entre eles, Maurizio Marini, outro especialista e editor do primeiro catálogo filológico da obra do pintor, que defende a ideia de que Caravaggio atenuou os traços masculinos na segunda obra e defende essa comparação entre as duas Cabeças de Medusa terminando por afirmar que:

Na segunda versão considera-se que Caravaggio integrou esta impressão ao acentuar a caráter feminino de acordo com as feições de Filide Melandroni, [...], que foi pintada por Caravaggio em [outro] quadro [...] (MARINI, 2003, p. 51).

 

Caravaggio e sua obra: decapitados e decapitações

Em todos os livros pesquisados há variações sobre quais são as obras autênticas de Caravaggio. Não que as outras sejam necessariamente falsificações. Como todos os mais famosos artistas de sua época, o pintor possuía aprendizes em seu ateliê, ou colegas de menos originalidade, que o copiavam, além de um bando de seguidores por ele influenciados ainda em vida e após sua morte. Por diversas vezes o próprio Caravaggio fazia mais de uma versão da imagem básica do mesmo quadro. E naquela época artistas geralmente não assinavam suas obras. Uma única de suas obras unanimemente reconhecida como autêntica foi assinada.

Apesar de algumas discrepâncias gritantes com outros especialistas, a lista mais acessível e didática dos quadros de Caravaggio, reconhecidos como autênticos e dos de origem duvidosa, que chegaram até o século XX é a de Schütze (2017). Esse pesquisador lista 67 obras autênticas e 21 cuja autoria sofre variados graus de contestação4. Nos 67 autênticos, Caravaggio pintou a si mesmo em nove: Autorretrato como Baco enfermo, Os músicos, Cabeça de Medusa, A captura de Cristo, O martírio de São Mateus, O martírio de Santa Úrsula, um dos São Francisco em meditação e dois dos Davi e Golias (SCHÜTZE, 2017, p. 49, 94, 143, 214, 439; CREMONA OGGI, 2016). Mais da metade deles como personagem principal, como no Baco enfermo, Medusa, São Francisco e nos Davi e Golias. Nos demais aparece como espectador, ora observador indiferente, ora crítico. Direta ou indiretamente todo artista se coloca em sua obra. Mas em se tratando de Caravaggio, temos uma prova direta de uma forte identificação. Permitindo que também se medite sobre um razoável narcisismo do artista.

Se somarmos as duas cenas concretas de decapitação (Judite e Holofernes e A decapitação de São João Batista), as seis cabeças decapitadas (Medusa, Salomé e São João Batista, Salomé recebendo a cabeça de São João Batista e três quadros de Davi segurando a cabeça de Golias), um menino prestes a ter sua garganta cortada ou ser decapitado (O sacrifício de Isaac) e cinco quadros de santos que estão destinados a ser decapitados (Santa Catarina de Alexandria e 4 retratos de São João Batista), temos um total de 14 quadros entre 67 (quase 21%) da lista dos autênticos feita por Schütze.

Alguns críticos podem argumentar que tal número tão somente reflete os gostos e as encomendas da época. Só que, com exceção da Decapitação de São João Batista, esses quadros não pertencem à lista das grandes encomendas para igrejas, capelas ou altares. Várias das obras parecem ter sido de iniciativa exclusiva de Caravaggio e depois vendidas. Principalmente os vários São João Batista jovem e os Davi e Golias.

Sobre a profusão de quadros de Caravaggio sobre São João Batista, o historiador e crítico de arte Roberto Longhi escreveu que:

[...] era um tema sacro que lhe era particularmente caro, a ponto de quase se tornar autobiográfico: São João Batista, santo “naturalista” por definição, rixento, selvagem, intratável: jejuador por vocação, mas sempre cheio de vida elementar [...] (LONGHI, 2012, p. 81, aspas do autor)

E embora a Decapitação de São João Batista tenha de fato sido encomendada para o oratório da catedral de São João em La Valetta, capital de Malta, e caso a primeira Cabeça de Medusa não seja autêntica, é o único quadro assinado por Caravaggio, e de modo bem pessoal

As mãos estão atadas atrás de suas costas e o sangue jorrando da ferida mortal em seu pescoço. É exatamente aqui que, como se o pincel tivesse sido molhado no sangue de São João Batista, que Caravaggio escreveu sua assinatura “f MichelAn” [...] O fato de que Caravaggio colocou a assinatura exatamente abaixo da ferida do pescoço, como se estivesse sendo escrita pelo sangue de Batista, positivamente indica uma identificação existencial com o tema, motivada não somente por sua admissão na Ordem (de Malta), mas possivelmente também pela ameaça da pena de morte ainda pendente em Roma sobre sua cabeça (SCHÜTZE, 2017, p. 268-271).

Por fim, entre as cabeças decapitadas, três retratariam o próprio Caravaggio: a de Medusa e dois dos Golias. Dos dois primeiros isso até pode ser questionado, mas o último Golias é o mais famoso entre os autorretratos de Caravaggio. É frequentemente estampado como capa de biografias do pintor.

