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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.1 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Eu preferia ser uma pedra: a inibição num fragmento clínico de drogadição

 

I'd rather be a stone: inhibition in a clinical shered of a drug addiction

 

 

Alexandre Bakx Balbi*

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil

 

 


RESUMO

O tratamento da drogadição coloca várias questões para a Psicanálise. As dificuldades colocadas por essa clínica nos faz acreditar na necessidade de um tratamento preliminar para tornar possível que uma análise, propriamente dita, ocorra.
Neste percurso que vimos fazendo há alguns anos, temos nos deparado com a aparição de uma forma de defesa que se solidariza com a drogadição. Se a drogadição é capaz de entorpecer o sujeito, essa defesa, a inibição, é capaz de silenciá-lo, paralisá-lo.
A partir da clínica, seguindo Freud e Lacan, podemos observar como a inibição é capaz de fazer obstáculo ao tratamento, como defesa contra as pulsões e a angústia. Através de um fragmento clínico, pudemos verificar como o abalo da inibição tornou viável o tratamento da drogadição e o possível advento de uma análise.

Palavras-chave: tratamento, drogadição, inibição, análise.


ABSTRACT

The drug addiction treatment brings various issues to Psychoanalysis. The difficulties brought to this clinic make us believe that a preliminary treatment is needed so that the analysis itself can occur.
In this path that we have been trailing for some years, we have been confronted with a kind of defense that solidarizes with drug addiction. If the drug addiction is capable of making the subject torpor, this defense, the inhibition, is capable of making the subject silent and paralyzed.
From the clinic, according to Freud and Lacan, we can observe how inhibition is capable of creating an obstacle to the treatment, as a defense against the drives and in relation to anguish. Through a clinical fragment, we were able to verify how the obstruction of inhibition enabled the drug addiction treatment and the possible advent of analysis.

Keywords: Treatment, drug addiction, inhibition, analysis.


 

 

No presente trabalho recortaremos uma das inúmeras questões colocadas pelo tratamento da drogadição à clínica psicanalítica. Temos nos dedicado a esSa clínica nos últimos 10 anos, no âmbito do serviço público e do privado, e um dos achados com que nos deparamos diz respeito à necessidade de um tratamento preliminar da drogadição antes da possível entrada em análise (Balbi, 2012). Devido à eficácia da drogadição compulsiva é difícil falarmos que uma análise propriamente dita venha estar em curso antes do referido tratamento inicial.

Nossos estudos vêm mostrando que a necessidade desse tratamento preliminar possibilita um afrouxamento da relação do sujeito com a droga. Através dele, essa é nossa aposta, se criem as condições para a emergência subjetiva e, consequentemente, algo que aponte para a abertura do inconsciente. Pois, ao contrário, quando o drogadito está imerso em sua compulsão, ele obtura com a drogadição, a falta, o desejo e o inconsciente.

Este tempo preliminar visa ainda à transformação de uma demanda de ajuda em relação à droga em uma demanda de saber sobre a verdade do sujeito, ou seja, o saber do inconsciente. Isso se deve a que a drogadição não é uma formação do inconsciente como o sintoma, no sentido estrito em que Freud e Lacan desenvolveram esse conceito, como veremos adiante.

No discurso vigente, o de nossos dias, está implícita a noção de tempo, tempo atual. Estaríamos corretos em pensar em variantes discursivas temporais, no campo dos laços sociais, que modificariam as manifestações sintomáticas? Acreditamos que sim.

Podemos afirmar que períodos "históricos" diferentes, alteram o que podemos chamar de "berço simbólico" no qual o sujeito terá que vir a se representar. O inconsciente, nessa perspectiva, é tanto social, quanto cultural. Se o inconsciente, como estruturação linguageira, permeia toda nossa cultura, podemos demarcar diferentes lugares para ele ao longo da civilização.

Para exemplificar o que queremos afirmar sobre essa mudança social e subjetiva, podemos recorrer ao exemplo dado por Ariès (1975/1978), que, ao longo de seu livro História social da criança e da família, descreve o processo pelo qual o conceito de criança foi forjado. É impressionante pensar que, até o período medieval, não havia tal conceito. Isso quer dizer que a criança não "existia" como um ser dotado de alma, por exemplo. Hoje, temos vastas literaturas sobre a criança, mas pensar a criança antes do surgimento de seu conceito é dizer que a criança não existia na cultura, no social e na subjetividade. A partir do momento em que o conceito é forjado no campo do Outro, no campo social, político e subjetivo é que podemos operar, pesquisá-lo. Esse exemplo nos parece paradigmático para demarcar uma mudança no campo do Outro capaz de afetar profundamente o sujeito na sua estruturação.

