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versión impresa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dic. 2020
RESENHAS
Daniel Dimand Pereira de Azevedo
Membro filiado ao Instituto de Psicanálise Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
Silvia Federici. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (Coletivo Sycorax, trad.). São Paulo: Editora Elefante, 2017, 464 páginas.
Silvia Federici é uma intelectual militante de tradição feminista marxista autônoma. Em Calibã e a bruxa, ela traça uma interessante relação entre o desenvolvimento do capitalismo e a caça às bruxas, no início da Era Moderna, uma perspectiva muito pouco explorada até hoje. Embora não faça referência à psicanálise em seu livro, algumas conexões são bastante sugestivas.
A autora utiliza três marcos conceituais em seu trabalho: o feminista, o foucaultiano e o marxista, aos quais se refere o subtítulo do livro: "mulheres, corpo e acumulação primitiva". Destes, o feminista constitui o marco mais forte e radical.
A partir da crise demográfica e econômica dos séculos XVI e XVII e das políticas de terra e trabalho, ela mostra como começou a ocorrer uma redefinição do papel da mulher na sociedade e na sua relação com os homens. Nesse contexto, a caça às bruxas teve uma influência fundamental na criação de uma mulher relegada à função de reprodutora que culminou na figura da dona de casa em tempo integral no século XIX.
O surgimento do capitalismo esteve diretamente relacionado a essas mudanças, uma vez que exigia criminalizar o controle de natalidade, colocando "o corpo feminino - o útero - a serviço do aumento da população e da acumulação da força de trabalho" (p. 326).
Essas transformações significaram um crescente processo de degradação da mulher e do que a mulher representava como ameaça ao estabelecimento do novo sistema, minando suas capacidades de resistência. "Foi precisamente nas câmaras de tortura e nas fogueiras onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade" (p. 334).
Nem sempre, diz a autora, a mulher ocupou a função de mera reprodutora na sociedade. E só à custa de um prolongado e violento processo de opressão por parte dos homens que grande parte de sua autonomia foi sendo gradualmente reduzida.
Na Idade Média, ela afirma: "as mulheres haviam contado com muitos métodos contraceptivos, que consistiam basicamente em ervas transformadas em poções e 'pessários' (supositórios vaginais) usados para estimular a menstruação, para provocar um aborto ou para criar uma condição de esterilidade" (p. 181). Foram precisamente os crimes ligados à reprodução que começaram a ser mais duramente punidos a partir do mesmo momento em que a caça às bruxas aumentava.
Não se sabe ao certo o número, mas milhares de mulheres foram mortas nesse período sob as mais diversas alegações e de forma brutal, além das torturas e humilhações que sofreram.
O que determinou o fim da caça às bruxas, diz Silvia, foi a própria "aniquilação do 'mundo das bruxas' e a imposição da disciplina social requerida pelo sistema capitalista triunfante" (p. 365). Foi o massacre de todo um universo que se opunha ao desenvolvimento do capitalismo e que a bruxa representava.
"O espectro das bruxas seguiu, de qualquer forma, assombrando a imaginação da classe dominante" (p. 373). Ou seja, as bruxas, enquanto símbolo de oposição ao capitalismo, continuaram ativas, ressuscitando em diversos momentos em que as tensões de classes voltaram a se acentuar.
A caça às bruxas, portanto, no que se refere ao papel da mulher na sociedade e nas relações de gênero que se estabeleceram, deixou marcas profundas, que podem ser sentidas até hoje.
Condiz com a defesa da mulher a atitude da autora de se recusar a descrever a caça às bruxas em termos médicos como um "pânico", uma "loucura", uma "epidemia", conforme muitos estudiosos, quase exclusivamente homens, faziam no passado, "todas caracterizações que tiram a culpa dos caçadores das bruxas e despolitizam seus crimes" (p. 290); ou a adotar como material de seu estudo as confissões das vítimas, redigidas pelos inquisidores, geralmente obtidas sob tortura. Dessa forma, ela afirma, é um problema que "não contamos com o ponto de vista das vítimas" (p. 304).
Por outro lado, é coerente que a caça às bruxas só possa ser entendida da perspectiva dos agressores, considerando que deles partiram as motivações do ataque. Dessa forma, quando Silvia afirma que a figura da bruxa "neste livro situa-se no centro da cena" (p. 23), refere-se muito mais ao que a bruxa representou como antítese de um novo sistema (assim como uma reação a ele) do que às pessoas que se encontravam por trás dessa imagem.
A bruxa, no fim das contas, "era o símbolo vivo do 'mundo ao contrário', uma imagem recorrente na literatura da Idade Média, vinculada a aspirações milenares de subversão da ordem social" (p. 319). Assim, por trás da imagem da bruxa, estavam "as mulheres enquanto mulheres, em particular aquelas das classes inferiores" (p. 333). A caça às bruxas, ela afirma, "foi, portanto, uma guerra contra as mulheres; foi uma tentativa coordenada de degradá-las, de demonizá-las e de destruir seu poder social" (p. 334).