 

Caravaggio e Lacan: o espelho

A tese do uso de recursos óticos por pintores a partir do século XV ou XVI não é recente. Entre outros, Roberto Longhi a defendia em meados do século passado. Teve maior divulgação a partir de 2001 com a publicação do livro O conhecimento secreto, do pintor inglês David Hockney. Uma xilogravura de Abrecht Dürer, de 1525, em que dois homens usam um mecanismo de fios para pintar objetos curvos, “[...] sugere que alguns artistas se valeram de um expediente técnico para ajudá-los” (HOCKNEY, 2001, p. 54). A tese torna-se mais próxima aos psicanalistas quando o pintor inglês escreve nas páginas seguintes sobre o quadro Os embaixadores, de Hans Holbein, também usado como capa do O seminário 11 ([1964] 1973), onde servirá para que várias considerações psicanalíticas sobre o olhar, a pintura e o pintor sejam feitas. Entre essas, Lacan também descreve a mesma experiência ótica acima e sua representação por Dürer (LACAN, [1964] 1973, p. 81-82). Para Hockney, além da ilusão de tridimensionalidade dos vários objetos curvos em Os embaixadores, a enamorfose de um crânio, imagem do quadro mais usada por Lacan, “[...] é uma pista de que Holbein utilizou ferramentas óticas’” (HOCKNEY, 2001, p. 57). E Holbein pertenceu a duas gerações anteriores a Caravaggio.

O uso da ótica na pintura não foi exclusivo nem surgiu com Caravaggio, contudo ele o aperfeiçoou em tal grau que é tido por vários especialistas como precursor do foco e do diafragma (PASOLINI, 1999), o dispositivo que determina o tamanho da abertura da lente para a luz, na fotografia e no cinema. Contudo, há obras de Caravaggio nas quais as artimanhas óticas deixaram seu preço. Ou o protagonista é canhoto (Baco), ou há estranhos erros de representação, que para um artista tão superdotado de técnica, só podem ser explicáveis como fruto das distorções visuais produzidas por lentes ou por espelhos não planos (por exemplo, uma das Ceia em Emaús, onde a mão mais distante de um personagem é estranhamente distorcida e maior que a mais próxima).

A tese do uso de instrumentos óticos envolve tanto espelhos de vários tipos e múltiplos quanto lentes e câmaras lúcida e escura. Mas do referencial psicanalítico que precede O seminário 11, o texto que deve ter surgido primeiro na mente do leitor como uma das pontes para uma leitura psicanalítica da obra de Caravaggio, provavelmente foi o Estádio do espelho como formador da função do eu (LACAN, [1949] 1998, p. 96-103).

Nesse texto é descrito como, entre os seis e os dezoito meses, o bebê descobre que o espelho duplica seus movimentos e expressões, assim como toda a realidade ao seu redor. Seus reflexos, os de seus cuidadores e do mundo são fontes de prazer. A etologia mostra como comparar as imagens já prontas e completas que os outros animais e as aves trazem em si ao nascer, ou fixam para sempre na primeira que veem ao início da vida, passando automaticamente a procurá-las pelo meio ambiente, com ausência nos seres humanos de imagens inatas ou coladas imediatamente após o nascimento. Pode ser traçado um paralelo com a dicotomia entre instinto, para o qual o objeto de satisfação da necessidade já vem soldado e pronto, e pulsão, cujo objeto de desejo será trazido e construído pela força das experiências infantis. E ao contrário dos outros animais e aves, que não representam para si mesmos a própria imagem, o bebê necessita de uma. Quando ele descobre que os reflexos no espelho são seus, sonoramente se regojiza e os usa para brincar. Nesta experiência lúdica se inicia a unir e construir sua imagem e a de tudo que o cerca. Mas essa unidade de si mesmo, dos outros e dos objetos no mundo nunca será completa.

O estádio do espelho constitui um momento mítico, porque não acontece uma única vez nem necessariamente apenas por meio do reflexo num espelho. Todavia é fundamental, porque, apesar de seus senões, sem ele experimentaríamos a vida inteira o terror de um corpo despedaçado. Permite que se copie as imagens de si e dos outros, que vão muito além de simples percepções, mas constituem objetos de afeto, erotismo, satisfação ou repugnância, isto é, identificações. A revivência desse momento mítico pode ser interpretada como a primeira fonte do gozo estético nas artes predominantemente visuais, em especial na pintura. E como o pequeno ser humano se compraz na mímica e na imitação de seus gestos e caretas diante do espelho, e de todos os demais personagens ao seu redor, explica a origem do prazer universal pelas artes dramáticas.

Só que o estádio do espelho, apesar de salvar-nos do corpo despedaçado, diria Melanie Klein, da predominância posição esquizoparanoide, ele mesmo

[...] é um drama [...] forma uma totalidade que chamaremos de ortopédica – para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante (LACAN, [1949] 1998, p. 100).

O lado negativo do estádio do espelho vai além da constituição de uma unidade alienante. O bebê também reflete no espelho as mesmas forças destrutivas que possui. A expulsão dos objetos maus e persecutórios, por meio da identificação projetiva, além de aumentar a alienação constitutiva do eu imaginário, torna a imagem má e persecutória. O espelho reflete um rival de si mesmo. E o bebê também vai construindo a imagem refletida de seus cuidadores. Imagens e corpos que muitas vezes não obedecem a sua onipotente vontade. Uma enorme ferida narcísica com toda a raiva e ódio naquele que se sentia como ‘sua majestade, o bebê’.

