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Estudos de Psicanálise

versión impresa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.51 Belo Horizonte jan./jun. 2019

 

PSICANÁLISE E CONTEMPORANEIDADE

 

Retórica de ódio, cultura e pulsões1

 

Rhetoric of hate, culture and drives

 

 

Vivianne Guimarães Fulber

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto aponta a intensidade da retórica de ódio manifestada atualmente nas sociedades em geral e, em particular, na sociedade brasileira, e busca compreender esse fenômeno pelas lentes da cultura, enquanto processo civilizatório e pelas lentes de alguns escritos de Freud, principalmente dos que tratam das pulsões. A partir da constatação de um discurso de ódio que perpassa as relações sociais, o artigo aborda as relações sádicas e de poder que estruturam a base da sociedade brasileira, baseada em uma herança escravocrata e, portanto, eminentemente racista e preconceituosa. Essa concepção é referenciada a partir do conceito de Freud (1930) de um supereu como inscrição mnemônica transgeracional e pela constatação de que a agressividade e a crueldade são inerentes ao gênero humano, conforme os escritos de O mal-estar na civilização (1930). Além disso, explora os conceitos de pulsão de morte, sadismo e masoquismo para entender a agressividade direcionada ao outro. Utiliza-se da premissa do ódio primordial inconsciente, inscrito na formação do ser como origem da tendência do homem para a destruição, a crueldade, a maldade. E por fim, investiga a possibilidade de a retórica de ódio ser a resposta de uma sociedade que desaprendeu a simbolizar, utilizando como defesa uma regressão arcaica, a passagem direta da pulsão destrutiva ao ato.

Palavras-chave: Retórica de ódio, Cultura, Sadismo, Relações Sociais no Brasil


ABSTRACT

This paper points out the intensity of the language of hatred currently expressed in societies as a whole, particularly in Brazilian society, and seek to understand this phenomenon by using the lens of culture, as a civilization process, and by using the views expressed in Freud’s writings, primarily those regarding the drives. Taking into account the hatred language that overruns the social relationships this paper focuses on sadistic and power relations which form the structure of Brazilian society, based on an inheritance of slave history and therefore highly racist and judgmental. This concept is referenced from Freud’s theory of a superego as a transgenerational mnemic trace and from the realization that aggression and cruelty are actually inherent human qualities, according the writings in Malaise in Civilization (1930). It explores the death drive, the sadism and masochism concepts to understand the aggression towards others. It is based on the assumption of the unconscious primordial hate, coded on the human being formation as the origin of man’s tendency to destruction, cruelty and evil. Finally, it explores the rhetoric of hatred as a probable reply of a society who has unlearned how to symbolize and defends itself with old regression, the straight-through from the destruction drive to action.

Keywords: Rhetoric of hatred, Culture, Sadism, Brazil social relationships.


 

A tradição conservadora no Brasil
sempre se tem sustentado do sadismo do mando,
disfarçado em “princípio de autoridade”
ou “defesa da ordem

GILBERTO FREYRE, 2013, p. 114).

As paixões movidas por instintos (pulsões)
são mais fortes que os interesses ditados pela razão

(FREUD, [1930] 2010, p. 78).

 

Estamos todos perplexos ou pelo menos deveríamos estar com a intensidade com que uma retórica de ódio vem atingindo as relações sociais no Brasil e no mundo. Manifestações violentas e cruéis publicadas nas diversas formas contra imigrantes, contra povos, contra religiões, contra gêneros, contra ideias. Caracterizam-se, muitas vezes, por discursos de ódio contra uma minoria (aqui no sentido das relações sociais e de poder e não exclusivamente referindo-se à quantidade).

A partir do advento da internet, outra forma de relação social passou a ser usada para externalizar ódio. O uso da internet talvez seja a moderna ferramenta para canalizar toda a pulsão agressiva que sempre esteve presente nas relações humanas. As redes sociais tornaram-se ‘bolhas’ reverberando discursos agressivos e incentivando as mais absurdas atitudes violentas.2

Fóruns de discussão funcionam, afirmam pesquisadores como “câmaras de eco”, em que as opiniões potencializam um pensamento único. Espaços com o propósito original de ajudar as pessoas com diferentes afecções (ansiedade, solidão, pensamentos suicidas) estimulam e propagam retóricas de ódio contra grupos, posições e ideologias.

