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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.53 no.1 Rio de Janeiro ene./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Análise da agressividade docente na cena pedagógica: implicações para a formação de professoras(es)

 

Teachers' aggressiveness analysis at pedagogical scene: implications for teachers' training

 

Análisis de la agresividad docente en la escena pedagógica: implicaciones para la formación

 

 

Andréa Pires de OliveiraI*; Fábio Roberto Rodrigues BeloII**; Fernando Cézar Bezerra de AndradeIII***; Katherinne Rozy Vieira GonzagaI****

ISociedade Psicanalítica da Paraíba - SPP - Brasil
IIUniversidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Brasil
IIIUniversidade Federal da Paraíba - UFPB - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir da teoria psicanalítica laplancheana e winnicottiana da agressividade, objetivou-se analisar a agressividade de uma docente e seus efeitos na cena pedagógica através do estudo de caso de uma professora da Educação Infantil. Numa pesquisa qualitativa, recorrendo à triangulação entre observação, entrevista e grupo focal, tomou-se como unidade de análise a cena pedagógica (definida como o conjunto de interações entre docentes e discentes e dos significados intersubjetivos dessas interações nos vínculos envolvendo esses sujeitos). Constataram-se condutas docentes agressivas na interação com alunos da turma, o que levou à hipótese de que as dificuldades subjetivas da professora em lidar com a própria agressividade interferiam no manejo da agressividade discente. Considerando a subjetividade da docente, a participação da professora em formação docente continuada promovida durante a pesquisa viabilizou a tomada de consciência de novos arranjos relacionais entre a professora e as crianças de sua turma, favorecendo a qualidade do seu manejo.

Palavras-chave: Agressividade docente, cena pedagógica, teoria psicanalítica, formação docente.


ABSTRACT

From Laplanche's and Winnicott's psychoanalytic theories of aggressiveness, it was aimed to analyse the aggressiveness of a teacher and its effects on the pedagogical scene, through a case study about an Early Childhood Education teacher. In a qualitative research, resorting data triangulation between observation, interview and focus group, it was taken, as an analytical unit, the pedagogical scene (defined as the set of interactions between teachers and students, and the intersubjective meanings os these interactions considering the ties involving these subjects). Teacher's aggressive conducts were found on the interactions with her students, leading to the hypotheses: teacher's subjective difficulty in dealing with her own aggressiveness interfered on her management of students' aggressiveness. Considering the teacher's subjectivity, her participation on a teachers' continued qualification, promoted during the research, enabled the awareness of new relational arrangements between her and the children, favouring the quality of her management.

Keywords: Teachers' aggressiveness, pedagogical scene, psychoanalytic theory, teachers' formation.


RESUMEN

Basándose en la teoría psicoanalítica laplancheana y winnicottiana de la violencia, el objetivo fue analizar la agresividad de una docente y sus efectos en el escenario pedagógico, a través del estudio de caso de una maestra de Educación Infantil. En una investigación cualitativa, utilizando la triangulación entre observación, entrevista y grupo focal, se consideró como unidad de análisis el escenario pedagógico (definido como el conjunto de interacciones entre docentes y estudiantes, y los significados intersubjetivos de estas interacciones en los vínculos que se relacionan con estos sujetos). Se verificaron las conductas de maestros agresivos en la interacción con los estudiantes en la clase, lo que resultó llegar a la hipótesis de que las dificultades subjetivas de la docente para retener su propia violencia interferían en el manejo de la agresividad de los estudiantes. Respecto a la subjetividad del docente, la participación de la docente en la formación continua del profesorado promovida durante la investigación posibilitó la toma de conciencia de nuevos arreglos relacionales entre el docente y los niños de su clase, que favoreció la calidad de su estrategia de retención de la violencia.

Palabras clave: Agresividad docente, escenario pedagógico, teoría psicoanalítica, formación docente.


 

 

Introdução

Entre docentes e crianças estão implícitas relações de poder: na sala de aula há, de um lado, o adulto atravessado pela cultura, por sentimentos, pensamentos (Moreira, 2005) e uma história; do outro, encontra-se a criança em vias de constituição que, ao receber os cuidados desse adulto, acha-se envolvida num processo de construção de conhecimentos e de transmissão de significados, inaugurando uma ordem intersubjetiva relacional. Ambos constituem um contexto intersubjetivo relativamente habitual, aqui chamado "cena pedagógica", com que se presume que características da ação docente repercutam nas condutas, sentimentos e pensamentos de discentes sob os cuidados de quem ensina. Por essa perspectiva, a conduta infantil não é analisável isoladamente, mas sempre em relação às qualidades da presença e da intervenção docente.

A cena pedagógica, como unidade de análise, consiste no conjunto de interações entre docentes e discentes e dos significados intersubjetivos dessas interações nos vínculos envolvendo esses sujeitos. É, pois, na cena pedagógica que se estabelece o convívio entre docentes e crianças, no qual se admite a presença de outros adultos - pais, mães, técnicos escolares, gestores - mediadores da relação de ensino-aprendizagem. Nela se instauram possibilidades específicas para se relacionar, baseadas não só em crenças, padrões afetivos e sociais, mas também em material inconsciente que aqueles sujeitos trazem consigo a partir de suas vivências anteriores ou atuais, mobilizando elementos que instauram novamente as condições de formação do psiquismo humano. Tais conteúdos são sintetizados, teoricamente, nas noções de transferência e contratransferência (Freud, 1914/1996; Kupfer, 1989; Laplanche, & Pontalis; 1992, Morgado, 2011; Winnicott, 1947/2000), transpostas da teoria sobre a clínica psicanalítica para a teoria das relações em outras instituições, como a escola.