Ao longo da história podemos circunscrever Outro(s) que exercia(m) essa função, política, social, simbólica e terceira. A título de ilustração, podemos citar dois momentos heterogêneos em que essa função terceira produziu efeitos díspares sobre o sujeito: um é o período teocentrista da Idade Média e sua organização político-econômica aristocrática; outro, o antropocêntrico, moderno, científico e burguês.

O inconsciente está intimamente ligado aos laços sociais. Hoje não temos os sintomas das "belas histéricas" da época de Freud, quando ainda se respirava o período Vitoriano e Romântico. A cultura atual é diversa daquela em que viveu o criador da Psicanálise. Hoje não predominam aqueles pacientes com a sintomatologia descrita no século XIX e grande parte do XX. Atualmente temos compulsivos, bulímicos, anoréxicos, drogadictos e deprimidos. São ditos "os novos sintomas" da atualidade. Os "novos sintomas", na verdade, não são novos, a grande incidência destes hoje é que é a marca da atualidade.

A drogadicção, nesse sentido, aparece como um novo sintoma social tão grave que se torna uma questão de saúde pública. Como dizem Munteal, Gomes, Zampa et al. (2012) em Prisioneiros das drogas: segurança pública, saúde e direitos humanos:

Podemos afirmar que um dos maiores problemas que aflige o século XXI é a dependência química, isto é, o abuso de substâncias que alteram o humor e o comportamento do indivíduo. O consumo de drogas tem sido tão alto e fora de controle que passou a ser considerado uma questão de saúde pública no Brasil (Munteal, Gomes, Zampa et al., 2012, p. 12).

A drogadição, como observamos na citação acima, ocupa um lugar especial dentre os novos sintomas. É um método eficaz de anestesia frente ao mal-estar e a angústia. As drogas são capazes de nos dar sensações de prazer e, ao mesmo tempo, alterar nossa sensibilidade a fim de que os impulsos desagradáveis não nos atinjam. Essas sensações de prazer e a fuga estão mutuamente ligadas, sendo possível, em qualquer ocasião, o amortecimento das preocupações e o refúgio no mundo interno (Freud, 1930/1976, p. 96-97).

Ao propormos o tratamento preliminar e ao efetivamente desenvolvê-lo, começamos a verificar as dificuldades que aparecem para alguém que esteve sob a dependência de drogas. Nosso estudo já nos leva a várias conclusões, contudo um fato clínico aparece em vários casos e nos faz repensar algumas premissas que antes não estavam claras.

Nós nos encontramos com um fenômeno clínico, característico da neurose, denominado por Freud de Inibição. A inibição é um dos fatos clínicos destacados em 1926, mas não adquire a mesma relevância que os outros dois fenômenos, também trabalhados por Freud na mesma época, que são: o sintoma e a angústia. É interessante observar que os psicanalistas em geral não deram grande atenção a esse conceito tão importante.

A inibição mostra-se um conceito rico e frutífero na clínica contemporânea, em especial na clínica da drogadição. Esta última, como dissemos acima, é um método eficaz contra o mal-estar e a angústia. Contudo, a inibição é também uma defesa extremamente eficiente contra a angústia, contra as pulsões, que, diferentemente do sintoma, pode se solidarizar com a drogadição, como veremos adiante.

A inibição é uma defesa que possui dois aspectos: um estrutural e outro que traz a dimensão de fenômeno clínico. Na sua vertente estrutural, em Freud, podemos verificá-la desde 1895, quando introduz o conceito de eu em seu texto. O eu deve ser entendido como a soma da totalidade dos neurônios Psi (neurônios relativos aos traços de memória). Para que essa organização denominada eu possa existir, é necessário que haja inibição do fluxo de Qὴ (quantidade de energia que passa pelos neurônios). A rigor, podemos afirmar que sem a inibição dessa quantidade não haveria possibilidade de se produzir uma organização de investimentos que pudessem resultar na operação do eu. E ele opera da seguinte forma:

Embora esse eu deva se esforçar por se livrar de seus investimentos pelo método de satisfação, isso não pode acontecer de nenhuma outra maneira senão por ele influenciar a repetição das experiências de dor e dos afetos, pelo método seguinte, que é geralmente descrito como inibição (Freud, 1985/1976, p. 341).

