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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.55 no.1 Rio de Janeiro ene./jun. 2023

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e educação: o que pode o analista na escola em tempos de desempenho?

 

Psychoanalysis and Education: what can a psychoanalyst do in a school nowadays?

 

Psicoanálisis y Educación: ¿cómo actúa el psicoanalista en la escuela delante de la exigencia de desempeño?

 

 

Marina Silva Simões*; Fuad Kyrillos NetoI**; Maria Gláucia Pires CalzavaraI***

IUniversidade Federal de São João Del Rei - UFSJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo investiga o que pode o analista na instituição escolar frente ao discurso exigente de disciplina e desempenho dos alunos. Utilizamos como métodos a pesquisa bibliográfica, as pesquisas em três sites de sistemas de ensino e a recordação dos fragmentos da escuta pontual no cotidiano escolar. Fizemos um breve histórico da inserção da escola no Brasil e entendemos que os significantes disciplina e desempenho, apesar da marcante inserção do método construtivista nas escolas, possuem raízes fortificadas pelo ensino tradicional. Ao percorrer os sites, foi possível identificar o maciço investimento de recursos no material didático como promotor do sucesso do aluno. Desse modo, as apostilas são apresentadas aos alunos como o recurso primordial para o sucesso, e o professor, como ferramenta de mediação, necessário para o ingresso do aluno na universidade. Fundamentados na Psicanálise, compreendemos que a eficácia do método de ensino não depende exclusivamente do uso correto das apostilas, mas sim da subjetividade do aluno. Na tentativa de responder às demandas escolares pautadas pela ideologia social atual, que destaca o desempenho como um novo mandato do sucesso profissional, o aluno entra em conflito com a sua construção subjetiva. Sendo assim, o psicanalista irá lidar com as marcas advindas desse imperativo ideológico escolar e social de desempenho para o sujeito. Concluiu-se que, além dos alunos, o professor, também, é disciplinado pelo método de ensino e, dessa forma, reduzido à condição de reprodutor dos conteúdos presentes nas apostilas. O psicanalista tem uma função importante na desalienação das relações que permeiam o dia a dia escolar e que interferem tanto no funcionamento institucional quanto no mau desempenho do aluno e, também, no sofrimento psíquico de alunos e educadores.

Palavras-chave: Psicanálise, Educação, Desempenho, Disciplina.


ABSTRACT

This scientific article investigates what the psychoanalyst can do in a school in order to help with the big demand of discipline and performance from the students. As a research method we used the bibliographical survey, research in three education system websites and the memory from listening the students in the everyday school environment. We made a brief history of the school's insertion in Brazil, and we understood that the discipline and performance, although there is a constructivist method inserted at the schools, has deep roots in the traditional way of teaching. Looking through websites, it was possible to identify a massive resource investment in the educational material as a developer of the student's success. This way, the student's book is presented as a primary source for the success and the teacher is a mediation tool, necessary for the entrance of the student in the university. Based on the Psychoanalysis, we comprehend that the efficiency of the teaching method does not depend only on the correct use of the books, but in the student's subjectivity. In the attempt of answering the school's demands based on the current social ideology, which highlights the performance as a new professional success' mandate, the student gets in a conflict with their subjective construction. Therefore, the psychoanalyst will deal with the consequences of this imperative ideological academic and social from the performance of the subject. In conclusion, besides the students, the teacher is also disciplined by the education method and, this way, is reduced to the condition of reproducer of contents that are on the books. The psychoanalyst has an important function in the desalination of the relations in the school's daily routine that interferes so much in the school functioning and also in the student's performance in addition to the psychological distress of the students and of the educators.

Keywords: Psychoanalysis, Education, Performance, Discipline.


RESUMEN

Este artículo investiga lo que el psicoanalista puede hacer en la institución escolar frente a un discurso que exige disciplina y desempeño estudiantil. Utilizamos la investigación bibliográfica, la investigación en tres sitios de sistemas de enseñanza y recuerdos de los fragmentos de la escucha puntual en la rutina escolar, como métodos. Hicimos una breve historia de la inserción de la escuela en Brasil y entendemos que los significantes disciplina y desempeño, a pesar de la marcada inserción del método constructivista en las escuelas, tienen raíces fortalecidas por la enseñanza tradicional. Al navegar por los sitios, fue posible identificar la inversión masiva de recursos en material didáctico como promotor del éxito estudiantil. De esta manera, los materiales se presentan a los estudiantes como el principal recurso para el éxito académico y el profesor, como una necesaria herramienta de mediación para que el estudiante ingrese a la universidad. Basado en la psicoanálisis, entendemos que la efectividad del método de enseñanza no depende exclusivamente del uso correcto de los materiales, sino de la subjetividad del estudiante. Al intentar responder a las demandas escolares guiadas por la ideología social actual, que destaca el desempeño como un nuevo mandato para el éxito profesional, el estudiante entra en conflicto con su construcción subjetiva. Así que, el psicoanalista se ocupará de las marcas derivadas del imperativo ideológico escolar y social de desempeño para el sujeto. Se concluye que, además de los estudiantes, el profesor también es disciplinado por el método de enseñanza y, por lo tanto, reducido a la condición de reproductor de los contenidos presentes en los materiales. El psicoanalista tiene un papel importante en la desalienación de las relaciones que impregnan el día a día escolar y que interfieren tanto en el funcionamiento institucional, como en el bajo rendimiento del estudiante y, también, en el sufrimiento psicológico de los estudiantes y educadores.

Palabras clave: Psicoanálisis, Educación, Desempeño, Disciplina.


 

 

Introdução

Este artigo é uma comunicação preliminar de pesquisa realizada em um Programa de Pós-graduação em Psicologia. A partir da prática clínica com crianças e adolescentes e do trabalho em escola, despontou o problema de pesquisa que ora investigamos: o que pode o analista na instituição escolar frente ao discurso recorrente e exigente de disciplina e desempenho dos alunos? Esse profissional psi é contratado, como qualquer outro nessa instituição, para auxiliar a escola em suas demandas e em seus interesses. No entanto, é de conhecimento que o lugar e a função ética do psicanalista em sua atuação profissional sustentam um lugar de não saber, o que nos revela de pronto uma posição que não responde às demandas, sejam elas institucionais ou não. A partir disso, o que nos instiga nesta pesquisa é interrogar as possibilidades de o psicanalista atuar dentro de uma instituição escolar sem responder ao discurso institucional.

