Servicios Personalizados
Revista
Articulo
Indicadores
Compartir
Tempo psicanalitico
versión impresa ISSN 0101-4838
Tempo psicanal. vol.44 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012
SEÇÃO TEMÁTICA
O estatuto contemporâneo das identificações em sujeitos com marcas e alterações corporais
The contemporary statute of identifications in individuals with marks and body modifications
Elizabete Regina Almeida de SiqueiraI; Edilene Freire de QueirozII
IPsicanalista; membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise; Mestre e Doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
IIPsicanalista; Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Pós-doutora (Laboratoire de Psychopathologie Clinique, Université de Aux-Marseille I); Professora Titular e membro do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Coordenadora do Laboratório de Psicopathologia Fundamental e Psicanálise da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Pesquisadora P-2 do CNPq
RESUMO
A pergunta que guia nossas reflexões neste estudo é a relação existente entre marcas corporais e identificações horizontais. A civilização atual, regida pela inconsistência do Outro, acabou por questionar alguns significantes clássicos como o pai, o mestre, o chefe. Atualmente, os sujeitos já não validam a avaliação representativa do Outro e elaboram minuciosamente seus próprios significantes amos. Nesse contexto se incluem as tatuagens e as marcas corporais como modo de identificar-se com aqueles que compartilham o mesmo traço de gozo. Esse tipo de identificação tem permitido que alguns sujeitos, se servindo dela, tenham podido encontrar certa estabilidade e um lugar no campo do Outro.
Palavras-chave: marcas corporais; identificações horizontais; Outro.
ABSTRACT
The question which guides our ideas in this paper is the relationship between body marks and horizontal identifications. Nowadays, our civilization, which is governed by the Other's inconsistency, questions some classic signifiers, such as the father, the master, the chief. We do not validate anymore the representative evaluation of the Other and each one elaborates their own masters' signifiers. In this context, tattoos and body modifications are the way some people find to identify themselves with the ones who share the same trace of enjoyment. This kind of identification allows certain individuals to find stabilizations and a place in the field of the Other.
Keywords: body marks; horizontal identifications; Other.
O homem se distingue dos outros animais por, entre outras coisas, ter uma relação problemática com sua própria imagem. Isso o leva a retocar seu corpo das mais diversas formas, por deformações, mutilações, tatuagens, escarificações, maquiagem, cosméticos, ornamentos, cirurgia estética, etc. Desde o paleolítico se tem notícias de que o homem era obcecado pela ideia de mudar sua imagem. Certamente, esta tendência se deve à sua prematuridade biológica e psíquica. O filhote humano é o mais carente e o mais exposto aos perigos e olhares do Outro. Nasce nu, despido de proteção de natureza física, mas principalmente simbólica. Só atinge sua identidade e seu lugar no corpo social após muitas e demoradas mudanças no corpo físico.
A pergunta que guia nossas reflexões é sobre o traço que marca e separa anatomia de corpo, capaz de transformar carne em corpo que se veste e reveste das mais diversas e algumas vezes bizarras maneiras, ao mesmo tempo que o humaniza. Em busca de resposta para tal indagação dirigimo-nos, então, à questão da identificação por ser a mais remota forma de vínculo, por estar na origem da constituição do sujeito e do laço social para, então, articular esses dois elementos: corpo e identificações.
Um processo bem-sucedido de identificação permite, entre outras coisas, a compatibilidade necessária para o diálogo humano, uma vez que, através das gerações, ele é portador e mediador de uma determinada cultura, assegurando a transmissão e a continuidade.
Entretanto, a civilização atual, regida pela inconsistência do Outro1, acabou por questionar alguns significantes clássicos como o pai, o mestre, o chefe. Atualmente, os sujeitos já não validam a avaliação representativa do Outro e elaboram minuciosamente seus próprios significantes organizadores. Constroem-nos e os atribuem a si mesmos. Nesse contexto se incluem as tatuagens e as marcas corporais. Um dos efeitos é um declínio nas identificações verticais, ao ideal, a um traço significante do Outro, como acontecia quando os significantes mestres eram sólidos. Hoje, eles são múltiplos e líquidos.
