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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.51 no.2 Rio de Janeiro jul./dic. 2019

 

ARTIGOS

 

Feminilidade não toda: uma revisão sistemática de literatura

 

Not-all femininity: a systematic review of the literature

 

Feminidad no toda: una revisión sistemática de literatura

 

 

Flávia Angelo VercezeI*; Silvia Nogueira CordeiroI**

IUniversidade Estadual de Londrina - UEL - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ao escutar as histéricas, Freud foi um dos primeiros estudiosos a se perguntar sobre a questão da feminilidade e da sexualidade feminina. Lacan retoma os caminhos de Freud e traz importantes contribuições para estudo do feminino. Todavia, dentro da psicanálise, esse é ainda um tema de muita controvérsia, devido às grandes transformações sociais em relação aos padrões de feminilidade e sexualidade feminina. Nesse sentido, o presente artigo teve como objetivo entender como a feminilidade e a sexualidade feminina têm sido abordadas dentro da psicanálise na perspectiva de Freud e Lacan nos últimos anos. Foi realizada uma revisão sistemática da literatura sobre o tema com o recorte de tempo de 2000 a 2018, visto que este período corresponde à mudança do século XX para o século XXI, que apresenta um novo contexto social, político e econômico. Os estudos que compuseram o banco final foram explorados de maneira pormenorizada. Nesta análise prezaram-se tanto os aspectos quantitativos - dados mais gerais dos artigos - como qualitativos e foi realizada uma análise da teoria apresentada, o que levou a uma síntese do fenômeno estudado por meio de quatro categorias: a feminilidade e a relação pré-edípica, a feminilidade e o real: a lógica não toda fálica, a mulher e o amor, e a feminilidade e a maternidade. P ode-se concluir que a teoria psicanalítica lacaniana representou um grande avanço no entendimento do feminino, ampliando a compreensão para além da diferença sexual anatômica ou segundo uma concepção naturalística baseada no corpo biológico da mulher. O padrão de feminilidade se transformou, abrindo caminhos para novas formas de sexuação na mulher, embora algo de inominável ainda permaneça, algo que escapa à palavra.

Palavras-chave: feminilidade, sexualidade feminina, mulher, psicanálise lacaniana.


ABSTRACT

In listening to hysterics, Freud became one of the first scholars to wonder about femininity and female sexuality. Lacan resumes Freud's path and brings important contributions to the study of the feminine. Nonetheless, for psychoanalysis, it remains an issue of much controversy due to the radical social transformations regarding femininity and female sexuality patterns. In this sense, this article aims to understand how psychoanalysis has approached femininity and female sexuality in Freud's and Lacan's perspective over recent years. Hence, a systematic review of the literature on the subject with a time cut from 2000 to 2018 was accomplished since this period corresponds to the change between the 20th and 21st centuries, which presents a new social, political e economical context. The studies that made up the final database were explored in detail. In this analysis, both quantitative - general data - and qualitative aspects were taken into consideration. In the qualitative aspects, an analysis of the theory presented led us to synthesize the studied phenomenon into four categories: femininity and the pre-oedipical relation, Femininity and the real: the not-all phallic logic, Women and love, and Femininity and motherhood. One can conclude that the Lacanian psychoanalytic theory has advanced greatly in understanding the feminine, extending the comprehension beyond anatomic sexual differences or according to a naturalistic conception based on the biologic female body. The pattern of femininity has changed, opening the way for new forms of sexuation in women, even though something ineffable still remains, which escapes the word.

Keywords: femininity, female sexuality, woman, lacanian psychoanalysis.


RESUMEN

Al escuchar las histéricas Freud fue uno de los primeros estudiosos a preguntarse sobre la cuestión de la feminidad y la sexualidad femenina. Lacan retoma los caminos de Freud y trae importantes contribuciones para el estudio de lo femenino. Pero dentro del psicoanálisis este es todavía un tema de mucha controversia, debido a las grandes transformaciones sociales en relación a los patrones de feminidad y sexualidad femenina. En este sentido, el presente artículo tuvo como objetivo entender cómo la feminidad y la sexualidad femeninas han sido abordadas dentro del psicoanálisis, en la perspectiva de Freud y Lacan en los últimos años. Para ello se realizó una revisión sistemática de literatura sobre el tema con el recorte de tiempo de 2000 a 2018, ya que este período corresponde al cambio del siglo XX al siglo XXI, que presenta un nuevo contexto social, político y económico. Los estudios que componen el banco final han sido explotados de manera detallada. En este análisis hemos tenido en cuenta tanto aspectos cuantitativos - datos más generales de los artículos, como cualitativos, en los que se realizó un análisis de la teoría presentada por éstos llevando a una síntesis del fenómeno estudiado a través de cuatro categorías: La feminidad y la relación pre-edípica; la feminidad y lo real: la lógica no-toda fálica; La mujer y el amor y la feminidad la maternidad. Se puede concluir que la teoría psicoanalítica lacaniana tuvo un gran éxito en el avance del entendimiento de lo femenino, ampliando la comprensión para más allá de la diferencia sexual anatómica o según una concepción naturalista basada en el cuerpo biológico de la mujer. El patrón de feminidad se transformó, abriendo caminos para nuevas formas de sexuación en la mujer, aunque algo de innombrable todavía permanezca, que se escapa la palabra.

Palabras clave: feminidad, sexualidad feminina, mujer, psicoanálisis lacaniano.


 

 

Introdução

A palavra feminilidade apresenta diferentes significados, variando de acordo com o campo de saber que estuda esse fenômeno. Dentro da psicanálise, a feminilidade é um tema de muita controvérsia e tem recebido imensas críticas de outros campos teóricos desde os tempos de Freud. Foi por meio da escuta de mulheres - as histéricas - que a psicanálise se fundou como teoria e prática. Freud, ao tentar compreender a histeria e os processos inconscientes, avança na discussão sobre a sexualidade feminina, porém percorre esse caminho sem se livrar de contradições, dando ao feminino um lugar de enigma.