Para tal intuito, valemo-nos da condição de ter trabalhado em uma instituição de ensino de caráter privado, não governamental, localizada em uma cidade de pequeno porte do interior do Minas Gerais, considerada exitosa na aprovação de seus egressos no Exame Nacional do Ensino Médio [ENEM], cujo público é predominantemente das classes privilegiadas. Geralmente estes alunos são alvo de expectativas familiares com relação a aprovação em Universidades públicas de qualidade, com vistas a iniciarem carreiras consideradas rentáveis. Com o propósito de auxiliar nossa pesquisa, pequenos fragmentos do cotidiano foram associados à pesquisa bibliográfica. Esses fragmentos do cotidiano institucional são referentes ao período de abril/2017 a novembro/2018 quando lá trabalhei como psicóloga.

A partir disso, utilizamos como método a psicanálise aplicada associada à revisão bibliográfica sobre as possibilidades de trabalho do psicanalista na escola. Seguimos três eixos de trabalho: a pesquisa bibliográfica, as pesquisas em sites de sistemas de ensino consideradas de alta qualidade no Brasil hoje por terem alto nível de aprovação em exames de ingresso nas universidades e a recordação dos fragmentos da escuta pontual no que se refere às questões do cotidiano escolar. A pesquisa bibliográfica é consonante com os princípios da pesquisa em psicanálise. Para construir a teoria, Freud (1913/2006) utilizou a escuta do caso a caso: "(...) a psicanálise não é fruto da especulação, mas sim o resultado da experiência (...)" (p. 225). Diniz (2018) elucida que Freud não permite que o método psicanalítico seja uma técnica, na medida em que a escuta é singular e possibilita que o lugar do analista seja reinventado a partir de cada caso, o que desmonta a lógica do universal.

A metodologia de pesquisa, pensada na perspectiva da psicanálise, nos autoriza a afirmar que toda pesquisa ocorre sob transferência, pois esta ocupa a posição de epicentro da cura e, também, desvela a pregnância do próprio fenômeno da transferência nas relações entre sujeitos (Beividas, 1999). Assim, entendemos que a presença do pesquisador no campo pode criar possibilidades para alterar as relações e os discursos produzidos, desde que haja a introdução de uma hiância imprescindível para o trabalho do analista na instituição escolar. Tal como nos afirma Lacan (1967/2003) "não basta a evidência de um dever para que ele seja cumprido. É por intermédio de sua hiância que ele pode ser posto em ação, e o é toda vez que se encontra o meio de utilizá-la" (p. 251).

Do mesmo modo, a recordação da escuta de fragmentos de frases, queixas e demandas do cotidiano escolar é retida, demonstrando que o problema de pesquisa se deu a partir do fenômeno transferencial, pois a transferência é condição de pesquisa. Em "Construções em Análise" , Freud (1937/1996) destaca que a tarefa do analista é transmitir as construções e explicações que a acompanham e completar aquilo que foi esquecido. Ratificando a posição freudiana, Dunker (2013) elucida, ao investigar, no espaço circunscrito da psicanálise aplicada, quais seriam as condições do método para a construção de evidências clínicas. Assim, ele destaca três características relevantes: recordação, implicação e transferência. A recordação, extensamente utilizada nesta pesquisa, diz respeito à história e contingências que ela implica; a segunda requer a interrogação ética sobre o estranhamento com os quais o pesquisador se depara; e a terceira pressupõe a suposição de saber. Essas características reveladas na pesquisa pelos fragmentos recordados do discurso do outro, diz-nos Dunker (2013), "fazem da psicanálise aplicada e do discurso analisante a ela ligado um método de invenção, um método de descoberta" (p. 71).

Acreditamos que este estudo nos possibilitará a construção de um saber acerca da circulação dos significantes disciplina e desempenho na instituição e seus impactos nas relações entre alunos e professores. O primeiro se revela na exigência de ter bom comportamento em sala para que o conteúdo possa ser aprendido. Por outro lado, uma vez essa demanda realizada, o bom desempenho seria a resposta almejada para que o aluno esteja apto a enfrentar os exames dos vestibulares e o ENEM com êxito. Diante de tais convocações recorrentes, que se tornaram interesse de pesquisa, evidenciamos um mal-estar no campo escolar frente às exigências de cada sujeito presentes nas situações cotidianas e, principalmente, diante daquilo que insiste em escapar à disciplina, ao controle, à rotina escolar e ao desempenho dos alunos. Presenciamos uma demanda institucional em enquadrar o sujeito frente às exigências sociais, impondo a normatização das regras. Além do mais, parece haver uma "angústia coletiva" por parte dos profissionais da escola diante da falta de respostas e uma busca por soluções prontas. Desse modo, trabalhamos com a hipótese de que a inserção do psicanalista na escola evidencia a relevância de se sustentar em uma escuta, ainda que seja pela lembrança dos fragmentos das frases proferidas pelos alunos e dos educadores, no intento de obter um saber fazer frente ao mal-estar que perpassa um e outro.

