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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo enero/dic. 2019

 

EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO

 

Decifra-me ou te devoro: o conundrum libertário da estética Camp

 

Decipher me or i will devour you: the libertarian conundrum of Camp aesthetics

 

 

Astrid Sampaio Façanha

Jornalista e cítica de moda. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGHEA-USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Artigo sobre a liberdade na moda e no vestuário a partir da estética Camp. Ao desafiar os pressupostos da moda como manifestação tanto de colaboração e coesão quanto de "coação" ou pressão social, Camp se impõe como forma de resistência, a partir da construção de uma subjetividade apoiada nos ornamentos corporais e na exposição conspícua do corpo. Ao exaltar a moda e, ao mesmo tempo, expô-la como "pastiche social" ou "simulacro", para usar terminologias de Jameson e Baudrillard, respectivamente, Camp se revela uma estética conceitual e política. Para discorrer sobre a estética Camp, a pesquisa se apoia tanto no artigo Notes on Camp (1964), da pensadora norte-americana Susan Sontag, como na exposição decorrente do mesmo "Camp: notes on fashion", realizada no museu Metropolitan em 2019. A pesquisa para o presente artigo traz uma articulação teórica sobre Camp a partir de vozes do feminismo, como da própria Sontag e da pesquisadora australiana Robertson. Por outro lado, percebeu-se no Camp um possível território para explorar a relação entre arte e moda, conforme proposta do crítico e curador britânico Townsend.

Palavras-chave: Moda. Arte. Crítica. Subjetividade. Feminismo.


SUMMARY

Article about freedom in fashion and clothing from the point of view of the Camp aesthetic. Challenging the assumptions of fashion as a manifestation of both collaboration and cohesion, as well as "coercion" or social pressure, Camp imposes itself as a form of resistance, based on the construction of a subjectivity, supported by body ornaments and the conspicuous exposure of the body. By extolling fashion while exposing it as "social pastiche" or "simulacrum" to use Jameson and Baudrillard's terminology respectively, Camp reveals a conceptual and political aesthetic, supported both by the essay written by the us thinker Susan Sontag's Notes on Camp (1964) and the resulting exhibition, "Camp: notes on fashion," held at the Metropolitan Museum (2019). The present article dwells on Camp's theoretical articulation from voices of feminism such as Sontag's own and Australian researcher Robertson's, on the other hand, in portraits Camp as a possible territory to explore the relationship between art and fashion, as proposed by British critic and curator Townsend.

Keywords: Fashion. Art. Critique. Subjectivity. Feminism.


 

 

Camp is the psychopathology of affluence.
(Susan Sontag, 1964)

"Menina, amarra direito esse tênis", diz o pai. A menina tinha mania de amarrar o cadarço ao contrário, isto é, em vez de dar o laço pela direita, o fazia pela esquerda, o que podia fazer? Era assim que tinha sentido para ela, apesar de a manobra ter um resultado visual um tanto duvidoso, ambíguo, sem laço e sem nó, uma espécie de amarração frouxa que, por isso mesmo, era divertido e a fazia sorrir por dentro, por mais que soubesse que estava sendo subversiva e transgressora para o mundo exterior.

Demorou muito tempo para descobrir que sempre fora "Camp", afinal nem sabia o que isso significava, até ouvir falar de uma exposição no museu Metropolitan, em Nova York, e decidir se preparar para a experiência lendo o artigo "Notes on Camp" (Anotações sobre o Camp), da socióloga feminista Susan Sontag. A autora descreve o Camp como uma espécie de sensibilidade no sentido de oposição à racionalidade, ainda assim, um tipo de sensibilidade rara, no seu apego irresistível pelo não convencional, pelo artifício, pelo estilizado e pelo exagero. Segundo Sontag, o Camp sempre havia circulado de forma incógnita, como um certo código secreto, raramente mencionado ou teorizado, mas exatamente por isso se manteve um cult, isto é, algo preservado fora do mainstream. Na opinião de Sontag, falar sobre o Camp é quase o mesmo que o trair, apesar de ela própria se sentir muito atraída, ao mesmo tempo que ofendida, pelo que representa, portanto acredita que isso lhe dá uma certa licença poética para discorrer sobre essa sensibilidade.