Ora, no universo contratransferencial associado ao psiquismo docente, permeado "das reações inconscientes" (Laplanche, & Pontalis, 1992, p.102) que também constituem a cena pedagógica, professores por vezes não conseguem reconhecer a influência de sua própria agressividade, atravessada por desejos inconscientes, sobre modos pedagógicos de condução das situações de conflito geradas em torno da conduta presumidamente agressiva de crianças. Nesse sentido, considerando-se reações docentes aos modos de interagir de crianças, professoras e professores estarão também à mercê de um poder que ocorre em parte à sua revelia, por ser da ordem do inconsciente, encontrando de forma recorrente uma via de descarga agressiva na relação com a turma. A cena pedagógica torna-se, assim, lugar de jogos sadomasoquistas diante dos conflitos em que se manifesta a agressividade discente, para cuja compreensão é indispensável pensar sobre o psiquismo adulto - aquele do(a) docente.

Idealmente, o adulto, ao buscar seduzir para o trabalho de aprendizagem, recorrendo aos instrumentos para motivar o alunado, deve também cuidar das relações e favorecer um ambiente de convivência que contribua para a aprendizagem, inclusive ao valorizar os conflitos. Porém, pensando na hipótese antes afirmada, docentes podem enfrentar dificuldades em gerenciar comportamentos e emoções de discentes que criam tensão na sala de aula, como é o caso da agressividade infantil: esta, do ponto de vista winnicottiano, ganha, pouco a pouco, expressões afetivas secundárias positivas ou negativas, a depender de como a relação docente(ambiente)-discente(criança) irá se estabelecer. Esses conteúdos podem levar o(a) professor(a) a defrontar-se com uma parcela de frustração e raiva, despertando a agressividade do próprio docente, a qual, se não for devidamente reconhecida e elaborada - o que pode acontecer, por exemplo, em contexto de formação docente continuada, como será referido neste artigo -, pode contribuir para a manutenção de padrões agressivos na conduta docente.

Dessa forma, considerar o poder da intervenção docente na cena pedagógica é perguntar-se sobre a agressividade e seus destinos na subjetividade desse(a) profissional: como adulto, o(a) professor(a) pode dirigir, alterar e mesmo instaurar condições seja para a continência, seja para o desenvolvimento da faceta defensiva da agressividade infantil. Mas, para isso, um fator decisivo será a forma com a qual a professora (ou o professor) lida com a própria agressividade em interação com discentes cuja conduta agressiva precisa regular.

Considerando essas hipóteses de trabalho, objetiva-se, neste artigo, a partir de um estudo de caso, evidenciar implicações da análise da agressividade docente para a formação de professores com vistas ao manejo pedagógico eficiente da agressividade discente na Educação Infantil. Ainda que a unidade de análise "cena pedagógica" seja eminentemente relacional, ela permite enfocar um dos lados do processo - no caso desta pesquisa, o comportamento e as significações de uma docente de Educação Infantil às voltas com a gestão de conflitos em sua sala de aula associados à agressividade discente.

Inicialmente, faz-se uma revisão do conceito de agressividade nas teorias de Laplanche e Winnicott: o modelo da Teoria da Sedução Generalizada é invocado por ajudar a interpretar a agressividade do adulto na relação com a criança, enquanto o modelo winnicottiano ajudará a entender a tarefa adulta de servir como objeto para o uso da criança.

Os dois modelos aqui adotados, epistemologicamente distintos (e em alguns sentidos contrapostos), podem dialogar, de sorte a favorecerem a interpretação dos jogos relacionais entre adultos e crianças - na escola de Educação Infantil, docentes e discentes -, pois ambas as teorias valorizam o poder da influência que a subjetividade do adulto (como emissária de mensagens enigmáticas ou ambiente suficientemente bom), manifesta particularmente em seu manejo pedagógico da cena em sala de aula, exerce nos destinos da agressividade infantil. Ambos os autores permitem ler a agressividade como manifestação psíquica que não se restringe à destrutividade, dando-lhe um estatuto que a dissocia da tradicional vinculação entre morte, violência e agressividade.

Em seguida, apresenta-se o caso de Antônia (nome fictício), professora da Educação Infantil de uma rede pública de ensino em uma cidade da região metropolitana de uma capital nordestina. Por meio da análise da agressividade de Antônia e de sua mudança na relação com seus alunos - como Clara e Denis (nomes fictícios) - demonstra-se uma das implicações mais importantes da análise da agressividade docente: o surgimento (ou desenvolvimento) da capacidade de reconhecer e valorizar a agressividade infantil de modo a transformar o ambiente da turma em contexto relacional mais acolhedor dos impulsos criativos discentes.

 

Para entender a agressividade na cena pedagógica: Winnicott e Laplanche

Como sintetiza Birman (2006), a agressividade assumiu diferentes estatutos na obra fundadora de Freud: ora associada ao caráter ativo da pulsão sexual, ora ao aspecto da dominação pretendida pelo eu no contato com a realidade, ela assumia, no contexto da primeira teoria das pulsões, um caráter relacional e intersubjetivo mais evidente; já na segunda teoria das pulsões, ela aparece, nos termos da metáfora de Laplanche (1992), mais "ptolomaica".

Com efeito, se, classicamente, a agressividade se restringia à relação do sujeito com o outro, na violência que o primeiro exercia sobre o segundo, no discurso freudiano após os anos 1920, a agressividade circula no campo do sujeito de diferentes maneiras: masoquismo e autodestrutividade, sadismo e destrutividade, e ainda nas relações agressivas estabelecidas entre as diferentes instâncias psíquicas (Birman, 2006, p. 365).