O modus operandi do trabalho nessa escola em particular se dava a partir do encaminhamento para atendimento psicológico, feito pelas coordenadoras, dos alunos indisciplinados e com baixo rendimento. Era solicitado atendimento especialmente aos alunos do 3º ano do Ensino Médio, os quais apresentavam dificuldade para acompanhar o rendimento da turma. Nesse encaminhamento, podemos localizar uma exigência escolar para o profissional psi: a psicanalista precisava ajudar o aluno a resolver os problemas que o prejudicam na aprendizagem, o que poderia inviabilizar o ingresso na universidade. Os principais problemas apresentados por eles eram: ansiedade, indisciplina, não assimilação do conteúdo, falta de interesse pelas aulas e dificuldade na relação com o professor. Frente a essas manifestações "sintomáticas" apresentadas pelos alunos, o que nos causa estranheza são as nomeações e diagnósticos certeiros que justificam o não desempenho e a não disciplina do aluno, tais como: Transtorno de Déficit de Atenção [TDAH], Transtorno Opositivo Desafiador [TOD] e Transtorno de Ansiedade dentre outros. O que podemos notar é que se busca, no diagnóstico médico, a possibilidade de medicalização e, nos laudos médicos e psicológicos, a justificativa para tais problemas. Ao acolher esses sujeitos, inicialmente, procuramos nos distanciar dos significantes diagnósticos previamente ofertados a eles, bem como, das demandas de desempenho e sucesso escolar, o que nos permitiu propiciar um espaço de escuta para que surgissem seus impasses subjetivos.

Destacamos um breve fragmento discursivo, presente, com frequência, no relato dos educadores nos corredores da escola: "Este menino é de laudo". Essa enunciação traz em si a expectativa, por parte dos funcionários da instituição, de um enunciado que justifique a indisciplina e o mau desempenho do aluno.

Com o objetivo de localizar o significante desempenho, pesquisamos os sites de três sistemas de ensino no Brasil. A partir deste ponto, e com uma escuta especializada para as exigências e demandas no cotidiano escolar, compreendemos que o significante desempenho parece revelar algo para além do escolar. Isso porque um bom desempenho escolar exigido para o aluno no Ensino Médio sugere a possibilidade de inserção dele no mercado de trabalho e o seu sucesso profissional. Doravante, para isso, é prioritário o ingresso na universidade, que será possível por intermédio do bom desempenho nas avaliações, o que implica o uso correto das apostilas comercializadas pela escola. Temos, assim, uma tríade, que, segundo os slogans publicitários das escolas de Ensino Médio e dos cursinhos, guiará o aluno para o sucesso: disciplina na escola, bom desempenho nas avaliações e uso adequado das apostilas. Entendemos que, a partir dos significantes disciplina e desempenho, nos dirigimos ao possível sucesso do aluno, e este nos parece ser o mote tanto das escolas quanto dos cursinhos na atualidade de uma sociedade cada vez mais competitiva e guiada pelo sucesso.

Assim, acreditamos que a escola responde a uma ideologia social. Por isso, realizamos um percurso da instituição escolar pela ideologia dominante elucidando o conceito de ideologia. Sublinhamos a relevância dos métodos de ensino - Tradicional e Construtivista - para fazer um arranjo do método utilizado pela escola hoje na tentativa de localizar o significante desempenho.

Do mesmo modo, a pesquisa em sites de grandes sistemas de ensino e os fragmentos da escuta a partir da experiência em instituição escolar nos dotaram de elementos para construir as possibilidades de trabalho do psicanalista na escola frente ao imperativo de disciplina e desempenho.

 

A escola no Brasil: breve percurso histórico

Partimos da educação como um processo mais amplo, que não considera somente o ato de ensinar e aprender, mas também se inscreve como lócus de transmissão de marcas simbólicas de que o sujeito se apropria para se inserir no processo civilizatório - tão caro ao seu porvir. A educação propõe, portanto, a regulação da vida e dos costumes. Por outro lado, à escola é reservado o lugar de educar para a civilização (Carvalho, 2005; Fusinato & Kraemer, 2013; Olinda, 2003).

Ao percorrer a história da educação no Brasil, que despontou precisamente no período colonial, em meados do século XVI, com o intuito de educar os nativos para a civilização seguindo o modelo europeu, os colonizadores contaram com a vinda dos padres jesuítas para o Brasil. Nesse contexto, a educação se deu através de mecanismos disciplinares, que objetivavam controlar o tempo, o espaço, as relações pessoais e os corpos de forma que o índio fosse moldado de acordo com os valores do clero e da Coroa, o que o tornava um mero objeto dos interesses sociais e políticos vigentes. Segundo Fusinato & Kraemer (2013), civilizar era o mesmo que enquadrar no molde ideal português, sendo necessário que os indígenas abdicassem dos seus instintos, considerados hábitos selvagens e inconcebíveis para a civilização. De maneira não divergente, verificamos, no sistema escolar atual, o controle do tempo, das relações pessoais, inclusive dos corpos agitados, que insistem em denunciar o não funcionamento desse sistema, com o objetivo de suprimir aquilo que incomoda, que escapa à norma e que atesta para o possível fracasso do desempenho do aluno.

Em meados do século XIX, surgiu a Escola Tradicional, que tinha como proposta a educação centrada no professor, visto como autoridade dominante, cuja função objetivava controlar a disciplina dos alunos, ensinar e corrigir a matéria por meio de aulas expositivas. Desse modo, o que fica evidente é a transmissão de um saber único, visando à memorização do aluno, bem como a transcrição do que foi aprendido por meio de avaliações. Frente a esta posição ativa do professor, o papel do aluno era passivo, submetido a ordens, normas e recomendações vindas do professor. Ele deveria, pois, executar as atividades ordenadas com disciplina e obediência (Fusinato & Kraemer, 2013; Uria & Varela, 1992).

Por conseguinte, no final do século XIX, surgiu a Escola Nova na Europa, que chegou ao Brasil em meados da década de 20 do século XX, com a proposta de um novo modelo de ensino, que comporta um deslocamento da posição do professor enquanto agente absoluto do saber a ser transmitido para o aluno. Tal escola rompe com a ideia do aluno passivo, apenas receptor de conhecimento. Ao contrário, incentiva o desenvolvimento da autonomia moral do aluno e a sua liberdade reflexiva. Nela, a relação professor-aluno é priorizada, na qual o primeiro ocupa a posição de facilitador do processo de aprendizagem, enquanto ao segundo cabem o interesse e a ação para a aprendizagem. Assim, a iniciativa do aluno guia o aprendizado de forma que o aluno tem liberdade de expressão, de questionamento e de busca por conhecimento, o que prioriza o processo de aprendizagem, e não apenas o resultado final (Carvalho, 2005).