Esse fenômeno talvez possa ser explicado pelo que Freud denominou de “narcisismo das pequenas diferenças” ([1930] 2010) em que um grupo de pessoas se reúne em uma comunidade menor (nesse caso, um fórum de discussão ou rede social), e a pulsão agressiva tem uma possibilidade de escape através da hostilização dos que não pertencem ao grupo.

Percebe-se nele uma cômoda e relativamente inócua satisfação de agressividade, através da qual é facilitada a coesão entre os membros da comunidade (FREUD, [1930] 2010, p. 81).

Os laços comuns são reforçados por um amor narcísico, e o ódio é direcionado para o exterior, para o outro, o diferente.

A idealização de uma sociedade constituída de homens originariamente destinados a promover a paz e o amor pode nos levar a estranhamentos frente à retórica de ódio. O texto em tela busca compreender esse fenômeno pelas lentes da cultura, enquanto processo civilizatório e pelas lentes de alguns escritos de Freud, principalmente dos que tratam das pulsões.

Freud em ([1930] 2010) confirma a constatação feita por Hobbes: “O homem é o lobo do homem”. A agressividade e a crueldade são inerentes ao gênero humano.

Apesar de negarmos, a realidade é que o ser humano não é aquela criatura “[...] branda, ávida de amor, que no máximo pode se defender, quando atacado”. Ao contrário, é preciso considerar que está incluso em seus dotes pulsionais um “forte quinhão de agressividade” e a consequência disso é que o outro

[...] não é apenas um colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, torturá-lo e matá-lo (FREUD, [1930] 2010, p. 76).

Nessa concepção, a cultura constituída pela família e pelo Estado deveria amenizar o sofrimento causado pelas relações humanas, mas é justamente seu caráter coercitivo às pulsões que gera mais sofrimento.

No caso do Brasil, país de desigualdade social abissal, com classes sociais bastante distintas forjadas por fenômeno sociocultural e econômico, deparamo-nos atualmente com uma polarização política intensa recheada de discursos de ódio. A sensação é de um país cindido. De modo geral, a retórica de ódio toma conta dos comentários nos sites de jornais que tratam de política, criminalidade, confundindo justiça com vingança, atacando o direito de todos aos direitos humanos como se parte da humanidade não pertencesse à raça humana. Isso tem se manifestado em ações: o Brasil é o país que mais mata LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) no mundo: um a cada 25 horas.3 E a cada 23 minutos um jovem negro morre, conforme levantamento da ONU.4 As taxas de feminicídio crescem assustadoramente no Brasil.5 Os dados de 2017 apontam 1.047 casos de feminicídio. Em 2018 esse número sobe para 1.173. Atualizando os dados deste artigo, somente nos primeiros 20 dias do mês de janeiro de 2019 ocorreram mais 107 casos.

Para entender que Brasil é esse que passou a destilar tanto ódio nas redes, é preciso desmitificar a ideia de um país pacífico e cordato e desconstruir a ideologia de “democracia racial”.

Em oposição a isso, Darcy Ribeiro (2005, p. 19) escreveu:

[...] surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravo.

E nessa formação,

Como se fosse um verdadeiro nó nacional, a violência está encravada na mais remota história do Brasil, [...] Fruto da nossa herança escravocrata, a trama dessa violência é comum a toda a sociedade, se espalhou pelo território nacional e foi assim naturalizada. A experiência de violência e dor se repõe, resiste e se dispersa na trajetória do Brasil moderno, estilhaçada em milhares de modalidades de manifestação (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 14).

Na concepção do sociólogo Jessé Souza (2017, p. 40), nossa herança escravocrata é a semente dessa sociedade brasileira perversa, desigual e excludente. No Brasil, nossa “[...] forma de família, de economia, de política e de justiça foi toda baseada na escravidão”. No entanto, nossa sociedade compreende a escravidão aqui como algo datado e localizado, isolado, que não teria nos influenciado na construção da Nação.