Segundo Domingues (2014), Freud tem passagens revolucionárias sobre o feminino ao abordar a questão da repressão sexual sofrida pelas mulheres na época como causa de patologias que chegavam a seu consultório. Em outras passagens, ele ainda se vê muito apegado às questões da família tradicional burguesa, que via as mulheres identificadas com o papel de donas de casa e mães. Nesse sentido, não se pode entender Freud sem levar em conta seu contexto e sua época.

Ao analisar os textos freudianos a respeito da mulher e da feminilidade, percebem-se dois períodos em sua teoria. No primeiro, Freud ( 1923-1924/1996) vai fazer a diferenciação do Complexo de Édipo na menina, dizendo que ela, ao contrário do menino, antes passa pelo complexo de castração para depois aceder ao Édipo. Aqui se revela a importância que Freud dá para a diferença sexual no entendimento da posição feminina e masculina. Naquela época, para ele a diferença anatômica é a base para atribuições de gênero e suas consequências psíquicas.

Assim, Freud (1923-1924/1996) coloca o Édipo como fenômeno fundamental no desenvolvimento da sexualidade e traz, como ponto crucial para a estruturação sexual de ambos os sexos, a primazia fálica. Dessa maneira, para ele a função fálica funciona como organizadora da sexualidade feminina à medida que será pelo desejo de ter um falo que se processará o acesso à feminilidade. Todavia, isso só acontece, segundo Freud (1923-1924/1996), se o desejo por ter um falo for substituído pelo desejo de ter um filho do pai, que marca o início do Complexo de Édipo na menina, isto é, a feminilidade da mulher é derivada de ela ser castrada, a falta fálica incita-a a voltar-se para o amor de um homem.

Nesse sentido, percebe-se que, nesse período, para Freud o acesso à feminilidade ainda está muito ligado a questão reprodutiva - a possibilidade de gerar um filho, associando a posição da mulher à posição de mãe. Assim, a feminilidade só poderia ser alcançada pela mulher a partir do seu sentimento de inveja do pênis, que faz com que a menina entre na triangulação edípica e inicie seu longo caminho em direção à feminilidade (Freud, 1931/1974). Entretanto, segundo André (1998), quando Freud posteriormente postula a questão "o que quer a mulher?", é como se apontasse que o desejo feminino vai além do ter o falo, há um algo mais. Ao elaborar tal questionamento, Freud começa a constatar que a mulher não é dada desde o início: cabe à menina, para tornar-se mulher, um encargo trabalhoso e contínuo (Del Corso, 2016).

Nesse segundo momento, Freud (1931/1974) se depara com a importância do período pré-edípico na mulher, que é marcado pela relação ambivalente da menina com sua mãe e abrange grande parte de suas primeiras manifestações sexuais. Portanto, percebe-se uma mudança no entendimento freudiano a respeito da feminilidade, que antes atribuía ao pai e ao Complexo de Édipo a origem da feminilidade e dos conflitos femininos. Assim, dentro dessa nova perspectiva, entende-se que o Complexo de Édipo não apresenta saída para a feminilidade tal como para a masculinidade (Gomes, & Fernandes, 2002).

D essa formulação freudiana Lacan (1972-1973/2008) avança e tratará de reconhecer que as mulheres não se submetem, totalmente, à ordem fálica. Para ele, não se trata propriamente da falta de um órgão mas da falta de um símbolo específico da sexualidade feminina, como o falo é para o homem (Zalcberg, 2003). Dessa maneira, Lacan retoma a questão da referência fálica como responsável pela estruturação sexual feminina, mas o faz em dois momentos, sendo que, no primeiro, há uma maior identificação com a perspectiva freudiana (Bonfim, & Vidal, 2009).

Já no segundo momento, observa-se uma virada teórica decisiva, em que se afirma o registro edipiano sustentando a posição masculina, enquanto que a feminilidade é entendida no além Édipo - o não todo fálico. Isto é, a mulher não é toda inscrita na função fálica, sendo submetida a um outro gozo, que Lacan chamará de suplementar, pois ultrapassa a referência fálica (Lacan, 1972-1973/2008).

Em seu Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante (1971/2009, p. 69), Lacan postula sua controversa frase - "A mulher não existe". Afirmação que recebeu e ainda recebe intensas críticas de feministas e psicanalistas mulheres. Todavia, o que Lacan diz com essa afirmação é que, por não haver um significante que represente o sexo feminino, não existe A mulher - universal transcendente ao conjunto de todas as mulheres. Ela só existe em sua singularidade, isto é, não existe a mulher enquanto representação do que é ser mulher. Dessa maneira, a mulher não possui um traço identificatório em que possa apoiar sua posição feminina, o que faz com que cada uma busque em sua semelhante, no caso, primeiramente, a mãe, um traço de feminilidade que lhe falta (Teixeira, 1991).

Assim, com os avanços de Lacan frente à questão da feminilidade deixada por Freud, percebe-se a importância da relação da mãe e sua filha para o entendimento da sexualidade feminina. É do olhar da mãe que a filha retira o que precisa para constituir o seu feminino. É preciso que a filha se separe do Outro materno, mas para que isso ocorra ela tem que ter ocupado antes um lugar de alienação no desejo da mãe. Quando tal processo não ocorre, é a ex-sistência da filha que fica em suspenso ( Lacan, 1972-1973/ 2008; Del Corso, 2016). E, por essa condição, a cada mulher é imposta a tarefa de criar a sua maneira de ser, à medida que é não toda fálica.

Visto que a inscrição dos sujeitos, sejam homens ou mulheres, não é rigidamente fixada, mas passa por modificações, ao longo da história, que alteram os lugares que a cultura lhes confere, ao se estudar a questão da feminilidade não se deve deixar de levar em conta as profundas mudanças sociais ao longo dos anos, principalmente no que concerne ao papel da mulher na sociedade.

