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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.1 Rio de Janeiro ene./jun. 2020

 

ARTIGOS

 

Transmissão psíquica transgeracional: uma revisão da literatura

 

Transgenerational psychic transmission: a literature review

 

Transmisión psíquica transgeneracional: una revisión de la literatura

 

 

Carolina Rizzatto Martins Padilha*; Valeria BarbieriI**

IUniversidade de São Paulo - USP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo teve como objetivo investigar o que vem sendo publicado na literatura nacional e internacional sobre a transmissão psíquica transgeracional. O levantamento bibliográfico utilizou o critério temporal dos últimos quinze anos e as bases de dados Lilacs, PsycINFO, Scielo e PePSIC. Constituíram o corpus deste estudo 27 artigos. Os resultados apontaram que os estudos selecionados utilizaram o método qualitativo, são nacionais e são oriundos de pesquisa empírica, prática clínica e teóricos. Poucos foram os que acessaram três gerações, que incluíram crianças e linhagens masculinas. A partir do exposto, pôde-se estabelecer um olhar reflexivo e diferenciado sobre as relações familiares como constituintes do sofrimento psíquico individual. Os estudos frisaram a possibilidade de transformação criativa desses legados familiares sintomáticos, indo além do viés negativo da transgeracionalidade.

Palavras-chave: transmissão psíquica entre gerações, teoria psicanalítica, revisão de literatura.


ABSTRACT

This study aimed to investigate what has been published in the national and international literature on transgenerational psychic transmission. The bibliographical survey used the temporal criterion of the last fifteen years and the databases Lilacs, PsycINFO, Scielo and PePSIC. The study consisted of 27 articles. The results indicated that the selected studies used the qualitative method, are national and come from empirical research, clinical practice and theorists. Few have accessed three generations, including children and male lineages. Concluding, it was possible to establish a reflective and differentiated view about family relations as constituents of individual psychic suffering. The studies emphasized the possibility of creative transformation of these symptomatic family legacies, going beyond the negative bias of psychic transmission between generations.

Keywords: psychic transmission between generations, psychoanalytic theory, literature review.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo investigar lo que viene siendo publicado en la literatura nacional e internacional sobre la transmisión psíquica transgeneracional. El levantamiento bibliográfico utilizó el criterio temporal de los últimos quince años y las bases de datos Lilacs, PsycINFO, Scielo y PePSIC. Constituyeron el corpus de este estudio 27 artículos. Los resultados apuntaron que los estudios seleccionados utilizaron el método cualitativo, son nacionales y son oriundos de investigación empírica, práctica clínica y teóricos. Pocos fueron los que accedieron a tres generaciones, que incluyeron niños y linajes masculinos. A partir de lo expuesto, se pudo establecer una mirada reflexiva y diferenciada sobre las relaciones familiares como constituyentes del sufrimiento psíquico individual. Los estudios subrayaron la posibilidad de transformación creativa de esos legados familiares sintomáticos, yendo más allá del sesgo negativo de la transgeneracionalidad.

Palabras clave: transmisión psíquica entre generaciones, teoría psicoanalítica, revisión de literatura.


 

 

Introdução

O conceito de transmissão psíquica transgeracional pertence à Psicanálise Vincular, cujas bases teóricas se assentam no pressuposto de que o sujeito da pulsão, da psicanálise clássica, é, antes de tudo, um sujeito da herança (Kaës, 2001). No texto "Sobre o narcisismo: uma introdução", Freud (1914/2010) destacou que o narcisismo do sujeito nasce sobre o da geração que o precede, de modo que os herdeiros se constituem no e pelo desejo dos genitores, como aposta futura da realização dos sonhos e desejos que permaneceram insatisfeitos. Ainda, acrescentou que o amor dos pais direcionado à criança seria sinônimo do renascimento de seus próprios narcisismos. A prole ficaria dividida entre ser um fim para si mesma e ser um elo de uma cadeia geracional, na qual estaria obrigatoriamente vinculada, sendo essa uma forma de garantir a imortalidade do ego da ascendência. Desde a concepção, portanto, o sujeito estaria envolvo pelos mitos e ideais parentais que inscrevem e estruturam sua subjetividade. A família teria papel primordial como transmissora de valores, significados e percepções em prol da construção da subjetivação das próximas gerações (Magalhães, & Féres-Carneiro, 2007).

Nesse contexto, a transgeracionalidade pode ser definida como um campo de forças psíquicas inconscientes pertencentes a grupo familiar que são transmitidas através das gerações pelo viés da negatividade: transmite-se o que está oculto, escondido e não elaborado (Kaës, 2001). Tudo aquilo que não pôde ser simbolizado pela geração precedente é transmitido em sua forma bruta às próximas gerações, que permanecerão ligadas entre si através de um sofrimento de aparente causa desconhecida (Kaës, 2001). Haveria uma pulsão em transmitir por parte dos genitores, relacionada aos desejos narcisistas de imortalidade e à urgência de deslocar para outro psiquismo algo que não pôde ser elaborado pelo psiquismo de origem (Chemin, 2006). A herança parental transgeracional, portanto, pode criar obstáculos para a constituição da subjetividade do sujeito, que se torna hospedeiro de uma história que não lhe pertence, advinda de gerações anteriores. Isso ocorre porque a s representações herdadas permanecem engessadas por uma quantidade de excitação psíquica não simbolizada, favorecendo a repetição de acontecimentos perturbadores (Féres-Carneiro, Lisboa, & Magalhães, 2011). Como consequência, há um processo de transmissão alienante em que o indivíduo torna-se ausente de si mesmo e sujeito à repetição, em um aprisionamento nos fantasmas familiares (Kaës, 2001). Nesse sentido, a transmissão implicaria na inexistência de limite entre espaço grupal ou familiar e o subjetivo, de forma que os elementos inconscientes sejam transmitidos através dos sujeitos e não entre eles, favorecendo a perpetuação de segredos e lutos de difícil transformação (Kaës, 2001).