Os desvios de investimentos "atuam" como uma inibição no curso de Qὴ. Esta é uma defesa primária, necessária à própria constituição do eu, e usada por este como defesa contra os estímulos internos, ou seja, as pulsões.

Ao falarmos de pulsão, quando estamos falando de defesa primária e estruturante, é importante ressaltar que a inibição nessa vertente será primordialmente defesa em relação à pulsão. Ao longo da obra freudiana encontraremos várias referências ao que dissemos acima. Destacaremos as mais importantes para respaldar nossa argumentação.

Em "Pulsão e seus destinos" (1915/1976) Freud admite quatro elementos da pulsão: pressão, finalidade, objeto e fonte. Quanto à finalidade, que é sempre a obtenção de satisfação, ele diz: "A experiência nos permite também falar de pulsões que são inibidas em sua finalidade, [...] processos dessa espécie envolvem uma satisfação parcial" (Freud, 1915/1976, p. 143). É interessante observar que a pulsão vai sempre obter satisfação, mas esta é parcial, nunca completa, total. É graças à inibição como freio, desvio, que podemos viver em cultura. É o que Freud repete em 1921 (1976) em "Psicologia das massas e análise do eu" ao falar da renúncia à pulsão através da inibição. Se, por um lado, podemos afirmar que a inibição é um dos processos pelos quais podemos viver em cultura, por outro não é sem consequência esse dique, essa parada.

Não estamos afirmando que essas consequências são exclusivamente efeitos da inibição, antes queremos chamar atenção para o fato de essa operação estar aí envolvida e além disso, ser articulada aos conceitos de sublimação e idealização, o que torna tal operação bastante rica.

Em 1926, Freud falará sobre mais efeitos da inibição. Dessa vez, fará referência à formação reativa, principalmente nas neuroses obsessivas e fobias, e na forma de compulsão. Quanto a esta última ele diz:

Nesse caso a posição, falando em geral, é que a moção pulsional encontrou um substituto apesar do recalque, mas um substituto muito reduzido, deslocado e inibido, e que não é mais reconhecível como uma satisfação. E quando uma moção substitutiva é levada a efeito, não há qualquer sensação e prazer; sua realização apresenta, ao contrário, a qualidade de uma compulsão (Freud, 1926/1976, p. 116).

Outro efeito poderoso que podemos apreender em relação à inibição é quanto ao supereu. Uma pulsão inibida em sua finalidade não deixa de obter sua parcela de satisfação. No sadismo, por exemplo, quando inibido em seu alvo, como bem descreve Freud em 1915, um dos caminhos possíveis é operar com dois destinos para a pulsão. Tais destinos são solidários no que concerne ao supereu, a saber, a reversão no oposto e o retorno ao eu. Sadismo vira masoquismo (reversão no oposto) e retorna ao eu provocando sofrimento. A partir desse momento o eu pode ter que renunciar a uma função para não entrar em conflito com o supereu e/ou evitar a angústia.

Quando falamos da inibição em sua vertente estrutural, não queremos afirmar que essa dimensão não implique consequência para a clínica. Pelo contrário, por ser estrutural ela é fundamentalmente clínica. Queremos antes, através de uma certa "esquematização", mostrar e enfatizar esses dois aspectos apresentados pelo conceito: o estrutural, abordado acima, e o do fenômeno clínico.

A inibição como fenômeno clínico é descrito por Freud (1926) em Inibição, sintoma e angústia, já no início de seu texto, como um processo que ocorre no eu como medida de proteção, de defesa. Ele assim define a inibição é "[..] uma restrição normal de uma função" (Freud, 1926/1976, p. 107).

A partir desse ponto é possível elencar várias formas de inibição: quanto à função sexual, à nutrição, à locomoção, ao trabalho e o que qualifica como inibições específicas. Freud (1926/1976) afirma que há uma relação evidente entre a inibição e a angústia no aparecimento desta operação defensiva: "Algumas inibições obviamente representam o abandono de uma função porque sua prática produziria angústia" (Freud, 1926/1976, p. 108).