Essa falácia nos leva a acreditar que as relações de escravidão se deram de forma mais amena em comparação a outros países escravagistas. Tal ideologia é reforçada por uma elite econômica e intelectual que não nos permite conhecer o País e seus conflitos reais facilitando, dessa forma, todo tipo de “[...] privilégio escravista ainda que sob condições modernas” (SOUZA, 2017, p. 40).

Gilberto Freyre irá destacar em Casa-grande e senzala como característica da formação da sociedade brasileira, as relações sádicas entre senhor e escravos e a forma como se constituiu a família patriarcal da época. O “familismo patriarcal rural brasileiro”, na denominação de Jessé Souza, formado pelo senhor do engenho, esposa, filhos legítimos e alguns ilegítimos, agregados, escravos domésticos, mães-pretas alforriadas, mucamas, moleques de estimação, escravos e toda uma corte já aí com papéis bem definidos, desenha o esboço das futuras classes sociais brasileiras (as origens de parte da classe média aqui formada por antigos agregados e capataz de fazendas, explica de certa forma a disposição do oprimido em defender o discurso do opressor).

A verdade, porém, é que nós é que fomos os sadistas; o elemento ativo na corrupção da vida de família; e moleques e mulatas o elemento passivo... Exprimiu-se nessas relações o espírito do sistema econômico que nos dividiu, como um deus poderoso, em senhores e escravos. Dele se deriva toda a exagerada tendência para o sadismo característica do brasileiro, nascido e criado em casa-grande, principalmente em engenho; e a que insistentemente temos aludido neste ensaio. Imagine-se um país com os meninos armados de faca de ponta! Pois assim era o Brasil do tempo da escravidão (FREYRE, 2013, p. 462).

As relações sádicas e de poder marcadas no início da construção da sociedade brasileira (do chefe patriarcal sobre a mulher e a família estendida), da mulher com a mucama, do filho do patrão com o moleque desvela um superego no sentido em que Freud fala de uma “inscrição mnemônica transgeracional”,6 que vai constituir o exercício do mandonismo, que evolui, passando de geração em geração, que passa da casa para o espaço público, nas relações de trabalho, nas relações do mais forte contra o mais fraco, contra o diferente (mulher, negro, homossexual). É o “sadismo transformado em mandonismo”, conforme Freyre irá analisar em Sobrados e mucambos (SOUZA, 2017, p. 54).

Transforma-se o sadismo do menino e do adolescente no gosto de mandar dar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar brigar na sua presença capoeiras, galos e canários – tantas vezes manifestado pelo senhor do engenho quando homem feito; no gosto do mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública, ou no simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho (FREYRE, 2013, p. 114)

É relevante mencionar que a abolição dos escravos se deu há apenas 130 anos no Brasil, fato que reforça a tese de um superego sádico, dominador e obviamente racista, transmitido de uma geração para outra. Essa hipótese pode explicar em parte, as origens da retórica agressiva e desejo de destruição do outro, manifestada em uma parcela da sociedade brasileira por ocasião de uma crise política aguda.

Em Os instintos e seus destinos, Freud ([1915] 2016) afirma que todo ser humano é constituído de uma força pulsional constante em que não há possibilidade de fuga, pois é interna. Como força constante, a pulsão estaria sempre em busca de uma satisfação (meta), que será atingida através de um objeto variável (meio), podendo ser exterior ou parte do próprio corpo, e a pulsão será determinada por uma fonte localizada em um organismo ou em uma parte do corpo.

Em O inconsciente ([1915] 2010), Freud evidencia a natureza da pulsão, afirmando que ela não se constitui por si só na consciência, tampouco no inconsciente. Desse modo, seu registro no psiquismo se exprime pela ideia (Vorstellung) e pelo afeto (Affekt), que é o representante ideativo (da coisa) o que constitui o conteúdo do inconsciente e o afeto a quantidade de energia pulsional. Considerando que o objetivo da pulsão é sempre a satisfação, a censura não vai deixar que ela se apresente pura, portanto seus diferentes destinos têm o papel de defesa do Eu. Todo sujeito irá vivenciar em seu desenvolvimento psíquico mecanismos diferentes de transformação dessa pulsão, que levarão em causa ora o objetivo (atividade-passividade), ora o objeto (do outro eu para o próprio eu), ora a transformação do conteúdo da pulsão (amor em ódio). Constituem-se em pares opostos (sadismo-masoquismo; voyeurismo-exibicionismo, amor-ódio) que irão alternar e coexistir por toda a vida do sujeito, a que Freud designa por ambivalência (sobretudo no amor e ódio, sadismo-masoquismo).