É importante ressaltar a diferença entre intergeracionalidade e transgeracionalidade, sendo a primeira caracterizada por um viés positivo e adaptativo, estando relacionada a vivências psíquicas elaboradas de forma geral: fantasias, reprodução de crenças, valores, princípios e identificações (Kaës, 2001). A transmissão psíquica nem sempre estará relacionada à sintomatologia e adoecimento, de modo que o grupo familiar pode ser considerado a matriz da constituição do sujeito, tornando-se espaço privilegiado para a passagem da transmissão psíquica entre as gerações de conteúdos adaptativos ou negativos (Trachtenberg, Kopittke, Pereira, Chem, & Mello, 2013). É a partir do legado recebido que será definida a posição do sujeito na família e o modo como irá lidar com a história pré-existente familiar (Scorsolini-Comin, & Santos, 2016). Todo esse processo permite que o indivíduo vincule-se a um grupo e desenvolva o sentimento de pertença (Kaës, 2001).

Kaës (2001) considera os sofrimentos psíquicos e as patologias da contemporaneidade como pertencentes ao vínculo intersubjetivo, em detrimento do atributo individual. O adoecimento, nessa perspectiva, é considerado como conexão entre família e herança alimentada por mitos e fantasias, denunciando uma psicodinâmica familiar permeada por conflitos e dificuldades (Féres-Carneiro et al., 2011). Dessa forma, as dificuldades individuais devem ser observadas sob a ótica da funcionalidade do sistema familiar (Werlang, 2007). Cada família possui suas particularidades, estabelecidas a partir de padrões de organização, que definem papéis e regras, os quais os membros utilizam como referência para se relacionar entre si. Esses modos de organização interna derivam das experiências internalizadas dos pais em suas famílias de origem, da organização atual da sociedade e da história da relação do casal desde o início da formação da nova família (Werlang, 2007). Apesar do viés majoritariamente negativo explorado na literatura no que concerne à transmissão psíquica transgeracional, Trachtenberg et al. (2013) ressalta que esses aspectos traumáticos, patológicos e sintomáticos também podem ser sinônimos de oportunidade para efetivação de mudanças e transformações criativas pela geração mais jovem. Freud (1913/2013) cita o verso de Fausto, de autoria de Goethe: "aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu". Essa menção sintetiza o efeito da possibilidade de pensar e simbolizar uma herança, transformando-a em algo que é próprio ao herdeiro.

Uma vez que a transmissão psíquica transgeracional pode ser lugar tanto de produção e/ou perpetuação de psicopatologias como de possibilidade de sua ultrapassagem rumo a uma vida individual e familiar mais plena e com menos bloqueios, a compreensão do que se produz nesse campo de conhecimento pode conduzir ao desenvolvimento de recursos clínicos importantes voltados ao alívio do sofrimento emocional. Com essa perspectiva em vista, o presente estudo tem como objetivo realizar uma revisão integrativa da literatura, nacional e internacional, publicada a partir do ano de 2002, a respeito das seguintes temáticas associadas: transmissão psíquica transgeracional (ou transgeracionalidade) e psicanálise.

 

O estudo

Trata-se de um estudo retrospectivo, descritivo e documental, que utilizou o critério temporal dos últimos quinze anos a fim de apresentar um panorama das pesquisas relacionadas à teoria vincular psicanalítica sobre a transmissão psíquica transgeracional e sua associação com temáticas diversas na área da psicologia. Optou-se pelo espaço de tempo citado por tratar-se de temática ainda pouco explorada na literatura, visando um panorama mais abrangente de estudos.

Procedimento

O presente estudo de revisão orientou-se pela seguinte questão norteadora: O que vem sendo publicado, na literatura nacional e internacional a respeito do conceito psicanalítico da transmissão psíquica transgeracional? A coleta de dados incluiu periódicos indexados nas bases de dados bibliográficas LILACS, PsycINFO, Scielo e PePSIC. A maioria dessas bases de dados é relacionada diretamente à área da Psicologia e, por esse motivo, foram consideradas como promissoras para as buscas, tendo em vista que o conceito de transmissão psíquica origina-se na abordagem psicanalítica e, portanto, está diretamente associado à área psicológica.

A revisão integrativa foi escolhida por ser um recurso metodológico que tem por finalidade sintetizar os resultados das pesquisas sobre determinado tema, de forma ordenada e sistemática, contribuindo para um conhecimento mais profundo da questão investigada Possibilita, dessa forma, a síntese do assunto e aponta lacunas que necessitam ser preenchidas por meio da realização de novos estudos (Mendes, Silveira, & Galvão, 2008). Para alcançar o objetivo proposto, foram seguidos os passos metodológicos preconizados por Mendes, Silveira e Galvão (2008) para a realização de uma revisão da literatura: a) identificação do tema e questão norteadora; b) estabelecimento de critérios de inclusão e exclusão; c) definição e categorização das informações a serem extraídas dos estudos selecionados; d) avaliação, interpretação e síntese dos estudos, em que uma análise crítica e descritiva das principais contribuições e lacunas na literatura serão apontadas.

A pesquisa foi realizada a partir de alguns termos chaves em português e inglês: transmissão psíquica (psychic transmission); transgeracional (transgenerational); e psicanálise (psychoanalysis). A coleta de dados foi realizada em maio de 2017. Foram pesquisados os artigos indexados com as seguintes palavras-chave: " psychic transmission between generations ", "transgenerational psychic transmission", "transgenerational", e "psychoanalysis". Esses descritores foram escolhidos de acordo com o DECS - Descritores em ciências da saúde e Terminologia Psi. A busca foi realizada por meio do sistema SIBI da Universidade de São Paulo, uma rede de serviços que inclui um catálogo online que permite acesso às bases de dados e periódicos indexados na íntegra, publicados nas revistas que foram disponibilizadas.