Atualmente, o que se observa é uma expansão identificatória horizontal (Miller, 2005). Isto porque, no mundo dos indivíduos, há apenas outros indivíduos e identificações com aqueles que compartilham o mesmo traço de gozo. O problemático é que essas identificações imaginárias não formam um conjunto coerente no sujeito, mas um caos, uma miscelânea de traços pouco organizados que ficam à mercê de significantes mestres ditados pela contemporaneidade, que mudam de forma tão rápida a ponto de produzir indivíduos desacomodados, atirados ao nomadismo, ao movimento incessante, nessa sociedade multicultural que já não tem o Nome do pai (Lacan, 1955-1956/1985) como regulador.
Não queremos com isso cair na posição nostálgica de que bom era antes, quando tudo se organizava a partir do significante do pai. A clínica tem mostrado que, apesar de tudo isto, esse tipo de identificação tem permitido que alguns sujeitos, servindo-se dela, tenham encontrado certa estabilidade e um lugar no campo do Outro. Foi isso que se evidenciou nos dados de fala de três sujeitos V., M. e A2. que se dedicam a tatuar e tatuar-se, portam marcas corporais, foram investigados na pesquisa objeto de nossa dissertação O estatuto contemporâneo das identificações em sujeitos com marcas e alterações corporais (Siqueira, 2009) e fizeram parte da pesquisa de Fabiana Gama Pereira (2007) sobre Tatuagens, piercings e outras marcas corporais, aproximações interetnográficas entre Recife e Madri. São sujeitos portadores de uma ou algumas tatuagens e buscam, através delas, elaborar conflitos de identidade de matiz edipiano. Buscam afirmação para separar-se da dependência parental da infância e assegurar um lugar no Outro. São sujeitos que mantêm sua conexão ao Outro, ainda que sob a forma da contestação e do enfrentamento. Entre eles há uma constante: a demanda de visibilidade, de serem vistos e de terem um lugar no Outro, mesmo que tenham que pagar com a própria carne. O que fazem, fazem-no para o Outro. É apelo, demanda de amor.
V., jovem adulto de 32 anos (citado por Pereira, 2007), se diz mobilizado pela busca de risco e gosta de ser identificado pela ousadia. Ele é tatuador e se tatua. Aplica implantes, nele e nos outros, e se submete a alterações corporais. Ele se diz um profundo admirador de quem é corajoso e gosta de correr riscos, porque diz que encontra na adrenalina uma forma de viver e ser feliz.
Reconhece que passou por uma série de dificuldades até conseguir assumir sua identidade e estilo de vida. Usa piercings desde os 16 anos. Aos 32, já não se reconhece sem eles, que passaram a representar um prolongamento do seu corpo. O que mais o atrai nos piercings é o aspecto estético e sensual daquele que o porta.
V. passou grande parte de sua vida em uma cidade do interior em Minas Gerais, onde as pessoas eram, segundo ele, bastante conservadoras. Lá havia um rapaz que trabalhava com tatuagens e piercings, e foi com ele que aprendeu a perfurar. Aos poucos V. foi modificando a aparência do seu corpo. Inicialmente, fazia isso escondido dos pais, mas, à medida que o tempo foi passando, V. cresceu e as marcas se tornaram visíveis. A partir de então, V. passou a ser completamente discriminado em sua cidade, inclusive pela própria família, que desconfiava que ele fosse um drogado. Era comum que seu quarto fosse revistado pelos pais nos momentos em que se ausentava. As brigas e desentendimentos passaram a ser uma constante. Aos 25 anos de idade V. saiu de Minas Gerais e veio para Pernambuco trabalhar em um estúdio de tatuagens. Desde então não tem mais contato com a família, que desconhece completamente o que ele faz.
Não se arrepende e se sente realizado com o estilo de vida que escolheu, pois "se não tivesse feito esta opção não seria eu mesmo, teria que assumir outra identidade". Com a experiência dos piercings, V. foi descobrindo o quanto o ato de perfuração corporal o estimulava: "eu libero muita adrenalina" (citado por Pereira, 2007: 123). A partir desta descoberta, foi sentindo necessidade de ir mais além, passando a se pendurar por ganchos de ferro, podendo sentir o que significava desafiar os próprios limites do corpo.