Ora, a teorização winnicottiana sobre a agressividade parece manter-se claramente no campo relacional em razão de sua recusa ao conceito de pulsão de morte e às consequências disso para seu modelo (Winnicott, 1959/1983). Definida como força que, primariamente, é inata, a agressividade ganha, desde os primórdios, contornos e destinos que dependem das relações com o ambiente e com os objetos, assumindo diferentes funções propulsoras da ação, para a externalidade, conforme os estágios do desenvolvimento emocional (Winnicott, 1950/2000).

Logo, Winnicott valoriza tanto as tendências naturais à adaptação e às potencialidades da criança quanto as reações dessa criança frente ao ambiente cuidador, que deve estar disponível para ser usado, reconhecendo a agressividade infantil, dando-lhe contenção e favorecendo a integração da mesma pela criança. Nesse modelo relacional, a agressividade só tem seu sentido apreendido quando se considera não só a criança, mas o adulto que com ela se relaciona, que pode se tornar facilitador nesses estágios do desenvolvimento emocional, inclusive no que se refere ao manejo da agressividade da criança.

Tanto que, no início do desenvolvimento emocional do bebê, Winnicott ( 1968/2005) propõe um tipo de destrutividade sem raiva, que, de fato, permite uma exploração às custas do ambiente, transformando-se, caso a mãe sobreviva - atendendo às necessidades do bebê e suportando seus ataques -, em capacidade potencial para a destruição, ou seja, destruição na fantasia inconsciente. Essa capacidade de destruição levará a criar a externalidade do mundo, possibilitando o que Winnicott (1968/2005) denominou uso do objeto - fundamento das experiências de amor e ódio dirigidos a outra pessoa, da destrutividade lúdica e da criatividade.

Assim, essa capacidade é conquistada pela criança ao encontrar o ambiente cuidador ileso, com sua postura resiliente, sem retaliação, da agressividade infantil que nele se manifestar. Nesse sentido, o uso do objeto é um fenômeno ambiental e não somente uma projeção da criança. Se a presença do objeto for percebida, os impulsos agressivos ocorrerão, serão reconhecidos e aproveitados para a construção criativa oportunizada pela destruição-sobrevivência ambiental.

Não obstante seu caráter relacional, ainda assim é possível enxergar, na descrição winnicottiana, uma tendência a descrever os destinos da agressividade a partir do bebê, considerando o mundo psíquico do infante em formação e tomando sua natureza como axioma teórico. Prova disso está na posição atribuída ao adulto na relação com o bebê: qualquer que seja, a referência ao adulto o mantém na posição de ambiente e objeto.

Diante disso - e para auxiliar a entender a agressividade do adulto partindo do psiquismo (perverso polimorfo) no adulto -, recorre-se também à leitura laplancheana sobre a agressividade. O modelo de Laplanche (2015) reposiciona a sexualidade como conteúdo princeps do inconsciente, mas, distintamente de parte da teoria de Freud (1911/1996), por exemplo, entende-a como produto de uma situação antropológica fundamental mantida pelo adulto no encontro com a criança: essa situação intergeracional, claramente intersubjetiva e comunicacional, presume, em sua constituição, a atividade do adulto que investe na criança desejos, impulsos e mensagens de caráter enigmático (visto carregarem conteúdos sexuais que a criança não é capaz, inicialmente, de manejar). Essa é uma situação em que o adulto atua como sedutor traumatizante, sexualizando ao mesmo tempo em que cuida, por ser dotado de inconsciente e sexualidade perversa polimorfa (ao passo que o bebê, de saída, não é).

Já é possível divisar, nesse modelo, dois elementos em comum com a teoria winnicottiana: a recusa à destrutividade inata e implacável e a admissão da agressividade como impulso plástico, tanto suscetível de ser investida em favor da organização quanto, como no caso da pulsão sexual de morte (Laplanche, 1988), na desorganização egoica. Nesse sentido, os destinos da agressividade interessam enquanto sujeitos aos da sexualidade, pela qual passam a ser, desde cedo, atravessados. "Uma teoria da 'agressividade' deveria ser necessariamente pluridimensional, tendo em conta ao menos três fatores", afirma Laplanche (1988) sinteticamente: a força ativa "inerente a toda ação, quer seja autoconservativa ou libidinal" (Laplanche, 1988, p. 105), sua apropriação pelo sadismo e sua expressão no masoquismo.

A agressividade, pela perspectiva de Laplanche, no contexto da situação antropológica fundamental, está intimamente ligada aos pares atividade-passividade e sadismo-masoquismo. No caso do primeiro par e tomando-se o eu como referência, a atividade psíquica consciente nasce desse esforço (autoconservativo e sexual) de reagir à posição passiva em que se é posto quando infante - objetos de desejos e mensagens enigmáticas vindas do mundo adulto -; as crianças são originariamente passivas, situação que as traumatiza ao mesmo tempo que as constitui psiquicamente, como sujeitos de desejos e de inconscientes. Do mesmo modo, primariamente, naquela situação já referida, o masoquismo é a primeira expressão correlativa dessa passividade. Nos termos de Laplanche (2012, p. 20), o masoquismo "está ligado aos processos complexos que levam à gênese da pulsão sexual a partir das mensagens enigmáticas do outro, é intrinsecamente sexual".

Ora, admitindo sua íntima e precoce relação com a sexualidade, num longo percurso de produções cada vez mais secundárias cronologicamente, mas não menos influentes, a agressividade ganha contornos ativos, propositivos, no sadismo. Na situação antropológica fundamental, a iniciativa de seduzir de modo generalizado o bebê é expressão do sadismo adulto, que investe agressivamente sobre a criança para não só dela cuidar, como também para atacá-la. Laplanche (2012) esclarece, tratando sobre o masoquismo - num comentário que se pode perfeitamente estender à agressividade:

Não penso que a ideia de implantação [das mensagens enigmáticas] implique que o adulto seja um sádico. Isso decorre do fato de que sua sexualidade forçosamente ultrapassa as capacidades de elaboração da criança. Leva em conta um fundo de passividade, portanto. É uma categoria que se poderia dizer situacional. É na situação mesma, é na essência da situação, que se situa o sadomasoquismo (Laplanche, 2012, p. 25).