Isso posto, fica-nos evidente que, para além do modelo de escola vigente em cada época, existem os métodos de ensino adotados nas escolas, não sendo essencial seguir rigorosamente um único método, mas sim poder utilizar mais de um. Na nossa pesquisa, destacamos, prioritariamente, dois métodos: Tradicional e Atual. O primeiro, porque acompanha os primórdios da educação, e o segundo é o tradicional mesclado ao construtivista conforme nossa experiência e as questões que guiam a pesquisa.

O método de ensino tradicional tem ênfase no conteúdo transmitido, em que o professor transmite o conhecimento para o aluno, por meio de métodos expositivos, como verdades impostas, sem brecha para questionamentos ou levantamentos de dúvidas em relação à sua veracidade, enquanto ao aluno cabe assimilar o máximo de informações dadas. O professor tem uma posição autoritária em relação ao aluno, pois é ele quem detém o conhecimento a ser transmitido. No entanto, o aluno tem o papel de receber tal conhecimento, reforçá-lo com atividades diárias e aplicá-lo nas avaliações e simulados como prova de seu aprendizado (Fusinato & Kraemer, 2013; Leão, 1999; Uria & Varela, 1992).

Na década de 1980, surgiu, no Brasil, o pensamento construtivista, enquanto método de ensino, com a proposta de um método que se opõe ao tradicional justamente por considerar que o aprendizado não se dá em via única, ou seja, do professor para o aluno, mas no qual o aluno é um agente interativo em sala de aula, sendo capaz de construir conhecimento. A ênfase da educação no modelo construtivista é formar pessoas capazes de terem um raciocínio ativo e autônomo (Leão, 1999).

O método de ensino construtivista, amparado nas ideias do epistemólogo Jean Piaget (2002), propõe que a escola trabalhe pelo viés de atividades que favoreçam a espontaneidade e a curiosidade do aluno - ativo no processo de aprendizagem -, enquanto o professor nem tudo sabe e nem tudo impõe, cabendo a ele acompanhar os alunos individualmente. Trata-se, pois, de um método que engloba a troca de conhecimento entre pessoas e o trabalho em conjunto e em cooperação para a construção intelectual do aluno.

Piaget (2002) postula que a educação envolve questões afetivas, intelectuais e relacionais, e o desenvolvimento da personalidade "(...) é inseparável do conjunto dos relacionamentos afetivos, sociais e morais que constituem a vida escolar" (p. 6). Diante disso, o epistemólogo defende que o professor é orientador do aluno, já que acompanha, auxilia e mostra caminhos para o aluno, mas quem busca o conhecimento é o próprio aluno, que, dessa maneira, retém o conhecimento de forma mais eficaz. Nas palavras do autor, "Ao invés de deixar que a memória prevaleça sobre o raciocínio, ou submeter a inteligência a exercícios impostos de fora, aprendera ele a fazer por si mesmo funcionar a sua razão e construirá livremente suas próprias noções" (Piaget, 2002, p. 54).

A partir disso, o que podemos considerar é que a escola, hoje, por mais que se dirija a se atualizar, buscando uma metodologia de interação entre professor e aluno, na verdade, ainda se ampara em uma faceta particular do ensino tradicional, uma vez que a exigência de resultados leva, recorrentemente, a uma exigência de desempenho, que terá como objetivo final o sucesso escolar e profissional. Podemos observar que os significantes disciplina e desempenho, apesar da marcante inserção do método construtivista nas escolas, possuem raízes fortificadas pelo ensino tradicional e que, em tempos atuais, ao se associarem à ideologia social ligada ao sucesso, demarcam a tríade por nós mencionada, a qual está no bojo de uma sociedade em que a competição impera.

Saviani (1985) descreve de forma arguta as dificuldades dos professores com relação ao aparecimento da tendência tecnicista e das teorias crítico reprodutivistas. Para ele, a realidade em que os professores atuam é tradicional, porém, uma contradição se faz presente, o professor se vê pressionado pela pedagogia oficial que prega a racionalidade e produtividade do sistema e do seu trabalho (tecnicismo) e, atuando com uma formação escolanovista em uma realidade tradicional.

O que podemos compreender até este ponto da pesquisa é que a ideologia de cada época define o método utilizado pelas escolas, porque este está diretamente ligado ao contexto social vivido. Assim, os conteúdos repassados em sala de aula respondem ao imperativo de sucesso transmitido pela sociedade ordenados independentemente da experiência do aluno.

Para isso, seguimos com a questão que perpassa o modelo educacional e sua relação com a ideologia vigente em cada época, para que possamos interrogar sobre o método e como o psicanalista pode intervir nesse contexto.

 

Uma faceta da escola tradicional na escola atual: ideologia e construção de conhecimento

Partimos do conceito de ideologia, criado pelo filósofo francês Antoine Destutt de Tracy no século X IX, para dizer do conjunto de posicionamentos e ideais seguidos por uma pessoa ou por um grupo. Ela está relacionada aos sistemas políticos e sociais, obedecendo à classe dominante, como propõem Marx e Engel (2007). Podemos entendê-la, também, como um conjunto de ideias orientadas para a reprodução e manutenção da ordem estabelecida, na qual tanto o poder econômico quanto o social influenciam na visão de mundo das pessoas como Mannheim (1968) nos convida a pensar.

Além disso, Althusser (1996/2010) destaca que os métodos de ensino nas escolas e a exigência de disciplina são justificados pela ideologia. Assim, o sujeito alienado toma para si algo que é do outro, acreditando ser seu. Ademais, a ideologia pode indicar o enlace na forma como o sujeito se relaciona com o outro e vive no meio social como indica Eagleton (1997).

Tem-se, ainda, a ideologia, que figura como uma visão de mundo pautada em unificar ideias, crenças e atitudes. Para isso, diz-nos Lowy (2008), criam-se regras para o funcionamento social e exige-se o cumprimento de tais regras. Segundo o autor, as "visões de mundo" podem ser ideológicas se servem como forma de legitimar, justificar ou manter a ordem social frente a uma verdade preexistente.