Ao longo dos séculos XVIII e XIX surgem a família nuclear e o lar burguês, que criam um padrão de feminilidade que de certa maneira sobrevive ainda hoje, cuja função principal é promover o casamento e sustentar a virilidade do homem burguês. A partir daí, aplica-se às mulheres um conjunto de atributos, funções, predicados definidos para ocupar um único lugar social - a família, o espaço doméstico e a maternidade (Kehl, 2016). Segundo Kehl (2016), naqueles anos quase todos os discursos sobre a mulher se referiam à natureza - o fator reprodutivo, em que a sexualidade feminina só estaria plenamente realizada com a maternidade: "o conceito de natureza, fundado sobre a sexualidade num grau muito mais amplo do que no caso dos homens, atravessou quase dois séculos no centro dos discursos sobre a feminilidade" (Kehl, 2016, p. 46).

Todavia, no final do XIX e início do século XX já começa a se esboçar um período revolucionário com as primeiras manifestações de rebeldia das mulheres. Surge o movimento de mulheres, pois elas passam a reivindicar um local público e não mais apenas o âmbito doméstico. Passam a reivindicar o direito ao estudo, à política e à cidadania. As mulheres ascendem ao mercado de trabalho e passam a ter uma importante contribuição no sustento material da casa, antes atribuído apenas ao homem. Com o avanço da tecnologia e da medicina, surgem os métodos contraceptivos, que permitem à mulher a escolha pela maternidade ou não. As configurações familiares se modificam, há uma forte reivindicação por parte das mulheres à liberdade sexual, o que, por sua vez, transforma os padrões de feminilidade (Kehl, 2016).

Assim, haja vista essa grande transformação social em relação aos padrões de feminilidade e sexualidade feminina, o presente artigo tem como objetivo entender como a feminilidade e a sexualidade feminina têm sido abordadas dentro da psicanálise lacaniana nos últimos anos. Para tanto foi realizada uma revisão sistemática da literatura sobre o tema com o recorte de tempo de 2000 a 2018, visto que este período corresponde ao século XXI, que apresenta um novo contexto social, político e econômico.

 

Método

O método utilizado foi o de revisão sistemática, que consiste em um levantamento de estudos já publicados a partir de um tema específico com intuito de buscar respostas a determinadas questões. Esse método proporciona um panorama sobre a área de estudo pesquisada, oferecendo suporte para novas pesquisas que preencham possíveis lacunas existentes no campo científico (Costa, & Zoltowski, 2014).

No presente artigo, a questão a que se pretendeu responder foi como a feminilidade e a sexualidade feminina têm sido abordadas na psicanálise nos últimos anos. Para tanto realizou-se um coleta de dados on-line por meio dos descritores: feminilidade/femininity AND psicanálise/psychoanalysis AND sexualidade feminina/female sexuality AND Mulher/Woman AND Lacan. A busca dos artigos foi realizada de outubro de 2017 a fevereiro de 2018 nas seguintes bases de dados: Scielo, Portal de Periódicos CAPES, BVS Psicologia Brasil, BVS Ciências da saúde, Scopus, Lilacs, PsycINFO e Google Scholar. Utilizou-se o recorte de tempo de 2000 a 2018 visto que o interesse, no presente artigo, é entender como o tema da feminilidade e da sexualidade feminina tem sido tratado dentro da psicanálise no século XXI, tendo em conta as grandes transformações sociais que ocorreram em relação ao papel da mulher desde meados do século XX e início do século XXI.

Após essa primeira busca foi realizada uma seleção dos artigos por meio dos títulos e palavras-chave, estabelecendo as referências potencialmente relevantes para a pesquisa. Em seguida foram removidos os artigos duplos, isto é, os resultados que se encontravam repetidos. Depois foi realizada uma busca nos resumos e foram selecionados os artigos segundo critérios de inclusão e exclusão. Aqui os critérios de inclusão foram: artigos com publicação em português e/ou inglês, artigos com publicação de 2000 a 2018, artigos sob o referencial da psicanálise freudiana e lacaniana. Foram excluídos artigos que se debruçavam sobre alguma patologia ou sintomatologia específica, artigos pautados por outro referencial teórico, artigos a partir de pesquisas empíricas e artigos que não foram encontrados na íntegra. A revisão foi realizada apenas por meio de artigos científicos, ficando de fora teses e dissertações. Justifica-se essa exclusão pelo fato de, na atualidade, a maioria destas ser publicada na forma de artigo.

Depois de finalizada a etapa de seleção dos artigos, os estudos que compuseram o banco final foram explorados de maneira pormenorizada. Nessa análise prezaram-se tanto aspectos quantitativos - dados mais gerais dos artigos, como nome do estudo, descritores, data, objetivos, método - como qualitativos e foi realizada uma análise da teoria apresentada levando a uma síntese do fenômeno estudado.

 

Resultados e discussão

Tabela 1: resultado dos processos de busca de artigos nas bases de dados

Busca nas bases
de dados

Número de artigos encontrados

Referências potencialmente relevantes

Removidos duplos

Busca nos resumos

Removidos segundo critérios de inclusão e exclusão

Banco de dados final

Scopus

N=40

N=13

 

 

 

 

Google Scholar

N= 3.090

N=81

 

 

 

 

BVS Psicologia Brasil

N=132

N=62

 

 

 

 

Scielo

N=20

N=8

 

 

 

 

Lilacs

N=82

N=45

 

 

 

 

Portal periódicos CAPES

N=5

N=3

 

 

 

 

PsyInfo

N=9

N=2

 

 

 

 

Total

N=3378

N=214

N=55

N=159

N=122

N=37

A tabela acima apresenta os resultados das etapas do processo de busca dos artigos nas bases dados até a composição do banco final. Na primeira busca encontraram-se 3378 estudos. Realizada a primeira seleção por meio dos títulos e palavras-chave, chegou-se ao número de 214 artigos potencialmente relevantes para o presente estudo. Foram retirados aqueles que se repetiam (55), chegando-se a 159 artigos. Realizou-se, então, uma segunda seleção por meio dos resumos de acordo com os critérios de inclusão e exclusão, sendo excluídos 122 artigos, fechando o banco final com 37 artigos.

Os artigos que compuseram o banco final foram analisados de maneira pormenorizada. Confeccionou-se uma tabela com algumas de suas características, como o nome do estudo, a data e objetivo apresentado. A tabela é apresentada abaixo.