A primeira vez em que viu uma suspensão corporal tinha 10 anos de idade, quando assistiu ao filme Um homem chamado Cavalo. Esse filme, que retrata o ritual a que se submete um homem para fazer parte de uma tribo, não saiu mais da sua memória. Apesar de ter se chocado com o que presenciara na infância, anos mais tarde se tornou uma pessoa de referência no Recife em matéria de suspensão. Com a experiência que foi acumulando, passou a se sentir cada vez mais seguro, experimentando novas posições e atingindo recordes no Brasil, sendo, atualmente, capaz de ficar horas pendurado pela pele. Em seu último aniversário se presenteou com um O-Kee-pa2 (forma de suspensão), que, para ele, é uma das suspensões corporais mais doloridas, incômodas e arriscadas pela possibilidade de faltar ar ou de que os pulmões se contraiam. Segundo o interlocutor, a sensação de prazer foi tão intensa que o sacrifício, a dor e o próprio risco foram recompensados.
Em uma das vezes em que se pendurou pela pele chamou a atenção de todos que o assistiam pelo seu semblante. Contrariamente ao que muitos imaginavam, ao invés de dor, transmitia muito prazer através daquela forma de experiência. De tão incorporado à vivência, parecia estar em uma espécie de transe, como se estivesse fora da realidade por alguns instantes. Nos momento em que voltava a si dizia: "Não me tirem daqui não!!!" (citado por Pereira, 2007: 125).
Ao ser questionado pela pesquisadora sobre sua sensação naquele instante, revela:
um momento especial, agora [...] só de êxtase, muito prazer. Felicidade total. É como um orgasmo, nem sei. [...] Não, é diferente [...] é uma maravilha, você nem imagina como. É algo indescritível que palavras não dizem a sensação que você sente [...] é muito (suspiro) prazer. Dor não tô sentindo nenhuma agora mesmo [...] a dor some totalmente, você sente assim, puxando a pele, mas não tá doendo, não tá incomodando em nada (citado por Pereira, 2007: 125).
Segundo V. a suspensão pode conduzir alguns indivíduos a um estado de alteração de consciência associado à sensação de um intenso prazer:
o corpo submetido a grande estresse vai jogar endorfina, vai enganar. O que seria dor seria prazer. Então você vai sentir meio extasiado em si, não dá para explicar a sensação, é uma sensação boa [...] eu não me drogo, dizem que seria, mais ou menos, a sensação de você estar meio drogado, em alguns casos a pupila se dilata. [...] Você se sente, sei não, poderoso. Superar a dor me dá poder. Poxa eu consegui, velho!!! Você pensa que jamais ousaria superar este limite. Quando você consegue fazer isso, é quando consegue entender seus domínios (citado por Pereira, 2007: 125).
Para ele o que está levando as pessoas a estas práticas é a necessidade de serem vistas, olhadas e reconhecidas. Diz que "todo ato do ser humano é voltado para a visibilidade, o eu existo" (citado por Pereira, 2007: 161). Não crê em razões estéticas, "é pra ver se chama a atenção da sociedade". Seu discurso atesta que o que V. faz, ele o faz para o Outro, como apelo por um lugar que lhe dê alguma visibilidade, mesmo que para isso tenha que apelar a práticas aparentemente extremadas como as que refere. Sua fala mostra que há algo de exibição para atrair o olhar do Outro, seu destinatário. V. segue conectado ao Outro mesmo que o conteste, e sua contestação é exatamente o signo de seu desejo de inclusão e de manutenção de valores da Tradição, tais como o desejo de reconhecimento. Ele o busca e consegue pela via de uma identificação horizontal aos membros de uma comunidade de adeptos, dentro da qual tem um papel reconhecido e respeitado. Lembremos que ele é uma referência em matéria de suspensão e detentor de recordes nacionais.