Sontag admite que não se pode teorizar sobre uma sensibilidade, pois isso a destrói, o que se pode fazer é apenas demonstrar, apresentar seus contornos e talvez tentar mapear sua recorrência na história. Para a autora, qualquer tentativa de inserir a sensibilidade dentro de uma estrutura, sistema de pensamento ou mesmo arriscar atestar sua probabilidade e veracidade, deixa de ser uma sensibilidade para se tornar um conceito engessado. Para discorrer sobre a sensibilidade, como diz Sontag, é melhor fazer anotações aleatórias e com agilidade impulsiva e espontânea, tal como, quem sabe, a fala do inconsciente revelado por um paciente para seu analista. Impossível tentar desesperadamente escrever um artigo linear e argumentativo, pondera a autora, pois a sensibilidade por natureza é fugidia e, se pararmos para pensar sobre, nos escapa. No Camp acontece exatamente isso, torna-se difícil discorrer sobre o fenômeno justamente por causar esse tipo de efeito nas pessoas, em geral: uma espécie de atração, seguida por repulsa, causada talvez por sua característica insólita de transformar tudo o que é sério em frívolo. Sendo assim, Sontag desconfia de que é uma ofensa solene tentar destrinchar o Camp como um tratado.

Quando se refere à sensibilidade do Camp, ela deixa claro que, apesar de se pensar na sensibilidade, geralmente, em termos puramente subjetivos, isto é, com base naquilo que misteriosamente é atraente e sensual e nem sempre tratado no campo da razão, essa não é a atitude correta para lidar com o fenômeno, já que a resposta que causa nas pessoas não é puramente subjetiva nem amparada por subjetividades, pois revela muito pouco sobre o gosto pessoal ou mesmo a ausência de gosto. Em outras palavras, o gosto do Camp não está no olho de quem vê. Sontag percebe o gosto como uma questão antes de mais nada moral, pois, segundo ela, a própria inteligência pode ser uma questão moral, e nem sempre uma pessoa que tem bom gosto visual, argumenta, necessariamente possui um bom paladar ou mesmo demonstra bom gosto nas pessoas por quem se encanta. Portanto, segundo Sontag, gosto não é uma questão sistemática nem à prova de qualquer suspeita. Apesar disso, acredita que há uma espécie de lógica do gosto: aquela regida pela sensibilidade que é subjacente e dá origem à determinados gostos. Sendo assim, é possível dizer que há algo de estético no Camp, uma certa maneira estética de enxergar o mundo, ainda que isso tenha pouco, ou nada, a ver com beleza e elegância.

A exposição "Camp: notes on fashion", organizada pelo museu Metropolitan (maio-setembro, 2019), apesar de atrair um grande público, ser sedutora e divertida, se mostrou um tanto desestabilizadora, sendo quase possível sentir o peso do mal-estar entre os presentes que por ali vagavam, desorientados, incomodados, sem saber exatamente o que sentir e como se expressar, como "ler" a exposição, o que pensar a respeito, muito menos por onde começar e como parar. Organizada pelo Instituto do Costume do met, a intenção, segundo o press release do museu, era justamente mostrar, a partir de 250 objetos entre roupas e acessórios, datando do século XVII até o presente, a exuberância da estética do Camp. O ensaio de Susan Sontag, publicado em 1964, proporcionou um tipo de enquadramento para a exposição como forma de abordar e contextualizar um universo tão disperso e difícil de ser explicado, construído de "ironia, humor, paródia, pastiche, artifício, teatralidade e exagero expressado pela moda", segundo o release. Porém o ensaio tampouco dava conta de lidar com a força do fenômeno na atualidade.

De acordo com as pesquisas de Andrew Bolton, curador-chefe do Costume Institute do met e responsável pela exposição, o termo Camp foi mencionado pela primeira vez por Moliére em Les fourberies de Scapin (As imposturas de Scapin), de 1641, numa conotação teatral. Já para Pamela Robertson, pesquisadora especializada em Film Studies na Universidade de Newcastle, na Austrália, Camp, como adjetivo, esteve presente na modernidade, pelo menos a partir de 1909 e, no seu sentido mas antigo, é descrito como, segundo a autora: "Uma adesão a ações e gestos com ênfase no exagero, uma ostentação prazerosa, porém afetada" (Robertson, 1996, p. 3). Em seu livro Guilty pleasures: feminist Camp from Mae West to Madonna (Prazeres culpados: Camp feminista, de Mae West à Madonna), Robertson argumenta que na maior parte do tempo Camp passou a significar uma espécie de gíria para designar o universo homosexual masculino, porém a tese da pesquisadora consiste justamente em provar que também se aplica ao feminismo. Nas suas próprias pesquisas, encontrou o termo que é citado no livro The world in the evening (O mundo da noite), do norte-americano Christopher Isherwood, publicado em 1945. Nessa obra de ficção, o autor distingue duas formas de Camp: um Camp subalterno, teatral e gay, relacionado a meninos de cabelos descoloridos, vestidos de forma extravagante. Além de um outro tipo de Camp, este mais sério, potencialmente sem gênero, denotando o que é considerado seriamente divertido em termos de artifício e elegância calculada.