Tabela 2: nome, data e objetivos dos artigos que compuseram o banco final

Nome dos artigos

Data

Objetivos

A feminilidade e o inconsciente

2002

Debater a relação da feminilidade com a psicanálise.

Feminilidade e castração: Seus impasses no discurso freudiano sobre a sexualidade feminina

2002

Discutir o problema da castração em três momentos decisivos da trajetória da teoria freudiana sobre a sexualidade feminina.

Feminilidade: alteridade e experiência

2002

Desenvolver conceito de alteridade a partir dos conceitos de feminilidade e experiência.

Lacan e o feminino: algumas considerações críticas

2003

Analisar a contribuição lacaniana ao debate em torno da questão do feminino na psicanálise.

O que é uma mulher? Respostas clínicas ao problema do feminino

2004

Realizar um questionamento a respeito das consequências clínicas das teorias de Freud e Lacan sobre a feminilidade.

Masculino e feminino: alguns aspectos da perspectiva psicanalítica

2007

Desenvolver as noções de masculino e feminino na teoria do desenvolvimento psicossexual de Freud.

O enigma do universo feminino

2007

Fazer algumas considerações a respeito da feminilidade e seu processo de constituição, com base na interlocução com o filme dirigido por Sofia Copolla.

De Freud a Lacan: as ideias sobre feminilidade e a sexualidade feminina

2008

Uma releitura lacaniana sobre as ideias freudianas sobre a feminilidade.

A construção do feminino: um mais-além do falo

2009

Discutir sobre o vir a ser mulher por meio de um caso clínico.

A feminilidade na psicanálise: Controvérsia quanto à primazia fálica

2009

Discutir a postulação freudiana da primazia do falo na estruturação da sexualidade quanto ao seu papel na feminilidade.

A teoria freudiana da feminilidade: de Freud a Lacan

2009

Realizar uma reflexão sobre a questão da feminilidade por meio das proposições freudianas e lacanianas sobre o tema.

As mulheres no contexto e nos textos freudianos

2009

Realizar um percurso pelos escritos freudianos, tomando como eixo as conceituações sobre as mulheres e o feminino.

Reflexões sobre o feminino

2009

Abordar o feminino como uma dimensão psíquica arcaica.

Feminino e psicanálise: um estudo sobre a literatura psicanalítica

2010

Apresentar uma pesquisa sobre mulher e feminino na literatura psicanalítica realizada a partir da análise de artigos publicados em dois períodos: no auge do feminismo e na atualidade.

Considerações sobre o feminino e o real na psicanálise

2011

Discutir a relação privilegiada das mulheres com o conceito de real em Lacan.

O feminino como metáfora do sujeito na psicanálise

2011

Percorrer algumas concepções que contornam e compõem o enigma da feminilidade.

A feminilidade: de um outro a um Outro

2012

Discutir a representação do enigma da feminilidade na psicanálise.

Feminilidade - caminho de subjetivação

2012

Instigar um processo de reflexão sobre a temática da feminilidade, tendo como foco a vertente da experiência constitutiva do sujeito em seu processo de subjetivação.

A construção do conceito de feminilidade na obra freudiana

2013

Abordar brevemente a trajetória feita por Freud para a construção do conceito de feminilidade.

A feminilidade como uma posição de sujeito: uma abordagem lacaniana

2013

Diferenciar duas formas de pensar a feminilidade: a partir da economia libidinal de um homem e como forma própria de um sujeito sexuado.

Feminilidade: enigma e semblante

2013

Abordar o feminino a partir da indagação de Freud sobre o enigma da mulher até a retomada por Lacan.

Feminilidade: um detalhe

2013

Abordar a questão da feminilidade em relação ao tema das roupas.

O amor e o feminino no século XXI

2013

Discutir sobre o amor e o feminino no séc. XXI.

Sexualidade feminina e feminilidade: mais além do Édipo

2013

>Abordar a especificidade que a sexualidade feminina e a feminilidade possuem para a psicanálise.

Estudo epistemológico da teoria freudiana da feminilidade

2014

Realizar um retorno à teoria freudiana sobre a mulher e a feminilidade.

Todo fálico e não-todo: construções lacanianas sobre a sexuação

2014

Apresentar o avanço teórico produzido por Lacan a partir da introdução da lógica em torno do problema da sexuação, no qual ele delimitou de forma precisa os posicionamentos masculino e feminino por meio de suas modalidades de gozo.

Configurações contemporâneas da feminilidade: uma leitura psicanalítica

2015

Discutir a feminilidade a partir das contribuições psicanalíticas.

Feminilidade: explorando os impasses do tornar-se mulher estabelecidos na relação mãe e filha

2015

Discutir o conceito de feminino por meio do filme Cisne Negro pelo aporte teórico da psicanálise.

Sexualidade feminina: um enigma a ser decifrado

2016

Não especifica.

A relação mãe-criança e a feminilidade

2016

Discutir a articulação entre os temas feminilidade e a maternidade a partir da clínica psicanalítica com crianças.

Feminilidade, amor e devastação: alguns pontos de encontro entre Freud e Lacan

2016

Fazer algumas articulações entre o pensamento freudiano e a teoria lacaniana no que se refere à relação da feminilidade com o amor.

O feminino, entre centro e ausência

2017

Não especifica.

O feminino e a perspectiva lacaniana de superação da lógica fálica

2017

Discutir a questão do feminino a partir da perspectiva psicanalítica, notadamente no que diz respeito ao postulado lacaniano de superação da lógica fálica.

A maternidade como saída edípica: considerações sobre a feminilidade

2017

Discutir sobre a feminilidade na obra freudiana a partir dos complexos de Édipo e de castração em um tornar-se mulher enquanto correlativo à maternidade.

O desafio do feminino no século XXI

2017

Refletir sobre o enigma do feminino e compreender os fatores que aí estão envolvidos de forma estrutural e/ou contingente.

A devastação e o feminino

2018

Introduzir as relações de devastação com o feminino, tendo como referência a obra lacaniana.