Assim, na teoria de Laplanche, a agressividade deve ser analisada intersubjetivamente, como elemento cuja associação à sexualidade perverso-polimorfa presente no adulto implica numa atividade desse emissário de mensagens enigmáticas, ao tempo em que a criança, inicialmente destituída de inconsciente sexual, como par complementar dessa situação por Laplanche denominada "antropológica fundamental", é primariamente passiva. A essa atividade e passividade corresponderão o masoquismo e o sadismo, respectivamente posições primária e secundária na história da formação do psiquismo infantil, quando às voltas, muito precocemente, com a sexualidade, na qual o adulto tem um papel decisivo e inaugural.

A teoria laplancheana, na interlocução com a teoria winnicottiana, traz para o primeiro plano da cena pedagógica o caráter sexual e sadomasoquista da agressividade: o adulto, para Winnicott sempre ambiente ou objeto, acolhe e contém na relação; para Laplanche, é o primeiro responsável, na cena intersubjetiva, pelo contágio - pela sedução - da criança, que se humaniza psiquicamente às custas do trauma. Assim, entender a agressividade adulta com esse arsenal teórico permite duas consequências interligadas: enquanto a agressividade infantil fala de um psiquismo em construção, para o qual os dispositivos de organização, contenção e acolhimento são indispensáveis, a agressividade adulta exprime as vicissitudes da sexualidade infantil perversa e polimorfa que habita o psiquismo já dotado de inconsciente.

Compreensível sempre na inter-relação, para Winnicott, e na situação, para Laplanche, a agressividade ganhará contornos de expressão vital e demandas - no caso da criança - ou de manifestação do sexual polimorfo - no caso do adulto. Pensando com Winnicott (1982), é precioso reconhecer a importância das qualidades afetivas do adulto - do(a) professor(a), no caso da Educação Infantil - como componentes fundamentais para o ambiente em que a agressividade infantil se manifestará. Essas qualidades devem prover uma presença viva (sem invasão ou ausência), promovendo uma sustentação emocional necessária e continente, como uma borda que dará apoio e contorno à agressividade infantil até que a criança possa, a seu tempo, conseguir lidar com seus limites. Assim, o adulto suficientemente bom emprega sua agressividade intencionalmente para favorecer as expressões da agressividade infantil.

Analisando com Laplanche, por sua vez, a cena pedagógica, a agressividade adulta indicará um esforço defensivo e fantasmático de elaboração dos conteúdos inconscientes ameaçando o eu. O modo como a professora (ou o professor) manifesta sua agressividade sugere sua capacidade sádica de atacar, mobilizada em situação na qual o eu se vê às voltas com fantasias perturbadoras, das quais deve se defender: uma vez em situação de tensão, sem saber como agir, a professora pode experimentar-se novamente na posição passiva, masoquista, reagindo defensivamente, ao atacar a criança e atacar exigindo a submissão incondicional da criança. Esse contexto aponta, fortemente, para a possibilidade de aplicar, no campo escolar, a premissa laplancheana de que a situação antropológica fundamental é reaberta e atualizada no encontro entre crianças e professoras (ou professores), quando se verificam as dificuldades do adulto para gerir pedagogicamente os conflitos relacionais surgidos em sala.

A seguir, analisam-se cinco extratos de cenas pedagógicas envolvendo a professora Antônia, participante de uma formação docente continuada desenvolvida em 2017, em que se consideram aspectos da agressividade da docente, tanto pelo viés pelo viés winnicottiano (no que tange à capacidade de permitir-se ser usada como ambiente, que acolhe as demandas, e como objeto, que sobrevive aos ataques agressivos das crianças) quanto pela perspectiva laplancheana - considerando a reabertura da situação antropológica fundamental (Laplanche, 2006) que atualiza fantasias sadomasoquistas invasivas e perturbadoras da relação docente-discente e dificulta, por exemplo, o uso de objeto, como proposto por Winnicott (1968/2005).

 

Para entender as cenas pedagógicas: método

Cinco extratos de cenas pedagógicas foram coletados por meio de três estratégias: observação participante (Minayo, 2015) por 60 minutos no início de um turno de trabalho de Antônia, professora de uma turma do Infantil III, composta por crianças de dois a três anos; entrevista individual semiestruturada (Minayo, 2015) de 36 minutos, posterior à observação e prévia à participação em grupo focal (Gatti, 2005); e a participação da professora em grupo focal (chamado "grupo de reflexão"). A observação resultou em transcrição em diário de campo, enquanto as falas da docente na entrevista e no grupo de reflexão foram gravadas em áudio e literalmente transcritas.

A análise dos dados se deu em dois tempos: inicialmente, através dos resultados da observação do manejo da professora Antônia de situações de interação com seus alunos e alunas. Foram consideradas situações de interação por ela referidas, na entrevista e, no segundo tempo, com a instalação do grupo de reflexão, foi possível considerar elaborações incipientes que as docentes participantes passaram a fazer sobre si mesmas e sua prática - tomando-se com referência, mais precisamente, as reflexões e aprendizagens da professora Antônia. Com isso, interpretaram-se movimentos psicodinâmicos inferidos a partir do relacionamento desta docente com as crianças de sua turma.

O grupo de reflexão, como proposta de formação docente continuada, ocorria uma vez por semana, durante uma hora, por oito semanas, de modo que as professoras puderam ter acesso a algum conhecimento teórico sobre o desenvolvimento emocional e sobre a agressividade infantil; a partir das discussões de textos e das situações que elas levavam ao grupo, envolvendo crianças de suas turmas, abriu-se um espaço para que as mesmas pudessem falar, ouvir e ser ouvidas, ressignificando, assim, o que pensavam, sentiam e faziam em seu cotidiano na relação com seus alunos e alunas.