Marilena Chauí (2016) associa ideologia e educação ao propor que a ideologia seria uma universalidade imposta como verdade, na qual os indivíduos localizam-se em sua construção subjetiva. Desse modo, a ideologia pode ser compreendida como um conjunto de representações e normas fixas que antecipam a prescrição de como se deve pensar, agir e sentir. Nas palavras da autora, "A eficácia da ideologia depende, justamente, da sua capacidade de produzir um imaginário coletivo em cujo interior os indivíduos possam localizar-se, identificar-se e, pelo autorreconhecimento assim obtido, legitimar involuntariamente a divisão social" (Chauí, 2016, p. 245).

Podemos localizar a ideologia escolar atrelada à ideologia social de exigência de produção constante e de destaque no mercado de trabalho. Chauí (2016) sublinha que há algo para além do discurso da educação, que se encontra enlaçado a ela, porém, simultaneamente, exterior a ela, pois está no campo do social. Na sociedade, afirma a autora, há uma "regra da competência" a ser cumprida, que significa a eficiência da realização de uma tarefa, o que separa "(...) aqueles que sabem e os que 'não sabem', estimulando nestes últimos o desejo de um acesso ao saber por intermédio da informação" (Chauí, 2016, p. 249).

Dessa maneira, busca-se saber cada vez mais, para, assim, fazer parte do grupo da eficiência e responder à ideologia contemporânea, que está atrelada à exigência econômica de produção e organização. Assim sendo, Chauí (2016) localiza dois significantes para definir a ideologia na sociedade da atualidade: eficiência e competência, que traduzem o enlace entre saber, produção e organização. É interessante observarmos que os significantes destacados por ela se aproximam dos significantes que se revelam para nós nesta pesquisa: disciplina e desempenho. Desse modo, revelaremos como nos aproximamos desses significantes ao longo da pesquisa.

A fim de localizar qual é a ideologia dominante na escola da atualidade, pesquisamos nos sites1 de três sistemas de ensino, os quais prevalecem nas escolas privadas brasileiras e servem de modelo para os demais, pois estão no patamar da lista dos alunos que têm as melhores notas no ENEM e, portanto, ingressam nas universidades.

Ao percorrer tais sites, identificamos anúncios preponderantes que indicam o quão eficiente é o professor na transmissão do conteúdo por meio do material didático que sustenta a promessa de desempenho do aluno. Esses sistemas de ensino apontam a pretensão de contribuir ativamente para o desenvolvimento de cidadãos preparados, ofertando o suporte para as escolas que fizerem parceria com eles. Dentre essas ofertas de suporte, destacamos o item referente à assessoria pedagógica, que auxilia o professor, de forma especializada, na implantação das soluções quanto ao uso do material didático, à elaboração de aulas e ao atendimento cotidiano para atender às necessidades do professor. Os sites contêm explicações sobre o material utilizado em sala de aula referente a cada série; em destaque, o material do terceiro ano do Ensino Médio. Este porta a promessa do ingresso do aluno na universidade, já que as apostilas abarcam os conteúdos e exames dos principais processos seletivos do País, o que otimiza os estudos e garante a compreensão eficaz de cada assunto, tendo, assim, como resultado, o ingresso do aluno na universidade. Enfim, um dos sistemas de ensino destaca que o material didático é elaborado com a intenção de ver os alunos na lista de aprovação do vestibular.

A partir de tal pesquisa pelos sites dos três sistemas de ensino em evidência no Brasil hoje, é possível identificar o maciço investimento de recursos no material didático como promotor do sucesso do aluno, sendo o professor o meio para atingi-lo. Fica-nos claro, ao pesquisar os sites, que as apostilas são apresentadas aos alunos como a ferramenta que dispõe o conteúdo necessário para o bom desempenho do aluno nas provas para ingressar na universidade. Do mesmo modo, notamos que o professor nos parece se apresentar como o mediador no uso desse recurso, o qual ganha um caráter um primordial e decisivo para o sucesso do aluno, que é a apostila. Podemos observar que há, na atualidade, mais um deslocamento da posição professor. Outrora, vimos o professor no lugar do agente do saber. Depois, ele se deslocou para o lugar do que constrói com o aluno: o saber. E, hoje, ele nos parece estar como o mediador do saber, pois quem representa o saber é a apostila.

Esses sistemas investem maciçamente nas apostilas e nos recursos tecnológicos como forma de obter êxito na aprendizagem de seus alunos. Uma questão fica em suspenso: como lidar com o cotidiano de sala de aula, que está repleta de alunos diferentes entre si, alguns que apresentam dificuldade de aprendizagem, outros que não dão o resultado prometido pelo sistema de ensino, aqueles alunos que conversam durante toda a aula ou aquele aluno que dorme durante a aula e não apresenta interesse no conteúdo transmitido pelo professor?

Voltolini (2012) destaca o tríplice caráter da pedagogia: pragmático, voltado para a proposição; idealizante - dirigido para uma imagem ideal de educação; vacuidade de seu saber - que significa que seu saber está em estrita dependência com os diversos saberes que lhe dão substância. Para o autor, esta condição essencialmente agenciadora gera uma pronunciada aproximação da técnica. Assim, essa proximidade predispõe a pedagogia a funcionar como mero lugar de agenciamento desses vários saberes.

Ainda neste texto, Voltolini (2012) ressalta que o lugar do ideal, com a consequente pressão que ele exerce em direção ao prescritivo e ao normativo, exerce uma função de direcionamento na consideração dos diversos saberes que se apresentam nesse campo. No caso da pedagogia, o ideal parece ocupar o lugar de S1 no discurso do mestre, ou seja, o lugar de agenciador discursivo. Ao ter a rentabilização do conhecimento abrigada junto a essa lógica, as apostilas tendem a assumir um lugar de relevância no cotidiano dessas escolas.

Porém, o material didático não substitui a mestria do professor. Questionamos se tais recursos garantem que o aluno, sujeito de desejo, está disposto a aprender e demonstrar um bom desempenho nas atividades escolares e nas provas de ingresso à universidade.