Critérios de inclusão e exclusão

Na pesquisa bibliográfica foram considerados os seguintes critérios de inclusão: a) artigos redigidos na língua inglesa, portuguesa, espanhola ou francesa; b) artigos que abordavam as seguintes temáticas relacionadas: transmissão psíquica transgeracional e psicanálise; c) que disponibilizavam o resumo nas bases de dados; d) publicados nos últimos quinze anos.

Os critérios de exclusão foram: a) apresentação sob o formato de dissertação, tese, capítulo de livro, livro, manual, editorial, resenha, comentário ou crítica; b) estudos de revisão de literatura; c) estudos relacionados à transmissão genética ou transmissão psíquica não psicanalítica; d) artigos cujo objetivo era unicamente expor conceitos da teoria da transmissão psíquica transgeracional sem relação com outras temáticas da psicologia; e) artigos que se repetiam em duas bases ou mais; f) artigos não disponíveis na íntegra pelo sistema SIBINet-USP.

Resultados

A amostra final foi composta por 27 artigos indexados nas quatro bases de dados utilizadas que estavam de acordo com os critérios de inclusão e exclusão delimitados para o processo de busca bibliográfica. Em um primeiro levantamento realizado, foram encontrados 228 artigos na base LILACS; 172 na PsycINFO; 33 na PePSIC; e 33 na Scielo. Após leitura dos resumos, esses números foram reduzidos, respectivamente, para: 15, 6, 15 e 20. Pelos critérios de inclusão e exclusão, a distribuição do número de artigos selecionados como constituintes do corpus deste estudo foram: 2 da base Lilacs; 5 da PsycINFO; 5 da PePSIC; 15 da Scielo. O grande número de exclusão de artigos deveu-se ao fato de focarem exclusivamente na teoria da transmissão psíquica transgeracional sem associação com temáticas da psicologia, por focarem na transmissão genética entre gerações ou por utilizarem o conceito de transgeracionalidade sem relação com a psicanálise.

As Tabelas 1, 2 e 3 sintetizam as principais características dos artigos selecionados para essa revisão de literatura, contendo as seguintes informações: ano, título, autores, participantes, método e objetivos.

Tabela 1 - Categorização dos artigos selecionados em termos de ano e título.

 

Ano

Título

1

2003

Um estudo transgeracional sobre o luto.

2

2004

O adoecimento do seio e a transmissão psíquica.

3

2005

Transmissão psíquica transgeracional e violência conjugal: um relato de caso.

4

2008

Évaluation de la Dynamique Familiale et Position Depressive Familiale: Apport des Méthodes Projectives

5

2009

Segredos e conflitos familiares: Um estudo de caso

6

2009

Transmissão psíquica transgeracional e construção de subjetividade: Relato de uma psicoterapia psicanalítica vincular.

7

2010

Violência familiar: obesidade mórbida e função ômega.

8

2010

Vínculos afetivos de adolescentes borderline e seus pais.

9

2011

A herança transgeracional nos transtornos alimentares: algumas reflexões.

10

2011

Image du corps chez l'adolescent obèse et transmission transgénérationnelle.

11

2011

Transmissão psíquica geracional familiar no adoecimento somático.

12

2011

Vínculo mãe-filho: reflexões históricas e conceituais à luz da psicanálise e da transmissão psíquica entre gerações.

13

2012

Efeitos da herança psíquica na opção pela não construção do vínculo amoroso.

14

2012

Le corps obèse, sémaphore de la souffrance familiale.

15

2012

Família interdita: transgeracionalidade e subjetivação em três obras ficcionais.

16

2013

A transmissão psíquica na poética familiar de Almodóvar - Volver (2006) e Tudo sobre Minha Mãe (1999).

17

2013

Anorexia nervosa e transmissão psíquica transgeracional.

18

2013

A mãe frente ao incesto: a condição de ausência, repetição e negação na história da família.

19

2013

O fenômeno da transmissão psíquica e o incesto: possíveis articulações.

20

2013

Pôle isomorphique familial et processus de différenciation chez l'adolescent obèse en perte de poids.

21

2014

Conflictos conyugales en la contemporaneidad y transmisión psíquica: investigación e intervención con parejas

22

2015

L'obésité, une transmission transgénérationnelle du corps familial.

23

2015

Le corps- symptôme comme révélateur d'une fragilité identitaire familial

24

2016

Family psychic transmission and anorexia nervosa.

25

2016

Construir, Organizar e Transformar: Considerações teóricas sobre a transmissão psíquica entre gerações.

26

2017

Transtorno alimentar e transmissão psíquica transgeracional em um adolescente do sexo masculino.

27

2017

A transmissão psíquica do fantasma patológico enquanto objeto transgeracional: Uma análise do filme "volver".

Tabela 2 - Categorização dos artigos selecionados em termos de autores, participantes e método.

 

Autores

Participantes

Método

1

Musachio & Daudt.

Nove famílias (avó-mãe-filha).

Misto

2

Azevedo.

Uma paciente acometida pelo câncer de mama.

Qualitativo

3

Gomes.

Um casal e a filha.

Qualitativo

4

Roman.

Pai, mãe e filho.

Qualitativo

5

Almeida, Costa & Gomes.

Um casal (necessidades especiais) e filha.

Qualitativo

6

Gomes & Zanetti.

Mãe e filha.

Qualitativo

7

Almeida-Prado & Féres-Carneiro.

Duas mulheres e dois homens (idade entre 25 e 54 anos).

Qualitativo

8

Jordão & Ramires.

Três adolescentes Borderline.

Qualitativo

9

Adami-Lauand & Ribeiro.

Cinco mães de pacientes jovens com transtornos alimentares.

Qualitativo

10

Sanahuja & Cuynet.

Uma adolescente obesa e sua família (mãe, pais, irmãos) em tratamento.

