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versión impresa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo enero/dic. 2019
RESENHAS
Sobre imponderáveis conquistas: uma leitura das relações
Maria Ângela Favero-Nunes
Psicóloga clínica, doutora em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), docente do Instituto de Estudos Psicanalítico de Ribeirão Preto (IEP) e professora titular da Universidade Paulista (UNIP)
Levisky, David Léo. A vida?... É logo ali. São Paulo: Blucher, 2018, 274 páginas
É recente a construção dentro da psicanálise de dispositivos que abarquem a complexidade do mundo mental entremeada ao emaranhado das vivências familiares. A conjunção de aspectos intrapsíquicos e intersubjetivos tem chamado a atenção mesmo dos mais clássicos psicanalistas. Dr. David Levisky cultiva uma ampla caminhada pelo atendimento de crianças, adolescentes e famílias em sua trajetória profissional. A formação em medicina e história junto à sua profunda experiência de trabalho indo ao encontro do sofrimento mental, o apreço e respeito pela dor do outro tornam bem-vindo o hospitaleiro livro A vida?... É logo ali, publicado em 2018 pela editora Blucher.
Há alguns anos, pude apreciar a leitura do livro Adolescên cia: reflexões psicanalíticas, de Levisky, durante a graduação em psicologia, o que possibilitou uma compreensão ampliada do trabalho com crianças e adolescentes que estavam abrigados. Em seu novo livro, o autor nos convida, em forma de romance, a prestar atenção ao que é importante na vida, ao sonho que podemos sonhar e muitas vezes não sonhamos, àquilo que parece estar longe, no entanto se faz presente e atuante o tempo todo.
Através da consistente experiência emocional do autor, o leitor é levado a descobertas de uma família com uma vida conturbada e atropelada por vários acontecimentos que nos fazem repensar valores. A relação mãe-filha, de Gabriela e Lina, é atravessada por obstáculos e pela ausência de intimidade. Inicialmente, percebe-se um abafamento dos sentimentos de amor das personagens. Ao longo do percurso, a construção do vínculo se encorpa, segue a sintonia de uma música que representa os sentimentos, com constantes acordes baixos e altos, revelando as nuances de uma relação difícil, em uma ligação emocional com as notas. Melanie Klein já esclarecera que a relação da mãe com a filha é permeada por uma série de fantasias inconscientes a respeito do roubo dos objetos internos do corpo da mãe e a consequente angústia de perseguição desenfreada que deixa o bebê em um estado de desespero. Para Lina, o desejo de ser mãe é confrontado com diversos questionamentos e medos da herança que ela pode transmitir aos filhos.
A leitura da história de Lina e Gabriela impulsiona à observação das próprias deficiências. Um menino, filho de Gabriela, irmão mais novo de Lina, nasce com um déficit cognitivo importante. "O bebê começou a ganhar peso, mas suas reações eram lentas, não conseguia fixar a cabeça, não sentava, não acompanhava com o olhar, diferente do que se esperava de uma criança normal", nas palavras de Gabriela. Ele não podia falar por si e marcava a vida das duas mulheres fazendo-as repensar, assim como ao leitor, as prioridades, as convicções e a busca de saídas diante de situações incomensuráveis. Lina desejava entregar um presente carinhosamente preparado para o irmãozinho, mas, quando os pais trouxeram-no para casa, ela: "Apreensiva, cheia de curiosidades, me aproximei do bebê deitado em um cestinho todo colorido. Ao tocar nele, seguraram firme o meu braço, advertindo para ter cuidado".
A maior provação ainda estava por vir e se fez presente no nascimento do outro filho. A esperança de uma nova criança reeditou a colisão com a deficiência, sendo que o segundo menino apresentava características mais severas. Todas essas experiências foram suportadas com muita dificuldade, contrabalanceada com fé nas forças de cada um, com muita pulsão de vida, com objetos bons introjetados suficientemente para reconstruir-se da dor diante do desconhecido. A história familiar parece tão catastrófica, difícil de acreditar. Aos poucos, o leitor percebe-se mergulhado não somente na história de Lina e Gabriela, mas também na ligação que elas puderam estabelecer, no vínculo duramente atingido pelos eventos familiares e conjugais. Ora turbulenta, ora acolhedora, a ligação entre as duas vai se desenhando a cada página. Ambas lutam criativamente para construir um lugar para os meninos no âmbito social e de trabalho e para reconstruir seus próprios projetos de vida. Gabriela assume e se responsabiliza por uma inclusão efetiva dos meninos enquanto sujeitos participantes e ativos de uma comunidade, buscando o desempenho possível para eles, considerando suas limitações, a fim de criar uma atividade remunerada que servisse de sustento financeiro. Lina e Gabriela não se limitam a um assistencialismo, procuram aproveitar as possibilidades dos meninos.