M. é uma piercer espanhola de 20 anos e, segundo Pereira (2007: 131), "dotada de uma beleza difícil de descrever". Chama a atenção das pessoas por onde passa pelo visual pouco habitual que porta: além da indumentária incomum, roupas escuras e folgadas, tem cabelos e sobrancelhas raspadas, tatuagens, piercings, alargadores na orelha, olhos negros adornados por uma fina sobrancelha artificialmente desenhada que transmite à sua expressão facial um misto de revolta e raiva. Infância difícil, sobretudo pela rigidez do pai, que não permitia, nem a ela nem à sua irmã, terem contatos com crianças da sua idade, relatando a esse respeito:
Era da casa pro colégio e do colégio pra casa. Ele obrigava que eu e minha irmã terminássemos os deveres para poder jantar [...] eu passava a manhã na escola e a tarde em casa fazendo as tarefas, senão eu não jantava, ia dormir com fome. Eu tinha medo também [...] ele batia na minha irmã, eu não podia fazer nada. Eu me trancava no quarto e ia desenhar para não escutar ela chorando (citado por Pereira, 2007: 131).
Há dois anos, desde a separação dos pais, não tem mais contato nenhum com o genitor, que passou a estar completamente ausente de sua vida. A primeira vez que viu uma suspensão foi pela televisão, e, apesar de a cena ter chamado sua atenção, até então não pensava em se submeter a algo daquela natureza. Numa determinada noite, em uma discoteca de Madri, assistiu a uma performance em que J. e os amigos se suspendiam pela pele. A partir daí não parou mais de pensar na cena, encantando-se completamente com o que presenciara.
Aproximou-se de J. através de uma amiga e expressou seu desejo de passar pela mesma experiência. Ele, então, a convidou para passar por um pool3. Depois de uma indecisão passageira resolveu fazer isso por si mesma e não em dedicação aos ex-namorados como pensou inicialmente. "Fez uma reflexão sobre sua vida em torno dos conflitos pessoais que precisaria resolver, convencendo-se finalmente que teria que provar aquilo" (citado por Pereira, 2007: 132).
Realizou a primeira suspensão na casa de J. e, assim como em uma relação sexual, o prazer provocado pelo ato foi mais intenso do que o medo e a própria dor, pois lhe proporcionou sensação de tranquilidade semelhante a um orgasmo, conforme se reporta:
só sei que me senti limpa e renovada depois de tudo. Eu pensava em muitas coisas, tinha muitas ideias na cabeça, depois disso parei de pensar [...]. Não sei até onde vai o limite entre a inteligência e a loucura, Van Gogh era um gênio e cortou a própria orelha (citado por Pereira, 2007: 132).
Pereira (2007) considera que M. busca uma forma de se exprimir em que o corpo é também uma espécie de tela na qual se agregam signos: tatuagens, piercings e outras intervenções. M. refere que as perfurações feitas no seu corpo ajudam-na, entre outras coisas, a liberar sua agressividade reprimida. Diz que sabe ser portadora de conflitos pessoais a resolver, sobretudo da infância, e que alguns se refletem na sua vida atual; seus pensamentos obscuros provocam tristeza e depressão.
Considera seu corpo "uma bomba relógio" (citado por Pereira, 2007: 133) que a qualquer momento pode explodir. Vê nestas técnicas uma forma de se controlar e não se deixar afetar pelos problemas do mundo. Por ocasião da pesquisa tinha planos de se submeter a uma nova suspensão e para esta fazia questão da presença da mãe. Não abre mão disso, embora saiba que sua mãe vai considerar essa prática masoquista. Seu objetivo é mostrar-lhe como isso é importante para ela.
Esse último relato deixa ver claramente o apelo ao Outro materno, que não via o que se passava em casa. A demanda de visibilidade e de ser escutada é notória. Do ponto de vista do inconsciente, ou seja, do ponto de vista clínico, externaliza, desta forma, um amplo espectro de situações afetivas, ao mesmo tempo que busca ligar e dotar de representabilidade estados internos de tensão e de angústia. Desse ponto de vista, suas práticas corporais funcionam como um operador psíquico de amplo alcance. Serve-se delas para processar lutos, perdas efetivamente acontecidas na sua realidade subjetiva, e como afirmação de sua identidade.