Do mesmo modo, o que reconhecemos como a ideologia dominante na atualidade e que concerne não só à escola, mas aos valores que imperam na sociedade, é uma corrida competitiva para alcançar o sucesso, o primeiro lugar, o melhor emprego e destacar-se no social. Parece-nos ser um trabalho rumo à competência, delineada a partir de uma exigência social. Na tentativa de acatar as demandas escolares e sociais bem como a construção subjetiva, o sujeito sofre os efeitos desse conflito. Acreditamos que, como psicanalistas, recolhemos os restos e as marcas da ideologia escolar e social para o sujeito.

Os conceitos de ideologia referentes à forma de produção se aproximam da exigência da sociedade atualmente, marcada pelo ingresso na universidade, a fim de que as escolas sejam reconhecidas como boas instituições de ensino. Para isso, é necessário que o aluno tenha boa produção ou, podemos dizer reprodução do conteúdo estudado.

Ainda que se mostre parcimonioso com o uso da noção de ideologia nas análises do exercício do poder, Foucault nos oferece importantes subsídios para a discussão da disciplina, que, na acepção foucaultiana, é definida de duas formas que se relacionam (Castro, 2009). Na vertente da ordem do saber, ela é definida como uma forma discursiva de controle e produção de novos discursos (Castro, 2009; Foucault, 1999). Com relação ao poder, esses autores asseveram a disciplina como um conjunto de técnicas em virtude das quais os sistemas de poder têm por objetivo e resultado a singularização dos indivíduos (Castro, 2009; Foucault, 1987). A partir da publicação das obras "Vigiar e Punir" (1987) e "Histórias da sexualidade humana: a Vontade de Saber" (1976), concernente à questão das instituições disciplinares, Foucault atrela a questão da constituição de saberes a modos de exercícios de poder aproximando a análise da questão do dispositivo, assim definido por ele:

Trata-se de um conjunto heterogêneo de discursos, instituições, organizações arquitetônicas, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (Foucault, 1995, p. 244).

Temos, aqui, uma possibilidade de reflexão sobre os discursos referentes à criança e à necessidade de educá-la de acordo com certas finalidades sociais. A escola, instituição da sociedade disciplinar, proporciona a formação de determinado tipo de sujeito por meio de um modo específico de relações de poder, caracterizado por Foucault (1995) como "poder disciplinar". Porém, o poder disciplinar, por mais que se apresente de forma maciça, soberana, fazendo com que a prisão se assemelhe às usinas, às casernas e às escolas (Foucault, 1987), é denunciado pelos indisciplinados e inadaptados enquanto imitações desses sistemas de ensino.

A importância dada pela escola ao uso da apostila é um ponto relevante para localizar o nosso problema de pesquisa, o que nos levou a investigar com mais afinco os discursos predominantes na escola. Partimos do discurso do mestre presente - quanto ao imperativo de disciplina dos alunos e funcionamento da escola - e do discurso universitário - comandado pelo imperativo da busca por saber mais - enlaçados ao discurso capitalista - quanto ao uso das apostilas como solução para o bom desempenho do aluno. A partir desses três discursos, alcançamos o discurso do analista bem como o modo de operar do psicanalista na escola.

 

Discursos do mestre, do analista, do universitário e capitalista: leitura no âmbito escolar

Sobre os discursos, Lacan (1969-1970/1992) esclarece, em "O Seminário, livro 17", o modo de pensar o sujeito inserido em seus laços sociais, estruturados e tecidos como linguagem, por isso denominados discursos - modos onde a linguagem é vivenciada como vínculo social. Os discursos são, na interpretação de Lacan (1969-1970/1992), os quatro modos de relacionamento apontados por Freud (1930/2006) como fontes do sofrimento do homem: governar, educar, analisar e fazer desejar. Na leitura lacaniana, os seus correspondentes são, respectivamente, os quatro discursos: do mestre, do universitário, do analista e da histérica. De acordo com Lacan (1969-1970/1992), os quatro discursos funcionam de forma integrada, fazendo um quarto de giro para se estruturarem e utilizando os mesmos elementos. Em 1970, Lacan introduziu o discurso capitalista como uma nova configuração do discurso do mestre. À nossa pesquisa, interessam, sobretudo, quatro deles: do mestre, do analista, do universitário e capitalista. O discurso do mestre, por ser o discurso que vigora na instituição; o do analista, por ser o discurso com o qual a psicanálise opera; o do universitário, por estar presente nas escolas quanto ao uso das apostilas; e o do capitalista, por ser o discurso contemporâneo e estar entrelaçado ao discurso universitário.

Quinet (2009) apresenta o discurso do mestre como aquele que institui, o qual determina quem manda e quem obedece. A disciplina tem papel preponderante no laço social produzido por esse discurso. Nos termos do discurso do mestre, teríamos o professor, o suposto líder dos alunos, comandando as ações que norteiam a aprendizagem de seus comandados, os quais são executores de suas ordens. O significante mestre (S1), representante da lei, estaria, portanto, em posição de comando e agiria sobre os discentes, alienando-os de suas vontades particulares em prol da constituição de um saber (S2), conquistado a partir da execução das técnicas de ensino propostas pelo material didático. Trata-se de um saber derivado, isto é, subordinado à ordem do significante mestre, que visa ao desempenho acadêmico. O significante "suposto" utilizado tem uma nítida motivação. E a liderança do professor é partilhada com uma segunda autoridade, qual seja: o material didático fornecido pelo sistema de ensino. Ele deve ser austeramente seguido para que o "sistema" alcance êxito, expresso na forma de aprovações em universidades.

Em seu avesso, prossegue Quinet (2009), o discurso do analista caracteriza-se por ser o que destitui o lugar do mestre totalitário ao propor a ética da diferença, pautado no um a um, e não na segregação, como pretende a instituição. O psicanalista, independente do lugar onde esteja inserido a trabalho - como nos esclareceu Freud (1932/2006) -, opera com o discurso do analista, pois, para cada experiência particular, não cabe uma solução universal.