Sontag refuta a associação que considera reducionista do Camp ao universo gay ou queer, apesar de admitir que exista algo de andrógino na estética Camp, como nas figuras sinuosas e assexuadas das pinturas pré-rafaelitas e do estilo Art Nouveau e também na beleza enigmática de Greta Garbo, por exemplo. Por outro lado, vai mais longe ao associar a estética do Camp a uma sexualidade sublime, como a virilidade masculina que de tão perfeita se torna afeminada ou, ao contrário, quando o que há de mais belo numa mulher são seus traços fortes, masculinizados. Na realidade, segundo Sontag, o que o Camp tem em comum com a androginia é o sabor pelo exagero das características sexuais binárias e do maneirismo na personalidade e, para ilustrar seu ponto de vista, ela cita atrizes de Hollywood dos anos 1940 e 1950 com jeito meio caricato e afetado, como Jayne Mansfield e Gina Lollobrigida, e, ao mesmo tempo, a virilidade exagerada de Steve Reeves e Victor Mature (Sontag, 1964). As personalidades de temperamento excêntrico e trejeito exacerbado como Bette Davis e Barbara Stanwyck também entram nessa lista, a qual é completada por Robertson com outros nomes de lugares não cinematográfico e musical, como Marlene Dietrich, Dolly Parton, Mae West e Madonna, entre outras. A interpretação das autoras levanta a pertinência da associação do Camp com personalidades principalmente femininas, apesar da identificação lugar-comum com o universo masculino gay, a partir de uma genealogia que remete à esquisitice de Oscar Wilde.

A moda, por sua vez, é relacionada ao universo feminino, mas em geral também é feita por homossexuais, o que traz de volta a exposição organizada pelo met. Entre as peças expostas, constavam algumas das mais icônicas e midiáticas tombadas pelo museu imaginário fashion e documentadas na historicidade do vestuário. A grande maioria proveniente de grandes estilistas e marcas de moda, uma curadoria que incluía de Elsa Schiaparelli a Vivienne Westwood, passando por Comme des Garçons, Viktor and Rolf e Chanel por Karl Lagerfeld. O embaralhamento geográfico e temporal das peças expostas sugeria que o Camp sempre estivera permeado no campo da moda, ou melhor, que a própria moda, na sua essência, sempre foi Camp. Um exemplo da primazia dessa dinâmica é uma peça ostentando a logomarca Gucci, que havia sido apropriada pelo street style de um estilista negro, proveniente do bairro nova-iorquino do Harlem, Dapper Dan, que, por sua vez, foi reapropriada pelo italiano Alessandro Michele, estilista da Gucci. Robertson argumenta que esse embaralhamento vai muito mais longe e subverte o próprio discurso de gênero, assim como o discurso cultural. Sendo assim, libera o estatuto binário macho/ fêmea, cultura superior/ cultura de massa, ocidental/ e os outros, para incluir expressões atravessadas (crossovers) como cross-gender, crossdress e cross-culture, assumindo a possibilidade do role playing como algo plausível, mesmo fora do universo do burlesco, dos travestis e das drag queens.

Sendo assim, é inevitável perceber o Camp como um gênero típico da pós-modernidade, conforme idealizado por Frederic Jameson e Jean Baudrillard, nos seus conceitos de "pastiche" e "simulacro"respectivamente. Para Jameson, o pastiche é uma forma de imitação de um estilo singular, da utilização de uma máscara estilística, uma paródia, sem ser paródia, como explica o autor:

A prática desse mimetismo é neutra, sem as motivações ocultas da paródia, sem o impulso satírico, sem a graça, sem aquele sentimento latente de que existe uma norma, em comparação com a qual aquilo que está sendo imitado é, sobretudo, cômico. (Jameson, 1985, p. 18)

Baudrillard (1991), por sua vez, ao descrever o conceito de simulacro, bem que poderia estar se referindo ao Camp, pois, segundo o autor, trata-se de um produto e uma síntese de modelos combinatórios irradiando um hiperespaço. Como explica Sontag, tudo no Camp é satírico e hiperbólico e costuma vir entre "aspas", portanto não se trata do feminino, a mulher, mas "O Feminino", "A Mulher". Para Robertson, o Camp faz sentido no feminismo ao reforçar o potencial de funcionar como uma forma de paródia do gênero e, com isso, minimizar a hegemonia da visão paternalista e chauvinista. Segundo a autora: "Teorias feministas trabalhando ao longo de uma variedade de disciplinas voltaram-se para a paródia de gênero, como uma ferramenta e meio promissor de iniciar uma mudança nos papéis sexuais e de gênero" (Robertson, 1996, p. 10). O argumento de Robertson encontra ressonância no discurso de Judith Butler, no que a autora feminista se refere como um "problema feminino" (gender trouble) conforme uma configuração histórica condescendente, que considera o problema feminino como uma indisposição natural decorrente do fato de ser mulher e, com isso, reforça a hierarquia de gêneros e a heterossexualidade compulsória (Butler, 1990).