Mais do que pelas obras dos pintores de até então, a reexperiência do drama mítico do estádio do espelho seria facilitada pelos quadros de Caravaggio. Muitos de seus quadros se iluminam de júbilo e de horror ao mesmo tempo. Mas o contentamento predomina, porque a grandiosidade do drama humano supera o horror da crueldade, e deste modo consegue integrá-la ao prazer do olhar. Semelhante à primeira infância, quando as experiências ruins e o ódio da criança não devem nem podem ser negados, mas integrados ao resultado de uma predominância de experiências boas e de satisfação. Com o reconhecimento intuitivo dessa realidade psíquica, Caravaggio, além de seu enorme talento e técnica pictórica, por meio do gozo estético, facilitou a integração. Mesmo que muitos de seus quadros sejam macabros e dotados de extrema violência. E vimos como Caravaggio se insurge contra as idealizações edificantes e maniqueístas da figura humana, que nada mais são do que negação daquilo que séculos depois veio a ser nomeado de pulsão de morte. Suas cenas dramáticas representam a vítima e o(s) algoz(es) de tal modo que torna possível ao espectador se identificar com ambos. Com Medusa, que vê seu reflexo espelhado no escudo de Perseu, e com o próprio Perseu.

Além de espelhos e lentes, Caravaggio aperfeiçoou a sensação de interioridade do espectador com as imagens de seus quadros, colocando-o dentro das cenas utilizando outros ardis. Os quadros do pintor não apresentam figuras chapadas ou quase planas, como nas obras anteriores à Renascença. E também não apresentam profundidades criadas a partir de grandes perspectivas geometrizadas (a mais famosa, talvez, a do fundo da Santa Ceia de Leonardo da Vinci). Geometrização das pinturas que Lacan traça um paralelismo com o surgimento da noção de um eu alienante (moi), por outro grande matemático, o qual o psicanalista critica violentamente, René Descartes.

O estádio do espelho inicialmente funda um eu muito mais especular, o eu ideal, que abre passagem para o eu social. O eu cartesiano acentua a tendência humana a cindir o mundo todo a objetos, o que intensifica a força de um retorno sobre si mesmo de identificações coisificantes, que em filosofia possui a denominação de solipsismo cartesiano. Alienando ainda mais o sujeito de si mesmo. O eu cartesiano aprofundou a cisão entre o eu ideal e o sujeito do desejo. Caravaggio necessitava aproximar-se sempre mais deste último, o que se reflete em sua tumultuada biografia. E também em sua arte e em sua constituição um novo tipo de espectador, que está mais para o sujeito descentralizado do século XX que para o sujeito cartesiano de sua época. Vários de seus quadros não possuem uma ou duas personagens principais, mas o foco do olhar é distribuído entre várias,

Apesar do tamanho e do número de personagens, as obras de Caravaggio situam o olhar muito próximo à cena do quadro, quase como se o espectador também estivesse dentro dele. Até mesmo como se visse a cena por de dentro da imagem. Mas o artista foi além. Não satisfeito com todas as obras em que retratou a si mesmo como protagonista ativo ou passivo, a técnica de ver e se distanciar da própria cena como um espectador dentro do quadro foi representada pelo próprio pintor em pelo menos três quadros (O martírio de São Mateus, A captura de Cristo, O martírio de Santa Úrsula). Neles colocou sua própria figura como voyeur dentro da pintura, ora curioso, ora enojado. Tal uma criança pequena intensamente mobilizada pelo drama ao seu redor, que, para minimizar sua dor, cinde seu eu em um outro eu, um eu observador que se afasta do que sente, passando ativamente a julgar ou passivamente observar as atitudes das pessoas ao seu redor. Olhando a realidade em volta como se fosse vista de longe. Sentindo a si mesma e suas emoções como externas a si própria. Como que reflexos em um espelho distante ou vistos por uma lente que diminua os objetos: a cisão, a esquize do olhar.

Nos quadros de Caravaggio quase não há cenários. Apenas duas obras sequer mostram um pedaço de paisagem ao fundo (Descanso na fuga para o Egito e o primeiro Sacrifício de Isaac). E todos compõem imagens sem grandes espaços geometricamente projetados ou um eu cartesiano que tudo olha de fora e reduz subjetividades a objetos. Para cenário, só o essencial, o que importa são as cenas dramáticas. A esmagadora maioria das obras representam histórias bíblicas ou mitológicas (Medusa), que instantaneamente remetem a todo um elo de associações do que ocorreu na história antes ou depois da ação pintada na cena. Entre a imagem pintada ou a narrativa associada, aparece algo além de imaginário puro ou predominante, algo que se situa na intersecção entre o imaginário e o simbólico.

O uso de espelhos e lentes serviu a Caravaggio para realçar a face dramática de suas obras. Nisso também era ajudado pela ilusão de tridimensionalidade que sua maestria técnica sabia tão bem executar. E usou essa ilusão para acentuar que seus personagens não são sagrados, mas pessoas comuns, com frequência, prostitutas.

