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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo ago. 2016

 

EM PAUTA | CORPO: MISTÉRIO, AMBIGUIDADE

 

Marina Abramović - singular e múltipla

 

Marina Abramović – singular and multiple

 

 

Renato Tardivo

Escritor, psicanalista, professor do Centro Universitário São Camilo e doutor em Psicologia Social pela USP. Autor dos livros de contos Do avesso (Com-Arte/USP), Silente (7Letras) e Girassol voltado para a terra (Ateliê, no prelo), e do ensaio Porvir que vem antes de tudo - literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê/Fapesp)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta reflexão aborda alguns aspectos da obra de Marina Abramović, sobretudo a performance The artist is present. A artista elege o corpo como obra de arte, de modo a levar o espectador a refletir sobre a sua própria condição. A partir de uma perspectiva intimamente relacional, as performances de Abramović habitam o espaço invisível entre artista e espectador.

Palavras-chave: Estética. Performance. Marina Abramović.


SUMMARY

This discussion focuses on aspects of the work of Marina Abramović, especially the performance The artist is present. The artist elects her body as a piece of art in order to take the viewer to reflect on your own condition. From a relational perspective, the performances of Abramović inhabit the invisible space between artist and viewer.

Keywords: Aesthetics. Performance. Marina Abramović.


 

 

A serva Marina Abramović é uma das artistas mais relevantes da atualidade. Ela esteve no Brasil com a exposição Terra comunal, que ficou em cartaz de março a maio de 2015, no Sesc Pompéia, em São Paulo. Além de tomar contato com algumas obras da artista, o público teve a oportunidade de participar de bate-papos e vivências com ela.

Conhecida como a avó da performance, Abramović vem se notabilizando nas últimas décadas ao propor diversas obras cujo continente é o seu próprio corpo. Assim, ao levar as possibilidades corpóreas ao limite - explorando suas relações com outros corpos e com a natureza, e, ainda, desafiando muitas vezes o seu funcionamento -, a artista convoca o espectador a refletir sobre a sua própria condição.

 

Perspectiva relacional

É célebre a proposição de Marcel Duchamp: "São os espectadores que realizam as obras" (citado por Frayze-Pereira, 2010, p.48). Em direção análoga, o historiador da arte Giulio Carlo Argan (1982, citado por Frayze-Pereira, 2010) afirma que "[...] a arte existe para ser percepcionada [...]". E considerando que percebemos muitos objetos que nada têm de artísticos, entendemos que "[...] a percepção orientada para a arte tenta comunicar-nos algo diferente do que nos é comunicado pela percepção normal [...]" (p. 58).

O papel do espectador, nessa perspectiva, é essencial, pois não se limita a assimilar ou acessar elementos contidos na obra, mas participa ativamente da construção de sentido. Essa é, portanto, uma perspectiva relacional, segundo a qual o sentido não se encerra apenas na obra nem apenas no espectador: ele se constrói entre a obra e o espectador.

Marina Abramović potencializa esse efeito ao eleger como tema das performances esse espaço do entre, sobretudo nas obras que criou com o artista e companheiro de vida por 13 anos, Uwe Laysiepen (conhecido como Ulay). Vamos relembrar algumas delas.

Em 1977, o casal expôs Imponderabilia, performance que consistia no seguinte: nus, de frente um para o outro, estáticos e simétricos, os artistas apoiavam-se em colunas de modo a deixar um espaço estreito entre seus corpos (Westcott, 2015). Ao público, cabia passar por esse espaço, inevitavelmente tocando os corpos dos artistas.

Nessa mesma época, eles criaram Light/Dark: frente a frente e sentados sobre os calcanhares, ambos estapeavam a face um do outro, iluminados por duas fontes de luz sobre o fundo escuro em que se encontrava o público - que reagia das mais diferentes formas (Westcott, 2015).

Em Rest energy, performance apresentada em 1980, Abramović segurava um arco, enquanto Ulay tensionava uma flecha apontada para a artista (Westcott, 2015).

Nessas e em outras performances, há, portanto, uma tensão entre os corpos, seja entre os corpos dos artistas, seja entre estes e os espectadores.

Com o fim da parceria com Ulay, Marina dedicou-se às aproximações da performance com o teatro, interpelando ainda mais diretamente o espectador (Westcott, 2015). Célebre, nesse senti-do, é The artist is present, performance de 2010 que se estendeu por mais de 700 horas, ao longo de meses, no MoMA, em Nova York (Akers & Dupre, 2012). Nela, a artista ficava sentada, imóvel, de um lado de uma mesa, e o espectador sentava-se do outro lado, olhando os olhos da artista por tempo indeterminado. No decorrer da performance, Abramović prescindiu da mesa, restando apenas as cadeiras.