Na primeira, temos a transformação do objetivo ativo (olhar, torturar) para o objetivo passivo (ser olhado, ser torturado), ao passo que na mudança de conteúdo temos a transformação do amor em ódio (ambos ativos) (GARCIA-ROZA, 2017, p. 129).

No caso do amor, este admitiria três opostos: (1) amar/odiar - indiferença; (2) amar-ser amado; (3) amar-odiar. E essas três formas nos remeteriam a três polaridades: (1) sujeito (Eu) - objeto (mundo externo); (2) prazer-desprazer; (3) ativo-passivo, e “essas três polaridades articulam-se entre si e são responsáveis pelas vicissitudes da pulsão” (GARCIA-ROZA, 2017, p. 130), portanto presentes na constituição psíquica do sujeito.

Para Freud, na relação com o objeto, o ódio seria mais antigo do que o amor e surge da primordial rejeição do mundo externo dispensador de estímulos, por parte de um Eu narcísico primário. O Eu, nesse momento é o objeto de investimento das pulsões. Se “[...] o Ego (Eu) ama apenas a si próprio e encontra em si próprio sua fonte de prazer” (GARCIA-ROZA, 2017, p. 130), o exterior lhe é indiferente. Nessa etapa, a criança vive um estado de desamparo em que se sente impotente para pôr fim à tensão interna resultante da demanda da satisfação de suas necessidades (fome, sede). Essa tensão interna comandada pelas pulsões de autoconservação não pode ser suprimida por uma ‘ação específica’ da criança e, para isso, depende do objeto externo (função materna para lhe fornecer alimento). E é justamente a necessidade de atendimento dessa demanda e a tensão gerada pela impotência desse Eu autoerótico que vai gerar o desprazer; então, o que era indiferença passa a ser odiado. “O exterior, o objeto, o odiado seriam sempre idênticos no início” (FREUD, [1915] 2016, p. 76).

O que está em jogo é o instinto de preservação desse Eu; a criança registra a experiência de satisfação dessa necessidade atendida. A privação, o desprazer sentido a partir do estímulo externo, a reação a esse desconforto vai se traduzir em ódio. Logo em seguida, o amparo trazido pelo objeto vai trazer o prazer, enfim, o amor. Esse é o ódio primordial, inconsciente, para sempre registrado na formação do ser; na concepção de Freud, origem da tendência do homem para a destruição, a crueldade, a maldade. Parte do objeto é incorporado a esse Eu ampliado; por outro lado,

Ele segregou uma parte integrante do próprio Eu, que lança ao mundo externo e percebe como inimiga (FREUD, [1915], p. 75).

O Eu vivencia um mecanismo de projeção.

[...] trata-se sempre de rejeitar para fora o que se recusa reconhecer em si ou o que se recusa ser (LAPLANCHE; PONTALIS, 2016, p. 379).

Fica evidente que as relações com o primeiro objeto e as posteriores relações com o ambiente (socializações na família, escola e outras instituições) desenvolvidas durante a constituição psicossocial do indivíduo serão preponderantes para as vicissitudes das pulsões. Até aqui Freud concebia que apenas as pulsões sexuais tinham como energia a libido, e as pulsões do Eu (autoconservação) eram não libidinais.

A partir de 1914, Freud já passa a reconhecer que o Eu é também objeto de investimento libidinal. E nos escritos de 1920, mais precisamente em Além do princípio de prazer, Freud organiza todas as pulsões em um novo dualismo: pulsão de vida (que passa a englobar as pulsões sexuais) e pulsão de morte, ambas agora sob o primado da libido. A pulsão de morte é comandada por uma energia autodestrutiva e de destruição do objeto (externo) “[...] demoníaca” pelo seu caráter de compulsão à repetição e “de caráter irreprimível e regressivo” (LAPLANCHE; PONTALIS, 2016, p. 409), libido de morte que “[...] visa o desprendimento da libido dos objetos [...] e o retorno do ser vivo ao estado inorgânico, tensão zero” (NASIO, 1999, p. 70).