De acordo com Silva (2018), o discurso universitário convida o sujeito para um novo encontro com o saber, não uma exigência, mas um convite sedutor de saber cada vez mais. Nas palavras da autora, "O saber, no lugar dominante do discurso universitário, não quer dizer saber de tudo, mas uma aposta de que tudo é saber, de forma que o sujeito deve ser subjugado pela mestria do saber" (Silva, 2018, p. 171). Diante disso, podemos fazer a seguinte leitura: quando a escola atribui o saber à apostila e passa tal convicção para os pais e para os alunos, ela está operando com o discurso universitário, o qual fomenta que o saber necessário para o sucesso do aluno encontra-se na apostila e no método de ensino adotados pela escola e que é ela quem tem a ferramenta - o professor - para a transmissão de tal saber.

Por outro lado, Alberti (2009) enfatiza que a psicanálise não é portadora de um saber sobre o sujeito, mas sim outorga o saber a vir a ser construído pelo próprio sujeito. Em consonância com a autora, Quinet (2009) sublinha que "A verdade no discurso universitário - a verdade do sujeito - é rejeitada em prol do mandamento de tudo saber. O mestre da ciência universitária é o saber, e nada pode detê-la" (p. 20). Conforme o autor, o sujeito que corresponde ao discurso universitário é o sujeito da crença, que crê no saber imposto, aquele iludido com o saber que pode vir a ter - apresentado pelo discurso universitário.

Sustentado pelo ensino de Lacan, Braunstein (2010) aponta o discurso capitalista como a transformação do discurso do mestre. Nas palavras do autor, "(...) o discurso do capitalista tem sua fórmula no seio dos quatro discursos e ela não é outra senão a fórmula do discurso universitário, no qual o saber toma lugar do agente que repete e comunica os ditames do mestre" (Braunstein, 2010, p. 154, grifo do autor). Ele prossegue apontando o discurso universitário como aquele que está a serviço do discurso capitalista e que corresponde ao que presenciamos no mercado contemporâneo.

Sublinhamos que, no momento em que a escola enfatiza a importância do seu produto - material didático e professor que sabe transmiti-lo - aos alunos e aos pais, está em vigor o discurso capitalista.

A partir da leitura lacaniana sobre os discursos, Miller (2017) esclarece que, ancorada pelo discurso do mestre, a instituição visa a realizar encaminhamentos de modo a se fazer funcionar pela via do ideal, enquanto o discurso do analista acredita poder acolher o que não corresponde a esse ideal, aquilo que resta, o ponto insuportável que a instituição não tolera, escutando e tratando a partir da singularidade de cada um.

Ao mesmo tempo, a falta de respostas e não solução para o problema específico do aluno parece inviabilizar o trabalho na escola, que se ocupa em manter o bom funcionamento da instituição. Na tentativa de assegurar a aprendizagem e o bom desempenho dos alunos nas avaliações, o uso das apostilas é a ferramenta chave proposta pela escola. Neste ponto, destacamos o discurso universitário como aquele que demonstra a eficácia do método de ensino utilizado pela escola, que o apresenta, em parceria com as apostilas, para os pais e para os alunos como a forma segura do ingresso na universidade. Ademais, assistimos ao imperativo do discurso do mestre, o qual exige que o aluno se enquadre no ideal da escola. Mais além do que se adequar à proposta do método de ensino, espera-se que o aluno responda com disciplina e desempenho.

O que presenciamos é a exigência de que o aluno responda de acordo com o ideal da escola - com disciplina e desempenho. Todavia, sabemos que, para que o aluno aprenda, é necessária a transmissão, que implica algo da relação professor-aluno, a qual se encontra em questionamento devido ao deslocamento do lugar do professor enquanto transmissor de conhecimento.

 

Transmissão de conhecimento: relação professor-aluno

Ao falar de transmissão, estamos diante da transmissão de algo de particular do professor para o aluno, o que vai além da aprendizagem do conteúdo. Essa questão, que fundamenta a obra de Freud e que é cara aos psicanalistas, trata da relação aluno e professor fazendo conexão com as relações primárias que o sujeito estabelece e formaliza ao longo de sua história. Essa relação remete à perda do amor primordial vivida na infância.

Em "Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar", Freud (1914/2006) traz à luz a relevância fundamental da relação entre aluno e professor para que a transmissão de aquisição de conhecimento seja possível. Segundo Freud (1915/2006), o contato com o professor pode aproximar ou afastar o aluno dos caminhos que levam à aquisição do conhecimento. Isso tem relação com a transferência, ou seja, com a relação de amor estabelecida entre aluno e professor, que remete à relação primordial do sujeito.

Na transferência, as vivências e os amores infantis são deslocados para o presente de forma inconsciente. Isto é, trata-se da repetição dos modelos infantis, das figuras parentais, que são substituídas para a figura do professor. Podemos, dessa maneira, aludir a esse conceito dizendo do amor transferencial que o aluno transfere ao professor. Freud (1914/2006) sublinha, pois, que as relações do sujeito com outras pessoas carregam uma marca da sua relação primordial - parentais - nos primeiros anos de vida.

Diante disso, entendemos que a relação aluno-professor não atravessa somente a mera relação pedagógica de transmissão de conhecimento, mas sim aponta para algo além, isto é, para a construção de saber, que implica a subjetividade tanto do professor quanto do aluno. Faz-se essencial esclarecer que conhecimento e saber são dois conceitos distintos e importantes para o entendimento da interlocução possível entre professor e aluno no âmbito escolar. Ao tratarmos de conhecimento, inserimo-nos no campo da informação, daquilo que é comunicado ao aluno, que é entregue a ele na forma de conteúdo em sala de aula. Por outro lado, quando falamos de saber, adentramos no campo da transmissão possível de elementos que perpassam a subjetividade de quem o transmite. Dessa maneira, o processo de ensino-aprendizagem se ancora na interlocução entre esses dois campos e se ampara na relação entre professor e aluno, interrogando em que medida o modo de transmissão do saber facilita a obtenção do conhecimento escolar.