Parece, então, que está em jogo uma experiência subjetiva que reforça o sentido do si mesmo, bem como uma busca desesperada de autoestima, de acreditar-se alguém capaz de capturar o olhar do outro, de sentir-se amável, no sentido de ser capaz de mobilizar amor. Outro aspecto fundamental é sua necessidade de identificar-se com algo ou com alguém, de fazer parte de uma comunidade organizada pela identificação horizontal, já que lhe faltou uma referência consistente que lhe permitisse uma identificação vertical mais sólida. A tirania do pai torna-o inoperante como referência identificatória ideal.
Outro aspecto que se destaca é a demanda, o apelo ao Outro materno, seu desejo de ser percebida pela sua mãe. Esta parece ou não ter registrado, ou ter se omitido perante os excessos do pai em relação às filhas, e certamente não foi uma referência feminina consistente. Destaco que a clínica nos mostra que uma das maiores angústias do sujeito é a de ser transparente, de não ser visto pelo Outro. Pelas suas tatuagens, suas alterações corporais e suas práticas de suspensão, esses sujeitos demandam o olhar do Outro e tentam cativá-lo, seja para o bem ou para o mal, seja por bem ou por mal.
A2. (de idade não referida pela pesquisadora) busca aplausos e reconhecimento dos outros e do Outro. Tenta obter afirmação narcísica e inclusão social pela via, também, de uma identificação horizontal com pares, ou seja, com os que compartilham de uma mesma modalidade de gozo. Observem seu depoimento sobre sua experiência de suspensão:
Dói muito mais do que o piercing. A dor vai aumentando, chega um ponto que você sai do chão e vem aquela dor por todo o seu corpo [...] eu acho incrível porque você fica sem apoio, parece que tá voando. Eu sempre peço para me balançarem [...] você está pendurado, parece que está com uma asa [...] quanto mais balança vai aliviando até que não sente mais dor, você consegue ver a dor abaixo de você, olhando pra você. Depois você passa a ver que a dor não existe. Isso é uma descoberta indescritível, que a gente não sabe nem descrever. Tudo isto que a gente vê aqui é horroroso, mas eu consegui superar a dor, então seu ego [...] você se sente mais do que todo mundo que está aí. Para mim foi muito importante [...] o pessoal, quando eu tava lá em cima, eles gritavam, batiam palma, foi uma emoção! Depois o povo ficou atrás de mim pra saber o que eu tinha sentido. Aonde eu chego, tem gente que me pergunta. Eu acho que eles acharam o máximo e com certeza muitos vão querer fazer porque viram que qualquer pessoa é capaz e notaram que eu fiquei nas nuvens [...] ah, tu tens que fazer, é bom demais!!! (citado por Pereira, 2007: 137).
Identificamos em A2., como nos outros dois sujeitos, uma demanda histérica dirigida ao Outro pela via da provocação, do endereçamento de uma questão: do que fazer de especial para ter um valor especial, de como fazer-se desejável para o Outro. Reafirmamos que nos três casos apresentados o que se observa são sujeitos portadores de corpos marcados e alterados por traços que não são significantes, mas marcas no corpo, que os transformam em outros de si mesmo, em uma busca desesperada de visibilidade, inclusão, reconhecimento, no sentido do que diz Lacan (1975/1991: 118) na Conferência de Genebra, sobre o corpo: "O corpo adquire seu peso [sua consistência] pela via do olhar. A maior parte do que pensa o homem se ancora ali". Ou seja, pela via de ter um lugar no campo do Outro. Esses sujeitos cavam esse lugar pela via de identificações imaginárias à materialidade dos modos de gozar comuns entre elementos de uma comunidade, em detrimento da identificação como operação de extração significante do Outro, pela qual o sujeito encontraria seu complemento simbólico. Como já dissemos, são modalidades que se distanciam da palavra como fonte identificatória e que destacam a ditadura do gozo que mortifica o corpo. Tais fenômenos denotam uma expansão identificatória horizontal e uma debilitação da identificação vertical no sentido proposto por Freud (1921/1976) em "Psicologia das massas e análise do ego". Nesse texto, quando, para refutar a noção de espírito gregário, ousa a hipótese psicanalítica de que é pelo mecanismo psíquico da identificação que, um a um, os membros de uma multidão substituem seu próprio ideal do eu pela figura do líder; passam a formar uma massa organizada sustentada por essa identificação vertical ao líder que, interiorizada no psiquismo de cada um, dirige suas vontades como se fosse a de um homem só. Como há uma rarefação de líderes, há escassez de identificação vertical forte. Como bem nos mostram V. M. e A2., no mundo dos indivíduos há apenas outros indivíduos e identificações horizontais frágeis, porque instáveis, com aqueles que mantêm o mesmo traço de gozo. A dinâmica predominante é, portanto, a do grupo dos irmãos que, na ausência de referências claras e consistentes, se organizam em comunidades singulares de gozo, conformando, desta forma, verdadeiras atitudes de devoção privadas, ocasião para alguns encontros que lhes assegurem inserção e pertinência a uma comunidade, mesmo que esta esteja organizada não por um significante comum que os una, mas por uma modalidade compartilhada de gozo.