Antes de mostrar certezas e verdades, lança-se luz sobre as trilhas possíveis diante das armadilhas da vida e do luto pelos sonhos não realizados. Vivificado pela experimentação no trabalho de intimidade mental com seus pacientes, Levisky nos leva com singeleza ao encontro de uma dupla nas suas lutas consigo mesmas, na ligação entre as duas e com sua historia tão singular. O intrapsíquico e o intersubjetivo emergem para o leitor sem forçar uma aproximação psicanalítica que está presente, logo ali, o tempo todo, nos meandros da vida das personagens e de suas relações. Ao longo da leitura, surgem situações inusitadas, que se impõem à vida de Lina e Gabriela. As palavras carregadas de emoção são operadas cirurgicamente de maneira delicada e perspicaz, mostrando com clareza essas pessoas e seus mundos internos e os vínculos de família, as amizades e os amores. Começam a se conhecer, o aspecto estrangeiro do outro e de si mesmas pode ser assimilado, suportado, aceito. Um estrangeiro recusado justamente por ser familiar a algo que ainda não se sabe existir por dentro. Lina muitas vezes se sente excluída e em abandono absoluto. Busca entender a deficiência dos irmãos, superar "o medo de vir a ser rejeitada devido às deficiências" dos irmãos. O leitor é levado a conhecer o casal parental, como se percebeu os sonhos e as ideologias que os moviam. Diante das revelações da mãe, Lina apregoa: "Chega por hoje. Tenho muita coisa para digerir".
Destarte, deparamo-nos com uma conversa muito interessante, instigante, que vai surgindo quando o autor fala sensivelmente de cada uma delas. O leitor torna-se um observador, um terceiro que participa dessa história. É aquele que traz companhia para as duas, para quem elas narram fatos e pensamentos, permitindo-se reconhecer através do leitor, desconstruídas por quem lê e olha para elas com sua miopia. É a companhia de Gabriela no olhar para seus filhos. É uma história reveladora que se apresenta e se revela ao leitor, assim como se vê nas ruínas de Pompeia, com a preservação dos contornos dos corpos que nos coloca tão perto daquelas pessoas, todavia marcam o desespero, a tristeza e a dor.
A importância do outro se apresenta em diversos momentos na vida de Lina e Gabriela, amparadas por suas análises. Gabriela tenta integrar seu amor e ódio pela situação de vida em que se encontrava. Emergem sinceridade e honestidade com os afetos, as emoções começam a ser vividas. Ela buscava encontrar recursos e vitalidade em meio à "violência profunda e cruel na alma punitiva". Gabriela e Lina nos mostram a complexidade de equilibrar a intimidade, tanto a compartilhada, daquilo que é dito, quanto a intimidade de saber que existem segredos, os não ditos naquele momento - e talvez em nenhum. Mostram que o importante é construir a confiança, nem tanto contar os fatos.
Gabriela também encontra no grupo da "casa de repouso" um alento que a ajuda a despertar novamente para a vida após uma depressão profunda. Depois, o grupo das famílias que viviam condições como as dela não só representou um amparo, como ajudou a traçar caminhos possíveis para sua família, inclusive para os meninos que tinham muitas limitações, contando o projeto das oficinas abrigadas.
Toda essa história familiar é trazida ao leitor, que fica nutrido de comentários sobre boa música e de algo bom e doce. A crença na vida vai sendo recuperada pelas personagens, que se utilizam de um elemento rico e muito gostoso: o chocolate. Levisky caminha pela história do chocolate, sua origem e produção. Tantos benefícios desse alimento dos deuses, um alimento psíquico! É reconhecido desde como uma bebida sagrada de maias e astecas até na sua composição sob a forma de barras e bombons elegantemente confeitados no século XXI. No Império Asteca, era tão valorizado que cem sementes de cacau compravam um escravo - um amargo sabor da história. O chocolate quente era moda entre a aristocracia francesa, uma "droga" estimulante do bom humor e incentivadora da libido. O amargo chocolate é trazido por Lina como seu preferido, de sabor ímpar, que ao ser saboreado não deixa esquecer as injustiças da vida com as quais é preciso lidar. Enquanto o chocolate altamente processado pode viciar, o bom conquista. Assim como o livro bom também cativa.
Endereço para correspondência:
MARIA ÂNGELA FAVERO-NUNES
Rua Garibaldi, 2052/25
14025-190 - Ribeirão Preto-SP
tels.: 16 3019.0881 / 16 99723.8892
faveroma@hotmail.com
Recebido 22.04.2019
Aceito 11.07.2019