O feminino, além do Édipo

não informado

Indicar caminhos de abertura que a leitura do desejo conjugado ao feminino confere à teoria e à clínica psicanalítica.

Pode-se perceber pela tabela acima que a maioria dos artigos encontrados apresenta nos títulos descritores parecidos como feminilidade, feminino, maternidade, relação mãe-filha, sexuação, lógica fálica e não toda fálica, enigma, devastação, amor, entre outros. Isso pode demonstrar uma coerência e unificação na área de estudo pesquisada. Outro dado relevante é em relação aos anos de publicação, que seguem uma cronologia, sem apresentar um acúmulo de publicações em determinado ano, apresentando ausência de trabalhos publicados apenas nos anos de 2000 e 2001. Todavia, isso não significa que nesses anos não houve nenhuma publicação com esse tema. A ausência pode ter decorrido dos critérios de inclusão e exclusão da presente pesquisa.

Ainda outro aspecto relevante diz respeito aos objetivos dos trabalhos: a maioria traz como proposta discutir teoricamente o conceito de feminilidade partindo dos ensinamentos de Freud e retomados por Lacan. Apenas alguns artigos traziam casos clínicos para exemplificar ou usam de alguma obra fictícia, seja literária ou filme, para fundamentar a discussão. Acredita-se que isso se deva ao fato de que um dos critérios de exclusão da pesquisa era artigos que refletiam sobre alguma patologia específica, o que faz pensar que os estudos da clínica psicanalítica ainda se centram em discutir sintomatologias, deixando os conceitos a cargo de artigos exclusivamente teóricos.

Ainda é importante dizer que a maioria dos artigos encontrados não trazia de maneira clara o método utilizado para pesquisa. Em muitos deles esse dado era inexistente, em outros se citava a revisão bibliográfica como método de investigação e pesquisa. Segundo Hohendorff (2014 ), é importante não confundir revisões de literatura ou bibliográfica com artigos de revisão. Revisões de literatura são geralmente utilizadas para projetos de pesquisas, dissertações e outros trabalhos acadêmicos e costumam ser demasiadamente extensas, revisando o tópico de interesse em sua totalidade. Diferentemente ocorre em um artigo de revisão de literatura, seja esta narrativa ou sistemática. O fato demonstra uma falta de clareza dos autores em apresentar o método utilizado nos artigos, ou seja, a maneira como se chegou a suas conclusões.

Depois dessa primeira avaliação dos artigos, realizou-se uma análise pormenorizada da teoria apresentada, com o intuito de responder ao objetivo do presente trabalho, que é entender como a feminilidade e a sexualidade feminina têm sido abordadas dentro da psicanálise nos últimos anos. Optou-se por apresentar a síntese por meio de quatro categorias de análise, extraídas das leituras dos artigos que compuseram o banco final, a saber: a feminilidade e a relação pré-edípica, a feminilidade e o real: a lógica não toda fálica, a feminilidade, a relação mãe e filha e o amor e a feminilidade e a maternidade.

 

A feminilidade e a relação pré-edípica

A maioria dos artigos estudados na presente pesquisa abordou a feminilidade e a sexualidade feminina sob o vértice da relação pré-edípica, seguindo os caminhos iniciados por Freud e retomados por Lacan. Nestes o pré-édipo aparece com elemento fundante do feminino, indicando que a sexualidade feminina está impregnada da relação mãe e filha.

Freud foi um dos primeiros estudiosos a se perguntar sobre a questão da sexualidade feminina. No início de seus estudos, via o Complexo de Édipo como questão central da sexualidade, aquele que definiria tanto a masculinidade quanto a feminilidade. Isto é, Freud enfatizava a função fálica como organizadora da sexualidade feminina, na medida em que só pelo desejo de ter o falo se processaria o acesso à feminilidade. Esse acesso, no entanto, só se concretizaria caso esse desejo fosse substituído pelo desejo de ter um filho. Assim, os conceitos de feminilidade e maternidade se confundem. Nos últimos escritos de Freud sobre a temática da feminilidade, contudo, ele percebe que há algo mais no desejo feminino, fazendo com que postule uma importante questão: o que quer a mulher? (Bonfim, & Vidal, 2009).

Freud não conseguiu responder a seu questionamento, apontando o feminino como um continente negro, isto é, um enigma que só poderia ser solucionado pelos poetas. Entretanto, Freud deixa uma pista ao dizer que o complexo de Édipo não dá conta do feminino, destacando como essencial para alcançar o enigma da marca do feminino a relação pré-edípica. Desse modo, assim como no menino, a mãe aparece como primeiro objeto de amor da menina, que só se afastará dela por censurá-la por não ter lhe dado um pênis e por tê-la trazido a esse mundo como mulher. Aqui aparece a importância dada por Freud à distinção anatômica dos sexos, pois, assim que a menina se percebe como diferente e como aquela que não possui o pênis, ressente-se e revolta-se contra a mãe, voltando-se ao pai, passando de uma posição ativa para uma posição passiva que lhe possibilitaria o acesso à feminilidade (Thomazini, & Scapin, 2015).

Lacan retoma as questões apresentadas por Freud, mas o faz em dois momentos. No primeiro momento de seu ensino, ele retoma a questão da primazia fálica, mas, para ele, o falo na doutrina freudiana não diz respeito a uma fantasia, nem a um objeto parcial e muito menos a um órgão - o falo é um significante. Ou seja, o que falta à mulher não é o falo enquanto órgão, mas um significante em que possa apoiar sua posição feminina (Thomazini, & Scapin, 2015).

É justamente a falta desse significante que faz com que cada mulher busque em sua semelhante, no caso, primeiramente, a mãe, um traço de feminilidade que lhe falta. Nesse sentido, é possível perceber que o pensamento teórico embasado em Lacan não só se refere à relação mãe-criança, como é feito em outras linhas de pensamento, mas à relação mãe e filha, coisa completamente diferente. Aqui se fala de uma relação que se prolonga no tempo e na experiência da vida de uma mulher ( Zalcberg, 2003).