Em contraposição, está a pulsão de vida, que é regida por uma libido de autoconservação e sexual de organização das partes do mundo vivo, cujo objetivo é a ligação libidinal, isto é,

[...] o atamento dos laços entre nosso psiquismo, nosso corpo, os seres e as coisas (NASIO, 1999, p. 70).

A pulsão de vida e a pulsão de morte nunca estão isoladas uma da outra; ao contrário, elas se

[...] fundem em proporções diferentes e muito variadas, tornando-se irreconhecíveis para o nosso julgamento (FREUD, [1930] 2010, p. 86).

A partir da inauguração da segunda tópica, mais precisamente, no texto/artigo O Eu e o Id há um deslocamento da problemática narcísica do Eu, para uma problemática do masoquismo. Na concepção de Freud, o masoquismo deixa de ser uma situação patológica e passa a estruturar a base do Eu.

Na primeira tópica, o sadismo era originário ao masoquismo, ou seja, infligir dor ao objeto externo causava prazer ao Eu, o que opõe uma identificação com o outro. O sujeito tem um prazer masoquista na identificação com o objeto sofredor.

Na chamada “virada dos anos vinte” Freud vai tratar de um masoquismo primário e erógeno

[...] em referência a pulsão de morte, constituído pela parte da pulsão de morte que a libido não pode colocar a serviço da pulsão de destruição nem da pulsão sexual, resultando no sadismo propriamente dito (ROUDINESCO, 1998, p. 682).

A libido entra em ação a fim de amansar a pulsão de morte, utilizando-se de dois movimentos. De um lado, a libido dirige parte da pulsão de morte para o exterior através da musculatura e aqui o sadismo se apresenta a serviço da função sexual.

[...] para fora, para os objetos do mundo exterior. Então ele se chama instinto de destruição, instinto de apoderamento, vontade de poder (FREUD, [1924] 2016, p. 191)

De outro lado, parte dessa pulsão de morte permanece no organismo, estruturada no Eu e no supereu e será a base do masoquismo primário.

A pulsão de vida e a pulsão de morte convivem de forma amalgamada no sujeito, variáveis em suas proporções, com mesmo poder que a sexualidade se manifesta nos comportamentos (sadomasoquismo), nas instâncias (supereu) e nos tipos de relação de objeto (LAPLANCHE; PONTALIS, 2016, p. 206). A pulsão de vida e a pulsão de morte atuam misturadas, numa dialética determinante nas relações que constituem a vida do sujeito.

É importante salientar que Green (2008, p. 98) faz uma distinção entre agressividade e destrutividade. Para o autor, agressividade está ligada

[...] ao sadismo e se vincula aos estádios de evolução da libido: os estádios sádico-anal e sádico-oral, no qual [...] as torturas e os tormentos infligidos ao objeto são uma das expressões do domínio exercido para assegurar o controle absoluto e a dominação sobre ele com um prazer que só tem igual em seus aspectos inversos, no masoquismo.

E aí está a diferença entre a agressividade e a destrutividade. Na agressividade não existe o prazer inconsciente do polo complementar (sadismo-masoquismo); a agressividade do sádico “[...] desfruta inconscientemente do masoquismo de seu objeto por identificação” (GREEN, 2008, p. 98). Já na destrutividade o que prevalece é a dimensão narcísica: o destrutor/destruidor deseja aniquilar o narcisismo do outro. Em outras palavras, trata-se de onipotência mais do que prazer.

A agressividade e o desejo de destruição do outro pode ser entendida como uma manifestação de pulsão de morte, quando essa pulsão de morte buscar aliviar-se no mundo externo (NASIO, 1999, p. 70), um excesso pulsional que não encontra meios de satisfação.