Ao contrário de Michelangelo ou Leonardo, não se conhece nenhum desenho prévio aos quadros de Caravaggio. Pintava diretamente a partir de modelos vivos. Isso reforça a descrença em idealizações inalcançáveis, de cisões de um eu encharcado em narcisismo de morte. E revela os conflitos de gente de pés e unhas sujos, supostos santos que são apenas homens apavorados, ou anjos adolescentes sedutores demais para serem desprovidos de desejo sexual. Que por sua humanidade possuem mais valor universal e intensidade estética que os personagens famosos, porém distantes dos livros sagrados, que só servem como reforço de eu ideal e do sadismo do supereu. O que fez muitos de seus quadros serem rejeitados pelas igrejas ou ordens que os encomendavam. E se não fosse a influência de seus mecenas, facilmente poderia ser acusado de heresia. Mas permitem identificações além das imaginárias do eu ideal e social. Identificações que tentem e até possam unir um eu cindido.

Na pesquisa pelo aperfeiçoamento de sua arte, Caravaggio utilizou espelhos e lentes não para alcançar a profundidade de grandes espaços, mas para ampliar os focos de luz e escuridão. Há “[...] a ausência de uma luz celestial ou qualquer sugestão de paraíso” (PROSE, 2005, p. 104). A luz muitas vezes se espalha criando vastos espaços vazios na tela, o que realça o espanto, o medo ou a solidão dos personagens. Intuindo suas profundas raízes na infância, tempo do pavor do escuro e da procura pela claridade que apaga o pesadelo e o retorno ao domínio da era do corpo despedaçado. O uso inédito e famoso de intensas luzes e sombras, que descortinam rostos cujas motivações são múltiplas e enigmáticas.

O fundo negro [...] parece ter a função não apenas de criar um efeito adequado a um experimento com a luz, de acordo com as leis da ótica e as ideias de Galileu Galilei, conhecidas por Merisi por meio de sua companhia com o Cardeal Del Monte e o Marquês Vincenzo Giustiniani [...], mas também em seu isolamento das personagens em relação ao meio ambiente, de criar a impressão de profundeza psicológica. A luz parece mergulhar dentro dos rostos e revelar seus pensamentos [...] (BANDERA, in STRINATI, 2010, p. 190, tradução nossa).

 

Caravaggio e o quadro: olhar e castração

Vimos que o tema comum mais frequente de Caravaggio é a decapitação. E entre as nove pinturas nas quais se autorretratou, três foram como cabeças cortadas. Analisando os quadros como cenas de um sonho, vemos que Medusa é a imago maior, hipótese comprovada porque o público a tornou sua obra mais icônica. Merecendo ser a obra principal, quase exclusiva, sendo as algumas outras colocadas só para realçá-la, de uma sala inteira na Galleria delli Uffizi. Embora do ponto vista artístico muitos outros quadros do próprio Caravaggio a superem.

Há muito poucos dados confiáveis e mais precisos sobre sua infância e juventude. Uma psicobiografia psicanalítica torna-se quase impossível. Apenas podemos deduzir com certo grau de confiabilidade para o referencial psicanalítico a influência de dois fatos. Primeiro, que a peste e a morte de vários membros de sua família quando tinha cinco anos, incluindo seu pai e seu avô, deixou-lhe a marca indelével do trauma ao final da primeira infância e ao ápice do drama edípico freudiano clássico. Segundo que a sociedade de sua época era extremamente violenta. O que era agudizado pelas perseguições religiosas da Contrarreforma que se iniciou pelo concílio de Trento (1545-1663) e pôs fim às luzes da Renascença. Como foi descrito, o ápice da carreira de Caravaggio se deu em Roma, com suas assustadoras estatísticas de execuções, decapitações e esquartejamentos.

Tal como postula a equação etiológica de Freud, a predisposição trazida pelos traumas infantis foi revivida pelos traumas adultos. Ainda mais sendo a castração uma das três fantasias primevas de Freud, para as quais não precisamos invocar qualquer herança filogenética, mas constituídas pela situação edípica universal em que todas as crianças se encontram desde o nascimento. E como o que se sofre passivamente se repete ativamente, Caravaggio também se tornou um exímio castrador de rivais e de si mesmo. Marca de todos os transgressores, tanto concretamente em suas disputas e brigas que culminaram em assassinato, perseguições e fugas, quanto sublimadamente através do uso de seu talento, que por onde passava ofuscava seus rivais. Como atesta o verso de Marini: “[...] a verdadeira Medusa é vosso talento”. Só que, ao contrário da Górgona da mitologia, Caravaggio ao mesmo tempo era seu próprio Perseu.

Medusa simboliza a unidade dramática entre a vida e a arte de Caravaggio. Além de ser tema principal de sua obra e biografia, pode nos ajudar a compreender a dinâmica da própria arte em si. Utilizando uma dicotomia, artificial como todas, mas facilitadora e inevitável, Medusa não é apenas a imago do conteúdo obra caravaggiana, mas também a pista para refletirmos psicanaliticamente sobre o mecanismo da pintura enquanto forma estética.

A partir do texto do Estádio do espelho (LACAN, [1949] 1998), foi desenvolvida a concepção de imaginário, sempre com sua marca original da etologia. Não possuímos formas inatas. E se nem a forma já vem completa, ainda menos os conteúdos, a partir dos quais passamos a vida inteira procurando fora a satisfação da pulsão. Nenhum objeto satisfaz plenamente ou o tempo todo. Até aqui Lacan colocou a pulsão escópica ao nível das demais. Então surge uma diferença, o olhar ao mesmo tempo é ele mesmo também um objeto, “[...] o que inicialmente parece um tanto estranho” (QUINET, 1995, p. 139). Enquanto fonte da pulsão escópica, do mesmo modo que todas as outras pulsões, a demanda se satisfaz pelo prazer em olhar algo que se ofereça ao olhar como objeto. Satisfação que sempre será incompleta e/ou temporária. Mas o olhar também oferece a si mesmo como um espelho ao gozo do mundo, mas um espelho ao qual falta um pedaço e, por isso, brilha com a invocação do desejo.