Dentro desse pensamento aparece a questão da devastação, conceito presente em vários dos artigos estudados. A menina espera mais substância de sua mãe do que seu pai. Por isso é preciso que, nessa relação, a mãe acolha o corpo feminino da filha, o envolva com as palavras. É preciso que a filha encontre um lugar no desejo da mãe para depois se separar dela e elaborar uma demanda ao pai com aquilo que não foi simbolizado pela mãe. Caso isso não aconteça, deixará marcas de desamor ou perda de reconhecimento, o que ao longo dos anos não perde força, mas se prolonga na vida da mulher, levando a uma devastação de sua condição de mulher. Nesse sentido, pode-se entender que a devastação na mulher comporta algo de um traço de não separação com a mãe, o que a mortifica e que pode vir a se repetir nos relacionamentos amorosos da vida adulta (Kuss, 2016).

No segundo tempo de seu ensino, Lacan se interroga "se a mediação fálica pode drenar tudo o que pode se manifestar de pulsional na mulher" (Lacan, 1960/1988, p. 739). É nesse período que ele passa a abordar a questão da sexuação e da diferença sexual através da heteromorfia do gozo feminino e do gozo masculino, pela qual o gozo masculino seria o gozo do órgão, regido pela castração e pela lógica fálica, enquanto o gozo feminino seria não todo submetido à castração, isto é, um gozo suplementar à lógica fálica, que está para além do falo (Queiroz, Regina, & Siqueira, 2017; Thomazini, & Scapin, 2015).

Nesse sentido, percebe-se que o ensino de Lacan sobre a feminilidade e o desejo feminino segue o curso de seus demais estudos, isto é, no inicio há uma importante retomada de Freud, para depois começar a postular conceitos propriamente lacanianos, como desejo, gozo e laço social, que se aproximam grandemente da prática analítica. Em um dos seus últimos seminários, em 1975, intitulado Mais ainda, Lacan se debruçará veementemente sobre a questão do feminino e da prática analítica. Tais conceitos se mostram extremamente atuais e se encontram presentes na maioria dos artigos atuais que se debruçam sobre essa temática.

Portanto, percebe-se que, apesar das grandes transformações ocorridas nos últimos anos, principalmente no que se refere ao papel da mulher na sociedade e aos padrões de feminilidade, na psicanálise o feminino muitas vezes ainda é abordado segundo o viés traçado por Freud e Lacan. Isso, à primeira vista, pode parecer uma estagnação da teoria nesse tempo todo. Quando se analisa mais de perto, no entanto, percebe-se que esses conceitos ainda são extremamente válidos, pois se referem a um saber relativo ao inconsciente, que é atemporal. O que não significa que as mudanças sociais e culturais não alteram em nada como a psicanálise entende o feminino, visto que, para a teoria lacaniana, o sujeito se constitui a partir do Outro, isto é, a partir daquilo que é anterior - o registro simbólico, a linguagem, a cultura. Mas diz que há algo a respeito do desejo feminino que permanece nas mulheres desde Freud até hoje, isto é, algo do sexual que escapa da palavra.

 

A feminilidade e o real: a lógica não toda fálica

Os artigos que se debruçaram sobre o tema da feminilidade a partir da lógica não toda fálica se fundamentam mais no segundo tempo do ensino de Lacan, abordando a sexualidade feminina pela ótica do conceito de gozo, um Outro gozo próprio do feminino. Lacan (1960/1988), em seu texto "Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina", vai dizer que a mulher é não toda regida pela lógica fálica, há um além do falo. Um gozo suplementar e não complementar, isto é, há na mulher a inscrição fálica que a postula como sujeito, porém há nela também um gozo que não se submete ao simbólico e que, dessa maneira, não encontra representação no inconsciente, pois no inconsciente há apenas um significante para dizer do sexo - o falo, que faz com que Lacan postule que não há relação sexual, já que os gozos não coincidem e não se complementam.

Isso não quer dizer que Lacan negue a existência do ato sexual, mas que, para ele, o ato sexual não faz proporção entre os dois sexos, isto é, não há complementaridade, cada um goza à sua maneira e segundo seu fantasma. Aqui aparece a grande diferença de Lacan para Freud, pois ele precisa a diferença sexual a partir da diferença de gozo (Bonfim, 2014; Cristina, 2017; Zafiropoulos, 2009). A partir daí Lacan passa a postular o lado feminino segundo outra lógica, a do não todo fálico, o que impede a formação de um conjunto de todas as mulheres. Por isso ele afirma que A mulher como universal não existe, mas apenas enquanto uma a uma numa série aberta (Almeida, 1993; Poli, n.d.; Queiroz, Regina, & Siqueira, 2017).

A experiência desse Outro gozo, diferente do gozo fálico, é o que aproxima a mulher do real; na medida em que ela não está completamente submetida à lei do significante, permanece um inominável, um real que desfruta um Outro gozo, suplementar ao falo:

O real não é então o que nomeamos como realidade, mesmo que seja verdadeiro dizer que é por meio da realidade que o abordamos. Ao contrário, ele é o que escapa à realidade, o que não se inscreve no simbólico; ele envia ao traumático, ao inassimilável, ao impossível... Assim ele é definido como o que não se liga a nada, que está excluído do sentido, impensável, no limite de nossa experiência (Marcos, 2011, p. 150).

Nesse sentido, Lacan vai estudar a questão do feminino a partir da tese de um ser que não se submete inteiramente ao Édipo e à lei da castração. Privilegiando menos a identidade, a castração e a inveja do pênis, ele fundamenta suas análises a propósito do feminino na divisão da mulher entre os dois gozos - gozo fálico e gozo Outro. Portanto, na teoria lacaniana, a menina não mais disporia somente da referência à castração para tornar-se mulher, pois, por não ser submetida inteiramente ao simbólico, teria uma relação privilegiada com o real. Todavia, como pensar a relação particular que as mulheres teriam com o real? (Marcos, 2011).