Qualitativo

11

Féres-Carneiro, Lisboa & Magalhães.

-

Qualitativo

12

Gutierrez, Castro & Pontes.

-

Qualitativo

13

Zanetti & Gomes.

Uma paciente sem relacionamento afetivo.

Qualitativo

14

Cuynet, Sanahuja & Bernard.

Uma adolescente obesa e sua família (mãe, pais, irmãos) em tratamento.

Qualitativo

15

Scorsolini-Comin & santos.

-

Qualitativo

16

Scorsolini-Comin & Santos.

-

Qualitativo

17

Valdanha, Scorsolini-Comin & Santos.

Uma família (avó-mãe-filha com Transtorno Alimentar)

Qualitativo

18

Gomes & Neves.

Três mães cujas filhas sofreram abuso sexual dos pais ou padrastos.

Qualitativo

19

Abdala, Neves & Paravidini.

-

Qualitativo

20

Sanahuja, Cuynet & Bernard.

Uma adolescente obesa e sua família (mãe, pais, irmãos) em tratamento.

Qualitativo

21

Gomes.

Dez casais em psicoterapia com filhos.

Qualitativo

22

Sanahuja & Cuynet.

Uma adolescente obesa e sua família (mãe, pais, irmãos) em tratamento.

Qualitativo

23

Sanahuja, Schwailbold, Hamel-Billot & Cuynet.

Uma adolescente obesa e sua família (mãe, pais, irmãos) em tratamento.

Qualitativo

24

Valdanha-Ornellas & Santos.

Avó materna, mãe e filha com Anorexia Nervosa.

Qualitativo

25

Scorsolini-Comin & Santos.

-

Qualitativo

26

Valdanha-Ornellas & Santos.

Avó materna, mãe e filho com Anorexia Nervosa.

Qualitativo

27

Abdala, Próchno & Silva.

-

Qualitativo

 

Tabela 3 - Categorização dos artigos selecionados em termos de objetivo.

 

Objetivo

1

Investigar a transmissão de sentimentos frente a situações de luto de 27 mulheres ao longo de três gerações.

2

Um diálogo entre os principais conceitos psicanalíticos que envolvem o tema da transmissão psíquica e os fundamentos da psicossomática psicanalítica.

3

Tecer algumas reflexões sobre a patologia de alguns vínculos conjugais enfatizando a interface com o conceito de transmissão psíquica transgeracional.

4

A partir da noção de posição depressiva familiar defendida pelo autor, trata-se de apreender a especificidade da economia psíquica do grupo familiar.

5

Apresentar um caso de atendimento em Psicoterapia Familiar e discutir os segredos e conflitos familiares presentes na dinâmica do casal com paralisia cerebral.

6

Refletir acerca do conceito de transmissão psíquica entre gerações e sua influência na construção das subjetividades, enfatizando-se o vínculo mãe-filha.

7

Explorar aspectos psicológicos de obesos mórbidos, de modo a identificar heranças familiares psíquicas transmitidas através das gerações relacionadas à violência familiar e a expressão somática dos sofrimentos.

8

Investigar as características dos vínculos afetivos entre adolescentes com indicadores de organização de personalidade borderline e seus pais.

9

Compreender o significado e as experiências emocionais da alimentação para as mães com filhas jovens portadoras de transtornos alimentares.

10

Compreender as possíveis relações entre o comer hiperfágico de adolescentes obesos e a transgeracionalidade.

11

Compreender a somatização a partir da transmissão de um legado não representado entre gerações.

12

Desenvolver um estudo teórico sobre maternidade centrado no vínculo mãe-filho.

13

Demonstrar o modo como a herança psíquica pode influenciar na opção pela não construção de um vínculo amoroso compromissado, a partir da análise de um caso.

14

Compreender as possíveis relações entre o comer hiperfágico de adolescentes obesos e a transgeracionalidade.

15

Discutir a transmissão psíquica geracional em duas obras do escritor Mia Couto e uma de Guimarães Rosa.

16

Discutir de que modo a transmissão psíquica transgeracional está presente em duas obras do cineasta Pedro Almodóvar.

17

Investigar a transmissão psíquica em três gerações de mulheres, buscando elucidar sua influência no curso do Transtorno Alimentar.

18

Conceder voz às mulheres mães de meninas violentadas pelo pai ou padrasto, compreendendo as dinâmicas familiares relacionadas ao incesto.

19

Tecer considerações em relação aos processos de transmissão psíquica, tomando como hipótese básica o incesto como um sintoma dos legados da herança psíquica.

20

Compreender as possíveis relações entre o comer hiperfágico de adolescentes obesos e a transgeracionalidade.

21

Aprofundar o conhecimento do conflito conjugal na contemporaneidade e sua relação com a transmissão psíquica em casais com filhos.

22

Compreender as possíveis relações entre o comer hiperfágico de adolescentes obesos e a transgeracionalidade.

23

Compreender as possíveis relações entre o comer hiperfágico de adolescentes obesos e a transgeracionalidade.

24

Compreender a implicação da transmissão psíquica transgeracional na articulação do sintoma anoréxico em uma jovem em tratamento.

25

Apresentar o conceito de transmissão psíquica entre gerações, discutindo as principais transformações em suas proposições ao longo do tempo.

26

Investigar a transmissão psíquica dos cuidados em três gerações de uma família que tinha um de seus membros acometidos por Anorexia Nervosa.

27

Explanar a constituição do fantasma patológico enquanto objeto transgeracional em casos de incesto.