Por outro lado, se o Camp é associado não apenas ao universo feminino e gay, mas também pode ser considerado um fenômeno mais abrangente da pós-modernidade, por que o Metropolitan o apresentou como moda, e não como arte? Ser que não existe arte Camp? Seria, então, impertinente considerar o artista Jeff Koons com sua Cicciolina tão Camp quando o estilista Jeremy Scott e suas irreverentes criações para a marca Moschino? Ou então associar a sensibilidade a qual se referia Sontag, com a Arte Abjeta dos anos 1990, a partir do binômio atração e repulsa de George Bataille? Chris Townsend no seu livro Rapture: art's seduction by fashion since 1970 (Êxtase: a sedução da arte pela moda desde os anos 1970) é categórico ao afirmar que o efeito da moda nas pessoas é um assunto extremamente familiar para artistas feministas contemporâneas, portanto, retomando o conceito de Bataille, não estariam as artistas Cindy Sherman, Jenny Holzer e Orlan, para citar algumas, orbitando nesse universo, sem mencionar o flerte dessas artistas com a moda? Em seu texto crítico sobre a obra To die for, do artista Frank Moore, Townsend discorre justamente sobre a convergência entre moda e arte contemporânea a partir da imagem da icônica modelo Kate Moss, ela própria forte candidata a ser considerada Camp, principalmente no contexto da obra de Moore, em que representa a cabeça decapitada de uma Medusa estilizada que, por sua vez, é o símbolo da marca Versace. Já Gianni Versace, que encomendou To die for, expressão que remete ao desejo inexorável pelo objeto da moda, não viveu para ver a obra terminada e foi substituído por seu simulacro, na figura da irmã Donatella, esta, sim, mais Camp impossível, no seu papel de Versace. Como o Camp continua a ser um enigma, o qual, se não for decifrado, tal como a górgona, ameaça petrificar o olhar do observador, tanto a exposição do met quanto o texto de Sontag recorrem a citações de diversas autorias na tentativa de esclarecer o mistério. Townsend oferece sua própria explicação para o enigma ao considerar que a cabeça de Medusa personificada por Kate Moss revela, por um lado, o prazer efêmero e irresistível proporcionado pela moda, no que diz respeito ao ver e ser visto, e, por outro lado, mostra o quanto a arte é subjugada pelo olhar, por mais que busque se distanciar e transcender da gratificação instantânea e volátil da moda. Portanto, entre as tantas citações oferecidas pelo Metropolitan e por Sontag, talvez a mais apropriada seja a verbalizada por Oscar Wilde: "Deveríamos ser uma obra de arte ou vestir uma". O eterno dandy certamente torceria o nariz se soubesse que sua célebre frase havia sido estampada em uma vulgar caneca vendida na loja do museu como objeto Camp. Já a menina do início da história começou a se perguntar se Camp não seria uma condição hereditária, pois sua própria mãe, refletiu ela, também sempre fora Camp - a prova é que costumava lhe presentear com peças do vestuário irreverentes como um certo tênis colorido bordado com paetês e com cadarços de lurex escorregadio, impossível de serem amarrados. Se isso não é Camp, pensou, então o que é?

 

REFERÊNCIAS

Baudrillard, J. (1991). Simulacros e simulação. Lisboa: Editora Relógio D'água.         [ Links ]

Bolton, A. et. al. (2019). Camp: notes on fashion. Nova York: Metropolitan Museum.         [ Links ]

Butler, J. (1990). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. Nova York: Routledge.         [ Links ]

Jameson, F. (1985). Pós-modernidade e sociedade de consumo. Novos Estudos Cebrap, 12, junho, 16-26.         [ Links ]

Robertson, P. (1996). Guilty pleasures: feminist camp from Mae West to Madonna. Durham: Duke University Press.         [ Links ]

Sontag, S. (2019). Notes on camp. Nova York: Picador.         [ Links ]

Townsend, C. (2002). Rapture: art's seduction by fashion. Nova York: Thames & Hudson.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
ASTRID SAMPAIO FAÇANHA
Rua Bocaina 23/13
05013-030 – São Paulo-SP
tel.: 11 99628.1338
astridfacanha@usp.br

Recebido 11.09.2019
Aceito 14.09.2019

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