No nível escópico, não estamos mais no nível da demanda, mas do desejo, do desejo do Outro. É o mesmo nível da pulsão invocante que é a mais próxima do inconsciente. É por isso que o olho pode funcionar como objeto a, quer dizer, sempre no nível da falta [...] (LACAN, [1964] 1973, p. 96, tradução nossa).

E o mundo não é constituído apenas por objetos passivos esperando nosso olhar. É fácil deduzir que, pela seleção natural e pela necessidade de sobrevivência, a maioria dos seres vivos ou buscam, ou fogem de ser vistos. Pedem ou evitam o olhar alheio. Contudo, anteriormente à psicanálise, temos de pensar em Kant, no sentido de que até mesmo a natureza inanimada, suas paisagens e céus, criados por ninguém e desprovidos de intencionalidade, sempre despertam o prazer estético. Mais do que tal, além do prazer da beleza, o êxtase pela realização do sublime, o que fornece ao imaginário em seu narcisismo ver características psíquicas e afetivas nossas projetadas na natureza. Dando-lhe sentido e autoria que não possui e cuja ilusão (ou delírio, como certa vez escreveu Freud) de que tal exista, produzindo a marca registrada das religiões. Mas alheio se há deuses ou um deus, os seres vivos e a natureza inanimada nos olham, e como olhar também constituem objeto a e invocação. Como sinaliza Kant, o sublime não afeta apenas nossos sentidos, mas, ao evocar a fantasia de um destino suprassensível, também atrai nossa orientação às ideias da razão e para a lei moral, o que conduz uma leitura psicanalítica para algo muito além de uma simples função do imaginário.

Enquanto objeto a, o olhar e o que se oferece para ser visto, ambos agem

[...] como símbolo da falta, isto é, do falo, não como tal, mas enquanto faz falta (LACAN, [1964] 1973, p. 9, tradução nossa).

O olhar e o que se oferece para ser visto trazem em si marcas da castração. O gozo estético pode ir do prazer do belo ao êxtase do sublime, por um momento atingir um gozo além do fálico, mas sempre de novo opera o derradeiro limite da castração: a cabeça de Medusa decapitada. Por ser imensurável, o sublime termina por nos colocar no lugar daquele que é finito. Para Kant, o sublime está para a lei moral assim como para Freud a castração está para o supereu.5

Desde Sófocles e a cegueira de Édipo, o olho foi simbolizado como órgão máximo para o deslocamento da castração genital concreta. Talvez não apenas porque, diante da consumação real do drama edípico, o Tyrannos de Tebas tenha furado seus olhos como punição pela culpa por ter concretamente satisfeito o desejo incestuoso. A cegueira também é mais que uma metáfora da prévia incapacidade de Édipo de ver sua origem e a causa de seus atos. Mas também porque os olhos e o olhar já são por si mesmos movidos pela falta, ausência de perfeita completude e se ofereçam como objeto a. Sua dinâmica faz com que eles invoquem desejo e representem castração.

Freud iniciou o ciclo da equivalência fálica entre cabeça e pênis, decapitação e castração. E também do horror com um dos símbolos da fantasia primeva da castração com seu oposto, o prazer e o poder doado por um símbolo fálico apotropaico. Medusa em elmos e escudos, imagem equivalente a uma ereção: exercer o gozo do poder e de eliminar os inimigos.

 

Medusa e Perseu: o quadro e a sublimação

A Górgona também pode ser vista como mais do que uma imago simbolizando o conflito edípico em suas vertentes de transgressão e castração. Pode nos fornecer outras pistas para a compreensão do mecanismo de funcionamento da arte pictórica. Com sua arte o pintor é o senhor do dom de domesticar o objeto a, tanto de seu olhar, quanto do que o olha. Condensando ambos os polos das imagens trazidas pela pulsão escópica na forma de um quadro, artefato artístico pelo qual nos impõem seu modo de olhar. Foi mencionada a relação entre o objeto a e a pulsão invocante. Quais pistas ela nos fornece?

A pulsão invocante pode ser retroagida como anterior ao estádio do espelho. Ela se inicia através de todos os sons que a mãe e os demais cuidadores desde o nascimento dirigem ao bebê. E desse ‘manhês’, que não é só prosa, mas geralmente cantado, o bebê aos poucos contrapõe emitindo sua ‘lalação’. O bebê há pouco saiu do nada, e há uma chance enorme de ele retornar para lá. Por isso, necessita que sua pulsão de vida seja reforçada por chamamentos do mundo. Nos termos da segunda teoria freudiana das pulsões, a pulsão invocante é necessária para contrabalançar e exceder à força da pulsão de morte. Muito foi escrito e publicado sobre o papel da função invocante na origem da música e da comunicação verbal.6 E de sua falta como causadora de quadros graves de inibição do desenvolvimento, como o autismo infantil.