Caracterização geral dos artigos de revisão

A partir das informações expostas nas Tabelas 1, 2 e 3 percebe-se que a maioria dos artigos (19) são nacionais e, portanto, redigidos na língua portuguesa. Em segundo lugar estão os artigos redigidos em francês (6), um deles redigido na língua espanhola e um em inglês. É importante ressaltar que os dois últimos são oriundos de estudos nacionais publicados em outra língua. A maioria dos artigos da língua inglesa foi excluída porque se relacionava à transmissão psíquica com foco na hereditariedade genética. Desse modo, nota-se que a vertente de transmissão psíquica entre gerações não tem sido o foco das pesquisas norte-americanas e inglesas, mas tem recebido atenção nas investigações brasileiras e francesas.

Com relação ao ano de publicação, as Tabelas 1 e 2 mostram que as pesquisas são recentes, estando a maioria concentrada após o ano de 2009 (23 artigos) e sendo os anos de 2011 e 2013 os mais fecundos (4 e 5 publicações, respectivamente). Vários estudos foram publicados pelos mesmos autores, o que pode explicar a menor variabilidade de modalidades metodológicas e teóricas.

A temática mais abordada foi a referente a dificuldades alimentares. De modo mais específico, a Obesidade foi a que englobou mais artigos (6 artigos), embora cinco deles sejam partes de um mesmo estudo mais abrangente e, portanto, de mesma autoria - variando um ou outro autor. Em seguida, surgem os Transtornos Alimentares (4 artigos), sendo todos desenvolvidos no mesmo serviço especializado, sendo três deles de mesma autoria. Os aparatos teóricos e metodológicos dessas pesquisas são bastante semelhantes.

Outras sete temáticas surgiram nos artigos. A temática relacionada ao incesto foi abordada em quatro estudos, sendo três teóricos e um empírico, de autorias diferentes. Três artigos fizeram análise de obras fictícias (filmes e livros) sob a ótica da transmissão psíquica - dois são de mesma autoria embora todos tenham utilizado a mesma metodologia de análise. Dois artigos se detiveram na temática do adoecimento somático, ambos tendo por base o câncer de mama - um exclusivamente teórico e outro com ilustração de um caso clínico. A questão da violência (conjugal e familiar) permeou a maioria dos estudos (6 artigos), todos englobando análise de casos clínicos e de filmes, além da abordagem da violência no contexto do incesto e da relação conjugal e familiar.

Quatro artigos abordaram a temática da conjugalidade de modo exclusivo, embora sob enfoques e autorias diferenciados: um referente a conflitos conjugais de casais com filhos, outro relativo à opção pela não construção de vínculos amorosos, outro sobre a violência conjugal e outro sobre a influência do modelo conjugal parental nas escolhas de parceiro dos filhos e o espaço conjugal como possibilidade de transformação. Menos da metade dos estudos (12 artigos) citaram, de modo indireto, a repetição de conflitos conjugais da família de origem. Um único artigo deteve-se na temática dos modos de enfrentamento do luto, embora a questão do luto não elaborado como conteúdo da transmissão psíquica através das gerações, em sua forma simbólica, tenha permeado boa parte dos estudos (2,9,10,12,14,19,20,22,23). O Transtorno de Personalidade Borderline foi abordado em um único artigo. Portanto, houve variação temática nos artigos selecionados e a maior parte dos temas identificados perpassaram, de modo geral, quase todos eles.

Com relação à perspectiva epistemo-metodológica, 26 artigos utilizaram o método qualitativo e apenas um deles pôde ser categorizado como misto (quanti-quali). Todos realizaram pesquisas com enfoque psicanalítico e clínico. No que concerne aos instrumentos de coleta de dados, houve o predomínio de entrevistas semiestruturadas (10 artigos) e o uso de procedimentos projetivos (6 artigos). Os principais instrumentos projetivos utilizados foram: Teste de Rorschach (2 artigos), Teste de Apercepção Temática (1 artigo), Teste do Desenho da Família (1 artigo) e o Teste do Desenho da Casa dos Sonhos (5 artigos). A última técnica foi desenvolvida pelos próprios autores (5,7,13,15,16) e aplicada em toda a família conjuntamente, sendo a geração mais jovem constituída por adolescentes obesos. Além deles, também foram utilizados instrumentos objetivos como o Inventário de Vínculos Parentais e Questionário Sociodemográfico (ambos em um único artigo).

As análises dos dados e sua interpretação, em todos os artigos, foram baseadas em Teorias Psicanalíticas, principalmente a Teoria da Psicanálise Vincular (Transmissão Psíquica Transgeracional), tendo em vista que esse era um dos critérios de inclusão para os estudos serem selecionados. É importante ressaltar que oito artigos exploraram conceitos teóricos da transmissão psíquica transgeracional e utilizaram casos para exemplificar o olhar clínico a partir da transgeracionalidade. Sete estudos são exclusivamente teóricos, embora três tenham utilizado obras ficcionais e filmes como forma de ilustração do aparato conceitual exposto e outros quatro tenham articulado a teoria transgeracional às seguintes temáticas: adoecimento somático, incesto, conjugalidade e maternidade. Doze artigos expuseram estudos de caso decorrentes de pesquisa empírica, constituindo, portanto, a maioria. É necessário ressaltar que, desses doze, quatro são recortes da mesma pesquisa desenvolvida na temática dos transtornos alimentares e cinco são recortes de uma mesma pesquisa relacionada à Obesidade.

 

Análise crítica dos artigos selecionados

A partir da revisão dos artigos expostos, realizou-se uma análise temática visando obter uma visão mais abrangente acerca do seu conteúdo e dos seus resultados (pontos de convergência e divergência). As temáticas definidas foram seis: Psicanálise Vincular - Teóricos; Psicanálise Vincular - Conceitos; Intergeracionalidade; As gerações; Gênero; Conjugalidade; Relação precoce mãe-filho; Dinâmica familiar; Sintomas como possibilidade de mudança.