Embora essa atividade não configurasse uma análise clínica em grupo numa perspectiva psicanalítica clássica, as atividades em grupo têm uma dinâmica própria, com implicações para os psiquismos dos sujeitos envolvidos. Isso, logicamente, ocorreu no grupo de reflexão, ainda de forma inicial, o que pôde ser constatado no caso da professora Antônia.

A agressividade de Antônia e suas implicações para a gestão da agressividade discente em cenas pedagógicas

Cena 1: Vendo o circo pegar fogo!

Registrada na observação, a Cena 1 evidenciou dificuldades de Antônia na gestão das tensões relacionais a ponto de a observadora ter pensado, como na expressão "o circo pegar fogo", isto é, um aumento de excitações que recaíam em comportamentos agressivos, tanto da docente como de discentes. Antônia demonstrou-se áspera no tom e no volume de voz, o que sugeriu estar irritada com a turma: falava alto, constantemente ameaçava remeter crianças ao repouso (definido pela professora como um determinado local da sala no qual a criança é colocada em uma cadeira, afastada da turma, para refletir sobre o que fez de inadequado), sendo pouco efetiva em suas intervenções. A turma estava agitada e as crianças, agressivas, correndo, gritando, batendo umas nas outras e desobedecendo à professora. Antônia parecia permitir o tumulto, ocupando-se só das crianças que cumpriam as atividades que ela propunha.

Antônia ainda inibiu a fala das crianças: em alguns momentos. Como estratégia para que a docente não entrasse em contato com o tumulto que acontecia na sala, uma música era cantada e repetida pelas crianças para registrar a interdição: "zip, zip, zap, minha boca eu vou fechar, zap, zip, zip para a tia escutar".

Cena 2: Denis, um aluno "picante"

Em entrevista, Antônia referiu a diferença entre as crianças e sua dificuldade diante de algumas crianças que julgava como agressivas, ao relatar uma cena vivenciada com Denis:

Tem uns que são uma delícia trabalhar... Já tem uns que são picantes. Foi antes de ontem ou ontem, eu conversando com um chamado Denis, porque ele é muito agressivo, demais, ao extremo. Aí eu disse assim: "ô, Denis, e pode machucar o colega? Por que você está machucando o seu colega? A tia não acabou de pedir: Denis, não machuque o seu colega?"... ele tremia essa mão, como se dissesse: "eu vou dar um murro nela é agora". E essa mão dele não parava e ele se retorcia todinho... esse meu cotidiano, a dificuldade está aí, na agressividade dessas crianças.

Antônia relatou ainda uma parte significativa de sua história, que se supõe ter contribuído para os arranjos feitos para lidar com a própria agressividade. Seus pais puderam cuidar pouco dela (o pai foi negligente e a mãe, ausente) em sua infância, organizando-se um pouco melhor graças à ajuda de sua professora. Entende-se, portanto, que as experiências pessoais de Antônia orientavam manejos que evidenciavam uma subjetividade atravessada por sintomas relacionais na relação docente-criança.

Tanto a observação do manejo da docente quanto a entrevista denunciaram a urgência de uma formação, na qual pudessem ser consideradas tanto as necessidades das crianças - inclusive as emocionais, em que se inscreve a agressividade - quanto a subjetividade docente e o que nela há de agressivo.

Cena 3: "É pau, é pedra, é o fim..."

No início do terceiro encontro do grupo de reflexão - primeiro a oportunizar a discussão de dificuldades enfrentadas pelas professoras -, Antônia trouxe o caso de um aluno que batia constantemente nos colegas, explicando os comportamentos da criança por associá-los à violência da mãe, que nele batia constantemente: "A criança já vem com isso de casa... Aí, como é que eu vou trabalhar, se em casa ele recebe isso: pau?". Com isso, seu discurso assumia uma postura mais passiva, em que a professora se desobrigava a intervir, fazendo pensar na impotência que o eu lírico da canção "Águas de março", de Antônio Carlos Jobim, exprime no verso: "é pau, é pedra, é o fim do caminho". Ou, segundo Antônia: "como eu vou trabalhar?". Ela não se reconhecia capaz de influenciar positivamente seu aluno.

Cena 4: Atentando para os sinais de Clara

No sétimo encontro do grupo de reflexão, Antônia falou sobre Clara, de aproximadamente dois anos e meio, cujo pai era marinheiro mercante: a garotinha estava, naquela semana, muito agressiva, com comportamentos já ultrapassados - indicando uma regressão (queria chupeta e colo, voltava a evacuar na roupa). Antônia entendeu ser isso tudo fruto da falta que criança sentia do pai e da pouca paciência materna. Naquela mesma semana, Antônia relatou ter chegado mais cedo, ainda no horário da professora da manhã, para uma atividade de planejamento pedagógico. Foi quando ouviu reclamações e presenciou a forma como as Auxiliares estavam lidando com Clara na hora de colocá-la para dormir, incomodando-se com a cena. Apesar de estar fora de seu horário e envolvida em outra atividade, Antônia não conseguiu ignorar o comportamento da menina e a indiferença das Auxiliares diante disso.

Ela [a criança] levantou-se, aí pegou as toalhas que estavam estendidas, juntou todas elas e pá! No chão, e ficou assim [encarando] pra ela, pra Auxiliar... Chegou uma hora que eu tive que ir lá, não aguentei ver... Tava fora do meu horário, mas eu fui lá, eu fui lá e disse: "Clara, você quer o quê? Diga à tia o que você quer, tem que falar porque se você não falar a gente não vai entender, diga". Aí pegou a bolsa, abriu a bolsa e ela queria uma fralda, eu disse: "mas aqui não tem fralda, você não usa fralda, serve essa blusa? É ela que você quer pra dormir?". Aí dei a blusa a ela, aí ela foi e deitou.