Do mesmo modo que o caminho dos sons até as linguagens musical e verbal, também quanto à incompletude de seu olhar e do olhar do mundo, o bebê necessita que sua pulsão escópica seja reforçada pelo chamamento do olhar materno e dos demais que a cercam. Se não vierem, do ponto de vista biológico, é capaz de enxergar, mas desprovido de objeto a e desejo, permanecer ou ficar cego para o mundo. Uma das funções maternas, independentemente de quem efetivamente a exerça, é esta: não ser rival do mundo, apresentá-lo para o bebê, gerar na criança interesse por ele, acentuar seu chamamento e aprender a separar entre o logro e o desejo do Outro. Ao dirigir o bebê a esse desejo, a pulsão invocante é quase toda libido, quase puro Eros.

Parte da tarefa do pintor é semelhante. Trabalha com seu corpo e com ele condensa o desejo de seu olhar e do Outro no quadro. Assim, invoca pelo olho o corpo do espectador, indo desde o gozo voyeurístico sublimado do ato de ver até as sensações eróticas que podem atingir o resto do corpo. Ao mesmo tempo, chama incursões para o simbólico. Mesmo nas obras mais abstratas, porque toda forma de arte se insere em algum tipo de linguagem, conceito não restrito apenas ao verbal saussuriano. Por seu talento e sua técnica, o pintor invoca um espaço intermediário entre o imaginário e o simbólico para relembrar, por meio do olhar do quadro ao olho do espectador, o chamamento inicial do mundo. Um retorno ao instante mítico da descoberta e do início da integração da imagem no espelho. Aliás, em O seminário 1: os escritos técnicos de Freud, na tópica do Simbólico/Imaginário/Real, a sutura ou junção entre o simbólico e o imaginário também foi descrita por Lacan ([1953-1954] 1979) como o local do amor.

Assim como a pulsão invocante é a que conduz à música, com sua linguagem musical, a pulsão adquire o nome de escópica quando nas artes visuais conduz à linguagem pictórica. Linguagens, porque, assim como os sons precisam ser diversos e organizados em uma sequência dotada de sentido no tempo para se tornarem música, as imagens nas artes visuais também não são apenas pura instantaneidade do imaginário. Por meio de uma sequência temporal de construção do que é visto, mesmo que nos cause a ilusão de imediaticidade do olhar, o quadro é feito por uma linguagem de diferenças de cor, luz, figuras dotadas de um sentido. O compositor e o pintor tentam, por meio da pulsão invocante, prender nossa atenção e impor-nos algo. Sempre objeto a, incompleto e faltoso, que em nós evocará múltiplas interpretações, conscientes e inconscientes.

Até aqui a pulsão invocante e escópica foi descrita como libido, quase puro Eros. No entanto sabemos que há outro lado de chamamentos pelo bebê – a pulsão de morte, puro Tânatos, que ao final sairá vencedor, porque mesmo que seja depois de muitas e muitas décadas depois, o bebê morrerá. O ofício do pintor, como de todo artista, é criar um mecanismo pelo qual a pulsão de vida prevaleça sobre a de morte, sem o que o gozo estético não seria possível.

Longhi criou a descrição do espelho e do quadro como algo que [...] nos oferece a ‘unidade do fragmento’ imerso na sua luz: uma espécie de ‘realidade aquário’” (LONGHI, 2012, p. 31, aspas do autor). Os quadros de Caravaggio realçam através do drama sua ligação de com uma narrativa histórica e com a temporalidade. Uma linguagem narrativa que possui inserção no simbólico. Contudo, tal qual uma peça musical, sua duração temporal possui um fim. E tanto na escuta da música como em olhar o quadro, o espectador é levado pelo prazer a repetir a canção ou a rever o quadro.

Longhi possivelmente pensava em um aquário pequeno, dos que se tem em casa, no qual pela simplicidade de seu comportamento, os peixinhos reproduzem as mesmas formas. Assim também, objeto estético é capaz de infinitamente repetir sua dinâmica interna: repetição, movimento circular homogêneo, suspensão e retorno de um mesmo fragmento. Mas precisa ir além. Dificilmente se pode colocar de modo mais resumido que a relação entre a arte e a pulsão de morte necessita de ir um ponto além. O artista cria a obra como vingança contra a morte. Ao contrário dos mesmos movimentos repetitivos dos peixinhos em um aquário, uma música ou um quadro, enquanto também objeto a, invocam e se conjugam com o objeto a da escuta e do olhar. Cada vez repetidos, a música ou o quadro invocam associações conscientes e inconscientes diferentes no espectador,

Um modo de encarar a sublimação pode ser vê-la na própria estrutura do objeto artístico como uma domesticação da pulsão de morte pela de vida. Ao tentar superar seu trauma da castração, por meio de seu dom e técnica intensificando e colocando no objeto artístico a pulsão invocante, musical ou escópica, o artista se aproveita da inexorabilidade da morte contra ela mesma. Vai além da mera repetição circular e impulsiona o movimento em uma espiral ascendente.

E assim, retomamos a menção ao artigo de Freud A significação antitética das palavras primitivas no qual foi visto que palavra latina fascinum que significa ‘malefício’, ‘mau olhado’, mas também ‘membro viril’ e ‘objetos para proteger e dar boa sorte’.