 

Psicanálise Vincular - Teóricos

Todos os artigos selecionados citam Freud como o precursor da Psicanálise Vincular. Essa parte da noção de formação subjetiva individual como produto das relações intersubjetivas grupais ou familiares. É possível notar a predominância da Teoria Vincular desenvolvida pelo autor francês Kaës (2,3,4,5,6,8,9,10,11,12,13,14,15,16,17,18,19,20,21,22,23,24,25) como fundamento principal das produções científicas analisadas. Em menor escala, surge o teórico Eiguer (3,6,10,11,13,13,17,19,20,22,23,24,25,26). Vários autores contemporâneos (Abraham, & Torok; Benghozi; Berenstein, & Puget; Correa; Granjon; Faimberg; Féres-Carneiro; Racamier; Silva; Wagner, & Falcke) foram mencionados recorrentemente pelos artigos selecionados, vinculando a teoria da transmissão psíquica a temáticas específicas. Freud, Kaës e Eiguer têm sido as referências-chave para os estudos transgeracionais, apesar da exploração considerável de outros referenciais importantes.

Psicanálise Vincular - Conceitos

Todos os artigos selecionados utilizaram o mesmo aparato conceitual de transmissão psíquica transgeracional, definida como um campo de forças psíquicas inconscientes pertencentes a um grupo familiar que é transmitido através das gerações. O foco é a dimensão negativa da transmissão, sendo o aspecto patológico relacionado à impossibilidade de simbolização de situações traumáticas vividas pela família.

O conceito de repetição está diretamente relacionado à transmissão psíquica, portanto, surgiu em todos os artigos. O segundo conceito mais citado foram os segredos ou não ditos familiares (2,3,4,5,9,10,11,12,13,14,15,16,17,19,20,22,23,24,25,26), que se referem a elementos que são perpetuados através das gerações, dificultando a elaboração dos conteúdos transmitidos psiquicamente. Os fantasmas ou criptas psíquicas (4,10,11,12,14,16,17,19,20,22,23,25,26) referem-se a marcas psíquicas de conteúdos não simbolizados que são herdados e denunciados por meio dos sintomas (incorporação de fantasmas). Os mitos familiares surgiram como a quarta temática mais abordada (3,4,5,10,11,13,14,16,17,19,20,22,23,25) e dizem respeito a tudo o que surge na forma de narrativa e implica em uma crença compartilhada pela família, adquirindo o valor de verdade absoluta e incontestável. A identificação (1,3,4,6,8,9,11,13,15,16,18,19,24,25) foi citada como principal mecanismo de transmissão. Dez artigos (2,9,10,12,14,19,20,22,23,25) citaram o conceito de lutos não elaborados nas gerações precedentes como herança transmitida para as próximas gerações. De forma menos expressiva, surgiu o conceito de pacto denegativo (4,5,12,19,21,25), caracterizado por uma aliança inconsciente de intersubjetividade realizada de forma impositiva entre os membros de uma família, favorecendo a transmissão de conteúdo psíquicos. Todos os conceitos encontram-se interligados, embora tenham sido produzidos de forma diversa nos artigos, revelando uma boa exploração da teoria.

 

Intergeracionalidade

Vários estudos selecionados (3,6,11,12,13,15,16,18,19,21,25) utilizaram a diferenciação entre transgeracionalidade e intergeracionalidade proposta por Kaës (2001). Esta última é caracterizada por um viés positivo e adaptativo, relacionado a vivências psíquicas elaboradas de forma geral: fantasias, reprodução de crenças, valores, princípios e identificações. Portanto, a herança familiar seria transformada, elaborada e transmitida às próximas gerações. A maioria dos artigos empregou o conceito de "transgeracionalidade" como foco principal justamente porque as temáticas expostas referem-se ao que é considerado sintomático e, portanto, não elaborado através das gerações. Ademais, nem todos os autores da Psicanálise Vincular fazem essa diferenciação, embora seja importante ressaltar essa faceta adaptativa.

 

As gerações

De acordo com a literatura (Scantamburlo, Moré, & Crepaldi, 2012), a análise mínima e mais eficiente da transgeracionalidade seria a que envolve ao menos três gerações de uma família. Apenas quatro estudos (1,17,24,26) entrevistaram as três gerações de uma mesma família. Outros artigos (3,4,5,6,10,14,20,22,23) investigaram a perspectiva de duas gerações (pais e filhos) na compreensão da transmissão psíquica. Os demais estudos (2,7,8,9,13,18) obtiveram os relatos de uma única geração para compreender o processo de construção histórica familiar transgeracional. As análises de obras fictícias (15,16,27) acessaram três gerações ou mais, conforme os enredos possibilitaram. Esses dados sugerem a possibilidade de alcançar as demais gerações por meio do relato verbal de um participante, embora o contato direto com as gerações antecedentes possa fornecer informações mais detalhadas e ricas acerca dos conteúdos transmitidos.

 

Gênero

A maioria dos artigos (1,2,3,6,9,13,16,17,18,24,27) que envolveram coleta de dados, análise de casos e filmes, acessaram somente a linhagem feminina acerca da transmissão de conteúdos psíquicos. Um deles (3) incluiu o caso clínico de um casal, mas finalizou com considerações apenas sobre a transgeracionalidade na família da esposa (avó e filha). Outro estudo (27) teve como participante da geração mais jovem um adolescente do sexo masculino, mas os conteúdos transmitidos também foram considerados somente em linhagem feminina (mãe e avó). Os trabalhos que propuseram acessar os conteúdos transgeracionais da família como um todo incluíram como participantes adolescentes obesas na geração mais jovem, surgindo a figura materna como a de maior relevância (10,14,20,22,23). Apesar desse predomínio em termos de gênero, apenas os estudos sobre transtornos alimentares (9,17,24) abordaram a questão do gênero feminino, particularmente na relação entre mãe e filha, como facilitador do processo de transmissão de conteúdos psíquicos. Os demais artigos (4,5,7,8,21) tecem considerações mais gerais sobre as linhagens femininas e masculinas da família. Ainda que isso tenha sido explorado por uma minoria de estudos, as considerações acima sugerem a necessidade de mais pesquisas que englobem a linhagem masculina na transgeracionalidade.

