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Estudos de Psicanálise
versión impresa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.51 Belo Horizonte jan./jun. 2019
PSICANÁLISE E CONTEMPORANEIDADE
Tristes Gerais: barragens do medo e do desamparo1
Tristes Gerais: dams of fear and abandonment
Otacílio José Ribeiro
I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Diante de um cenário de destruição e morte, num choque de real e realidade, este artigo tem como objetivo pensar de forma macro sobre o impacto sofrido pelos sobreviventes em sua subjetividade, refletindo sobre o seu medo e o seu desamparo. O afeto medo é inerente ao psiquismo, e o desamparo pode favorecer a abertura para as relações sociais. Mas, em que medida a desarticulação do afeto medo do de desamparo torna possível uma ação política emancipatória, reconhecendo os indivíduos como sujeitos de direito e de pertencimento a uma comunidade? Toma-se aqui o conceito de desamparo baseado em Freud [1895(1994)] no Projeto para uma psicologia científica, apresentado como a primeira experiência de frustração. No primeiro encontro com o Outro, o sujeito é jogado à própria sorte, marcando, desde então, o registro psíquico de todas as experiências morais; com esta saída, inaugura-se a vivência da subjetividade e da condição humana.
Palavras-chave: Medo e desamparo, Sujeito político, Ética da psicanálise.
ABSTRACT
Faced with a scenario of destruction and death, in a clash of reality and reality, this article aims to think in a macro way about the impact suffered by the survivors on their subjectivity, reflecting on their fear and their abandonment. Fear affection is inherent in the psyche and abandonment may favor openness to social relations. However, to what extent does the disarticulation of fear of abandonment make possible an emancipatory political action. One that recognizes individuals as subjects of law and belonging to a community? Here we take the concept of abandonment based on Freud ([1895] 1994) in the ‘Project for a scientific psychology’, presented as the first experience of frustration. In the first encounter with the Other, the subject is thrown to his own devices, marking, since then, the psychic record of all moral experiences; with this exit, the experience of subjectivity and the human condition is inaugurated.
Keywords: Fear and abandonment, Political subject, Ethics of psychoanalysis.
Introdução
Tristes Gerais representa um local cujo nome aglutina tantos outros cuja população sofre com a inação diante do cenário de destruição e morte decorrente dos desastres socioambientais e culturais – aqui privilegiado – ou mesmo vandalismo, motins, guerrilhas e guerras, entre outras tragédias afins. Cada lugar tem sua vocação econômica e cultural, e seus munícipes tendem a estabelecer uma relação saudável com o espaço e com as riquezas naturais e artísticas ali produzidas. Agora, imagine que, diante de um cenário tão familiar, de repente, irrompe o súbito, o inesperado, o estranho. Tristes Gerais é invadida por outras cidades invisíveis, que cobram seu espaço natural, escancarando a calamidade, a dor e a morte. Entre o familiar e o estranho, a arca de Deus anuncia o dilúvio e instauram-se a tragédia, o medo e o desamparo. O medo se materializa na revolução abrupta invadindo a natureza, destruindo as moradias e o habitat, fazendo perder a força de trabalho, impactando a cultura. Num átimo de segundo a realidade se apresenta estranha e indefinida.2
Diante do choque de real referenciado, este texto, tem como objetivo pensar de forma macro sobre o impacto sofrido pela população em sua subjetividade, refletindo sobre o medo de seus integrantes. Medo e desamparo são inerentes ao sinistro. Contudo, vale lembrar que o medo paralisa e o desamparo pode impulsionar para abertura das relações sociais. Mas em que medida a desarticulação do afeto medo do desamparo torna possível uma ação política emancipatória, reconhecendo os indivíduos como sujeitos de direito e de pertencimento a uma comunidade? Toma-se aqui o conceito de desamparo baseado em Freud [1895 (1994)] no Projeto para uma psicologia científica, apresentado como a primeira experiência de frustração, fonte primordial de todos os motivos morais. No primeiro encontro com o Outro, para Lacan ([1959-1960] 1997), o sujeito é jogado à própria sorte, marcando, desde então, o registro psíquico de todas as experiências morais; com esta saída, inaugura-se a vivência da subjetividade e da condição humana.
Entre o estranho e o indefinido
Nas reminiscências e nos escombros de um sinistro, um quadro na parede encoberta de lama revela um cenário apocalíptico, com o universo e a vida destruídos. Naquelas paragens, Tristes Gerais parece que nunca havia sido uma cidade. “A gente vai ter que ter uma história. Sem história, o que você vai contar para o seu filho”? Pode-se ouvir aqui e acolá, de uma ou outra forma o lamento de dor. A visão é triste e avassaladora. O olhar dos sobreviventes revela angústia e aflição. No meio da comoção e da depressão, os moradores se veem às voltas com o padecimento da familiaridade e da memória afetiva. Perderam o registro histórico, fotografias e imagens findas, soterradas em lama. Ficaram o desespero e o abandono, sem uma história para contar. Quem não tem memória vive no frágil tempo presente, sem referências.