Se, por um lado, o que chamamos de vertente estrutural da inibição serve de defesa em relação à pulsão, por outro, no que nomeamos como fenômeno clínico, verificamos uma poderosa defesa contra a angústia.

Uma diferenciação importante de ser feita é entre a inibição e o sintoma: "A inibição é quando há uma simples redução de uma função, e sintoma quando uma função passou por alguma modificação inusitada ou quando uma nova manifestação surgiu desta" (Freud, 1926/1976, p. 107).

O sintoma é efeito do recalcamento, que é uma operação que procura manter no inconsciente as representações ligadas a uma pulsão. O recalcamento acontece quando há emergência da angústia. Ou seja, a angústia precede ao recalque - conforme propõe Freud (1926/1976, p. 131). Com a ação do recalcamento há uma solução de compromisso entre as forças recalcantes e as da pulsão que faz com que o sintoma apareça como uma forma nova, diferenciada da operação que a produziu. Entretanto, temos ainda um ponto importante para ressaltar: "Um sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado jacente" (Freud, 1926/1976, p. 112).

Mas é na conversão histérica que Freud verá a maior eficácia do recalcamento. A conversão produz no corpo um sintoma que Freud julga ser o mais eficaz contra a angústia.

Já na inibição, diferentemente, não há essa solução de compromisso, nem esse substituto pulsional; há uma restrição de função na qual o sujeito evita a angústia. Podemos afirmar três modos diferentes e eficazes em relação à angústia. A conversão, como dissemos acima, a inibição, como vimos anteriormente, e a drogadição como forma eficaz de evitar a angústia, o desejo e a castração, através do entorpecimento.

Avançando com Lacan temos uma conceituação desses termos freudianos, a inibição, o sintoma e a angústia. Em 1962-1963 em seu seminário sobre a angústia apresenta um quadro no qual situa esses três conceitos em relação à dificuldade e ao movimento. Esses três conceitos não estão no mesmo nível. Seus lugares e suas interseções estão expressos no quadro abaixo.

 

 

Vamos nos ater à inibição, posto que é sua relação com a drogadição que nos interessa neste trabalho. A inibição encontra-se nesse lugar de menor dificuldade e menos movimento. Quanto ao movimento Lacan diz: "[...] a inibição está no eixo do movimento no sentido mais amplo do termo. [...] Na inibição, é da paralisação do movimento que se trata" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 18).

Quando Lacan diz que a inibição deve ser entendida no eixo do movimento, da paralisação, ele amplia o que Freud havia descrito a respeito desse conceito. Entendemos que a expressão "no sentido mais amplo" deve ser entendida como tendo efeito sobre o sujeito, ou seja, bem mais complexo do que podia conceber Freud com o eu.

Na inibição, diferente do sujeito impedido ou embaraçado, o que pode acontecer é a falta de manifestação, ou seja, nenhum Pathos acometer o sujeito. Esse "silêncio", esse "sossego", pode ser um dos modos de entender o que Lacan diz a respeito do sujeito: "Ser inibido é um sintoma posto num museu" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 19), ou seja, seguindo a metáfora de Lacan, posto numa gaveta, numa prateleira, num armário fechado. Retomando o que vimos descrevendo, seja a inibição como defesa estrutural, ou como fenômeno clínico, verificamos o menor movimento e a menor dificuldade, ou menor sofrimento, seja pela via pulsões, seja pela angústia.

Para que haja tratamento, é necessário que o inconsciente seja colocado em circulação, ou seja, coloque em movimento, sintomaticamente, o que está calado, parado, imóvel, fora de circulação.

Lacan situa o impedimento na mesma coluna do sintoma; logo, tendo mais movimento e mais dificuldade, ou mais sofrimento. Quando pensamos em impedimento, pressupomos que houve movimento, mas algo o deteve. Assim, se prosseguindo nesse eixo, no embaraço veremos mais dificuldade e movimento. O mesmo também vale para outra coluna, a da emoção e da perturbação. Na inibição propriamente dita, não há isso e é nesse aspecto que ela é uma defesa eficaz e silenciosa.