 

Conjugalidade

Uma minoria dos artigos utilizou o conceito de transmissão psíquica no contexto da conjugalidade (3,4,5,13,15,16,21,25), sob enfoques distintos. Um deles abordou os conflitos conjugais de casais com filhos, outro enfocou a opção pela não construção do vínculo amoroso e outros debateram a questão da violência conjugal (física e psicológica). Todos abordaram o relacionamento conjugal permeado por conflitos e violência. É importante ressaltar que esses artigos e outros (7, 24, 25,26) citaram as motivações inconscientes para escolhas conjugais no contexto de dificuldades na dinâmica do casal. Com base nesses estudos, haveria uma tendência à repetição dos padrões de relacionamento experimentados na infância com a família de origem, em especial os destrutivos. Um dos artigos (21) acrescentou que, na formação de uma nova família, haveria um encontro de sistemas de herança psíquica de ambas as famílias de origem dos envolvidos, levando à criação de um terceiro novo legado. Essa junção entre heranças pode acarretar um processo de ressignificação, de acordo com a teoria de Benghozi (2010), em que os vínculos conjugais formam uma interconexão favorecendo o surgimento de um novo espaço psíquico (25). Apesar de a maioria dos estudos citarem o vértice da psicopatologia nesse processo de escolhas conjugais, dois artigos (3,25) chamam a atenção para outra possibilidade: a do casamento como espaço potencial de crescimento individual e possibilidade de elaboração de dificuldades. A conjugalidade é uma temática que vem se expandindo na literatura, justamente pelas modificações nos arranjos familiares relacionadas às mudanças no contexto social, histórico e econômico atual (25).

 

Dinâmica familiar

Uma vez que a transmissão psíquica transgeracional ocorre no contexto familiar, todos os artigos teceram considerações acerca das dinâmicas familiares denunciadas por diversas sintomatologias.

A maioria dos artigos (4,5,6,7,8,9,10,11,14,17,18,19,20,21,22,23,24,26) concordou com o fato de as famílias caracterizarem-se pela ausência de limites entre seus membros ou relações fusionadas e pela falta de papéis definidos entre eles, havendo uma indiferenciação entre as gerações e, dessa forma, a confusão de papéis. Relacionada à dinâmica fusional, a dificuldade de aceitação da autonomia e da individuação entre os membros também foi ressaltada como característica das famílias estudadas. Essas dificuldades foram consideradas nos estudos como uma consequência da transmissão de conteúdos psíquicos não elaborados através das gerações, "aprisionando-os", por meio da alienação, aos fantasmas familiares e impossibilitando a individuação de seus membros como pessoas independentes e autônomas. De acordo com Kaës (2001), a transmissão transgeracional implicaria na inexistência do limite e do espaço subjetivo, permanecendo apenas a exigência do narcisismo. Os segredos familiares, quando não transformados, resultam em tabus que enrijecem a dinâmica familiar. Outras características referentes à dinâmica familiar abordadas em alguns artigos (3,4,5,6,7,8,9,10,14,17,20,21,22,24,26) foram a dificuldade de diálogo, os conflitos recorrentes e as poucas possibilidades de falar sobre os próprios sentimentos - associadas à carência afetiva e ausência de acolhimento na relação entre pais e filhos, transmitidas transgeracionalmente.

Essas mesmas dificuldades seriam observadas nas dinâmicas conjugais e dois artigos em específico (3,21) defenderam que, para além da diluição das individualidades, também haveria uma tendência para diluição dos papéis conjugais, predominando as funções parentais na relação do casal. Outro estudo (25) complementou esse ponto de vista, afirmando que há concorrência entre papéis parentais e conjugais na contemporaneidade, estando o bem-estar dos filhos em primeiro plano. A questão da violência (física e psicológica) permeando as dinâmicas familiares também foi abordada (3,6,7,8,16,18,19,24,26,27), principalmente no contexto conjugal, como repetição da destrutividade vivida na família de origem. Em alguns estudos, a violência estaria relacionada também ao incesto (16,18,19,27). A violência assinalaria a insuficiência da capacidade de simbolizar e transformar a experiência (Almeida-Prado, & Féres-Carneiro, 2010), portanto pode ser diretamente associada à lógica da transmissão psíquica transgeracional, em que vivências traumáticas, não simbolizadas são perpetuadas na família.

 

Relação precoce mãe-filho

Todos os artigos teceram considerações acerca da relevância da história familiar no contexto da transmissão psíquica. Alguns deles (1,2,5,7,8,9,12,15,16,17,24,25,26) voltaram sua atenção para a relação precoce mãe-filho. A ênfase nesse relacionamento precoce se justifica pela lógica da transmissão psíquica, por conta da influência de conteúdos emocionais não elaborados, ou objetos transgeracionais, no psiquismo do bebê, transmitidos por meio dos cuidados maternos. Outros aspectos favorecedores da transmissão desse legado estariam em todo o processo de preparação parental para receber a criança: a escolha de nome, de identidade, de atribuições sobre o jeito de ser e da expectativa da missão que a criança terá na família. Portanto, desde os primórdios, um legado inconsciente é transmitido à criança por meio dos ideais e mitos familiares. Estes mitos vão inscrever e estruturar o psiquismo em desenvolvimento, processo essencial para a constituição subjetiva; eles não se limitam às palavras, incluindo mímica, inflexões de voz e outros pequenos sinais transmitidos desde o nascimento, de acordo com os artigos. Nesse sentido, dois artigos (13,25) expandiram essas ideias para o processo de escolha conjugal, partindo da concepção de que os vínculos amorosos estabelecidos remontam à vinculação inicial com as figuras familiares de referência.