Uma maneira de ler a relação privilegiada das mulheres com o real seria a falta de um representante do sexo feminino no inconsciente, o que proporciona uma relação mais íntima com a falta, com o furo, com o hiato no interior do simbólico, assinalando a dissimetria entre os dois sexos no que concerne ao falo, pois o falo é um objeto simbólico; é à medida de sua ausência ou presença que se instaura a diferença sexual, aqui não mais se referindo à diferença anatômica como em Freud (Marcos, 2011).

Essa definição do falo com o simbólico é essencial na abordagem da relação da mulher com o real, isto é, com a castração. A mulher não o tem simbolicamente, mas ele existe enquanto ausência simbólica. Esta é da ordem do real, isto é, uma falta real que a mulher terá de resolver. Nesse sentido, percebe-se que aqui Lacan não mais concorda com a teoria freudiana sobre a questão do homem e da mulher numa referência ao ter ou não ter o falo, mas vai dizer que é a ausência do falo na mulher que a faz falo, isto é, ele desloca a questão em direção a um ser o falo (Bassols, 2017; Marcos, 2011; Queiroz et al., 2017).

Assim, na teoria lacaniana, o falo é o significante mestre da relação sexual, ordenador da diferença sexual e das relações entre os homens e as mulheres. Mas não regula todos os gozos.

 

A mulher e o amor

Dentro dessa perspectiva não toda na mulher, muitos autores estudados nesta pesquisa trazem a questão do amor. Nas construções teóricas da psicanálise pode-se dizer que há uma aproximação do amor ao feminino pelo fato de que ambos contêm em suas construções a questão da falta (Ewerton, 2013).

Essa relação do amor e o feminino, desde Freud e depois com Lacan, está ligada à fase pré-edípica na mulher, havendo uma repetição das mulheres com seus parceiros amorosos de uma relação primitiva e difícil, a relação com sua mãe. Em seu texto "Sobre o narcisismo: uma introdução", Freud (1914/1974) se refere ao modo feminino e masculino de amar, sendo o primeiro narcísico e o segundo objetal, embora isso não seja uma regra. O amor narcísico implica uma relação imaginária, em que não se quer saber nada sobre a diferença, isto é, ama-se aquele que é igual a si, tendo que se fazer Um. Há uma crença na possibilidade de uma fusão, pois se quer que o outro complete. Nesse amor há uma tentativa de velar a falta, a castração (Ewerton, 2013).

Sobre a constituição desse narcisismo feminino, Freud dá importância à questão do olhar do outro, isto é, a mulher precisa de um olhar do outro, tal como precisou, no início de sua vida, do olhar da mãe para dar significação ao seu corpo feminino (Kuss, 2016).

Entretanto, segundo Kuss (2016), mesmo que a menina se identifique com a mãe, isso não resolve a sua questão com a feminilidade, que permanece aberta, já que a mãe também é privada do falo. Assim, a mãe não consegue resolver a questão de sua filha com a feminilidade, cabendo a cada mulher traçar uma construção própria.

Nesse caminho próprio de cada mulher na construção de sua sexualidade, o amor pode aparecer como uma suplência à questão da inexistência de um significante feminino, isto é, articulado ao gozo feminino (Kuss, 2016). É nesse sentido que Lacan vai falar da erotomania como uma forma de amar na mulher, isto é, um amor sem limites e desenfreado, assim como seu gozo para além do falo. Para a mulher, mais importante do que amar é ser amada, isto é, há no amor uma demanda por um suplemento narcísico que dê conta do vazio de sua sexualidade (Kuss, 2016; Ewerton, 2013; Lima, 2006).

Assim, quando uma mulher ama a partir desse lugar - vertente erotomaníaca, em que não sabe onde o outro termina e ela começa -, pode-se dizer que há no relcionamento amoroso uma importante repetição da relação pré-edipica que teve com sua mãe, isto é, comporta algo de um traço de não separação com a mãe, que a mortifica no que ela tem de singular, podendo convocá-la a reviver suas relações mais primitivas e levando a um estado de devastação que não resolve sua questão com a feminilidade.

Nesse sentido, percebe-se que os autores que trazem essa questão do amor na mulher fazem um retorno a Freud em relação ao seu conceito de narcisismo e à importância dada à relação pré-edípica no destino da mulher, assim como também se utilizam da releitura de Lacan sobre Freud no que diz respeito às questões da sexuação no discurso feminino, apresentando que muitas vezes o amor é encarado, na mulher, como uma forma de se reaver com a castração e, em seguida, tentar velá-la, isto é, uma tentativa de entender sua feminilidade pela via do amor, tentativa que se apresenta como frustrada, no entanto, visto que o Um não se faz.

 

A feminilidade e a maternidade

Devido às mudanças no campo social, em que as mulheres não mais se encontram apenas no âmbito doméstico mas ascendem ao campo do trabalho e das relações sociais extrafamiliares, e também com o advento dos métodos contraceptivos, que tornam a maternidade apenas mais uma opção, muitos autores aqui estudados vão questionar a equivalência dada por Freud entre maternidade e feminilidade.

Como já discutido anteriomente, Freud (1923-1924/1996) vê a função fálica como organizadora da sexualidade feminina na medida em que será pelo desejo de ter um falo substituído pelo desejo de ter um filho que se processará o acesso à feminilidade. Nesse sentido, em Freud, mulher e mãe se confundem. Como apontado por Kehl (2016), a biologia é usada para dar corporeidade à mulher e justificar seu papel social. Isto é, pelo fato de a mulher ter o aparato da reprodução, ela deveria exercer como função a maternidade e o cuidado do lar (Coelho, & Wollmann, 2017).

Então, embora o discurso freudiano inaugure uma noção de desenvolvimento sexual de origem psíquica, quebrando com a ideia naturalista e essencialista, paradoxalmente, ao sustentar a maternidade como destino normal da feminilidade, coloca a mulher novamente sob a ótica naturalista (Coelho, & Wollmann, 2017).