Sublinhamos que, no entanto, apesar de fazerem apelo ao Outro, não o fazem como apelo significante, mas com seus corpos marcados mais ao modo da letra que é uma marca de gozo, modalidade que aparece quando o sujeito já não pode ser representado. É aí que se recorre à escrita no corpo. De tudo o que foi analisado, reiteramos nossa opinião de que há uma ausência de referências identificatórias sólidas. Vale ressaltar que aqui não há julgamento de valor, mas a constatação de que são modos instáveis e mutáveis de inclusão e que por isso o vínculo com os pares é o mais forte, com o detalhe da ausência de hierarquia. Como vimos, identificam-se a traços tomados dos outros e tentam, desta forma, equilibrar-se na corda bamba da vida pela via de convicções peculiares, do valor de serem diferentes, de desafiarem a dor e de não serem caretas.
No "somos uma máfia" de P. (citado por Pereira, 2007: 98) encontramos o signo de uma identificação imaginária aos valores que unem esses sujeitos e do acesso imaginário a um modo de vida desconhecido de todos os outros que não são da paróquia. Querem dar a impressão de gozarem de uma liberdade libidinal maior. Buscam, deste modo, garantir uma identidade e lutam para autenticá-la e valorizá-la aos olhos do Outro social.
Resumindo, diríamos que a identificação imaginária, horizontal, nesse grupo de sujeitos cumpre a função de um mecanismo de socialização alternativo, reunindo os iniciados que se entendem e se comunicam; assim, permite a reconstrução de um laço libidinal com outros da mesma paróquia de gozo. Trata-se de uma invenção forjada para fazer face à ausência de resposta acolhedora do Outro, provendo o sentimento de ter um lugar no Outro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Freud, S. (1921/1976). Além do princípio de prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos. Obras completas, ESB, v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Lacan, J. (1955-1956/1985). O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]
Lacan, J. (1975/1991). Intervenciones y textos 2. Buenos Aires: Manantial. [ Links ]
Miller, J.-A. (2005). El Otro que no existe y sus comités de ética / con colaboración de Eric Laurent. Buenos Aires: Paidós. [ Links ]
Pereira, F. (2007). Tatuagens, piercings e outras marcas corporais. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE.
Siqueira, E. R. A. (2009). O estatuto contemporâneo das identificações em sujeitos com marcas e alterações corporais. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Psicologia Cínica, Universidade Católica de Pernambuco, Recife, PE. [ Links ]
NOTAS
1 Outro - conceito lacaniano que designa a alteridade radical, que vai mais além da diferença imaginária do outro como semelhante. Lacan equipara o Outro à linguagem e à lei e o inclui na ordem simbólica. O Outro é o simbólico quando está particularizado para o sujeito, na forma de regulação e limite.
2 O-Kee-pa - termo que se incorporou ao ocidente para se referir a um tipo de posição da suspensão corporal em que os adeptos se penduram verticalmente pelo peito através de dois ganchos de ferro.
3 Pool é uma técnica através da qual são introduzidos ganchos finos em parte do corpo, como nos antebraços ou no tórax, puxados por outra pessoa com o objetivo de distender a pele da musculatura.
Recebido em 19 de janeiro de 2012
Aceito para publicação em 07 de abril de 2012