Continuando a discorrer em O seminário 11 sobre a função do quadro, Lacan formula o momento em que o ‘malefício’ se torna ‘membro viril’.

[...] O olhar em si, não apenas cristaliza o movimento, mas o cristaliza. [...] O mau olhado é o ‘fascinum’, aquilo que tem por efeito parar o movimento e literalmente matar a vida. [...] O instante de ver só pode intervir aqui como sutura, junção do imaginário e do simbólico, e é retomado numa dialética, essa espécie de progresso temporal que se chama ímpeto, arroubo, movimento para frente que se conclui no ‘fascinum’ (LACAN, [1964] 1973, p. 107, tradução nossa).

Melanie Klein foi a autora que dedicou a maior parte de sua obra a diferença teórica e clínica entre inveja (do latim ‘invideo’, ‘ver com maus olhos’), originária da fase oral e embebida em pulsão de morte, quase inacessível ao tratamento, e ciúmes, sentimento de natureza edípica, bem mais brando, onde a pulsão de vida prevalece, e é possível o tratamento. Ao discorrer sobre a função do quadro, Lacan relembra a mesma diferença entre inveja e ciúme. A inveja torna aquele que está por ela possuído

[...] pálido diante de uma imagem de completude que se fecha sobre si mesma (...). E é nesse registro do olho como desesperado pelo olhar onde temos de ir para entender a função apaziguadora, civilizatória e fascinatória do quadro (LACAN, [1964] 1973, p. 106, tradução nossa).

A escola kleiniana também postula que toda arte, para se manifestar como tal, necessita reparar objetos internos atacados e muito danificados na primeira infância. Passar o mais possível da inveja ao ciúme, da esquize ao luto, reparação e gratidão. Pouco sabemos da biografia de Caravaggio, mas a violência e o macabro são temas tão comuns que podemos interpretar a imago básica: o olhar petrificante da Górgona e o herói que a derrotou. Mais do que isso, domesticou-a como amuleto a seu serviço e para continuar seu oficio de herói. A imago de Medusa espelhada no escudo de Perseu representa ao mesmo tempo castração e uma arma contra a castração, o ódio invocado por objetos muito atacados e maus, superado pelos objetos bons que doam a capacidade de reparação - o apaziguamento do olhar - Tânatos sobrepujado por Eros.

 

Conclusão

Foi mencionada a relação entre o sublime, o olhar e a castração. Merece maior justificação. Tudo o que pode excitar as ideias de dor e de perigo, ou seja, tudo que de algum modo é terrível ou diz respeito a objetos terríveis, ou que atua de maneira análoga ao horror é fonte do sublime, “[...] ou seja, é capaz de produzir a emoção mais forte que a mente é capaz de sentir” (BURKE, 2016, p. 52). Mais além que o belo, o sublime é terrível porque implica a percepção de um risco extremo e, ao mesmo tempo, dá prazer já que se tem a consciência e está protegido contra a impressão dolorosa. O sentimento de prazer consciente diz respeito a qualquer modo de satisfação, inclusive diante da beleza. O sublime vai além, é uma espécie de horror e violência, que, tornado suportável e majestoso pelo dom do artista, não mais ameaça nossa sobrevivência e nos torna capazes de aceitar e integrar como a existência é tingida de terror e finitude. O ofício do artista, o uso de sua arte como meio da sublimação, permite que a dor e o horror sejam modificados a ponto de não serem mais concretamente nocivos e ameaçarem nosso eu, em todas as suas definições freudianas e lacanianas, incluindo o eu corporal. O sublime, “[...] por pertencer a autopreservação, é uma das mais fortes paixões” (BURKE, 2016, p. 127).

Na trilha de Burke, o filósofo Immanuel Kant em Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (2012), para diferenciar esses dois afetos, forneceu dois exemplos. Primeiro, um campo cheio de flores, um vale com riachos e rebanhos pastando, uma descrição do paraíso terrestre ou a descrição de Homero do corpo de Vênus, proporcionando uma sensação agradável, alegre e radiante. Aqui temos a descrição de como surge e desfrutamos do sentimento da beleza. Mas de acordo com o filósofo, para ser despertado o sublime necessita de muito maior intensidade. A paisagem de uma montanha com o cume cheio de neve a perfurar as nuvens, a descrição de uma tempestade furiosa ou a apresentação do inferno pelo poeta Milton, causam prazer, ‘mas acompanhado de assombro’ (KANT, 2012, p. 32-33).

Contudo a função do sublime na arte é muito anterior a Burke ou Kant. Inicia-se ao início do pensamento grego e tem seu ápice séculos mais tarde com o célebre tratado Do sublime (Peri Hypsous), de um autor desconhecido, escrito entre os séculos I e III, mas o livro passou à história como sendo da autoria de Longino, O termo ‘sublime’ nesta obra foi assim resumido:

A expressão to hypsos (para cima) sugere a ideia de ‘altura’ ou de ‘movimento para o alto’; a esfera do sublime é da ‘elevação’, uma emoção estética conotada com subida, com transcendência das condições emotivas da experiência comum. Sublime é pathos da alma que se projeta para o alto (CUNINBERTO, p. 332).