Entendemos, também, que a não aquisição de conhecimento sinaliza algo de particular do sujeito, o que faz questão ao trabalho do analista na escola. Por esse viés, Lajonquière (1997) elucida a diferença entre saber e conhecimento. Este, quando transmitido, carrega uma marca, um traço identificatório, enquanto o saber, por sua vez, não se reduz ao conhecimento, porém implica o laço e o desejo. Sendo assim, podemos considerar que, no que tange às atividades escolares, estas parecem estar intimamente vinculadas às questões que perpassam o psíquico dos alunos e dos professores. Se algo vacila na relação aluno-professor, o aluno não aprende e, então, não corresponde ao modelo de bom desempenho idealizado pela escola.

 

Considerações finais

O que presenciamos em nossa prática é o analista sendo convocado a responder a imperativos que são contrários à sua ética e a ocupar o lugar de especialista para lidar com os aspectos emocionais que podem causar o sintoma do aluno, que desponta no ambiente escolar, já que são eles que afetam o comportamento inadequado do aluno, o que pode resultar no mau desempenho deste nas avaliações e exames de ingresso na universidade. A respeito disso, Brousse (2007) sublinha que o analista é responsável pela sua tomada de posição e por saber responder do lugar que lhe cabe na instituição, responsável por seu ato e guiado por uma ética, que implica em não responder à demanda voraz do Outro no lugar de mestre, mas sim em escutar o sintoma do sujeito. Para Lacan (1964/2003), a ética da psicanálise implica o compromisso com o desejo do sujeito, o que significa o sujeito ir de encontro ao seu desejo e confrontá-lo, diferente da proposta institucional, que visa a apagar o desejo do sujeito em prol da coletividade e da exigência social de desempenho.

Escutamos, nas queixas escolares, o que permeia o campo do mal-estar referente à não resposta do aluno no âmbito do ideal institucional, o que tende a unificar os sujeitos como ideais. Oliveira (2000) marca que "Essas queixas parecem traduzir um mal-estar sem objeto, advindo desse engano de que é possível uma satisfação total e uma a partir do Ideal de determinado grupo, determinada instituição" (p. 39). Parece haver uma dificuldade na escola - pautada no ideal social de desempenho do aluno - em lidar com o aluno que não responde a tal ideal e que fica, pois, numa posição de falta.

Apontamos um deslocamento da mestria do professor tradicional para o material didático, ministrado pelo professor da atualidade. Até então, o professor era uma figura de autoridade primordial para a transmissão de conhecimento. Ele passa a ocupar na escola da atualidade o lugar de mera ferramenta para tal transmissão; ferramenta que deve ser disciplinada para seguir rigidamente o método proposto pelos sistemas de ensino. Neste ponto, asseveramos que o dispositivo disciplinar destes "sistemas" se estende ao professor, deixando-o na posição de reprodutor do conteúdo presente nas apostilas. Percebemos, então, que a autoridade se aproxima mais do método de ensino do que da pessoa do professor.

Em nossa prática, testemunhamos o profissional psi ser convocado a responder às demandas institucionais de solucionar o problema daqueles alunos que estavam prejudicados quanto à assimilação do conteúdo transmitido em sala de aula, o que poderia inviabilizar o bom desempenho desses alunos no exame de ingresso na universidade.

Fundamentados na psicanálise, compreendemos que a eficácia do método de ensino não depende exclusivamente do uso correto das apostilas, mas sim da subjetividade do aluno, que pode aparecer na indisciplina, no pouco interesse pelo conteúdo, no mau desempenho escolar e na relação aluno-professor. Assim, aquilo que escapa ao bom funcionamento escolar interessa à Psicanálise.

Diante da nossa experiência em escola, do estudo dos sites dos grandes sistemas de ensino do Brasil hoje e da leitura teórica, podemos levantar algumas hipóteses a respeito do trabalho do psicanalista na escola por ora. Acreditamos que o saber do sujeito pode ter um lugar dentro da instituição, e é com isso que procuramos trabalhar, sabendo escutá-lo. Então, qual o lugar que o analista opera frente à demanda escolar de desempenho do aluno?

Na tentativa de responder às demandas escolares pautadas pela ideologia social atual, que destaca o desempenho como um novo mandato do sucesso profissional, o aluno entra em conflito com a sua construção subjetiva. Desse modo, o psicanalista lida com as marcas advindas desse imperativo ideológico escolar e social de desempenho para o sujeito.

Uma resposta possível é que, na instituição, o analista opera, sob transferência, a partir do lugar do não tudo saber, das oportunidades que encontra para intervir, que podem ser: conversas pontuais com os educadores pelos corredores da escola, um momento de silêncio, questionamento, um fato qualquer ocorrido na instituição, um corte.

Acreditamos que o psicanalista tem uma função fundamental quanto ao rearranjo das relações que permeiam o dia a dia escolar e que interferem tanto no funcionamento institucional quanto no mau desempenho do aluno e, também, no sofrimento psíquico de alunos e educadores. O psicanalista opera com o seu ato. Trata-se de se deparar com uma abertura dada pelo sujeito e/ou encontrada pelo analista para abrir a possibilidade de o sujeito falar, mostrando que ali há espaço de escuta para o seu dizer.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
Marina Silva Simões
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Fuad Kyrillos Neto
E-mail: fuadneto@ufsj.edu.br
Maria Gláucia Pires Calzavara
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*Psicóloga e Psicanalista. Mestra em Fundamentos Teóricos e Filosóficos da Psicologia pela Universidade Federal de São João Del Rei - UFSJ. Ministra cursos sobre criança, adolescente e educação.
**Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP. Professor Associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João Del Rei - UFSJ e do PPGPSI-UFSJ.
***Doutora pela Faculdade de Educação FAE-UFMG. Professora Associada da Universidade Federal de São João Del Rei e do PPGSI- UFSJ.
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http://www.bernoulli.com.br/sistema-de-ensino/
https://sistemapoliedro.com.br/escolasparceiras/o-sistema-de-ensino-poliedro/

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