A compreensão da agressividade infantil também parecia ganhar uma certa mobilidade de sentidos: Antônia começava a perceber sua responsabilidade como mediadora da agressividade de Clara, sendo empática e identificando-se com ela de um modo objetivo. "Mas isso foi feito por causa dessas nossas conversas, viu? Porque antes disso eu já estava entrando em crise com Clara, eu não estava dominando".

Cena 5: Protegendo Clara do ataque materno

No oitavo e último encontro do grupo de reflexão, Antônia compartilhou seu incômodo frente ao julgamento que a mãe de Clara fez a partir da resposta positiva que a garotinha deu à intervenção da professora. Diante da docilidade da criança, Antônia relata o comentário que a mãe fez: "essa menina é muito falsa... Ela é muito falsa, fingida, olha só! Ela tem o sangue da família do pai dela". Antônia reagiu, defendendo Clara:

Quando Clara tá com aquela birra, aquela malcriação a gente tem que ver o que tá acontecendo. Deixe o sangue deles pra lá, vamos tratar de Clara. Sua filha é essa criança que a senhora está vendo agora, essa é a Clara normal e que tem que ser: brincando, feliz. Essa é a Clara que eu trago para as minhas tardes, aqui acolá ela quer dar língua, ela quer chutar e eu tento trazer ela de volta. Sente e diga algo, olhe no olho de sua filha, converse, ela quer isso.

Analisando a qualidade das falas e intervenções de Antônia nesse conjunto de cenas pedagógicas, percebe-se uma elaboração gradual de sua agressividade, graças, sobretudo, ao trabalho desenvolvido no grupo de reflexão.

Inicialmente, como se vê na Cena 1, a professora parecia frágil e indisponível, pondo-se passiva (mas agressivamente) como ambiente e como objeto capaz de acolher e conter os impulsos das crianças. Esse movimento revela o jogo sadomasoquista com aquelas crianças que não se submetiam ao "deixar o circo pegar fogo". ao desproteger as crianças, ela atuava o próprio ódio, como sugere Winnicott (1947/2000), retaliando, em seu comportamento agressivo, e não permitindo que as crianças com quem não conseguia se relacionar de modo suficientemente bom a usassem como objeto da agressividade infantil.

Ao deixar a bagunça ocorrer até um nível intolerável, Antônia silenciosamente fazia circular um tipo de mensagem relacionada ao seu ódio, que correspondia a sua posição sadomasoquista frente ao enigma daquelas crianças (Laplanche, 2012), atuando no sentido de produzir mais bagunça para sofrer e fazer sofrer. A potência sadomasoquista posta em ação pela professora revelava sua defesa frente ao que não era por ela internamente tolerado e, portanto, era projetado em seus alunos, que entravam no jogo perverso proposto pela docente. Essa intervenção impossibilitava que as crianças pudessem se expressar e a professora pudesse mediar a agressividade pela fala, revelando sua dificuldade em favorecer a vivência objetiva do ódio pela criança (Winnicott, 1939/1995).

Outro aspecto que chamou atenção na observação e que pode relacionar-se com o modo como Antônia comunicava seu ódio foi a inibição da fala das crianças, provocada por ela, que provavelmente repetia o silêncio vivido em sua relação com sua professora salvadora: provavelmente ela não podia revelar seu ódio, não poderia experimentar sua agressividade, pois corria o risco de perder a pessoa com quem os pais podiam contar para entregar-lhe os cuidados da filha ou o silêncio de nunca poder reivindicar seus direitos junto aos pais.

Em tal processo, quando sintomático, o manejo docente é marcado por repetições - nas quais as docentes reproduzem modelos vividos, mas também põem em ação seus desejos em relação às crianças, tratadas como objetos do investimento inconsciente da própria agressividade das professoras, cuja elaboração não ocorreu satisfatoriamente, nem na vida pessoal nem durante suas formações para a profissão. Assim, a agressividade das crianças criava condições para mobilizar os conteúdos psíquicos de Antônia, que muitas vezes não conseguia colocar-se como suporte emocional e, ao invés disso, parecia precisar usar as crianças, testando-as para ver se sobreviveriam à sua agressão.

Podem-se imaginar as várias contradições subjetivas e ambivalências inconscientes às quais Antônia estava subordinada ao exercer a docência, dada a peculiaridade relativa à Educação Infantil (cuidar/educar). Quando também se pensa nos elementos biográficos da professora (negligência paterna, ausência materna), que emergiram por ocasião do relato da Cena 2, infere-se que uma experiência emocional de abandono aparecia atualizada em sua relação com as crianças (irritada, áspera, indiferente), reatualizando fantasias de sua posição passiva quando criança frente ao que vivenciava com o desamparo familiar. Na relação com seus alunos, repetia o padrão dos pais das crianças (que a professora presumia como negligentes, à semelhança de seus próprios pais) e, provavelmente por não ter alcançado a capacidade fazer uso do objeto de modo satisfatório, também ela não permitia que as crianças pudessem usá-la nesse sentido, mostrando-se irritada e áspera (no tom da voz e nas ameaças que fazia); ou quando se mostrava indiferente (repetindo a ausência dos seus pais), tornando precárias as intervenções, deixando o tumulto prevalecer e as crianças entregues a si mesmas.