O universo destruído impacta o vínculo com as pessoas. Passam a viver outro mundo, um verdadeiro inferno. Só o medo diante da tragédia ou do crime ambiental. “Onde estão nossos empregos, nossas vidas?” O brado é retumbante. O pior está naquilo que não se vê. O controle está em cheque, obnubilado por um quadro de aflição e ansiedade, por não se poder chegar aos locais.
No meio aos escombros materiais e morais, levantam-se as vozes de descrição e acusação. A exploração ambiental, o cuidado com a vida, as responsabilidades... Onde estão os criminosos? Naqueles locais, tudo era tão familiar, que olhares de estranhamento, estrangeiros e inaugurais não eram levados em consideração. Fazia-se uma aposta no acaso. Risco e perigo não eram considerados. Embora traga em si a possibilidade e a virtualidade não se levou em consideração a palavra “risco”. E, diante da desordem natural, ficaram as desordens pessoais, sociais e psíquicas.
De Tuam (2005, p. 327), pode-se inferir que diante da vulnerabilidade humana, o controle é uma defesa. O risco representa variáveis que podem ser avaliadas e controladas. Daí, a necessidade de estabelecimento de círculos fechados e seguros ao redor de tudo aquilo que está sob risco, em particular, acima de tudo, as vidas. Há que ter controle de tudo aquilo que é estranho e indefinido e que está além da compreensão.
O horror é o descobrimento repentino de traição e morte no mais sagrado recôndito de nossa alma, continua Tuam (2005, p. 329, 330). O medo da traição e da armadilha do mal vai além dessas experiências históricas. Na ambiguidade, o desejo de autodestruição está no mais intimo de nosso ser. Na ânsia de viver e crescer, paradoxalmente, nós nos deparamos com a pulsão de vida e a pulsão de morte.
O rompimento das barreiras, a inundação e o soterramento tolhe a população, fomentando sonhos de angústia. “O que foi feito da minha casa, do meu trabalho, dos meus familiares... O que foi feito da minha vida”? A convivência com os fantasmas mantém os sobreviventes na inércia, estupefatos diante do paredão da necessidade e do medo. A fantasia da existência e da morte propõe delírios que influenciam as possibilidades das ações. “Voltar para a cidade vai ser bom, mas vai ser triste, porque está faltando alguém” – fala um munícipe. Presenciam-se confusão de línguas e constrangimentos dentro da cidade, em discursos de ódio e até de discriminação e de preconceito entre os próprios moradores, não obstante os gestos de acolhimento e solidariedade.
Diante do choque de real, a pulsão de vida pode nos levar a sublimar, na tentativa de buscar possibilidades de narrativa de uma nova história. Para além da leniência criminosa ou do ser ou não ser um desastre ambiental, há que investir em uma cultura de segurança, aprendendo com as lições das catástrofes. Como no inconsciente, na natureza, o que foi recalcado retorna e emerge advindo da própria força repressora. É preciso ajudar a comunidade a superar o trauma e (re)definir a vida. Esse desafio ético passa pela construção e pelo fortalecimento de vínculos sociais para dar conta do medo, investindo no desamparo como um afeto fundamental da construção de novos laços, dentro de uma perspectiva formadora, como potência de emergência na construção da esperança, mudando o caráter e a frequência do temor, conforme nos mostra Tuam (2005, p. 91). O conceito de “potência de emergência” é mostrado em Safatle (2016), também em Freud [(1927), 1996], O homem Moisés e a religião monoteísta, bem como na Psicologia das massas (1921), pode-se encontrar sustentação para o conceito.
Fazendo picadas, abrindo caminhos
Em meio ao desalinho dos fatos e diante da eloquência e da expressividade pautadas, três falas nos chamam a atenção em Tristes Gerais: (1) “Livrai-nos do mal, amém”; (2) “Todo dia é um dia especial, é dia de comemorar”; e (3) “O aprendizado do poder público – que lições podem ser tiradas de [...]”. A primeira nos remete ao divino, ao transcendente como forma de reconhecimento da fragilidade e incompletude humana, na crença de um ser superior a quem se pode recorrer em busca de proteção e de amparo no caso de alguma vicissitude. A segunda frase comunica o júbilo e a celebração da vida e, por último, numa dimensão política, está o (des)acreditar no poder público constituído como forma de que, no trato da coisa pública, possam ser garantidos os direitos dos diferentes atores sociais. Diante dessas dimensões, não se pode desconsiderar, a ordem subjetiva da questão, em particular o desamparo, levando-nos a perguntar: “O que a psicanálise tem a ver com Isso?” São questões disjuntas e imbricadas, que merecem nossa atenção, que orientam as dimensões culturais, psíquicas, políticas e biológicas, que permitem ao indivíduo traçar redes de interação baseadas no lugar, favorecendo a sua identificação com o mesmo.