Apesar de sublinharem a relação inicial mãe-bebê no processo de transmissão psíquica transgeracional, nenhum artigo teve crianças como participantes, apenas adolescentes (1,4,5,8,10,14,17,20,22,23) e adultos (1,2,3,4,5,6,7,9,13,18,21,24). Essa pode ser considerada uma lacuna significativa para a construção de uma teoria mais abrangente. Vale ressaltar que, quando era mencionada a inclusão da criança nos artigos de casos clínicos (3,6), suas demandas denunciavam uma conflitiva conjugal do casal parental, levando a uma reconfiguração do foco do atendimento clínico.

 

Sintomas como possibilidade de mudança

As dificuldades vividas perante a herança transmitida psiquicamente podem ser descritas como "sintomáticas", embora nem todas elas (1,3,4,5,6,12,13,15,16,18,19,21,27) estejam relacionadas à psicopatologia ou ao adoecimento somático (2,7,8,9,10,11,14,17,20,22,23,24,26) propriamente ditos. De acordo com esses estudos, alguns sintomas poderiam tomar a forma de doenças somáticas, mas não necessariamente. Qualquer forma de sofrimento poderia refletir a existência de dinâmicas familiares disfuncionais, consideradas reflexos da transmissão de conteúdos herdados que remetem a lacunas e vazios desprovidos de significado e elaboração. Assim, apesar de determinadas afecções afetarem um único sujeito, não pode ser consideradas um atributo individual, caracterizando-se como denúncia de uma aliança inconsciente grupal, pertencente ao grupo familiar (Silva, 2003).

Segundo Kaës (2011), as patologias da transmissão da vida psíquica são, em sua maioria, patologias do vínculo intersubjetivo. O autor mencionado as nomeia de patologias contemporâneas dos "estados-limites", caracterizadas disfunções ou ausência de continência psíquica, falhas na capacidade de ligação e desligamento e nos processos de elaboração e transformação. A maioria desses distúrbios envolveria a questão narcísica, do originário e da simbolização primária. O acesso à simbolização (ou processos intermediários) seria essencial para o desenvolvimento da capacidade de transformar os conteúdos traumáticos herdados, possibilitando a mediação entre elementos conflitantes, favorecendo a sensação de continuidade, a delimitação das fronteiras de si mesmo, a integração das pulsões no espaço psíquico e social e a própria noção de pertencimento (Kaës, 2011).

Ao mesmo tempo que os sintomas patológicos são reveladores de conteúdos reprimidos ou não elaborados, relacionados ao impedimento da constituição subjetiva saudável dos membros de uma família, também representam uma tentativa de elaboração ou transformação - portanto, como possibilidade de mudança. Ainda nesse sentido, um artigo (25) alude à importância de criar espaços potencializadores de mudanças das heranças da transmissão: os laços conjugais e as instituições sociais em que o indivíduo está inserido. A conjugalidade e demais espaços sociais possibilitariam ressignificações de ambos os legados familiares dos envolvidos, caracterizando-se como uma leitura não determinista das transmissões psíquicas. O autor desse estudo (25) também utiliza o conceito de "resiliência familiar" de Benghozi (2010) para explicar a possibilidade de desconstrução e reconstrução das heranças, de forma que a identidade psíquica familiar de origem seja mantida - apesar das transformações.

 

Considerações finais

As bases de dados utilizadas nessa revisão integrativa são de caráter multidisciplinar, o que contribuiu de forma significativa para a redução quantitativa no processo de seleção dos artigos referentes à transmissão psíquica transgeracional. Trata-se de temática recente e ainda pouco explorada na literatura, embora as produções nacionais tenham se destacado em sua contribuição para o conhecimento científico da Psicanálise Vincular. As temáticas em Psicologia abordadas em relação à transmissão psíquica foram diversificadas, assim como a exploração de autores contemporâneos e conceitos teóricos da transgeracionalidade. Por serem majoritariamente estudos psicanalíticos, a abordagem qualitativa foi adotada por eles de modo unânime, devendo ser ressaltada a pouca variabilidade epistemometodológica testemunhada pela inclusão de vários artigos que são recortes de um mesmo estudo mais abrangente e, portanto, de mesma autoria. Somente uma pequena parcela dos artigos contata diretamente três gerações de uma família na compreensão da história familiar e de sua herança psíquica - herança esta analisada sob a perspectiva da linhagem feminina predominantemente. Crianças também não surgiram como participantes das pesquisas. Portanto, várias propostas de novos estudos ficam explícitas a partir das lacunas apontadas.

Todos os artigos selecionados estão intimamente relacionados à prática clínica, indicando a relevância para a atuação profissional, em termos de enriquecimento teórico, da Psicanálise Vincular. A abordagem mencionada favorece um olhar reflexivo e diferenciado da psicanálise tradicional, que prioriza o indivíduo. Haveria a expansão da escuta clínica pra o âmbito mais extenso das relações familiares, enquanto constituintes do sofrimento psíquico individual. Assim, a clínica psicanalítica propiciaria espaço de escuta e fala para ressignificação e simbolização dos conteúdos pertencentes à transmissão psíquica transgeracional - portanto, incitando a transformações nas representações do conteúdo herdado pela geração mais jovem. Desse modo, tornar-se-ia viável o fortalecimento dos vínculos familiares e a possibilidade de (re)nascimento de subjetividades marcadas por um mundo mental não alienado, através do reestabelecimento das diferenças individuais e geracionais.

 

 

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Artigo recebido em: 10/07/2018
Aprovado para publicação em: 09/03/2020

Endereço para correspondência
Carolina Rizzatto Martins Padilha
E-mail: carolina_rmp@hotmail.com

 

 

*Psicóloga e Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP).
**Psicóloga. Docente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Mestrado e Doutorado em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Pós-doutorado na Universidade Paris Diderot-Paris 7. Livre Docência em Psicodiagnóstico: Enfoque Avaliativo e Interventivo pela FFCLRP-USP.

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