Ainda pensando a Cena 2, relaxar, para Antônia, era sinônimo de descontrole, de desordem, de desamparo. Antônia não se liberava para relaxar com seus alunos e alunas que ela entendia "picantes", não se permitindo oferecer-se nem como ambiente nem como objeto para eles; contudo, desligava-se deles, atuando sua raiva, deixando que a violência ocorresse para só depois da desorganização já ter ocorrido indagar Denis com palavras esvaziadas de sentido para a criança: "A tia não acabou de pedir: Denis, não machuque o seu colega?". Essas palavras não tinham peso, pois não havia ali uma relação que as sustentasse, não havia uma verdadeira mediação que lhes desse significação - e a dinâmica sadomasoquista se mantinha.

Igualmente, na Cena 3, Antônia desimplicava-se da tarefa de manejar - acolhendo e contendo - a expressão da agressividade do menino. Diferentemente da raiva, porém, aparecia seu medo de um aluno cheio de raiva! Pode-se supor que Antônia não conseguia lidar com seus fantasmas internos, despertados a partir da demanda do garotinho e parecia atuar o ódio dirigido aos pais de sua infância (que puderam cuidar pouco dela) e à sua professora "salvadora" (que não era sua mãe, mas que cuidou dela quando estava vulnerável).

Ora, essas três cenas foram narradas até as primeiras reuniões do grupo de reflexão. Esse grupo, desenvolvido em caráter de formação docente continuada, visou permitir a elaboração de conteúdos agressivos de docentes às voltas com os conflitos relacionais na Educação Infantil. Certamente, promover um conhecimento sobre as necessidades das crianças e do que pode ser mobilizado nessa relação não garantia que as professoras conseguissem estabelecer com elas uma relação livre de conflitos e dificuldades. Imaginou-se, contudo, que, como acontece na clínica psicanalítica, o que é falado não é atuado. Desse modo, esses primeiros encontros parecem ter servido como um momento catártico no qual as participantes sentiram-se seguras para falar das dificuldades no manejo da agressividade das crianças e de seus incômodos em sua relação com as crianças e, ao sentirem-se acolhidas, a partir do holding que lhes foi oferecido, puderam começar um movimento diferente, mais cuidadoso com seus alunos e suas alunas. Assim, o grupo foi espaço de estudos e elaborações que evidenciaram efeitos para a condução assumida, pouco a pouco, por Antônia, nas cenas pedagógicas seguintes.

Tanto que, nas Cenas 4 e 5, Antônia foi muito mais competente. Ela não só conseguiu se implicar na Cena 4, como deu indícios de começar a fazer um manejo mais acolhedor do que aquele das Auxiliares - investido de sadismo e de indiferença - e, sem dar-se conta, refletia a forma como lidava com seus alunos e alunas até há pouco tempo. Antônia percebeu a imaturidade da criança para lidar com a própria agressividade e sua esperança de que alguém a contivesse. Sua capacidade de compreender o contexto e, sobretudo, a qualidade de sua intervenção mudaram - para o que sua impotência inicial diante da agressividade infantil "como é que eu vou trabalhar?" teve que ser superada.

A professora já não podia ficar indiferente, sem intervir, diante do sofrimento e da desorganização de Clara, que avançava por falta de contenção por parte da Auxiliar. As perguntas feitas à menina e a proposta de substituição (da fralda pela blusa) foram ilustrativas de como Antônia já conseguia escutar e responder aos pedidos da aluna no nível de significação fundamental para quem lida com crianças: aquele dos processos psíquicos inconscientes. Sem poderem traduzir em palavras todas as suas emoções e desejos, muitas crianças ainda assim comunicam por suas ações. A conduta de Clara nem era casual nem, tampouco, desprovida de sentido para Antônia, que passara a responder no nível da demanda infantil - ou seja, passara também a se comunicar com a criança, oferecendo acolhimento e contenção para sua agressividade.

Com o reconhecimento do grupo de reflexão como um suporte, Antônia mostrou-se mais segura para um manejo mais adequado da agressividade de Clara. A partir do reconhecimento da importância do grupo de reflexão para a qualidade de suas intervenções, o fenômeno, assim, continuava o mesmo, ao passo que Antônia não mais se defendia com a indiferença, alcançando estabelecer com Clara um outro tipo de relação.

Na Cena 5, a professora deixou uma posição passiva e passou a agir para que a criança pudesse, a partir de um cuidado ambiental adequado, lidar melhor com a sua agressividade. Ao defender Clara diante da mãe, para quem Antônia ofereceu um outro olhar sobre a menina, a professora buscou também conter a agressividade materna (manifesta num sarcasmo obviamente depreciativo da criança). Em mais de um momento, Antônia defendeu a aluna diante da mãe, apostando nas potencialidades da criança com base em uma interpretação do comportamento da menina que revelava outra concepção da agressividade infantil e outra disponibilidade para seu manejo. Antônia fez uma aposta também nas potencialidades da mãe quando lhe propôs reconfigurar a imagem de Clara. Essa proposta revelou a esperança de Antônia em um ambiente menos ameaçador para Clara, dentro e fora da creche.

 

Implicações para a formação docente: resultados da pesquisa e últimas considerações

Considerando o impacto dos conteúdos subjetivos de professores(as) na relação com alunos(as), a psicanálise pode ajudar a compreender os afetos mobilizados inconscientemente na relação entre o adulto e criança, subordinados à criança que existe em cada adulto, permitindo a hipótese de que, ao deparar-se com a agressividade infantil, o(a) docente possa, como indica a teoria laplancheana, defrontar-se com seu desamparo psíquico, próprio à reabertura da SAF. Logo, identificando-se inconscientemente com a criança, na situação de manejo da agressividade, o(a) docente atuará defensivamente para abrandar a própria angústia, projetando sua agressividade no infante, negligenciando-o ou retaliando o comportamento agressivo discente, cujo contexto relacional fomenta ainda mais raiva, ódio e comportamentos agressivos. Professores(as) não podem ser selecionados a partir de um grupo ideal: suas subjetividades devem ser cuidadas e valorizadas, buriladas por uma formação continuada.