Os seres humanos são frágeis e sua permanência na terra está sujeita ao acaso e ao descuido. A contingência propõe que a qualquer momento nosso modo de viver pode ser alterado devido a algo inesperado e horrível, numa coincidência fortuita de acontecimentos. Aprender a viver na incerteza das estatísticas pode nos colocar diante do desespero ao enfrentar o estranho e natural medo da morte. Talvez, aí, o porquê da religião, nossas crenças e/ou ceticismo.
Com base em Freud [1927 (1996)], Ceccarelli e Franco (2014, p. 81) ensinam que a ilusão sempre será necessária para acolher nosso desamparo constitutivo:
A crença, a ilusão, a realização de desejos estão implicados na maioria das vezes em nossas escolhas e nossas opções de vida.
Ilusão ou não, a busca de um pai protetor é recurso de fé na dimensão do desamparo. Assim, dentro da vulnerabilidade, quando os meios de comunicação mostram uma mulher prenha nos espaços de Tristes Gerais, nosso imaginário pode evocar Moisés, aquele que foi tirado das águas, apostando na gravidez como continuidade da vida saindo da lama. É o júbilo, a celebração da vida. No quadro de insegurança, pinta-se a reconstrução da vida comunitária, aconchegando vizinhos à igreja e às festas, favorecendo os traços de uma nova cultura, de novas relações. Reconstruir o modo de vida é o desafio de cada um daqueles que passaram pela tragédia.
Essa reconstrução passa por ideais coletivos. Evidentemente, há que pensar e requalificar a tecnologia, com protocolos de segurança e resolução de crise. O corpo técnico e de inteligência das corporações precisa estar atento às possíveis falhas sistêmicas, no tempo certo. A natureza externa precisa conviver com a natureza humana, investindo no resguardo e seguridade, evitando-se a atualização em uma nova catástrofe ambiental. Assim, há que perguntar o que a sinistra experiência pode nos ensinar. A pulsão de vida pode nos levar a sublimar, buscando-se possibilidades de narrativa de uma nova história, ressignificando os medos e desafios, investindo em educação, ajudando a comunidade a superar o trauma e definir a vida.
O investimento em novos vínculos e laços alude para o fato da complexidade da articulação do “sujeito político”, conceito que tomamos de Safatle (2016). Na medida em que nada escapa ao real, a experiência psicanalítica se vê às voltas com a ética, com a ética da psicanálise. Consciente ou inconscientemente, o sujeito ‘entre-tece’ desejo e linguagem fazendo cultura. Brousse (2003), recortando do Seminário 14: a lógica da fantasia (LACAN, 1966-1967) vai dizer que “o inconsciente é a política”, pois ele está na pólis, ele é a política. O golpe na identidade e na subjetividade nas vítimas da exploração capitalista das mineradoras propõe como exercício de pensamento articular uma resposta à sociedade com uma severa disciplina para não deixar adulterar o sentido inconsciente da ética da psicanálise sustentada na singularidade, no desejo e na falta. Esse é o desafio.
Referências
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BASTOS, C.; FERREIRA, B. Os relatos de medo, dor e surpresa em Brumadinho. O Globo. 25 jan. 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/os-relatos-de-medo-dor-surpresa-em-brumadinho-23404274>. Acesso em: 28 jan. 2019. [ Links ]
BROUSSE, M.-H. O inconsciente é a política. Seminário Internacional. Organização: Carmen Sílvia Cervelatti. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2003. [ Links ]
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Endereço para correspondência
E-mail: jota@larnet.com.br
Recebido em: 03/05/2019
Aprovado em: 12/06/2018
SOBRE O AUTOR
Otacílio José Ribeiro
Psicanalista.
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Mestre em engenharia de produção - mídia e conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Especialista em gestão escolar pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Especialista em educação pelo Instituto de Educação de Minas Gerais (IEMG).
Especialista em psicopedagogia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Belo Horizonte.
Licenciado em Matemática.
1 Agradecimento a Felipe Vieira, pela interlocução inicial mote do presente trabalho.
2 Freud [1919 (1994)], na terceira parte de seu texto O estranho, vai discorrer sobre a possibilidade de ser verdade que o estranho [unheimliche] seja algo secretamente familiar [heimlich-heimlich]. Tuan (2005, p. 338) fala de uma inquietação face à construção de um mundo artificial (as cidades), à custa do ambiente natural. Un(heimliche) gera sentimentos de inquietação. À guisa do “estranho” e do “familiar”, ressalta-se que o desconhecido é diferente de risco; este último pode ser mensurável, previsível, possui ares familiares. Quer parecer que os agentes mineradores negligenciaram com a teoria dos riscos, em seu aspecto objetivo, ou seja, com a probabilidade de perigo gerando ameaça física para o homem e/ou para o meio ambiente.