Temos observado uma presença muito forte de inibições em casos de drogadições. Talvez isso tenha relação com o que diz Santiago (2001, p. 109), quando nota que: "O recurso à droga faz-se, pois, como ação substitutiva, no momento em que o sintoma se mostra insuficiente como resposta para o sujeito". Contudo, vale esclarecer que quando ele diz "como uma ação substitutiva", esse "como" não se refere à ação substitutiva do sintoma, naquilo que vimos anteriormente como um substituto da ação pulsional, que é a presença do sujeito do inconsciente.

Na inibição o sujeito não se representa através do sintoma. Ele antes, como defesa, se coloca num museu, contido, escondido, muito pouco ou nada representável simbolicamente. No caso da inibição trata-se de tirá-lo do museu.

O recurso à droga, como diz Santiago (2001), também é um modo de resposta que o sujeito dá por não conseguir se representar sintomaticamente. Diferentemente da inibição, que como defesa paralisa, estanca o movimento do sujeito, na drogadição o efeito é diverso, pois sujeito se entorpece e desaparece. Principalmente na compulsão drogadita, posto que ela faz com que sujeito, o desejo, a falta desapareçam, ou melhor, fiquem inoperantes.

Tanto a inibição, quanto a drogadição, são respostas muito frequentes na clínica atual. A exemplo disso observemos o fragmento clínico que se segue:

 

Caso A

A. vem buscar tratamento devido ao seu problema com crack mesclado com maconha (zirrê). Faz uso constante há alguns anos, mas até então não havia perdido o controle completo sobre seu uso de droga. Por orientação de seu psiquiatra, fica em internação domiciliar durante quatro meses, obedecendo aos limites impostos, sem queixas ou insatisfações, praticamente só saindo para ir às consultas comigo e com o psiquiatra. Ao final desses 4 meses seu psiquiatra chega a cogitar dar-lhe alta, dizendo: "Ele não se queixa de nada! Ele não tem sintomas, ele parece 'normal'!".

Ao longo desse período, sua fala é prioritariamente sobre o uso da droga, sobre sua dificuldade de ter outros divertimentos que não envolvam drogas e sobre as brigas com a mãe. Como já chamara a atenção de seu psiquiatra a ausência de mal-estar e sua 'ausência de sentimentos' é algo que também nos intrigava. Todas as vezes que se aproxima de uma emoção, ele a rechaça, racionaliza ou se cala.

Durante esse início de tratamento minha intervenção produz uma mudança fundamental: A. diz que prefere ser uma pedra e não ter que sentir. Afirmo que ele era uma pedra, uma pedra como o crack, que o anestesiava. Essa intervenção reverberou, abalou sua defesa e produziu efeitos e afetos que, até então silenciosos, começaram a emergir. Com essa abertura, o trabalho subjetivo tornou-se mais viável e o tratamento pôde começar a se deslocar da pura gravitação em torno das drogas para a vida do sujeito. Começou a se tornar possível o trabalho com o inconsciente, o que até então havia se mostrado impossível.

A partir dessa pequena abertura, A. começa a relatar um estranhamento, não consegue nomear o que está acontecendo, tampouco o que está sentindo. Concomitantemente consegue um bom emprego, se dedica ao trabalho, mas começa a faltar ao tratamento.

A. se mostra agitado, desconcentrado, ainda sem conseguir nomear o que sente. Dois dias depois do primeiro salário, desaparece de casa por uns 2 dias. Volta à consulta chorando muito, se sentindo culpado e muito emotivo e apresentando uma profusão de sentimentos. Segue-se uma série de recaídas, que abre para uma compulsão em que literalmente perde o controle.

Trata-se para A. da tentativa de não entrar em contato com seus sentimentos, com seus conflitos, com o mal-estar e a angústia. A inibição revela-se aqui como uma proteção extrema que não chega a ser uma anestesia, mas um evitamento, uma paralisação radical do que poderia colocá-lo em movimento. Sustentamos, nesse caso, que a inibição precedia a drogadição, mas elas se tornaram solidárias nessa tentativa do sujeito se retirar, não se haver com as questões que lhe concernem. Esse abalo de sua posição inibida e a impossibilidade de retornar a ser "pedra" faz com que ele, pela primeira vez, perca realmente o controle. Fica extremamente compulsivo, numa tentativa de anestesiar-se, para também não se haver com as questões de sua subjetividade, de sua vida.