É ao voltarmos a atenção para as forças que se mobilizaram na direção do que culminou numa "campanha de terror contra as mulheres" que nos deparamos com a face mais chocante do ser humano. Nem por isso, embora possa soar contraditório, a caça às bruxas deixou de ocorrer num contexto em que a civilização parecia ter atingido o mais alto grau de desenvolvimento.
Neste "século de gênios" [...] que foi testemunho do triunfo da revolução copernicana, do nascimento da ciência moderna e do desenvolvimento do racionalismo científico, a bruxaria tornou-se um dos temas de debate favoritos das elites intelectuais europeias. (p. 301).
A observação de Silvia sobre a caça às bruxas ter ocorrido em um período de grande desenvolvimento intelectual, por outro lado, deixa de parecer contraditória se levarmos em conta o que Freud afirma em "Considerações atuais sobre a guerra e a morte". Não deveríamos superestimar o homem civilizado uma vez que a psicanálise mostra que "a essência mais profunda do homem consiste em impulsos instintuais de natureza elementar, que são iguais em todos os indivíduos. [...] Esses impulsos instintuais não são bons nem maus em si" (Freud, 1915/2010, p. 163). Nós nos iludimos, portanto, ao acreditar que o homem é capaz de erradicar as suas tendências "más".
Num âmbito mais superficial, porém, era necessário haver todo um arcabouço intelectual para motivar a caça às bruxas. Embora a Igreja Católica tenha contribuído com uma parcela importante desse arcabouço, a autora o define como um bricolage ideológico transitório, desenvolvido para a tarefa que precisava cumprir, comparável ao nazismo. Assim, diversos elementos se uniram para compor a imagem ameaçadora da bruxa, que revelam inequivocamente seu conteúdo misógino e sua estreita relação com aspectos sexuais.
Os elementos sexuais ganhavam uma conotação intensamente negativa no período em que se desenvolveu a caça às bruxas. A valorização das "'forças da razão': a parcimônia, a prudência, o senso de responsabilidade, o autocontrole" que caracterizou os primórdios do desenvolvimento do capitalismo se colocou em forte oposição aos "'baixos instintos do corpo': a lascívia, o ócio, a dissipação sistemática das energias vitais que cada um possui" (p. 241).
O corpo passou a ser identificado com qualquer impedimento ao domínio da razão, [...] sinônimo de fraqueza e irracionalidade (a "mulher em nós", como dizia Hamlet), ou ainda em [sinônimo de] "selvagem" africano, definido puramente por sua função limitadora, isto é, por sua "alteridade" com respeito à razão, e tratado como um agente de subversão interna. (p. 278)
A mulher, nesse processo, foi sendo progressivamente assimilada aos "baixos instintos do corpo" e a esse "outro" que precisava ser dominado.
Se recorrermos à psicanálise, novamente podemos verificar o quanto projeções como essa contribuíram para alimentar o ódio contra as mulheres. E o quanto revelam sobre os medos dos próprios agressores: "supostamente, uma bruxa podia castrar os homens ou deixá-los impotentes, seja por meio do congelamento de suas forças geradoras ou fazendo com que um pênis se levantasse e caísse segundo sua vontade" (p. 338).
O mesmo mecanismo pode ter feito com que a figura malévola do diabo tenha se associado intimamente à da bruxa. Como propõe Ernest Jones em On the nightmare, eles seriam o resultado da projeção de impulsos agressivos originárias da infância (direcionados ao pai e à mãe, respectivamente).
As mulheres parecem ter se tornado as responsáveis por muitos dos infortúnios que ocorriam nesse período, independentemente de qualquer base real. Como supostas controladoras da vida e da morte, foram sacrificadas como bodes expiatórios da humanidade.
Considerando a pouca atenção que os historiadores têm dado a esse acontecimento, é um fato promissor que livros como o de Silvia Federici estejam ajudando a mudar esse cenário. Ainda que sejam outros os referenciais teóricos do seu trabalho, sua perspectiva inovadora e ousada sugere diversos caminhos com os quais a psicanálise pode se beneficiar. Ao mesmo tempo, a psicanálise, ao jogar certa luz sobre a compreensão das brutalidades cometidas pela Inquisição, também referências fornece a sua contribuição.
Referências
Freud, S. (2010). Considerações atuais sobre a guerra e a morte. In ______. Obras completas. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). (P. C. de Souza trad., v. 12, pp. 156-184). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915). [ Links ]
Jones, E. (1931). Witches. In ______. On the nightmare (pp. 190-240). Londres: L. & Virgina Woolf at the Hogarth Press; Institute of Psycho-Analysis. [ Links ]
Correspondência:
DANIEL DIMAND PEREIRA DE AZEVEDO
Rua Oscar Freire, 1431/406
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Tel.: 11 96398.5887
daniel.dimand@terra.com.br
Recebido 26.06.2020
Aceito 10.07.2020