Entretanto, na teoria lacaniana, mulher e mãe não são equivalentes, não há inscrição no inconsciente para a mulher - "A mulher não existe", no sentido de que no inconsciente há apenas a inscrição de um significante sexual: o falo. Mas há inscrição para a mãe, permanecendo aberta a questão sobre a mulher, tanto para as mulheres quanto para os homens. Maternidade não é feminilidade, isto é, tornar-se mãe não resolve a questão do tornar-se mulher (Coelho, & Wollmann, 2017; Kuss, 2016).

Alguns autores vão postular que há na maternidade uma ligação com a castração, no sentido de que um filho pode, para a mulher, vir a ser colocado no lugar de falo, isto é, uma equivalência entre pênis-falo-bebê, em uma tentativa de obliterar a falta nela. Todavia, o que acontece é uma falsa completude reconstruída na relação entre a mãe e seu filho (Jerusalinsky, 2009). Para a teoria lacaniana, pela divisão da mulher, isto é, pela ausência de um significante que sustente sua posição feminina, a experiência da maternidade pode ser vista como uma resposta a esse falta-a-ser, assim como o amor discutido anteriormente.

Entretanto, Kehl (2016) afirma que, devido às extensas modificações sociais e a mudança do papel social feminino nos séculos XX e XXI, os filhos vêm perdendo o lugar fálico junto às mães, sendo que muitas vezes a experiência da maternidade é vivida pelas mulheres como uma limitação que as impede de tomar como posse outros atributos fálicos que, na contemporaneidade, estão ao seu alcance, como por exemplo o trabalho.

Nesse sentido, pode-se perceber que, na contemporaneidade, a maternidade vem perdendo espaço enquanto lugar fálico na mulher. E, mesmo quando essa experiência se concretiza, ela não resolve todo enigma do que é ser mulher, visto serem posições não equivalentes. Isso distancia a mulher e sua sexualidade de uma explicação naturalista, sustentada nos séculos anteriores.

 

Considerações finais

Pode-se concluir, por meio dos artigos aqui estudados, que Freud abre um caminho para o estudo da feminilidade e da sexualidade feminina ao ouvir as histéricas e associar seus sintomas à grande repressão sexual que sofriam na época. Com isso, o pai da psicanálise torna-se revolucionário, pois traz a questão da sexualidade sob o âmbito psíquico e não apenas anatômico. Todavia, muito da concepção naturalística ainda é encontrada em Freud, ao fazer equivalência entre a sexualidade feminina e a masculina, dando ao feminino uma concepção baseada na falta.

Lacan, por sua vez, avança e, embora ainda articule o conceito de feminilidade sob a perspectiva da falta, faz isso não mais em termos anatômicos, mas sob o ponto de vista do significante. Isto é, o que falta à mulher é um representante que sustente sua posição feminina, assim como o falo é para os homens. Isso impossibilita a definição da mulher em termos de um universal. Assim, é possível notar que a teoria lacaniana não mais vai discutir a posição mulher e homem segundo um modelo naturalista e ligado à diferença sexual anatômica, mas a partir da diferença de gozo. Nessa teoria aparece um gozo suplementar e não complementar, isto é, há na mulher a inscrição fálica que a postula como sujeito, porém há nela também um gozo que não se submete ao simbólico e que, dessa maneira, não encontra representação no inconsciente, aproximando a do real.

É nesse sentido que, para a teoria lacaniana, "A mulher não existe", o que não quer dizer que não exista o lugar da mulher na sociedade, vistas as grandes conquistas delas nos últimos anos. O que não existe é um significante que as nomeie e as constitua um todo, o que faz com que cada uma tenha que trilhar um caminho próprio para se constituir enquanto mulher, o que se apresenta como um encargo trabalhoso e contínuo.

Nos artigos aqui abordados, é possível notar que a relação mãe e filha aparece como extremamente importante nesse trilhar no processo de feminilização, visto que é do olhar da mãe e dessa primeira relação amorosa que a menina e o seu corpo ganham existência. Entretanto, para isso é preciso que a filha também se separe desse materno, o que nem sempre se realiza de maneira fácil, pois, carregada de complexidade, essa relação se prolonga no tempo e na experiência de uma mulher. Nesse momento, aparece o conceito de devastação, muito importante para entender a questão feminina articulada ao conceito de amor, visto que grande parte das queixas das mulheres que chegam aos consultórios perpassam as questões dos relacionamentos amorosos. Segundo os autores aqui estudados, há nos relacionamentos amorosos uma importante repetição da relação pré-edipica que a filha teve com sua mãe, isto é, comportam algo de um traço de não separação da mãe que a mortifica enquanto o que ela tem de singular, podendo convocá-la a reviver suas relações mais primitivas, levando a um estado de devastação que não resolve sua questão com a feminilidade.

Por último, outro ponto relevante apresentado pelos artigos, articulados ao lugar não todo da mulher e as suas duas modalidades de gozo - fálico e suplementar - é a questão da maternidade. Segundo os autores, diferente de Freud, que via a maternidade como saída normal da mulher para a feminilidade, na teoria lacaniana mulher e mãe não são equivalentes. Embora muitas vezes a maternidade possa ser tomada como lugar fálico na mulher em uma tentativa de obliterar a falta nela, tornar-se mãe não resolve a questão do tornar-se mulher.

Nesse sentido, pode-se concluir que a teoria psicanalítica lacaniana teve um grande avanço quanto ao entendimento do feminino. Segundo essa teoria, há no feminino algo que não pode ser universal e representável. O feminino está bem mais próximo do real e não pode mais ser explicado segundo a diferença sexual anatômica ou segundo uma concepção naturalística baseada no corpo biológico da mulher e em sua capacidade de concepção e gestação. O padrão de feminilidade se transformou, abrindo caminhos para novas formas de sexuação na mulher, embora algo de inominável ainda permaneça, que escapa à palavra.

 

 

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Artigo recebido em: 26/04/2018
Aprovado para publicação em: 04/06/2019

Endereço para correspondência
Flávia Angelo Verceze
E-mail: vercezeflavia@gmail.com
Silvia Nogueira Cordeiro
E-mail: silvianc2000@gmail.com

 

 

*Ms, Professora Assistente, Universidade Estadual de Londrina.
**Dr, Professora Adjunta, Universidade Estadual de Londrina.

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