Sua compulsão exacerbada culmina na indicação de uma internação, uma tentativa de produzir um estancamento em sua compulsão. A. concorda e é internado em um hospital público de curta duração. Nas visitas que fiz a ele no hospital e nas vezes em que participei da reunião de equipe do hospital, A. se mostrou muito emotivo, chorou muito, sem saber, no entanto, o motivo. Foi possível, nesse caso, ver o sujeito se deslocar em torno de vários elementos do quadro de Lacan (1962-1963) apresentado. A. se desloca tanto na direção do movimento quanto no da dificuldade: emoção, perturbação, impedimento, embaraço e angústia. Mesmo muito abalado diz: "agora não sou mais pedra, agora eu sinto, mas não estou dando conta de tanta coisa".

Com a saída da internação, consegue um novo emprego. Algo está diferente. A. não se coloca mais como "pedra", começa a falar de seu passado, da vida dura que levou com sua mãe trabalhando fora e seu padrasto maltratando a ele e a seu irmão.

Sempre teve uma vida em que o envolvimento com sua mãe ultrapassava, podemos dizer, os limites do que encontramos em uma relação mãe-filho, pois havia uma dependência mútua que, como veremos não será sem consequências importantes para seu estado. Ao mesmo tempo que leva para si a responsabilidade do sustento da casa, ou seja, dele e de sua mãe, também oscila num certo "jogo" de impotência que ora diz respeito a ele e ora diz respeito a ela, ou ele está recaído, perde o emprego e sua mãe trabalha, ou sua mãe adoece, fica sem emprego e ele trabalha.

Por motivos de trabalho, mudança de residência, A. suspende o tratamento por alguns meses. Volta a me procurar quando completa 1 ano sem usar drogas, está bem sem usar, e me coloca uma questão: agora vai morar sozinho. Sua ligação estreita com a mãe agora ameaça sofrer uma separação, e A. não sabe bem como se colocar frente a ela. Sua mãe fez um curso profissionalizante e está empregada, e ele também. Diz que "agora está na hora de levar minha vida 'single'", mas não sabe bem o que isso significa, não sabe o que fazer. Está namorando uma mulher muito mais velha, sua primeira namorada efetiva, e traz questões sobre ela.

Agora ele abre interrogações sobre sua vida, seus movimentos e sua responsabilidade. Essa questão é acompanhada de angústia quanto à incerteza de seu futuro, e agora, apesar do namoro, sobre sua solidão.

Nessa perspectiva, abre para o sujeito a real possibilidade de entrada em análise. Como diz Recalcati (2004, p. 5): A operação preliminar neste caso consiste em abrir no sujeito uma interrogação sobre a causa de seu sofrimento que não torne a se fechar imediatamente, mas que mobilize uma verdadeira, e própria, busca heurística da verdade".

A clínica da drogadição é extremamente árida e coloca dificuldades muito grandes para o tratamento. O objetivo do tratamento preliminar é exatamente viabilizar uma operação pela qual o sujeito possa, por um lado, se deslocar de sua aderência em relação à droga, o que não é fácil, e que, por outro, possibilite as condições para que o inconsciente possa emergir.

O que desperta nossa atenção e interesse é a relação e a frequência com que temos visto, ao longo dos últimos anos, a presença da inibição nos casos de drogadição. Nessa perspectiva, entendemos a inibição como uma defesa que se solidariza com a drogadição, fazendo operar uma proteção radical contra o mal-estar e a angústia, que paralisa e entorpece.

Uma questão clínica nesse fragmento é muito importante. Durante o tratamento preliminar da drogadição, foi possível verificarmos a presença da inibição e debilitar sua defesa. Isso foi de fundamental importância para o tratamento. Nem sempre é tão evidente a verificação e o tratamento dela, muitas vezes ela se mantém silenciosa e esquiva a nossa escuta. Assim, podemos concluir nesse caso que a inibição já estava presente bem antes de ele recorrer às drogas. E também podemos atestar que, se não houvesse o abalo dela, colocando em curso todo o movimento e dificuldade do sujeito, não teria sido possível o tratamento de sua drogadição e nem a possibilidade de sua entrada em análise.

 

 

Referências

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Santiago, J. (2001). A droga do toxicômano. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 01/11/2014
Aprovado para publicação em: 10/04/2015

 

 

*Psicanalista; Pós-doutorando pela UFRJ/FAPERJ/CAPES; Doutor pela Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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