Trata-se de uma performance emblemática, uma vez que, mais do que nunca, a artista explorou corpo e mente à exaustão, mas dessa vez imbuída de raro minimalismo: viver em silêncio a troca de olhares com o outro. Com efeito, The artist is present empreende um mergulho radical no espaço intermediário entre artista e público, de modo a questionar essas próprias condições: o espectador é convocado a participar da obra enquanto a artista o contempla.

 

Espaço invisível

Ao convocar o espectador a um mergulho nas faculdades expressivas do corpo, Marina Abramović dialoga com o pensamento de Maurice Merleau-Ponty (2009), filósofo que supera o dualismo entre o sentir e o entender ao propor que o pensamento recue ao seu ponto de partida, isto é, o sensível.

Segundo Merleau-Ponty (2009), nós temos o vício de crer que as coisas são tais quais as vemos (fé-perceptiva). No entanto, se interrogamos a fé-perceptiva, adentramos em uma espécie de armadura invisível, sem a qual o visível não existiria.

Tome-se o caso de um cubo. Se estou diante dele, é o próprio cubo que se deixa ver, embora só pertençam ao meu campo visível algumas de suas arestas. É como se a visão se fizesse no invisível do cubo - uma presença sob a superfície visível. Há, portanto, uma inesgotabilidade de sentidos compreendida neste hiato entre o visível e o invisível, o próximo e o distante, o claro e o obscuro.

Pensemos, ainda com Merleau-Ponty (2009), a experiência que temos do nosso próprio corpo. Ao mesmo tempo que podemos vê-lo, tocá-lo, senti-lo, é o corpo que vê, toca, sente. Corpo que está sempre comigo, e que é visível e invisível para mim. Zona de fronteira entre mundo interno e mundo externo, o corpo, estando dentro e fora, é emblema da ambiguidade.

Consideremos o clássico exemplo de Merleau-Ponty das mãos que se tocam. A esse respeito, escreve Frayze-Pereira:

Entre a mão apalpada e a mão apalpante há um hiato, que não é um vazio, mas o invisível. Entrando a mão em contato com a mão, o tato não está nem em uma nem em outra, mas entre elas; não indo além de uma espécie de iminência, a experiência que tenho de mim mesmo percebendo (tocar-me tocando, ver-me vendo) conclui-se no invisível. (Frayze-Pereira, 2010, pp. 119-120)

O corpo é sensível enquanto sente. Daí o visível só revelar sua significação para um observador corporalmente situado no mundo - que olhe de um ponto de vista, a partir de uma certa distância, ou seja, um observador que coexista com as coisas (Frayze-Pereira, 2010).

Também nas performances de Abramović, o corpo, tocante e tangível, é privilegiado em sua ambiguidade: como no encontro entre as mãos que se tocam (qual toca e qual é tocada?), há uma reversibilidade que jamais se esgota. Este hiato entre nós e as coisas, sujeito e objeto, artista e espectador, é o espaço invisível que preexiste e amadurece em sintonia com o visível. E é a esse lugar que as performances de Marina Abramović nos convocam - porque é dali que partem e para lá que retornam. Não é aleatória a ênfase na sensorialidade em suas obras.

Em The artist is present, a propósito, há uma exaustão que ultrapassa o cansaço físico. Desde Freud (1912/2010), sabemos que somos muitos e que, por isso, convocamos o outro (que também nos convoca) a múltiplos lugares. Transferimos emoções e afetos que dizem respeito à nossa complexa trama histórica.

Assim, em direção contrária à banalização tipicamente contemporânea em que somos muitos e nenhum (Tardivo, 2015), Marina Abramović se expõe à multiplicidade feroz do olhar do outro, de modo que esse outro, refletido no corpo da artista, possa se ver, se sentir, se pensar: singular e múltiplo.

 

REFERÊNCIAS

Akers, M. & Dupre, J. (2012). Marina Abramović: the artist is present. HBO Documentary Films.         [ Links ]

Frayze-Pereira, J. A. (2010). Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise. Cotia: Ateliê Editorial.         [ Links ]

Freud, S. (2010). A dinâmica da transferência. In S. Freud. Obras completas (Vol. 10, pp. 133-146). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1912).         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (2009). O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Tardivo, R. (2015). Cenas em jogo - cinema e literatura, realidade e ficção, estética e psicanálise. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Westcott, J. (2015). Quando Marina Abramović morrer: uma biografia. São Paulo: Edições Sesc-SP.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
RENATO TARDIVO
Rua André Ampére, 153 - cj. 63
04562-080 - São Paulo - SP
tel.: 11 99687-5222
rctardivo@uol.com.br

Recebido 02.05.2016
Aceito 13.06.2016

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