Por isso mesmo, no intuito de favorecer o desempenho da difícil função de continência e redirecionamento pró-social da agressividade, docentes também precisarão de apoio constante, através de um holding institucional, o que, no presente estudo de caso, pôde ser atestado pelos efeitos da participação no grupo de reflexão pela professora Antônia.

No primeiro tempo, portanto, a teoria laplancheana permite inferir que Antônia parecia atualizar fantasmas, produzidos na sua infância, ante mensagens sadomasoquistas adultas, na relação com seus discentes. É claro, como ocorre com todos os seres humanos, as motivações inconscientes estavam operando nas reações de Antônia; porém, no segundo tempo, após se sentir mais segura, apoiando-se e apropriando-se dos conhecimentos produzidos no grupo de reflexão e do reconhecimento de seu lugar junto às crianças, foi possível para ela agir de um modo mais reparador e menos defensivo, o que a liberava para uma atuação docente na qual se colocava como um objeto que poderia ser usado pois já era capaz de sobreviver.

Para Antônia o grupo de reflexão funcionou como "cobertura materna" (Winnicott, 1955/1995) pois serviu-lhe, numa simetria, como uma mãe, favorecendo que se integrasse e amadurecesse - beneficiando-se do grupo. Desse modo, sua fala - carregada também de material inconsciente, vinculada em seu cotidiano ao manejo da agressividade infantil na sua relação com as crianças - tinha, no grupo, a partir do estudo e da reflexão compartilhada, a oportunidade de encontrar possíveis traduções e algum nível de elaboração, mesmo que muito preliminar. Assim, considerando o conteúdo inconsciente e os movimentos transferenciais que ocorrem, também nos grupos pode-se supor que as elaborações alcançadas por Antônia foram favorecidas pela transferência tanto horizontal - entre os pares - quanto vertical - entre a professora e a pesquisadora.

Esse processo, ainda em seu início, promoveu em Antônia uma mudança em sua posição subjetiva, uma vez que ela não conseguia mais ignorar as demandas de Clara, nem, tampouco, ficar indiferente à inadequação das Auxiliares e da mãe daquela criança. Creditava suas conquistas ao grupo como um ambiente seguro do qual pôde fazer uso e sentir-se mais integrada, funcionando de um modo mais maduro para relacionar-se com as crianças de sua turma. Além disso, nesse processo, ao apropriar-se dos conhecimentos compartilhados, dos próprios insights e da mensagem que a formação trazia como proposta às professoras, Antônia foi narcisicamente investida, apropriando-se de seu lugar como docente e podendo, agora, mais fortalecida, exercê-lo como uma construção sua e não mais baseado em idealizações ou defesas.

Nesse sentido, a mudança da professora Antônia foi identificada e interpretada, pela ótica winnicottiana, a partir da qualidade do manejo e de sua disponibilidade em relação às crianças: isso também aponta para a integração de sua própria agressividade no contexto do processo desenvolvido no grupo de reflexão. Essa mudança também é interpretável, numa perspectiva laplancheana, como expressão qualitativamente superior de novas traduções feitas por Antônia para as mensagens enigmáticas que atravessam seu psiquismo.

Como deve ocorrer em estudos de orientação psicanalítica, a interpretação encontrou seu fundamento e seus parâmetros de extensão mais importantes na fala, de modo que a interpretação se apoiou, foi revisada e complementou-se, nesse tempo, pelas elaborações iniciais desta participante. Assim, um trabalho que visa à formação docente nesses moldes também precisou ser, em algum nível, uma expressão de holding, com vistas a favorecer suturas possíveis do que é reaberto, do ponto de vista da SAF e, portanto, é mobilizado no encontro de um adulto e uma criança, também na cena pedagógica, possibilitando a Antônia outras formas de lidar com sua agressividade e, consequentemente, de lidar com a agressividade de seus alunos e alunas.

Na creche que serviu de campo de pesquisa, o grupo de reflexão prestando-se também como um objeto investido pelas professoras: cada uma a seu tempo possibilitou uma mudança na cena pedagógica. Assim, a formação docente pode favorecer o contínuo cuidado dos docentes, uma vez que, como propõe Winnicott (1963/1983, p. 87), "deve-se esperar que os adultos continuem o processo de crescer e amadurecer, uma vez que eles raramente atingem a maturidade completa".

Pesquisas como esta podem servir de base para políticas públicas de intervenção junto às escolas públicas, tendo em vista o problema crônico da violência na sociedade brasileira. É possível, a longo prazo, pensar em estudos longitudinais para acompanhar crianças alvo de intervenções por docentes que participaram de formação docente proposta nesta pesquisa e comparar sua sociabilidade com a de outras, cujos(as) professores(as) não se beneficiaram de tal experiência.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 17/01/2020
Aprovado para publicação em: 12/02/2021

Endereço para correspondência
Andréa Pires de Oliveira
E-mail: andreapirespsicologia@gmail.com
Fábio Roberto Rodrigues Belo
E-mail: fabiobelo76@gmail.com
Fernando Cézar Bezerra de Andrade
E-mail: frazec@uol.com.br
Katherinne Rozy Vieira Gonzaga
E-mail: katherinnegonzaga@hotmail.com

 

 

*Mestra em Educação (UFPB). Psicóloga. Psicanalista. Membro da Sociedade Psicanalítica da Paraíba (SPP).
**Doutor em Literatura Brasileira (UFMG). Psicólogo. Psicanalista. Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
***Doutor em Educação (UFPB). Psicólogo. Professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
****Doutora em Educação (UFPB). Psicóloga. Psicanalista. Membro da Sociedade Psicanalítica da Paraíba (SPP).

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