Na concepção de Freud, sadismo e masoquismo constituem a estrutura psíquica de todo sujeito. O equilíbrio e as variações dessas pulsões irá determinar o limite entre patológico e normalidade. Podemos inferir aqui, sem conclusões definitivas, que a retórica de ódio seria a passagem ao ato de pulsão de morte (base do sadismo expulso para o exterior) de uma pulsão que não encontra recursos para representar sua dor. Uma regressão a defesas arcaicas manifestada com toda a sua força. Traços sádicos acentuados estão ligados a um registro e uma fixação na fase sádico-anal. A regressão a esses estágios como defesa arcaica pode ser um caminho para compreender o aumento de agressividades e intolerância nas relações com o outro.

O intuito do breve texto foi buscar na psicanálise e na sociologia possíveis fundamentos para entender o evidente movimento crescente de violência nas relações humanas no Brasil. Já nos referimos aqui no texto à hipótese de que as relações sádicas e de poder entre senhor e escravos, base da formação da sociedade brasileira, deixaram marcas profundas na constituição da nossa sociedade, e essa “inscrição mnemônica transgeracional” de que trata Freud resultou em um supereu sádico e adepto ao ‘mandonismo’ que evoluiu de geração em geração.

Além disso, podemos considerar uma característica extremamente narcísica da sociedade contemporânea, com uma libido voltada para si em detrimento do objeto. Sujeitos constituídos de representações pobres realizam a passagem da pulsão de morte direta ao ato. Sem simbolização, não há recalcamento. Vivemos em uma sociedade que talvez desaprendeu a simbolizar. A pulsão, para ser ‘domesticada’, precisa ser ligada a uma simbolização. Todas essas questões talvez nos deem pistas para compreender em parte os tempos de ódio e agressividade em que estamos vivendo.

Maria Rita Kehl (2017, p. 23) afirma que

[...] a dessublimação de Eros implicou o afrouxamento dos freios às pulsões agressivas. A vida social mais livre, menos constrangida por convenções e preconceitos, tem sido ameaçada – pelo menos nas grandes cidades do Ocidente – por uma escalada de atos classificados na modalidade que Hanna Arendt chamou de “banalidade do mal”.

O desequilíbrio dessa balança leva à doença. Desumanizar o outro é deixar que o impulso de morte prevaleça sobre o impulso de vida.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: vivi.fulber13@gmail.com

Recebido em: 28/05/2019
Aprovado em: 27/06/2019

 

 

SOBRE A AUTORA

Vivianne Guimarães Fulber
Bacharel e licenciada em ciências sociais pela Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS).
Mestre em sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Especialista em psicologia das organizações pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
Membro em formação psicanalítica do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).

 

 

1 Trabalho apresentado na Jornada de Estudos no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul, em 26 maio 2018.
2 Investigações nas redes sociais usadas por Alek Minassian, canadense que atropelou um grupo de pedestres matando dez pessoas em Toronto, trouxeram à tona a ação de um grupo de pessoas que se autodenominam Incels [involuntary celibates ou celibatários involuntários], ou seja, homens que não conseguem ter relações sexuais e amorosas, e culpam as mulheres e os homens sexualmente ativos por isso. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/o-post-de-facebook-que-liga-autor-de-ataque-em-toronto-a-grupo-online-de-celibatarios-involuntarios.ghtml>. Acesso em: 30 abr. 2018.
3 Disponível em: <https://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-lgbts-no-mundo-1-cada-25-horas>. Acesso em: 11 maio 2018.
4 Disponível em: <https://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/a-cada-23-minutos-um-jovem-negro-morre-no-brasil-diz-onu-ao-lancar-campanha-contra-violencia.ghtml>. Acesso em: 11 maio 2018.
5 Disponível em: <http://www.andes.org.br/conteudos/noticia/numero-de-feminicidios-aumenta-em-20191>;
<https://www.geledes.org.br/brasileiras-em-perigo-107-casos-de-feminicidio-em-20-dias-de-2019>. Acesso em: 11 maio 2019.
6 “Freud sublinhou também que o supereu não se constrói segundo o modelo dos pais, mas segundo o que é constituído pelo supereu deles. A transmissão de valores e das tradições perpetua-se, dessa maneira, por intermédio dos supereus, de uma geração para a outra” (ROUDINESCO; PLON, 1997, p. 745).

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