Em termos psicanalíticos, a descrição do sublime por Burke evoca palavras utilizadas para descrever a obra de Caravaggio, horror e violência, que se associam com uma ameaça de uma castração que não se consuma. Mas a sobrevivência ao desafio à integridade narcísica ao eu psíquico e físico imaginários, além da parcial cicatrização dessa ferida narcísica, estão entre as fontes do sublime. E o tornam algo além do simples prazer no belo.

Já a comparação de Kant da montanha perfurando as nuvens evoca uma imagem fálica e a penetração, enquanto o perigo de uma tempestade furiosa ou das punições do inferno remetem ao risco de castração. E o resumo das ideias do tratado Do Sublime amplia essa comparação, evoca a metáfora de uma ‘ereção’ psíquica como se fosse corporal. E destrói qualquer explicação da sublimação como renuncia pulsional, elevação espiritual ou caminho para um mundo suprassensível.

A experiência do sublime pode ser interpretada como meio de a violência e terror serem submetidos e sublimados pelo gozo estético. A imago de Medusa decapitada refletida no escudo de Perseu também pode representar a vida sobrepujando a morte na construção da obra de arte. Seja na fonte originária do gozo estético: a revivência do momento mítico do júbilo do bebê diante do espelho. Seja na importância do objeto a da pulsão invocante e sua vertente escópica no olhar e no quadro. Seja na construção do objeto estético como um aquário que se utiliza da pulsão de morte em função da de vida.

A vida de Caravaggio e sua criação estética demonstram como a sublimação pode muito, mas não tudo. Apesar de seu invencível desejo em pintar todo o tempo, mesmo nas mais difíceis fugas e circunstâncias, um excedente de violência e horror excedia sua arte. Apesar de sua atração pelas brigas em criar inimigos e a incapacidade de refletir contra a impulsividade e violência de muitos de seus atos, para onde fosse jamais lhe faltaram amigos e mecenas. Deve ter sido uma pessoa fascinante. É fácil reduzir tudo a uma simplificação psicanalítica tal como justificar seu comportamento por ‘cisão do eu’. O oposto pode ser feito. Caravaggio viveu e morreu em completa harmonia com sua obra7.

O sublime conjuga beleza com horror. A palavra latina fascinum significa ‘malefício’, ‘mau olhado’, mas também ‘membro viril’. Fascinum para Freud e Lacan tanto é o mau-olhado que mata a vida, quanto a junção do imaginário com o simbólico, lócus do amor, do ímpeto, arroubo, movimento para frente. Os opostos conjugados na descrição de Freud de que a petrificação pelo olhar também simboliza ereção. A arte de Caravaggio levou ao ápice a imago da cabeça de Medusa, originária do início da Antiguidade até ser várias vezes usada por Freud e Lacan no século XX. A transformação da Medusa espelhada no escudo de Perseu, um símbolo de castração, em uma arma contra a castração, Eros sobrepujando Tânatos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: anchyses@terra.com.br
Página: http://www.anchyses.pro.br

Recebido em: 16/05/2018
Aprovado em: 26/05/2019

 

 

SOBRE O AUTOR

Anchyses Jobim Lopes
Médico e bacharel em filosofia pela UFRJ.
Mestre em medicina (psiquiatria) e em filosofia pela UFRJ.
Doutor em filosofia pela UFRJ.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Professor do curso de formação psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ.
Supervisor clínico do Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) do CBP-RJ.
Coordenador do Grupo de Trabalho Sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.
Ex-professor assistente do quadro principal do Departamento de Psicologia da PUC-RJ.
Ex-professor adjunto da Faculdade de Educação da UCP.
Professor titular III dos cursos de graduação em psicologia e de especialização em teoria e clínica psicanalítica da UNESA.

 

 

1 Agradeço à psicanalista Kátia Flôres Pinheiro pela cuidadosa leitura e pelas correções e sugestões.
2 Castelo na fronteira entre Bolonha e Florença.
3 No original aux Offices, que em italiano é Uffizi e usualmente assim designado em português.
4 O livro de Schütze apresenta um total de 112 quadros, classificando com um mesmo número quadros em que há várias cópias, autênticas ou não, do mesmo quadro ou versão do tema, assim como coloca com o mesmo número os quatro quadros sobre a vida de São Mateus da capela Contarelli.
5 Agradeço ao psicanalista Michell Alves de Mello a cuidadosa leitura e este acréscimo ao paralelo entre filosofia e psicanálise.
6 Sobre música, pulsão invocante e referências à obra do psicanalista francês Alain Didier-Weil sobre o tema, indicamos dois trabalhos nossos: LOPES, A. J. Afinal o que quer a música, Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 29, p. 73-82, set. 2006; LOPES, A. J. Dos gritinhos da bebê ao canto do fort-da (psicanálise e música 2), Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 39, p. 15-28, jul. 2013. Sobre a pulsão invocante e a construção do eu corporal, a terceira parte do trabalho: Transexualidades: desafio à psicanálise do século XXI, Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 48, p. 17-126, dez. 2017.
7 A discussão sobre as práticas sexuais de Caravaggio, ignoradas nos poucos dados biográficos da época, além retroagir o diagnóstico hoje abolido de homossexualidade do século XIX ao XVI, foi usada em artigos que manipularam a teoria psicanalítica para condenar o pintor como ‘perverso’ sexual e social, usando a imprecisão popular e o uso moralista do termo, deixando de lado ou desqualificando sua obra sem qualquer análise mais profunda.

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